sábado, 2 de março de 2019

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Surrealismo na literatura de língua alemã


O surrealismo, como importante movimento intelectual do século vinte, originário na França e com forte repercussão mundial, quase não obteve destaque na literatura de língua alemã. A obra de Friederike Reents, Surrealismo na literatura de língua alemã, [1] uma das raras e mais completa pesquisa nesta área, traz um compilado de ensaios escritos por especialistas, por ocasião do congresso, em 2008, na Universidade de Heidelberg, sobre as possíveis fontes surrealistas na literatura de língua alemã. Através desta pesquisa mais atenta que abrange do Romantismo ao Idealismo, como algumas figuras chaves do Modernismo, da literatura do Terceiro Reich, passando pelo pós-Guerra na Alemanha e na França até os dias de hoje, poderemos encontrar vestígios ou fontes do surrealismo. A questão é até que ponto podemos reconhecer características surrealistas, se os motivos centrais do sonho e do fantástico já aparecem no Romantismo, no Expressionismo ou Dadaísmo de forma que o surrealismo alemão não teve necessariamente um desenvolvimento independente e determinado como nos outros países. Alguns especialistas reconhecem determinados aspectos surrealistas na literatura de língua alemã, enquanto outros são categóricos em afirmar que não existe surrealismo alemão, assim como não existiria o Expressionismo francês. As declarações contraditórias mostram que é controverso na história da literatura de língua alemã se determinados escritores alemães podem ser atribuídos ao surrealismo e se o surrealismo pode ser encontrado como um movimento na literatura dessa língua.
Como a fronteira entre o expressionismo e o surrealismo é, em determinados aspectos, tênue, e os movimentos ocorreram em determinado período simultaneamente (o expressionismo surgiu na Alemanha entre 1910 e 1924 e o surrealismo na França por volta de 1918 a 1930), muitos autores de língua alemã obtiveram a classificação de expressionista. Os temas da época como a guerra, a vida na cidade, o medo da perda de identidade e decadência geral caracterizavam as obras dos escritores expressionistas. Assim como os surrealistas, os representantes do expressionismo literário não se importavam com a representação compreensível da realidade. Eles enfatizavam o acontecimento sem construir um caminho racional e evidente para a compreensão do mesmo. Nesta atitude, a sensação de estar perdido é particularmente clara, análoga ao estado onírico encontrado no surrealismo. E assim como o expressionismo está associado à guerra, o mesmo se passa com o surrealismo, como afirma Breton: “eu insisto para o fato de que o surrealismo só pode ser entendido como acontecimento histórico ao ser relacionado à guerra.” [2]
Elisabeth Langgässer, Ernst Jünger, Egon Vietta, Rudolf Schlichter e outros receberam o rótulo de surrealista ao longo do tempo. No entanto, ocorre que os referidos autores são mais propensos a corresponder a uma atribuição diferente. Pesquisadores chegaram à conclusão de que seria mais apropriado chamá-los de supranaturalistas ou super-realistas. O especialista Gregor Streim compreende na poética de Ernst Jünger, Egon Vietta ou Rudolf Schlichter uma forma de “Überrealismus” (superrealismo) em que o sonho deixa de ser o mecanismo das forças imaginárias e passa a ser meio de revelação mística. Para Christian Benne, Robert Walser seria o autor de língua alemã “com as mais fortes afinidades e paralelos com os métodos poéticos do surrealismo.” Mesmo Franz Kafka possuiria traços de surrealismo em alguns de seus escritos, segundo especialistas.
Limito-me a mencionar cinco autores os quais muitos historiadores classificaram algumas de suas obras como precursoras do surrealismo. No tangente aos poetas Paul Celan e Gottfried Benn estes tiveram as suas primeiras criações literárias classificadas como expressionistas e/ou surrealistas.
Como crítico de arte, Carl Einstein (1885-1940) acompanhou o cubismo, o expressionismo, o construtivismo e o surrealismo e foi uma das figuras formadoras da cena artística alemã dos anos 1920. Einstein tornou-se o principal teórico da “geração romântica” e do surrealismo, especialmente nos círculos literários nos quais faziam parte Georges Bataille e Michel Leiris. O autor ficou conhecido com a obra “Arte do Século XX”. Seu radicalismo criativo e intelectual, bem como sua posição mediadora entre as artes, as nações e as culturas, levaram ao renascimento do Expressionismo da Restauração do pós-guerra. Em 1912, Einstein publicou Bebuquin ou os diletantes do milagre, no jornal expressionista The Action. Concebido como um “anti-romance” o texto antecipa o dada e o surrealismo. Em 1915, foi a vez de Negerplastik que apareceu como uma ampliação do campo de visão em comparação à estética da chamada arte primitiva. Bebuquin ou os diletantes do milagre é uma mistura dinâmica de narração, diálogo, poesia, panfleto, pregação ou oração, em que a superação da razão, do equilíbrio, da simetria e da unidade é conjurada como a possibilidade de um novo pensamento que permite sensações inéditas. No enredo, aparece uma sociedade bizarra que rejeita a racionalidade ou procura duplicá-la tendo a morte como uma forma de mortificação trivial, como irracionalidade existencial, mas também como projeção de anseios. Os capítulos apresentam cenas fantásticas repletas de ação ou caracteres indefinidos. Giorgio Bebuquin é o filósofo, artista e narcisista improdutivo. Há o morto-vivo Nabucodonosor Boehm, possuidor do recipiente que reflete a sociedade, ele domina a arte do desfrute e sabe falar com paixão sobre os encantos do irreal. A senhora Euphemia se entrega à tentação do fantástico e ao charme de Nabucodonosor. Euphemia é uma insana reencarnação de Nossa Senhora que perde uma criança cujo pai ela não conhece e que ao nascer ela logo de início renuncia o mundo. O texto tematiza diferentes visões da existência através de crítica lingüística explícita, citação ou paródia de dicção científica, formas religiosas de discurso, digressões filosóficas ou teorias sobre arte.
Mais do que Walter Benjamin, o compêndio da obra de Einstein oscila entre estética-literária e ciência, mas, ao contrário de Benjamin, Einstein quase não é conhecido.
De acordo com Frederike Reents, a supremacia do sonho é para Gottfried Benn (1886-1956) “uma espécie de realidade absoluta”. Nas primeiras prosas de Benn, sobretudo, em O Jardim de Arles (Der Garten von Erles, 1920), muitas vezes não é possível definir em qual esfera o protagonista se encontra, se em um estado de sonho ou em algum lugar intermediário. O Jardim de Arles pode ser interpretado como um protocolo do inconsciente inspirado no texto de André Breton, Os Campos Magnéticos (Les Champs Magnétiques, 1919). Além do tema da viagem e da desorientação, a visão corre através do olhar pela janela… “No seu apartamento, em Berlim, sentado encontra-se um professor particular de filosofia e escreve: Você pode dividir toda a humanidade em julgamentos descritivos ou metafísicos, Homer ou Simmel, turbilhões ancestrais – agora em que dilúvio?”. O Jardim de Arles é uma erupção de associações que remete o leitor ao reino desconhecido de um estranho território, de Éfeso via Taiti até a “lama ovárica da Europa.” – e chegam a um jardim distante, ponto de encontro do ego de lêmure e do crânio de Adriano e alcançam ao enigmático fim. “Isso é amarelo puro. Isso se dissolve como açúcar. Deus não pode estar longe. O que Deus é hoje: comprimido ou arbusto original com carbonato de potássio ou planta de coca.” A paisagem é construída por meio de uma mescla de elementos difusos e irreais. A montagem associativa de Benn, em O Jardim de Arles, combina seus apelos à metafísica estética de Nietzsche, reporta aos motivos artísticos de Van Gogh (“Girassol”), aos teoremas da percepção científica (“sinopse”) ou à mística da cor do modernismo clássico (“visão pura”) e faz referência ao romance Os Imoralistas de André Gide.

Isto é banco de areia cheio de melão, há palmeira, que pulveriza a mão humana, ali cozinha pão árabe a mulher egípcia na frente da cabana feita de lama do rio ao lado do desfiado caniço-de-água, mas isso não é lama do rio, é lama do Nilo, é a lama ovárica da Europa, de onde eles levaram para casa, do vale do Nilo, os primeiros ocidentais com árvores do Líbano para os portos dos faraós e do palácio. (O Jardim de Arles, Gottfried Benn).

Yvan Goll (1891-1950) é considerado um clássico franco-alemão do século XX. Além de sua prosa – romances e dramas –, a poesia reflete acima de tudo o desenvolvimento político e literário deste século. Sua obra, escrita em francês e alemão, oscila desde os primórdios socialmente críticos do expressionismo até o surrealismo e às imagens linguísticas herméticas. Em 1920, ele escreve o texto dramatúrgico intitulado “Überrealismus”, uma alusão ao conceito surrealista de Apollinaire, que ele traduziu para o alemão. Nos textos “Carta a Apollinaire” (Lettre a Guillaume Apollinaire, 1924) e “Três bons espíritos da França” (Trois bons esprits de France, 1919), Goll procura retomar a
genuinidade do termo surrealista e o expande empregando novos conceitos como o “suprarrealismo, ultratempo no temporal” (Überrealismus! Überzeitlichkeit im Zeitlichen), primeiramente no âmbito dramaturgo, como nas peças Matusalém ou o eterno Burguês – drama satírico e Os Imortais, para ser estendido à poesia.

O suprarrealismo é a negação mais forte do realismo. A realidade da aparência é desacreditada em favor da verdade do ser. “Máscara”: grosseira, grotesca, como os sentimentos que elas representam. Não mais “heróis”, mas humanos, não mais personagens, mas os instintos nus. Completamente nus. Para conhecer um inseto, ele precisa ser examinado. O dramaturgo é pesquisador, político e legislador; como um surrealista, ele decreta coisas originárias de um reino distante da verdade, que ele auscultou ao colocar o ouvido nas paredes fechadas do mundo. (Überrealismus, Yvan Goll).

Análogo a Goll, o franco-alemão Hans Arp (1886-1966) foi um expoente do construtivismo, dadaísmo e surrealismo na literatura de lingua alemã. No poema Opus Zero (Opus Null, cerca de 1924) as palavras são aglutinadas sem nenhum sentido, transformando-se em um nonses. O irracional e o subconsciente são destacados transcendendo a negação e o absurdo: Eu sou o grande o isso-aquilo / o rigoroso regimento / o caule de ozônio sine qua non/ o anônimo um por cento. / O P. P. Tit e também a bunda / trombone sem boca e buraco / as grandes louças de Hércules / o pé esquerdo do cozinheiro direito. / Eu sou a longa vida longa/ o décimo segundo sentido no ovário / o Augustinho completo / em diáfana saia de celulose”. A obra de Hans Arp é caracterizada por uma grande diversidade artística, ele não foi apenas um pintor e escultor, mas também poeta. Desde o começo de sua carreira publicou poemas e textos, primeiro no idioma alsaciano, depois em alemão e francês. Arp foi co-fundador do movimento Dada, em Zurique, e atuou nos círculos surrealistas de Paris na década de 1920.
Fortemente influenciado pelo simbolismo e surrealismo franceses, Paul Celan (1920-1970) associa motivos bíblicos e hassídicos em sua poética. A experiência traumática do Holocausto possui uma forte presença em sua obra como na famosa Fuga da Morte (Todesfuge), que traduz o horror de Auschwitz por meio da linguagem: “leite negro da madrugada nós o bebemos de noite/ nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite / nós o bebemos bebemos / cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado.” O estilo repleto de contradições, paradoxos, metáforas e a força da imaginação que remete ao sonho levaram-no a ser denominado como poeta surrealista e seus poemas foram classificados como “fantásticos”. Na monografia de Marieke Ermans sobre Paul Celan e o Surrealismo (Paul Celan und der Surrealismus), encontramos uma importante observação do especialista Allemann, ao chamar a atenção para os paradoxos da poesia de Celan que se estendem aos limites do lógico, ele descreve os frequentes paradoxos como parte da busca de Celan pela realidade, concentrando-se principalmente na realidade tangível e reprodutível por meio da linguagem. As imagens e ideias em seus poemas, portanto, nunca são totalmente irreais. Segundo Knörrich, Celan usa uma técnica surrealista que inclui elementos da realidade (racional), mas compondo-os de tal maneira que entram em conflito com as expectativas do leitor e, portanto, parecem absurdos e surrealistas. Essa técnica é chamada Entfremdung (estranhamento), como podemos reconhecer no poema O Banquete (Das Gastmahl): “Desguarnecida seja a noite extraída das garrafas na alta arquitetura / da tentação, / O limiar colhido com os dentes, antes da manhã da semeada / Ira: / ainda desponta-nos um musgo, antes dos moleiros / estarem aqui, / encontrar o silente cereal entre nós na vagarosa roda… / Sob o céu venenoso estão outros caules amarelados, / são outras as apostas nos sonhos do que aqui, onde jogamos / os dados pelo desejo, / do que aqui, onde no escuro troca-se esquecer e / milagre, / onde tudo vale uma hora e cuspimos satisfeitos / na água ávida da janela arremessada à arca iluminada; / arrebenta na rua do humano, para a glória das nuvens! / Então vistam os casacos e subam comigo nas mesas: / como ser outro que não se deite nem se erga, por entre os cálices? / A quem beberemos os sonhos, a não ser para a vagarosa roda?”
O surrealismo na literatura de língua alemã não possui fase ou características definidas, diferente das artes plásticas, em que obras de arte como as de Hans Arp são fundamentais para a história do Dadaísmo e Surrealismo. Por sua vez, Max Ernst, já em seus primeiros anos, aperfeiçoou a técnica da colagem e se tornou mundialmente conhecido. O método da colagem, que extrai a realidade de seu contexto original e a coloca em novas estruturas irracionais de relacionamentos, tornou-se um princípio básico do surrealismo. Max Ernst também publicou, em 1934, o texto “O que é surrealismo?” Richard Oelze é considerado o principal mestre dos surrealistas alemães na arte. Hans Bellmer foi influenciado pelo surrealismo em Paris, embora só tenha chegado lá em 1937. Bellner lidava com assuntos eróticos perturbadores que frequentemente refletiam fantasias sadomasoquistas. Suas “bonecas” semelhantes a fetiches já haviam sido publicadas em 1935 no periódico surrealista Minotaure. Meret Oppenheim criou uma obra multifacetada, assim como Georg Grozs foi um conhecido membro do movimento dada, embora sejam as suas mais conhecidas obras aquelas pertencentes ao expressionismo.

 

NOTAS
1. Reents, Friederike. Surrealismus in der deutschesprachigen Literatur, Walter de Gruyter. Berlin. New York, 2009.
2. Nadeau, Maurice – Geschichte des Surrealismus, Rowhlt Verlag, Hamburgo 2012, pg. 220.

 

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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919 –2019
Artista convidado: Alfonso Peña (Costa Rica, 1950)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 129 | Março de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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