[ DEZ POEMAS ]
OS OBJETOS NÃO CABEM NOS DIAS
Os objetos não cabem nos dias,
suas bordas
deslizam pelos corredores
da
claridade — na superfície
assustada de um planeta que hoje
sabemos
ser minúsculo; os objetos
nomeiam os dias
(com
sinais estreitos, sempre);
os objetos
— transpirando — situam
os
dias em algum
lugar do desejo: aqui
onde
ninguém
respira bem.
ENCAIXAR
O ROSTO NOS OSSOS
Encaixar o rosto nos ossos
das suas
costas se tornou para mim um
modo
de coincidir com
a paz;
debaixo dos
dentes, emergem (angulosos)
bons
goles de
pele
— compassadamente: sim:
a língua
se move melhor
em águas
largas.
O MEDO SEGURA SUAS FISSURAS
O medo segura suas fissuras,
enquanto alguns
tumultos se organizam
para testemunhar:
a última hora
é hora nenhuma —
todo
inacabamento tem
algo
de solar.
SOLTAMOS OUTRA SEDE
Soltamos outra sede
para perturbar a apatia imposta
aos dias;
crepitando, uma fenda —
manhã
multiplicada — agora
sim
nos infinda: afeto
atrai fala (e fala
faz faísca).
UM GOZO TEM MUITOS GUMES
Um gozo tem muitos gumes,
além de incontáveis
gatilhos; um gozo: exercício
(demorado
e exímio) de demolição —
seus ácidos
digerem a altura
do desamparo.
Peneirando os dentes, aperfeiçoar
a dança; mesmo
à míngua de memória:
o sal com
que prosseguir — um ex-país?
outro
protopaís? — ganha
agora
a garganta.
APRENDEREMOS
A DESCANSAR OS OLHOS NA ÁGUA
Aprenderemos a descansar os olhos na água
(entre novas fissuras).
A calma — apesar de tudo há calma — quase
abranda
o calor. Pedras
prensadas contra
o brilho
daquela manhã ali, respirando
dentro
de alguma fala. O dia é obrigado a se abrir:
aprofundamos
sua fome.
Com as pupilas
eletrocutadas.
O
QUE SOME DA FALA LOGO SOBE AO CORPO
O que some da fala logo sobe ao corpo
(por que não escondemos, por que não
escolhemos
nossos
escombros?). O que some da fala logo
sobe,
logo sobe pelo corpo — estreando
fraturas, reabrindo
brechas (não apenas
simbólicas) onde semear o que jamais
aceita
somente ruir — ação remota
e ao mesmo
tempo interminável: como qualquer
tumor:
o corpo
não cessa. O corpo não cessa de ser
erigido;
não cessa (também)
de
ser evocado — e, ainda,
e
-rodido.
Um rosto nasce em torno da voz,
embrulho que atiro
na areia
ou levo até a água (que lanço da janela ou
arrasto
pela
calçada); este é o rosto que atrai a cidade,
os tentáculos
da cidade — aprimorando, sem
se satisfazer, os primeiros
impactos
da manhã. (Da manhã: desfiada
sobre
o asfalto?) Você fala: você suspende
o oceano
(e não só a surdez; você
suspende
o oceano) movendo o maxilar.
FRITAMOS A AFASIA EM FOGO FARTO
Fritamos a afasia em fogo farto. Manipulando a
aplicação
de chuvas nos
campos indefinidos
do fôlego. Fritamos
a afasia
em fogo farto. Mobilizando a perpetuação
de lutas
nos cantos irrestritos
do
fôlego. Fritamos
a afasia
em fogo farto
— nada adia nossa lida:
com
as veias cheias/as artérias
repletas
de palavras:
a
coragem acolhe o cotidiano
na carne é na carne
que
o cotidiano acontece.
[ TRÊS PERGUNTAS
]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade
essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra
à tua criação?
CLM | O encontro com a literatura mudou meu
corpo, expandindo (melhor: polinizando) o modo como experimento o mundo. Numa
fase de angústias bem agudas, alguns textos como que me permitiram respirar
melhor. E foi caminhando diariamente com a poesia que atingi uma clareza nada
pacificadora: o amor é um exercício de coragem. Essa clareza — com toda a sua
inquietude — até hoje me escava. Medicinalmente. Pois a relação às vezes
impiedosa que recebe o nome de amor exige a aceitação do desamparo; ao assumir
isso (sem medo ou amarras), comecei a entrever o que pode vir a ser a
liberdade.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e
mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas
comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação
artística?
CLM | Há anos, a escrita de Clarice
Lispector tem sido, em meus dias, um território de intensificação da vida —
devido às pulsações, mas também às perturbações que ela inaugurou em mim. Outra
obra que me marcou (como uma força igualmente fundacional) é a de Orides
Fontela. Assim como a de Hilda Hilst: pela voltagem, pela voracidade com que
suas vozes buscam habitar o inapreensível. A lista — ainda bem — é infinda.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em
poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que
é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto
no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de
um movimento. O que observas a este respeito?
CLM | Eu me sinto pouco à vontade para
avaliar panoramicamente o cenário atual da poesia em nosso país, tão vasto e,
felizmente, tão versátil. Mas concordo com a afirmação de que não há exatamente
um movimento — o que existe são muitos coletivos. Contudo, penso ser pertinente
a verificação, na produção brasileira recente, de uma possível pulsão lírica.
Com a singularidade de cada trajetória de (e na) escrita: o contato polimorfo
com o desejo talvez seja um de seus eixos. Além do mais, considero relevante
outro ponto destacado, acerca da solidariedade, qualificada como explícita.
Acho mesmo que o chão de hoje tem sido revirado por uma prática da
contaminação. Como uma forma de combate, afetos propositivamente indóceis vêm
ganhando a rua. Tanto quanto a rede: menos uma matilha que um mutirão.
[FOLHA DE VIDA]
Casé
Lontra Marques nasceu em 1985, em Volta Redonda (RJ). Mora em Vitória
(ES). Publicou Desde o medo já é tarde,
O que se cala não nos cura e Campo de ampliação, entre outros.
Disponibiliza o que escreve em sua página pessoal:
caselontramarques.blogspot.com.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique
de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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