CW | Oswald de Andrade, você se refere bem criticamente a
ele, neste livro e em outros lugares. Recentemente, tive acessos de prazer com a
releitura de Memórias sentimentais de João Miramar e de Serafim Ponte
Grande. Aquelas metonímias todas de Memórias, ninguém fazia aquilo, ninguém
fez, foi o que houve de mais moderno e transgressivo naquele momento. Serafim, então,
aqueles manifestos anarquistas… E a própria ideia de Antropofagia, nela havia lugar
para Surrealismo, para uma incorporação de Surrealismo que não foi levada adiante,
nem por Oswald, que preferiu ser, em suas palavras, “casaca de ferro do Partido
Comunista”, nem por mais ninguém. Poeta bem oswaldiano, para mim, é o Piva, bem
mais que marioandradino. Antropófago e, mais notadamente em Coxas, repleto de alusões que ainda não foram
percebidas a essas duas narrativas em prosa de Oswald. E em passagens como Exu
comeu tarobá de Quizumba,
que você colocou em O Começo da Busca, onde cita Jorge de Lima, mas refere-se
a esse aspecto do nosso modernismo. Não se trata, nisso que estou apontando, do
“surrealismo à brasileira” de Murilo, mas de uma ampliação da subversão. Vejo sementes
disso dentro dessa obra múltipla, fragmentária, desigual, dando tiros em todas as
direções, trocando temas e tratamentos literários (Miramar, p. ex., pedia tratamento realista, pelo que ele relata, história
de crise burguesa), porém inquieta e subversiva de Oswald.
FM | Oswald propiciou inúmeras polêmicas. A busca das “fontes
puras do primitivismo”, ele entendia como possibilidade única de despir a arte de
“convencionalismos e sofisticações”. Tento entender a ideia de convencional, mas
penso a que tipo de sofisticação nos teria levado o Futurismo tão cultuado por ele
e Mário de Andrade. Claro que fazia média quando dizia dos poetas que o sucederam:
“são todos superiores a mim”. E a própria escritura paródica que perseguia na poesia
implicava ao menos em uma busca de sofisticação estilística. Reconheço certa aproximação
no lance de imagens de Quizumba (RP, 1983), como afirmas, mas podemos pensar,
com o próprio Roberto Piva, naquela “experiência alquímico-futurística da cidade”
que aproxima Pauliceia Desvairada (MA, 1922) e Paranóia (RP, 1964).
Nos dois casos são aproximações parciais. A poesia de Oswald e Mário está aquém
dos desdobramentos imagéticos e sintáticos alcançados por Piva, sem falar que a
vertente anárquica deste último está mais ligada a Dadá, de onde inclusive surgiu
a noção de um canibalismo que depois seria absorvida pela Antropofagia. Tampouco
creio que houvesse espaço para Surrealismo ali, pois já a Semana de 22 era fruto
das afinidades de Mário e Oswald com Marinetti, ou seja, já se desenhava, dentre
outros equívocos, uma ideia de nacionalismo que iria dar em extremistas como Plínio
Salgado. Curioso é observar que, nos anos 50, despertavam a atenção de Oswald novos
poetas como Thiago de Mello e Geir Campos – o mesmo Oswald que considerava Ledo
Ivo “um caso típico do soldado do Exército do Pará”. Acho que o Franklin de Oliveira
tem razão naquela observação de que “todo mau poeta é mau pensador”. Oswald era
um polemista sem sustentação alguma. Evidente que aqui não nos interessa essa ingenuidade
do Murilo de um “surrealismo à brasileira”. Mas se vamos separar afirmações e atos
que denunciam o caráter de um autor e a própria obra, mesmo aí não vejo em Oswald,
no construtivismo frustrado de uma poética, nada que o aproxime do Surrealismo.
Basta ler Os dentes do dragão (1990), recolha de entrevistas, para compreender
melhor obsessões e oscilações estéticas deste poeta.
CW | É. Em Oswald há o melhor e o pior, e nem um nem outro
tem continuidade, ambos são fragmentários. Nas apreciações críticas de seus contemporâneos,
está o pior dele. E o capítulo do que o Modernismo ignorou, ou do que passou por
cima, ou ao lado, é extenso. Inclusive do que já havia de inovador e transgressivo
acontecendo aqui, entre simbolistas, por exemplo. Futurismo, a ideologia da modernidade
enquanto tal, o moderno adotado como valor, é claro que são coisas que não há como
aceitar, mas os manifestos iniciais do Futurismo são de uma irreverência colossal.
Se ao menos houvessem adotado isso para valer, já seria algo. Agora, sobre Surrealismo
no Brasil, na primeira metade do século XX, enxergo duas, como diria – …visões?
leituras? histórias? Uma, de que não houve Surrealismo, ou quase não houve, quer
fosse por inadequação (Antonio Candido, José Paulo Paes), ou por causa de um ambiente
cultural tacanho, provinciano, católico, positivista, de um nacionalismo estreito,
etc. A outra, mais explícita no que Sérgio Lima publicou em Órganon e em
Surrealismo e Novo Mundo, e em certa medida em Valentim Facciolli, é de que
houve Surrealismo, sim, mas não foi incorporado à História, não foi adequadamente
registrado – também porque o ambiente cultural era tacanho, provinciano, católico,
positivista, de um nacionalismo estreito etc.… Sem poupar ambiente cultural, parece
–me que em O Começo da Busca você não chega a adotar nem bem uma, nem bem
a outra dessas versões ou interpretações.
FM | Talvez caiba dizer que a grande obra do Futurismo são
os manifestos. Marcel Duchamp foi quem mencionou que o Futurismo era “um impressionismo
do mundo mecânico”, ou seja, aquela coisa da retina funcionar como “uma inesgotável
fonte de prazer” que, no dizer de Max Ernst, caracterizava o Impressionismo, vale
para o Futurismo, desde que pensemos que os futuristas tinham olhos apenas para
um mundo mecânico (“Escutar os motores e reproduzir seus discursos”). Agora, também
o Mário de Andrade foi um notável autor de manifestos, não? Tanto em um caso como
no outro, quanto se adotou pra valer, em termos de fazer coincidir com a ação o
discurso dos manifestos? Mas pensemos nessa relação entre Modernismo e Surrealismo,
observando, por exemplo, que Breton e Mário de Andrade tinham pensamentos opostos
acerca da analogia. O que em um era pleno exercício de liberdade, no outro não passava
de mera substituição da “coisa vista pela imagem evocada”, constituindo-se assim
em “um dos maiores perigos da poesia
modernista”. Mário manifestou-se acerca da beleza apenas compreendendo a distinção existente entre o “belo artístico” e a “beleza da natureza”, jamais percebendo a condição convulsiva que lhe indicaria Breton. Havia um certo acanhamento em nossa ruptura, em nossa transgressão. Claro que o ambiente era pautado por essa mescla de provincianismo, catolicismo exacerbado, nacionalismo limitador etc. Mas cabe ao poeta romper com isso, não? Ele não pode ser a medida do ambiente em que circula. E nossos modernistas, de alguma maneira, mais se acomodaram ao ambiente do que propriamente romperam com ele. Vi um documentário na TV, sobre o Modernismo, onde se dizia que nossos rapazes haviam recuperado o barroco. É um duplo equívoco, seja porque não havia barroco algum a ser recuperado como, sobretudo, porque o barroco não se manifestou nas obras modernistas. Um bando de intelectuais levando Blaise Cendrars para conhecer as cidades mineiras (Ouro Preto e cercanias) não é recuperação do barroco, francamente. As versões de existência e inexistência de Surrealismo no Brasil são complementares, ou melhor, frutos de uma mesma falha de visão. O Surrealismo entranhou-se em toda a criação artística que melhor expressa o século XX. O Brasil não lhe ficou alheio. Mas havia uma rejeição enorme, sobretudo provocada pelo que tu mesmo já chamaste de “caipirismo brasileiro disfarçado de nacionalismo”, aspecto que, por sinal, possui uma dimensão muito mais abarcadora, no tempo e no espaço, do que se possa imaginar. Por outro lado, ao tentar recuperar as pistas de circulação do Surrealismo entre nós não posso sair a afirmar que tudo é Surrealismo. A história do Brasil é o registro colossal de um acúmulo de farsas. Caberá recuperá-la a partir de uma leitura lúcida dos acontecimentos, não transferindo aos mesmos nossos desejos ou preconceitos.
modernista”. Mário manifestou-se acerca da beleza apenas compreendendo a distinção existente entre o “belo artístico” e a “beleza da natureza”, jamais percebendo a condição convulsiva que lhe indicaria Breton. Havia um certo acanhamento em nossa ruptura, em nossa transgressão. Claro que o ambiente era pautado por essa mescla de provincianismo, catolicismo exacerbado, nacionalismo limitador etc. Mas cabe ao poeta romper com isso, não? Ele não pode ser a medida do ambiente em que circula. E nossos modernistas, de alguma maneira, mais se acomodaram ao ambiente do que propriamente romperam com ele. Vi um documentário na TV, sobre o Modernismo, onde se dizia que nossos rapazes haviam recuperado o barroco. É um duplo equívoco, seja porque não havia barroco algum a ser recuperado como, sobretudo, porque o barroco não se manifestou nas obras modernistas. Um bando de intelectuais levando Blaise Cendrars para conhecer as cidades mineiras (Ouro Preto e cercanias) não é recuperação do barroco, francamente. As versões de existência e inexistência de Surrealismo no Brasil são complementares, ou melhor, frutos de uma mesma falha de visão. O Surrealismo entranhou-se em toda a criação artística que melhor expressa o século XX. O Brasil não lhe ficou alheio. Mas havia uma rejeição enorme, sobretudo provocada pelo que tu mesmo já chamaste de “caipirismo brasileiro disfarçado de nacionalismo”, aspecto que, por sinal, possui uma dimensão muito mais abarcadora, no tempo e no espaço, do que se possa imaginar. Por outro lado, ao tentar recuperar as pistas de circulação do Surrealismo entre nós não posso sair a afirmar que tudo é Surrealismo. A história do Brasil é o registro colossal de um acúmulo de farsas. Caberá recuperá-la a partir de uma leitura lúcida dos acontecimentos, não transferindo aos mesmos nossos desejos ou preconceitos.
CW | Em suma, em matéria de reconstituição de Surrealismo
no Brasil, ainda há muito a ser feito. E procedendo-se, antes, ao resgate do que
é excêntrico, do que ficou à margem. Por exemplo, Rosário Fusco, ou, tomando um
autor mais recente, Campos de Carvalho. “Surrealismo à brasileira” – se estivesse
falando em vez de escrever, diria que estou pensando em voz alta – se tomarmos o
que é discrepante hoje – por exemplo, esse estranhíssimo Jarbas Medeiros de Minas
Gerais, que assina Mafalda Cataraz – ou então, o R. Roldan-Roldan de Campinas –
tipos realmente estranhos – teríamos mais componentes de uma subversão à brasileira,
base, quem sabe, de um “surrealismo à brasileira”, na mesma medida em que houve
uma subversão francesa, preexistente ao surrealismo, pois, conforme já observei
em outras ocasiões, a loucura campeava na Belle Époque, e o que o surrealismo fez
foi procurar sistematiza-la, dar-lhe sentido político. Eu queria voltar ao nosso
Modernismo, e ao que ele deixou de enxergar, ao que não viu, ou viu de modo disfarçado,
não-declarado: literatura licenciosa brasileira do século XIX, como a de Bernardo
Guimarães (em Oswald de Miramar e Serafim dá para perceber que sim, que ele
viu isso); não gostaram do anti-beletrismo de Lima Barreto (e vice-versa) – nem
do que havia de mais excêntrico em nosso Simbolismo – além de não haverem reparado
em Souzândrade etc. Enfim, é a isto que eu queria chegar: aqui não houve a “correia
de transmissão” de que fala Breton com relação ao que o Simbolismo tinha de mais
subversivo. Até que ponto, pergunto, você consegue enxergar essas correias de transmissão
nos surrealismos de outros países latino-americanos? Inclusive com relação a uma
ramificação importante e influente do Simbolismo, que vem a ser o modernismo de
Rubén Darío? Será que estou sendo claro em minha pergunta? Aliás, reconhecendo que
fazer isso, reconstituir correias de transmissão com relação a subversões locais,
nesse ou naquele país, é uma tarefa ciclópica. Sabendo, ainda, que quem fez isso,
em parte, e de modo bem parcial, conforme você aponta, foi Octavio Paz.
FM | A leitura do excêntrico permite certa mitificação,
tanto maquiando o que se resgata, superestimando-o, quanto deixando escapar o que
foge a essa tipificação. Basta pensar que a pesquisa na criação artística, que Mário
de Andrade situa como uma das contribuições centrais do Modernismo, já vinha sendo
feita por um Alberto Nepomuceno, músico que seguramente teria participado da Semana
de Arte Moderna se acaso não tivesse morrido dois anos antes. Pois bem, as pesquisas
de Nepomuceno foram deixadas para trás e o nome de Villa-Lobos – um excêntrico,
independente da qualidade de sua música – acabou sendo a grande referência de nossa
entrada da modernidade. A opção pelo excêntrico nos leva a uma leitura caricatural
da cultura. Acho interessante que o R. Roldan-Roldan refira-se à arte como “um grito
de libertação”, lembrando que a mesma “não é racional”, e que o Jarbas Medeiros
situe o progresso como uma “mentira vital”, ambos aparando certos vícios conceituais.
A ficção do primeiro está por merecer uma leitura que não ponha à margem a condição
erótica. O segundo interessa, sobretudo, pelas abordagens críticas, mas lembrando
que uma antevisão dessa “degradação da identidade”, que Roldan-Roldan menciona como
sendo “uma das mais deploráveis características de nossa época” já a encontramos
nos romances de ficção científica. E coloco isto aqui reafirmando essa condição
da arte de antecipar a história. Me atrai quando falas que os modernistas “viram
de modo disfarçado, não-declarado”. Sei que mencionas apenas a literatura licenciosa,
mas essa maneira de olhar cabe em muitos outros aspectos. Às tuas referências podemos
acrescentar a ficção de um Adolfo Caminha. Fato é que essa “correia de transmissão”
não ocorreu entre nós. O argentino Francisco Madariaga tem uma distinção entre Surrealismo
na Europa e na América Latina que me parece fundamental mencionar aqui. Diz ele
que o Surrealismo sempre lhe foi uma boda e não um protesto: “não me serviu para
rejeitar o mundo, mas sim para celebrá-lo”. E diz ainda: “a realidade americana,
com seus excessos, já cumpre com a rebelião que os europeus deveriam levar adiante
através de seus ataques ao racionalismo”. Tal celebração, no entanto, deve ser observada
criteriosamente. No caso do Chile, por exemplo, o grande pai da modernidade que
é Pablo de Rokha deu à poesia chilena seus melhores e piores versos, como se costuma
dizer. Logo em seguida teríamos Huidobro, Rosamel del Valle, Neruda e Díaz-Casanueva.
No entanto, o grupo surrealista Mandrágora não estabelecia vínculos de espécie alguma
com essa tradição. No Peru havia ainda um gesto mais exacerbado de ruptura. E ficaríamos
aqui enumerando situações idênticas. Octavio Paz é de uma geração posterior à dos
primeiros poetas surrealistas. O chileno Ludwig Zeller chamou a atenção para a poesia
de Rosamel del Valle, seu fundamental aporte surrealista. Chegou a publicar livros
do mesmo. Paz não foi parcial, mas antes discricionário. Minimiza a presença do
Surrealismo no grupo Contemporáneos e
estabelece falsas conexões, sempre com interesses políticos que visavam mantê-lo
na pauta do dia. As conexões que mencionas não existem intencionalmente, não foram
buscadas. Por uma análise histórica podemos localizá-las, como o faz Stefan Baciu,
por vezes até inventando antecedentes para o Surrealismo na América Hispânica, como
situa o argentino Girondo e, sobretudo, o chileno Huidobro. Dessas conexões vistas
a posteriori são exemplos o venezuelano José Antonio Ramos Sucre e o peruano José
María Eguren. Se entendi bem tua colocação, ela diz respeito a um diálogo entre
Surrealismo e um passado local, subversões marginalizadas, prenunciações etc. Um
exemplo solto: Blaise Cendras vir ao Brasil e nos apresentar a riqueza subversiva
de um Príncipe do Fogo.
CW | Que beleza! Com essas observações, você está continuando
e detalhando o ensaio de O Começo da Busca, talvez iniciando o estudo que
falta sobre movimentos poéticos na América Latina, examinando-os no detalhe, e não
só no atacado ou em forma de diagrama, como no restante da bibliografia. Que coisa
estranha – chilenos, e muitos outros latino-americanos embeberam-se de geração 27
espanhola, que, por sua vez, naquele momento, havia assimilado, sim, imagética surrealista
– e acho que Ángel Pariente registrou isso corretamente. E, ao mesmo tempo os surrealistas
latino-americanos propriamente ditos não tinham nada a ver com isso, fizeram outro
tipo de conexão…! Sou contra um tipo de visão meio religiosa de surrealismo, apenas
como realização de princípios ou fundamentos. Sempre, e isso vale para os surrealismos
(é, assim mesmo, no plural) ibero-americanos e para esse colossal Surrealismo português
à margem do Surrealismo, relacionaram-se com um contexto, não no sentido de o expressarem
(o que seria determinismo), mas de interagir, reagir, adotar posturas críticas com
relação a isso ou aquilo. A essa historicidade dos surrealismos correspondem grandes
momentos de lucidez. Reconstitui-los é trazer algo de importante ao conhecimento
da relação entre literatura e sociedade, e da relação de cada movimento ou manifestação
com os seus particulares contextos literários e sociais. Ah sim, gostei de você
estar sabendo do Jarbas e do Roldan-Roldan. Antenadíssimo. Precisamos dedicar futuramente
algumas linhas a cada um deles. Mas prossigamos nessa questão da diversidade de
histórias e situações dos surrealismos. À frente, ainda quero entrar na diversidade
da expressão propriamente literária, na pluralidade das escritas surrealistas, bem
tratada em sua antologia.
FM | O roteiro dessas conexões a serem revistas – na maior
parte delas, anotadas pela primeira vez – é algo fundamental e que tem escapado
à nossa historiografia. Aliás, eu me pergunto se o verbo é este mesmo. Veja o caso
da biblioteca do Mário de Andrade, com inúmeros exemplares de livros hispano-americanos
devidamente autografados, ao mesmo tempo em que ele jamais se manifestou a respeito
dessa literatura. E não é verdade que o desinteresse era mútuo. Nos anos 50, por
exemplo, o grupo Poesía Buenos Aires estava interessado no Brasil, através de Raúl
Gustavo Aguirre e principalmente de Rodolfo Alonso, e publicaram na revista homônima
poemas de Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Agora, eu acho até natural a existência
de uma relação entre Espanha e América Hispânica – o que não ocorreu entre Brasil
e Portugal. Já nos anos 20, havia uma interação, envolvendo nomes de um lado e outro,
tais como César Vallejo, Vicente Huidobro, Juan Larrea e Gerardo Diego. Poetas como
Juan Ramón Jiménez, Luis Cernuda e Federico García Lorca influenciaram largamente
a poesia hispano-americana. Contudo, esta poesia soube renovar-se, o que não ocorreu
com a espanhola. Recorde que Breton não falava espanhol – nem demonstrou nenhum
interesse em aprendê-lo –, vindo daí uma completa falta de visão acerca do que se
passava com a poesia em toda a extensão do idioma. Aliás, essas conexões com outras
culturas foram feitas em grande parte graças ao Benjamin Péret. Também sou contra
todo tipo de inquestionabilidade. E cabe mencionar que justamente o Surrealismo
se fez mais forte naqueles artistas que souberam adotar uma postura crítica, assim
possibilitando desdobramentos que enriquecem o assunto. Interessa aí traçar uma
distinção entre visão crítica e rejeição a priori. Enrique Molina diz que “a poesia
deve nascer, não de ideias intelectuais, mas sim de vivências profundas”. Tal observação
nos permite uma releitura de Lugones e Borges, por exemplo. Ou como o próprio Molina
sugere: uma distinção entre Baudelaire e Mallarmé. Complementares? Sim, desde que
percebamos as distinções. Outra estranheza envolvendo o Surrealismo relaciona-se
com o realismo mágico da prosa de ficção hispano-americana. É uma tolice pensar
que essa ficção tenha representado uma rejeição ao realismo sem influência do Surrealismo.
Não chega a ser um desdobramento pelo simples fato de que isoladamente a perspectiva
estética não interessa ao Surrealismo. E em termos de compromissos existenciais
bem sabemos a querela que envolve autores ligados a essa tendência. Há, contudo,
uma presença marcante na literatura latino-americana que diz respeito à prosa poética.
Somente uma cegueira crítica muito particular não permite a leitura de José Antonio
Ramos Sucre, cuja obra poética foi toda escrita em prosa. E há ainda outro aspecto,
o do verso de corte longo, que extravasa a linha e segue praticamente em busca do
infinito, imprimindo um ritmo bem distinto da ruptura já provocada pela inserção
do verso livre. Pois bem, essa medida do verso, que hoje encontramos em um José
Kozer, caberia observá-la à luz da poesia do chileno Pablo de Rokha ou do argentino
Enrique Molina, por exemplo. Não quero dizer, claro, que esses aspectos todos estejam
ligados ao Surrealismo. Minha preocupação é bem outra: que sejam discutidos sem
preconceito algum.
CW | O que vejo nesses seus comentários, onde acabamos abarcando
desde Jarbas Medeiros até José Antonio Ramos Sucre, passando por Adolfo Caminha,
não é apenas uma possibilidade de ampliação do estudo sobre Surrealismo. É algo
maior, diria até de dimensões enciclopédicas, o levantamento e o estudo do excêntrico
em literatura, do insuficientemente lido, daquilo ainda não incorporado ao repertório
dos críticos e aos cardápios dos estudos literários. De certo modo, isso é feito
em Agulha Revista de Cultura, e de modo
mais sistemático na Banda Hispânica. O
último comentário que eu teria, então, assim completando minha participação nessa
nossa conversa, é sobre a diversidade da poesia surrealista, evidentemente por confundir-se
ou sobrepor-se em parte a esse continente do que está à margem, do não-catalogado,
portanto do diverso. Dessa diversidade faz parte o pathos, a intensidade passional evidente em César Moro, sem dúvida um
hiper-romântico, assim como, no polo oposto, a ironia e a vocação até satírica
de Juan Calzadilla. Ou então, a combinação de furor, lirismo e sarcasmo em Piva. E também, indo ao detalhe, algo como o Retorno de Nietzsche de Raúl Henao (belo poeta, por sinal – fica evidente, por essa seleção, que todos eles mereciam ter mais obras publicadas aqui…), ampliando o que se pode entender por “surrealismo”. Isso que chamo de diversidade dentro do Surrealismo ficaria mais evidente ainda se houvesse sido possível incluir alguém como o venezuelano Pérez Perdomo, um sui generis por excelência. Enfim, todos são poetas surrealistas, e, ao mesmo tempo, poetas com personalidade própria – talvez por isso mesmo, por terem personalidade própria, acabaram estabelecendo vínculos – distintos em cada caso – com o Surrealismo.
de Juan Calzadilla. Ou então, a combinação de furor, lirismo e sarcasmo em Piva. E também, indo ao detalhe, algo como o Retorno de Nietzsche de Raúl Henao (belo poeta, por sinal – fica evidente, por essa seleção, que todos eles mereciam ter mais obras publicadas aqui…), ampliando o que se pode entender por “surrealismo”. Isso que chamo de diversidade dentro do Surrealismo ficaria mais evidente ainda se houvesse sido possível incluir alguém como o venezuelano Pérez Perdomo, um sui generis por excelência. Enfim, todos são poetas surrealistas, e, ao mesmo tempo, poetas com personalidade própria – talvez por isso mesmo, por terem personalidade própria, acabaram estabelecendo vínculos – distintos em cada caso – com o Surrealismo.
FM | O que estamos fazendo na Agulha Revista de Cultura não tem equivalente em nossa imprensa cultural.
Não se trata simplesmente de recolher matérias interessantes e publicá-las. Estamos
sistematizando possibilidades de leituras críticas acerca de nossa realidade, de
uma maneira ampla e sem vício ou acomodação de ordem alguma. E, sobretudo, estamos
buscando temas e colaboradores que, além da consistência indispensável, constituam
um repertório não percebido por críticos, editores e jornalistas de uma maneira
geral. No caso da Banda Hispânica, ali
se encontra particularizada uma ambientação hispano-americana, centrada na poesia
e no ensaio. Já observei que futuramente o material que se encontra disponível pode
ser convertido em livros múltiplos, de ensaios, entrevistas, depoimentos etc., inclusive
volumes monotemáticos sobre determinados autores. Trata-se de um vasto material
crítico que vem sendo disponibilizado com atualizações bimestrais e que bem poderia
já estar sendo utilizado por professores de literatura em nossas universidades.
Também já poderia contar com o apoio, em termos de difusão, da parte da imprensa
impressa, amparando a complexa tarefa de refazer todo um país de um estado de mendicância
cultural. Quanto à diversidade do Surrealismo, a partir do que se pode perceber
nas páginas de O Começo da Busca, sim, há um amplo espectro que o livro apenas
ajuda a descortinar. Evidente que se pode pensar em novas edições ampliadas ou mesmo
em um segundo volume, sem dúvida, aí incluindo a possibilidade de antologias pessoais.
Poetas como o equatoriano César Dávila Andrade, os dominicanos Domingo Moreno Jiménes
e Franklin Mieses Burgos, este venezuelano tão bem evocado por ti, Francisco Pérez
Perdomo – cujo livro Los venenos fieles (1963)
necessita ser recuperado –, o guatemalteco Luis Cardoza y Aragón, os argentinos
Carlos Latorre e Olga Orozco, dentre inúmeros outros, não nos deixando de fora uma
vez mais, são exemplos dessa diversidade que mencionas. Inclusive caberia observar,
sem os costumeiros prejuízos de escolas ou mesmo igrejas literárias, as saudáveis
influências do Surrealismo na obra de outros tantos (José Lezama Lima, Jorge Gaitán
Durán, Blanca Varela). Como essas aproximações ou recuperações não foram feitas
até hoje, e isto em âmbito continental, é natural que nos ressintamos de muitas
ausências. De qualquer forma, confirma-se o mais importante: a inexistência de um
segmento irreflexo do Surrealismo na América Latina. Nenhum desses poetas disse
amém cegamente às origens parisienses do movimento. Souberam fazer uma inestimável
leitura, mantendo particularidades essenciais à defesa estética de cada um, o que,
a rigor, amplia e mantém aceso o ânimo surrealista.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919 –2019
Artista convidado: Alfonso Peña
(Costa Rica, 1950)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 129 | Março de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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