segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1981 ROBERTA TOSTES DANIEL


[ DEZ POEMAS ]

BAIXADA

Cá estamos
garupa e alçapão
desgovernados por janelas
o que queremos das encruzilhadas?
Vamos rentes às torres de alta tensão
nossos perigos não são carcaças
deixadas a esmo, de qualquer coisa
de nosso, o perigo é a velocidade.
O desenho que faz a silhueta de um ônibus no fim do mundo
e lá é tão fresco quanto o Jardim Botânico
os porcos andam sem que ninguém lhes aponte metáforas.
Vamos driblando o vazio de árvores que não se desvendam
vamos dando com pontes vazias, poentes úberes
acelerando ao vigor dos caminhões, irmãos nossos como elefantes.
Sujos de um punhado de sombras, um declínio de monte
uma promessa de fogo, um terreiro ao longe –
a música se enfaixa ao nosso corpo, cá estamos
múmias desse desejo de voar, de topar com o mundo em branco.


MEMENTO

Se cortam meus cabelos
as raízes
ou as pernas de Nijinsky
tudo constitui o fato central
de a vida ter seu eco no abismo.
As monções do pólen
devoram probabilidades
de haver certeza no vazio.
Mas o vazio é um ressurreto
que salta como um Deus
no alumbramento de Petrushka.
Cresce sempre e mais
que a paródia do domínio
a máquina da aparência
ou o feitio dos bosques.
Onde as sobras ainda vicejam
as sombras são como raios
e a revolta ainda não foi domada.


SKELETON TREE

Ninguém te ensina
a devassar
o cômodo
do que és.

Ninguém sabe
das sobras
do toco
das velas

no último murmúrio
dos sopros
dos rebites
dos charques
dos ramos.

Se a porta foi aberta
se a escalada foi íngreme
se a torre é de marfim
se a Bastilha caiu.

Importa que te abras
para a noite
na forma cavada por Nick
suas sementes ruins
seu solo árido.

Importa: que não me ouças
que não me entendas
que por ti galgues
e talvez transcendas.


WALSERIANAS

Ainda ontem, a coruja
pousada na existência
iludiu-me com a ideia
de conhecer Robert Walser.
Informou-me ter acompanhado
há muito, o sereno caminhante
e até Jakob existira
na profusão dos rostos que emanava.
Perguntei se aquela ideia insana
de andar até a morte
ser nulo, vago
paisagem na névoa
trouxe a ele a tamanha precisão
com as palavras.
Qual era a espécie de grito
que ele soubera conter?
Nada respondeu
a enfeitiçada e profunda
coruja, fez-me lembrar
o pássaro desolador
de Poe, tal a expressão
das pestanas, quase
um momento musical.
Na luz acesa da interrogação
a predação se fez doce
anularam-se os egos
restando o silêncio
pantanoso e comovente
do mistério.


[UM FILETE DE MATERIALIDADES]

I | Um filete de materialidades. Uma cascata de cansaços. Sinto desesperadamente tua falta. As agulhas deram para costurar sozinhas. Meandros de histórias se revelam em tecidos infinitos e gastos. Joguei fora um bocado de roupas. O armário segue abarrotado. Os livros empilhando. As palavras descascadas. Na alegria dos cachorros azuis e dos dias em uníssono, em torno a um sentimento vago, de quem esquece a cor dos próprios olhos. Ou os arranca. Um rosto de anamnese. Encaixe em galhos sortidos. Diana na penumbra de um porrete. Machucada pelas feras da sociedade. Diana, arquitetura espiritual, feita de rochedos e toques. Ninguém se esquece da jornada absurda da velocidade, do som eternizante de grama, de areia e de cal.

II | Preciso da sólida estrutura do fim do mundo. Para preservar a umidade dos peixes. Reagir à submissão entranhada antes da construção das caravelas. Nossos heróis dizimados. Nossos pés, calçados. Decalque nos penhascos. Os homens se mantiveram secos. Nenhum fluido. Letras mortas. Epicentro não achado. Hoje é verão, anos vinte. Falta pouco. A agulha tece e destece, sozinha. E a gente, até hoje, não quer deixar caixa aberta, a maldição sair. Nossos monstros são outros.

III | Acordei agora com a sensação do escafandro em meu corpo. No meio da noite, para quem se esgotou cedo. Me espanta a curva do tempo que flui desembaraçado enquanto me visto em escafandro para reter parte deste mergulho. Durmo por ciclos de esgotamentos. Insônias, inércias incidem flagelando estruturas mentais, inaugurando delinquências nos signos e nas razões. O azedume na boca diz que todos os poemas estão datados. De alguns saem vapores e trevas. De seus eixos, sintagmáticos, paradigmáticos. Deduzo que esses eixos não são comutáveis. Não há que se falar em fatalismo, mas em limite mágico. Devolvo a valise de cronópio. A mim me importa, mais que tudo, sua precariedade. Eternos que não se finalizam, dedos que se desdobram, costurados. Por serem devires e cristais, carne emancipada e corpo de escafandro. Escrevo e chove, agora pelo celular, graças ao aplicativo. Basta digitar a palavra certa e ouço sons do oriente. A palavra certa no poema datado. A infantaria do poema futuro. Um mushi, ao meu lado, talvez prestes em sua fatalidade a me entregar o lado sombrio das revelações.

IV | Escutar a beligerância do futuro – em láudano a espécie humana. Ontem atravessamos ilhas, o vento era o que cortava o ranho sujo do mar. Por aqui, guerras sendeiras e o óleo vazado de todas as lógicas. Mas, por aqui, o itinerário de um sol justo, o olho carne crua do mel. Seivas indistintas honrando e reconhecendo a flutuação dos códigos, das imanências, algo de duradouro no projeto que inclui um único dia.

V | Me valendo do andaime que eu nunca usei. Estranhando as notas altas e o meio de acesso ao conhecimento. Se me emociono, sei. Até que venha a me demolir em sua nova acepção da palavra caminho. Se me imiscuo no fato, ou no topo deste prédio com vista ao outro dia; se mais um andar da história desaba no hoje, nós que supostamente achamos não ser répteis, somos o rapto de nós mesmos na imensidão. Me nego a usar a definição de um minuto atrás – recorro à escala biológica, à herança mítica, ou à práxis de nossos antepassados no holocausto de vencidos e vencedores? Minha memória é uma migalha no universo, mas eu me recuso a cimentá-la.

VI | Tem essa coisa do eco dos poemas. O eco do que não se pode parar de dizer. Os peixes sendo os primeiros a entrar no navio. Afundado, por último, pelas mulheres e pelas crianças. O eco do que não se pode parar de dizer. Na ressonância do livro por vir, a primeira parte aberta ao canto das sereias. Ulisses amarrado ao mastro, o autor sem rosto, clamando pelo neutro, um tipo de morte do escritor. Não creio na morte do escritor. Mas na linguagem como a imagem de si mesma, fascinação do espelho a oferecer nova infância, mais sombria, um jogo de cartas, um duelo, homo ludens. Huizinga, Vygotsky, Wittgenstein. Nomes lúdicos. Blanchot de batismo – aquela fotografia de Rilke na biblioteca, a descrição nos cadernos de Malte do homem sedado pela atmosfera, os cabelos em pé das horas lidas. Construímos, desta feita, em camadas e vozerio – de preferência, em pianíssimo, nossos recifes, nossas ancorazinhas, nossos plânctons, nossos deuses.


SOBREPELE

Escrever. Ou vestir
o som da folhagem.
Cantar o corpo. O tempo
a lentos pássaros, dançado.
Reter o mágico instrumento.
Grifo de fogo:
tecido cru. Linguagem.
Sobre pele de deusa.
Ervas, as palavras.
Chamas
sobre eras dilatadas.


[UM FANTASMA ACATA PACIENTEMENTE SEUS HETERÔNIMOS]

Um fantasma acata pacientemente seus heterônimos
– avejão, espectro, sombra pavorosa –
dentro da umidade calorenta do fim do mundo.
Apenas um garoto, que espera em sua transparência, maior que a chuva
pelo dia do julgamento, quando finalmente libertará sua pele
de terra, folha, inseto. E beijará a menina morta.


O SANGUE DE UM POETA

You should know that the child’s guardian angel appeared

Jean Cocteau, Le sang d’un poète

Um menino cobre com seu corpo
o corpo de um menino morto.
A pele negra sobre o agora
que é apenas sangue e gelo
para sempre resvala
transmutada em asa de pássaro –
anjo ao adeus da infância.
O tempo os ignora.
Mas nos olhos acesos do poeta
o ecrã profetiza:
em seu sangue, o meu sangue.


LUZIA

Deus está deitado
de costas para o crime
para tudo que criou
espécie de inércia
primeira ou museu
a estocada final
som estridente
de coisas nascendo
e estrelas morrendo
som que não contém
razão de ser
se não distender
sua massa gravitacional
pedra jogada no rio
do vazio, bastasse
uma antena de maior
amplitude
para entender as engrenagens
cifradas do crime perfeito
um lamento guardado
no fóssil mais antigo
da América
qualquer substância
sarcófago
um campo de invertebrados
diagrama de línguas extintas
um meteorito que luzia
uma mulher de treze mil anos
ardendo
à sua sorte.


MÓBILE

Depor em minha vida, a vida de meu verbo
feito de visões: estrela-guia
de um reino sem lugar, sem palavra.

O jato das horas; o golpe do tempo
seu riso sufocante, de areia movediça
afogam na transubstanciação desta água.

Miramar pendente de mergulho
fôssemos meninos, braçadas
onde estivesse o mar

esta mão que enleia a tempestade
– sempre um visgo, um tremor
de vício nas mãos: escrever

asas em ruínas
fôssemos o chão
caminhássemos a chuva.

Mas como se apaga o chão
de terra lavrada?
A nuvem o que mais germina.

Guardemos silêncio
sobre a boca das palavras
em dia de visão.

Atravessemo-nos
com a perfuração das passagens
línguas em desastre.

Tantas palavras
o silêncio não é uma feira
vontade de dizer

para calar.
Estou abocanhada pelas ilhas
à borda de um reino em exílio.

O meu grito
o que desfaço
das imagens

com que me entrego
violentamente ao mundo
desmundo.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

RTD | São elementos que se fundem e possibilitam a criação, penso. Como disse Octavio Paz, quanto à palavra, “o poeta põe sua matéria em liberdade”. Acredito fundamentalmente nesses canais comunicantes e seus sentidos imbricados. O poeta é ele mesmo lavoura e foice, palavra alçada à possibilidade do amor (comunhão, desejo e transformação, como o próprio impulso libidinal), um impulso de morte que é pura potência também - vitalidade. Para isso, recuperar a essência luminosa por meio da artesania (sua condição de matéria-prima que labora o instante-mundo) e reinjetar na vida a potência que ela é, por vezes subjugada à maquinaria e ao utilitarismo. Poesia, amor e liberdade são experiências no tempo dotadas da força necessária para que as possa transcender ou cumprir sua imanência através da imaginação e da memória. Sendo um código de reconhecimento ou a dotação de um rasgo na inteligibilidade, trata-se da poiesis, de dar notabilidade e significação aos termos da vida. Vida-obra.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

RTD | Alejandra Pizarnik, pela força fantasmática e operação nas sombras, talvez minha poeta preferida, a que sempre traz esse “odor de cinzas molhadas”, como escreveu Joyce. Interessante citar outro escritor para falar dela, ela que num verso diz “me digo mis silencios”: parece fazer sentido. Há também Giuseppe Ungaretti, solário invernal; leio e é como antever o mundo navegando-o: natureza imensa, iluminada. Herberto Helder, pela absurda capacidade de comungar todas as coisas, distribuindo por veias e raízes a monumentalidade do sangue e da palavra. Daniel Faria, porque é evidência de pássaro e canto de alaúde, melancolia de orvalho. Orides Fontela, pela lucidez-síntese, o que René Char afirma ser o próximo do sol; ponto alto em nossa poesia. Paul Celan, pelo hermetismo e capacidade de recontar o trauma, e dar ao social o inefável e trágico humanos. Murilo Mendes, que converge para o símbolo. Marceli Andresa Becker, poeta contemporânea, faz da atmosfera um lamento erótico, os quarenta graus de febre de Sylvia Plath. Antonio Gamoneda, pelo gélido manancial de cavalos. Juan Gelman, pela ternura e rebelião. Paul Auster, pelo manejo com as palavras. Laura Riding, pela mente fotográfica, relampejando ocorrências. Robert Walser, pela caminhada, que reforço com T. S. Eliot: “Só quem se arrisca a ir longe demais descobre o quão longe se pode ir”. Tantos, tantos outros.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

RTD | Vejo, sim, um movimento de renovação, embasado na solidariedade e no afeto, na aquisição e partilha de referências que vão se engendrando na alteridade e na frequência comum. Como você disse, não se trata de um movimento, mas um estar comum. Estamos vivendo, acredito, um momento particularmente frutífero na poesia brasileira, com a vocalização de diferentes timbres, muitos, raros, imensamente potentes, que nos estimula a continuar criando e conhecendo. Nela, há espaço para esse lirismo que renasce com elementos contemporâneos.


[ FOLHA DE VIDA ]

Roberta Tostes Daniel (Rio de Janeiro, 1981). Seus poemas foram publicados em antologias, sites e revistas literárias, no Brasil e em Portugal, tais como: Mallarmargens, Zunái, Musa Rara, Diversos Afins, Estrago, Incomunidade. Participou das antologias Desvio para o vermelho (Centro Cultural São Paulo. Org. Marceli Andresa Becker), Amar, verbo atemporal (Ed. Rocco. Org. Celina Portocarrero), História Íntima da Leitura (Ed. Vagamundo. Org. Fabiana Turci), Crônicas de um amor crônico (Ed. Penalux. Org. Moreno Pessoa e Priscila Rôde). Em Setembro de 2018, publicou seu primeiro livro, Uma casa perto de um vulcão (Ed. Patuá). Contato: robertatostes@gmail.com.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
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