segunda-feira, 15 de abril de 2019

CLAUDIO WILLER | Escrita automática: uma falsa questão?


O automatismo verbal foi proclamado como fundamento por Breton no primeiro dos seus manifestos, ao definir surrealismo deste modo: s. m. […] Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. Sua origem, conforme relata, foi uma experiência de autonomia da linguagem, decisiva na sua ruptura com uma escrita laboriosamente elaborada, sob influência principalmente de Valéry e Mallarmé. O sintagma um homem cortado em dois pela janela se apresentava a ele espontaneamente: Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada, a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra […], frase que me parecia insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça.
A adoção da escrita automática a partir de Les champs magnètiques, obra criada em parceria por Breton e Philippe Soupault, tornou-se pivô de uma polêmica a meu ver equivocada, contrapondo defensores da escrita espontânea e da criação a frio, pensada, trabalhada. A propósito, sempre é bom lembrar que Les champs magnètiques é de 1919. Por isso, a data tem sido lembrada por comentaristas e estudiosos, a exemplo de Alexandrian, [1] para sustentar que é incorreto entender o surrealismo como desdobramento de dadá, pois o frenesi inaugural de Breton e Soupault precede o contato com Tristan Tzara, o convite para que viesse a Paris, e a presença dadaísta em Littérature, a revista dirigida por Breton, Aragon e Soupault.
A disjuntiva escrita espontânea vs. escrita pensada, “consciente”, é historicamente real. Representam-na personagens como o próprio Breton, de um lado, e Paul Valéry, de outro. As duas vertentes têm origens remotas; mas, no simbolismo, podem associadas respectivamente a Mallarmé e a Rimbaud. A primeira delas pode ser vista como apolínea; a outra, como dionisíaca. [2]
Ao mesmo tempo, é uma divisão precária. Os dois campos, dos cerebrais e viscerais, espontâneos e reflexivos, apolíneos e dionisíacos, se confundem. Não há escrita automática pura, conforme reconheceu Breton ao designá-la, em Le message automatique, de 1933, como limite ao qual o surrealismo deveria tender. [3] Seria, afirma, quase supérfluo nos embaraçarmos com uma divisão da escrita dita de modo corrente “inspirada”, que pretendemos opor à literatura de cálculo, em escrita “mecânica”, “semi-mecânica” ou “intuitiva”, esses três qualificativos não visando senão a dar conta de diferenças de graus. Isso, além de contestar a identificação do surrealismo especificamente à escrita automática, em sua palestra de 1935 em Praga: O automatismo psíquico – será mesmo indispensável voltarmos a ele? – jamais constituiu um fim em si para o surrealismo, e afirmar o contrário equivale a praticar um ato de má fé. [4]
Se há textos, na obra bretoniana, que podem de fato ser considerados automáticos – Les champs magnétiques e, talvez com maior propriedade, Peixe Solúvel [5] –, é evidente que Nadja e O Amor Louco resultaram de uma escrita espontânea, mas não automática, assim como outras de suas obras importantes, incluindo afirmações incisivas em poemas, a exemplo de A poesia se faz na cama como o amor/ Seus lençóis desfeitos são a aurora das coisas/ A poesia se faz nos bosques// Ela tem o espaço de que necessita […] O abraço poético como o abraço de carne/ Enquanto dura/ Proíbe toda escapada sobre a miséria do mundo, em Sur la route de San Romano, de 1948. [6] A extensa Ode a Charles Fourier, de 1942, é um texto construído, com citações do próprio Fourier, comentadas; e não são “automáticos” Fata Morgana, Pleine marge e Les États géneraux. [7]
Ou melhor, são e não são automáticos. Certamente, são inspirados. Relacionam-se com aquilo que Breton escrevera automaticamente. Não negam a escrita automática. Tanto é que, em uma nota que encerra sua última coletânea de poemas, Signe Ascendant, intitulada Le la, Breton declara que sua preferência por Les États géneraux, poema que é uma reflexão filosófica, projeção do pensamento utópico dos esoteristas Fabre d’Olivet e Saint-Yves d’Alveydre, e esclarece como foi criado: tomando como ponto de partida, pedra de toque, uma dessas imagens surgidas espontaneamente, Haverá sempre uma pá ao vento nas areias do sonho.
O mesmo vale para os demais poetas vinculados ao surrealismo. Na década de 1920, Aragon, com sua extraordinária fluência e facilidade para escrever, faria narrativas à clef, como Anicet ou le panorama. O camponês de Paris é reflexão e descrição poética, e não automatismo. Paul Éluard construía os belos poemas líricos e os epigramas de Capitale de la douleur e L’amour la poésie com imagens que lhe vinham à mente, porém elaboradas e montadas. Robert Desnos preferia uma escrita em transe, estado no qual teria escrito a cabala fonética de Rrose Sélavy. Enfim, no âmbito do surrealismo encontram-se todos os processos de criação; um deles, aquele que tende ao automatismo. E Breton reconheceu, em entrevistas na década de 1940, tratando do automatismo verbal, enquanto princípio gerador do surrealismo, [que] seu rendimento só haja sido “torrencial” em certos momentos, admitindo-o como ponto de partida, e equiparando-o a uma ascese. [8] E foi além em Le message automatique: A história da escrita automática no surrealismo seria, não temo dizê-lo, aquela de um infortúnio contínuo.
Examinando mais de perto os textos de escrita automática, veremos que apresentam continuidade com relação ao que seus autores escreviam de modo, digamos assim, não-automático. Isso, desde Les champs magnétiques. O trecho intitulado La glace sans tain (esse título se traduz como espelho transparente, sem o estanho, tain, que lhe dá a propriedade reflexiva) de Philippe Soupault, diz: Nós corremos nas cidades sem ruídos e os cartazes de rua encantados não nos tocam. […] Nada existe senão esses cafés onde nós nos reunimos para beber essas bebidas frescas, esses álcoois dissolvidos, e as mesas são mais pegajosas que essas calçadas nas quais tombaram nossas sombras mortas de véspera.// Às vezes, o vento nos cerca com suas grandes mãos frias e nos prende às árvores cortadas pelo sol. […] As estações de trem maravilhosas jamais nos abrigam: os longos corredores nos metem medo. […] Cor dos dias, noites perpétuas, será que vocês também, vocês irão nos abandonar? [9]
As citações são, é evidente, um recorte. Mas o restante do trecho contém mais dessas imagens feitas de componentes da vida urbana: casas, automóveis, cafés, além de imaginar a irrupção na cidade de uma vida livre, vinda de fora de suas fronteiras. Pertence à família das visões e descrições mágicas ou oníricas da metrópole, como em Nadja de Breton, O Camponês de Paris de Aragon, Liberté ou l’amour! de Desnos. Além disso, a linguagem de Soupault é mais despojada, direta e referencial que a de Breton. Tanto é que terminou como narrador em prosa. Portanto, automatismo ou não, é estilo Soupault, partilhando temas e imagens comuns aos surrealistas.
Além disso, enquanto as imagens citadas no primeiro Manifesto do Surrealismo “bateram na vidraça” de Breton à sua revelia, surpreendendo-o, em Les Champs magnètiques houve decisão prévia de produzir, por vários dias, em sessões que chegaram a dez horas por dia, os textos automáticos. Os títulos dos trechos de cada autor foram dados depois. Não é da ordem do automatismo terem resolvido dar forma dramática, de diálogo e monólogo, a boa parte da obra. Enfim, o fluxo verbal foi precedido, acompanhado e sucedido por iniciativas: atos propositais, conscientes, extra-automáticos. [10]
Estudiosos do surrealismo, a exemplo de Alexandrian, Alquié, Bonnet e Rifaterre, conferem importância a Peixe Solúvel de Breton, como realização significativa do automatismo verbal. É um texto complexo, em suas 75 páginas na edição brasileira. Tem forma de narrativa, e abre com um fantasma e um castelo, obsessões declaradas de Breton (no primeiro Manifesto do Surrealismo, em Nadja etc.). Outra mania bretoniana é a quantidade de topônimos, de endereços parisienses ao longo do texto. Conforme observado em outra seção, [11] passagens de Peixe Solúvel iriam acontecer de fato em Nadja. O tradutor brasileiro, Sérgio Pachá, acrescenta-lhe 64 notas de rodapé. Observa uma alusão ao romance Paulo e Virgínia de Bernardin de Saint-Pierre, ou seja, intertexto e paródia. Aponta para um sem-número de duplos sentidos e jogos com homofonias. Uma análise mais detalhada (que demandaria um longo ensaio), além de deter-se na qualidade das imagens poéticas, mostraria o quanto do restante da obra de Breton está condensado em um texto paradoxalmente tão longo.
Tomemos agora este trecho de uma demonstração de escrita automática por Benjamin Péret: Um maço de aspargos que não tinha exatamente sete léguas pôs-se a perseguir um arco-íris dentro de uma lata de graxa. O arco-íris corre sobre a praia à procura de um lume aceso. Ele ouve o mar no côncavo de sua mão e retoma, após anos de estudo, a uma ilha de areias movediças, capitã de fragatas. E quando o rei de um país qualquer lhe faz presente de uma sopeira. Lá ele coloca os ovos de tartaruga e na mudança da lua a sopeira levanta voo como o último suspiro de um tísico. Contudo, fazia uma linda noite e as estrelas, após terem perdido muito no bacará foram pescar a truta com faróis de automóveis. […] Mas se o café entorna sobre o pescoço do adormecido, ele será obrigado a gritar ao fogo para chamar os bombeiros. Eles chegam com arengues defumados; ei-los, as armas sobre os ombros, não mais achando onde está o canhão de seu fuzil e metendo os cartuchos pelo nariz, tirando a orelha da porteira, roendo sementes de papagaio, metendo sanguessugas no cofre forte do patrão, comendo frituras de mosquitos e arrastando o diabo pela cauda para se fazer assim conduzir rapidamente e barato á casa de sua avó. [12]
Uma característica da escrita exuberante de Péret, observada por comentaristas, [13] é a presença de imagens com alimentos, a exemplo, aqui, dos aspargos, da sopeira, dos ovos de tartaruga, dos arenques defumados. São imagens extravagantes, bizarras, presentes em toda a sua poesia, como, no poema Não durmo, estas: o despertador roendo os esqueletos dos meus antepassados e dos seus/ como uma cabeça de alho na maionese. [14] Além disso, o onírico, a sucessão de cenas, o desencadear-se de situações, que já permitiram a um ensaísta falar em representação de um mundo ao avesso em sua obra, [15] sugere paralelos com suas narrativas surreais, como Au champ d’honneur e Mort aux vaches. Enfim, a escrita é automática; mas o estilo é de Péret.
Exemplos como esses mostram que a escrita automática não é um mundo à parte, com relação ao restante da criação dos autores que a praticaram. Por outro lado, assim como os seguidores do instinto, espontaneidade e intuição não se abandonaram de modo integral, abdicando da reflexão consciente, reciprocamente, autores de uma escrita “pensada” também não o foram de modo exclusivo. Há qualquer coisa de universal, talvez inerente à própria experiência poética, naquilo que surrealistas denominaram escrita automática. Por isso, Octavio Paz a discute no capítulo intitulado A inspiração em O Arco e a Lira. Toma-a, portanto, como caso particular do que, para Platão, já era o delírio, a possessão que movia os poetas.
O próprio Breton autoriza plenamente essa aproximação de automatismo surrealista e inspiração, ao referir-se à criação de um poema como Les États géneraux, no já citado Le la, fazendo um paralelo com a bouche d’ombre, boca da sombra, de Victor Hugo, e observando que talvez esta não houvesse lhe falado com a mesma generosidade que com o autor de Les contemplations. E, principalmente, no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao dizer que a inspiração veio em socorro das supremas necessidades de expressão em todos os tempos e lugares. [16] Por isso, Béhar e Carassou examinam a questão da inspiração e do automatismo no surrealismo sob vários ângulos, transcrevendo depoimentos, de Tzara e Artaud a Soupault, para concluir que: Por suas obras e por suas observações, o surrealismo nos traz testemunhos preciosos sobre o fenômeno da inspiração. [17]
Outros comentaristas e estudiosos também se detiveram na universalidade das experiências de automatismo verbal. Michel Carrouges [18] vê sua raiz no oráculo délfico. Cita depoimentos e testemunhos de autores com os quais a poética surrealista tem diferentes graus de afinidade ou distanciamento: Hoffman, Nietzsche, Goethe, Rilke, e até o enciclopedista Diderot. Contudo, adverte quanto à distância entre inspiração, no sentido mais amplo, e a experiência, por ele designada como tremor de terra mental, do surrealismo: Entre o automatismo tradicional de inspiração e o automatismo revolucionário do surrealismo há um imenso desnível, e as forças que cavaram esse desnível e ergueram por contragolpe acima das trevas os mundos imaginários modernos são os poderes poéticos desencadeados por Nerval, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont e seus sucessores.
Aceito o relato de Breton sobre palavras que batiam na vidraça, com vida própria, o que caracteriza a escrita automática é uma experiência da dissociação. Há uma separação entre a consciência de quem escreve e o que está sendo escrito. Isto é normal na relação com a escrita; mas desde que ocorra depois desta realizar-se, quando o texto já foi feito e está no papel. Então, obviamente, não o percebemos mais como fenômeno restrito à esfera cognitiva. Passa a ser uma coisa, algo com existência independente da subjetividade que é sua fonte.
Portanto, a escrita automática corresponde às situações em que palavras, imagens, sintagmas, são percebidos como entidades com existência objetiva, porém antes, no momento da criação, durante o processo, e não só depois do texto haver sido escrito. E o automatismo psíquico verbal dos surrealistas pode ser visto como caso particular de alterações da consciência associadas à criação. Iluminação, êxtase, visões, alucinações e revelações são seus correlatos. Pertence à família das experiências que levaram Rimbaud, na Carta do Vidente, à célebre constatação: Pois o eu é um outro. Se o cobre acorda o clarim, não é por sua culpa. Isto me é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento; eu a contemplo; eu a escuto; eu lanço uma flecha: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou salta sobre a cena. [19] Nas palavras do poeta de As Vogais, essa alteridade ou exterioridade do “eu” ocorre quando a consciência presencia a eclosão do pensamento, contempla-o, e o escuta como sinfonia abissal. Não se trata, portanto, de uma perda ou supressão da consciência, mas de ampliação, hiper-consciência.
Há razões para supor que o Eu é um outro de Nerval, anotação em um retrato seu, [20] referia-se à mesma modalidade de experiência, relatada em Aurélia. Entre tantos outros episódios estranhos, mágicos, associados à criação, um dos mais notáveis, pelo resultado, é a gênese de O Guardador de Rebanhos de Fernando Pessoa: Acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título – “O Guardador de Rebanhos”. [21]
Há mais surpresas e paradoxos em relatos de experiências de criação, e o grau de intervenção da iluminação ou reflexão. Allen Ginsberg foi criticado por seu espontaneísmo, sintetizado através da adoção, junto com Kerouac, do lema first tought, best tought, primeiro pensamento, melhor pensamento. Contudo, seu poema de maior impacto, Uivo, foi retrabalhado, com cinco versões entre o primeiro esboço e a publicação, [22] assim como o fluente Kaddish teve aparas reduzidas. E On the Road de Kerouac foi objeto de copidesque entre sua escrita, de modo muito rápido, e a publicação; mas sua obra de maior fôlego, Visions of Cody, publicada postumamente em 1971, é a reprodução fiel do que havia anotado com sua costumeira rapidez. Não é a escrita espontânea na geração beat que deve ser aproximada à escrita automática, mas sim, experiências assemelhadas à revelação. Uma delas, a que Ginsberg celebrizou como sua iluminação auditiva da voz de William Blake simultaneamente com a visão da eternidade de 1948, um estado de êxtase ou alucinação, durante o qual ouviu a voz de Blake dizendo os poemas que ele lia enquanto se masturbava distraidamente, acompanhada por uma sensação de beatitude e a percepção aguda da paisagem urbana vista da janela de seu apartamento no Harlem. [23]
A fascinante crônica de como poemas “baixam”, acontecem de modo independente da consciência, poderia ganhar outros capítulos. Um deles, sobre a dissociação em Mallarmé, sua crise de 1867, levando-o a declarar, em carta a Cazalis, que Acabo de passar um ano assustador: meu Pensamento se pensou. Nesse período, o expoente do simbolismo literário escreveu poemas em prosa enigmáticos, tidos como precursores do surrealismo, [24] como O Demônio da Analogia, no qual uma voz repete, como um refrão, la penultième est morte, a penúltima morreu.
O episódio de dissociação mais radical, nessa família, aconteceu na mesma época em que imagens batiam na vidraça de Breton. Yeats, por um período mais prolongado, de 1917 a 1925, compilou A Vision, [25] resultado do que sua mulher, Georgiana Hyde-Lees, anotava em transe. O poeta irlandês também denominou a esse procedimento de escrita automática. A Vision sistematiza o que Yeats vinha formulando, em poemas e ensaios baseados em estudos do esoterismo, sobre tipologias. [26] Não apenas as palavras, mas o emissor, a fonte, foram exteriores ao autor. Mas a intervenção do sobrenatural e a telepatia não são, necessariamente, as únicas explicações para a estranha gênese de A Vision, pois Georgiana – embora fossem recém-casados quando as manifestações tiveram início – já convivia com as ideias de Yeats.
A crônica de como a criação ultrapassa a consciência do criador inclui poemas concebidos em sonho, como relatou Coleridge a propósito de Kubla Khan. E ainda os poetas sonâmbulos, que criam em estados de transe febril, como Jorge de Lima: Minha cabeça estava em pedra, adormecida,/ quando me sobreveio a cena pressentida.// Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados/ dos passos e dos gestos em vão desperdiçados; ou então, Pra unidade deste poema,/ ele vai durante a febre. [27]
Tais episódios não mostram apenas o poeta a encarnar o médium, o sacerdote tribal, um xamã, porta-voz de outra esfera. Revelam honestidade intelectual, fidelidade à escrita. Isso é mais evidente em García Lorca: o andaluz defendeu a mediação cerebral, a escrita como produção intelectual; ao mesmo tempo, demonstrava acreditar no daimon, seu duende, um ser exterior que lhe ditava algo. Durante a criação de Poeta em Nova York, sua obra mais instigante, García Lorca escreveu a Jorge Guillém comentando que, para sua própria surpresa, estava a escrever fragmentos de prosa de um tipo curiosamente surrealista. [28] A honestidade consiste, nesse e em outros episódios, em reconhecer que a criação ultrapassa e transgride os limites da poética do autor, as suas ideias sobre o modo como a escrita deveria ocorrer.
Por outro lado, afirmações e depoimentos sobre o caráter racional, pensado, elaborado da criação, da Filosofia da Composição de Poe até a Psicologia da Composição de João Cabral, passando pelos paralelos feitos por Baudelaire da criação com a ourivesaria, o trabalho elaborado, contam apenas parte da história. Passam por cima do extra-consciente e suprarracional que intervém na criação. De fato, Baudelaire “trabalhava” seus poemas; mas, ao mesmo tempo, com seu gosto pelo paradoxo, fazia o elogio ao ócio, estimulava-se com alucinógenos, e tinha experiências abissais de revelação. E, assim como Pessoa escreveu O Guardador de Rebanhos de uma enfiada só, e de quebra o enigmático Chuva Oblíqua, também precisou de duas décadas para escrever Mensagem, das anotações de 1914 até a publicação em 1934.
O que significa tudo isso, toda essa diversidade de procedimentos, modos e experiências de criação? Pode haver julgamento de valor em favor de místicos e visionários, ou de formalistas e cerebrais, de obras escritas no modo automático, ou daquelas refletidas, laboriosamente construídas? A resposta é impossível. Tais episódios demonstram outra coisa: que a poesia e o poético desconhecem o tempo. Por isso, instantes da criação de uma obra e as décadas investidas em outra são equivalentes. Tanto uns como outros, os instantes e as décadas, estão fora da medida do tempo do discurso, a mesma do mercado, do mundo burguês da mercantilização do trabalho, no qual “tempo é dinheiro”.
A negação da inspiração e da intervenção do “outro” na criação tem qualquer coisa de ideológico. Octavio Paz, no capítulo já citado sobre inspiração em O Arco e a Lira, denunciou esse viés: A inspiração tornou-se um problema para nós. Sua existência nega nossas crenças intelectuais mais arraigadas. […] Se a inspiração é um fato incompatível com nossa ideia de mundo, nada mais fácil que negar sua existência. […] Durante toda uma época foram denunciados os extravios a que conduzia a crença na inspiração. Seu verdadeiro nome era preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. Delírio e inspiração se transformaram em sinônimos de loucura e enfermidade.
Críticos e alguns poetas incorporaram uma representação do homem e da consciência histórica e ideológica: aquela exposta por Descartes e adotada por nossa civilização a partir do Iluminismo, que contrapõe o “cogito”, a consciência pensante, a um mundo inanimado e dessacralizado. Sustentar poéticas, filosofias ou psicologias da criação, centradas na reflexão e elaboração, isso nada mais seria que transposição da ideologia burguesa do trabalho; ou, apontando para uma origem mais remota, do bíblico “ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Novamente citando Octavio Paz: O ato poético era trabalho e disciplina; escrever: “lutar contra a corrente”. Não é exagero ver nessas ideias uma transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da estética. Um dos maiores méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz moral dessa estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade e dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que escondem a noção de prêmio e castigo: o “toma lá dá cá” com que a burguesia, segundo Marx, substitui as antigas relações humanas. O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor.
Passagens semelhantes, quase idênticas, em Rimbaud e Nerval, expressando a consciência do duplo, em uma pergunta abissal sobre a identidade, permitiram que Octavio Paz, em La Búsqueda del Comienzo, [29] apresentasse um par de conceitos de especial valia para a discussão da escrita automática. Um deles, o de objetivização do sujeito, a destruição do “eu” ilusório para, em seu lugar, emergir o ditado do pensamento não dirigido, emancipado das interdições da moral, da razão ou do gosto artístico.
Essa noção, objetivização do sujeito, pode ser utilizada em favor da boa compreensão do surrealismo e de autores que lhe são próximos. Deve ser acompanhada por outra, apresentada no mesmo ensaio, a subjetivização do objeto, entendida como ruptura das relações entre o “eu” e o outro, o sujeito e o mundo das coisas que seriam externas. Nas correspondências e sinestesias baudelairianas, onde cores têm perfumes como se fossem sons, as coisas são animadas por sensações e emoções. O que deveria pertencer ao sujeito é propriedade dos objetos. O mesmo ocorre com as associações do Soneto das Vogais de Rimbaud, e toda a imagética da qual temos exemplos importantes em Union libre de Breton e tantos outros poemas.
Portanto, uma dupla negação a destruição do “eu”, em primeiro lugar do cogito cartesiano, através da objetivização, e a subjetivização do mundo das coisas, da res extensa, inerte rege a poética surrealista, que visa, voltando a citar o texto de Octavio Paz, a sistemática destruição do eu – ou, melhor dito, a objetivização do sujeito. Daí que, …em algum momento privilegiado, a realidade escondida se levanta de sua tumba de lugares comuns e coincide com o homem. Nesse momento paradisíaco, pela primeira e única vez, um instante e para sempre, somos de verdade. Ela é nós. Arrasado pelo humor e recriado pela imaginação, o mundo já não se apresenta como um “horizonte de utensílios”, mas sim, como um campo magnético. Tudo está vivo. Tudo fala e faz sinais, os objetos e as palavras se unem ou se separam de acordo com certas chamadas misteriosas: a hera que recobre o muro é a cabeleira verde e dourada de Melusina. Espaço e tempo voltam a ser o que foram para os primitivos: uma realidade vivente, dotada de poderes nefastos ou benéficos, algo, em suma, concreto e qualitativo, não uma simples extensão mensurável.
Esse duplo movimento negativo corresponde ao que foi sugerido como arte pura por Baudelaire, em um texto notavelmente antecipatório, intitulado A Arte Filosófica, onde propunha nada menos que a superação da dualidade entre sujeito e objeto: O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista. [30]
Subvertida a realidade e destruído ou desconstruído o “eu”, a consciência ilusória de si, o que emerge em seu lugar? O que altera desse modo o mundo das coisas e do sujeito? Os antigos tinham uma resposta: o sobrenatural, a esfera do divino, o daimon ou duende que assessora poetas. Formalistas, a partir de Mallarmé, deram uma nova resposta, leiga, centrada na própria escrita: o que se manifesta é a palavra, o fluir autônomo da linguagem. Já para os surrealistas, a alteridade inspiradora chama-se inconsciente, com as características que lhe são atribuídas nas tópicas freudianas.
Freud havia dito que poetas, antes dele, já conheciam o inconsciente. Breton procedeu a uma inversão: ele foi o poeta que descobriu Freud. Com isso, deu uma base material à criação poética. O outro do acervo milenar de experiências místicas, revelações e surpresas, passa a ser um; o ele está em nós. A fonte da qual jorram palavras faz parte do ser humano. Tem uma localização, situa-se em uma topologia ou tópica da vida psíquica. É como se a constatação de Rimbaud e Nerval (e tantos outros), de que eu é um outro, recebesse um acréscimo, retificando-a: esse “outro”, por sua vez, é “eu”. Daí a crítica bretoniana ao espiritismo e aos espiritualismos em Le message automatique, caso particular de sua rejeição a qualquer dualismo: Contrariamente ao que se propõe o espiritismo: dissociar a personalidade psicológica do médium, o surrealismo se propõe a nada menos que unificar essa personalidade. É dizer que para nós, de toda evidência, a questão da exterioridade da – digamos de novo para simplificar – “voz” nem poderia ser colocada.
Admitindo-se que a psicanálise freudiana foi equivalente à revolução de Copérnico em astronomia, por haverem, ambas, procedido a um descentramento, ao deslocarem respectivamente o homem do centro do universo e o “eu” consciente do centro da vida psíquica, então Breton associou a criação poética a uma revolução no conhecimento. E mais: a uma ideologia liberadora; à idéia da abolição da censura, da livre manifestação do reprimido, da realização dos estratos mais profundos do desejo. Além disso, a conexão entre a criação e algo que sempre foi fundamental para a poesia, o sonho, foi reforçada.
A relação entre surrealismo e psicanálise jamais foi pacífica, desde a primeira vez em que Breton procurou Freud, em 1921, para ser recebido de modo cordial, mas sem que houvesse entusiasmo do criador da psicanálise pela escrita automática e o restante do que o surrealista viera relatar-lhe. Em 1930, Breton fez críticas a Freud em Les vases communicants, acusando-o de dualismo, e mais, de platonismo, por não aceitar a equivalência de realidade e sonho e a consequente unidade dos dois mundos, onírico e consciente. [31] As críticas receberam resposta de Freud, publicadas por Breton como posfácio do seu livro. Essas divergências ganhariam mais um capítulo em 1937: convidado a contribuir para uma exposição surrealista cujo tema foi o sonho, Freud recusou-se, alegando não estar interessado em questões artísticas, e argumentando que, para ele, o sonho apresentava interesse como conteúdo manifesto, a partir do qual se revelavam conteúdos latentes: O enunciado literal, o que chamo de sonho “manifesto”, não tem para mim qualquer interesse. Dediquei-me a encontrar o “conteúdo latente do sonho”, que se pode extrair do sonho manifesto por meio da interpretação analítica. Uma recompilação dos sonhos, sem as associações que lhe são acrescentadas, sem o conhecimento das circunstâncias em que o sonho teve lugar – uma recompilação semelhante nada quer dizer para mim. [32] Freud foi consistente, sob um ponto de vista ortodoxo; mas fica claro seu determinismo e mecanicismo, se confrontado com a adoção surrealista do sonho, sustentando sua autonomia, seu valor simbólico intrínseco, independente da situação analítica.
O que aproximou psicanálise e surrealismo, em primeiro lugar, foi o interesse pelos sintomas da histeria, pelo sonho e os delírios, vistos como fenômenos significativos, ou seja, como linguagem. O Freud dos surrealistas é o das tópicas (consciente e inconsciente; id, ego e superego), de Eros e Tanatos, dos ensaios sobre Leonardo da Vinci e Gradiva de Jensen. Dificilmente seria aquele de Dostoievski e o Parricídio, ou da contemporização para fazer frente ao mal-estar na civilização. Quanto ao valor de sintomas, delírios e sonhos, a posição surrealista se aproxima mais daquela de Lacan, para quem o simbólico é uma espécie de matriz do inconsciente.
Contudo, sobraram dúvidas e questionamentos, pelo modo como o surrealismo se apropriou da psicanálise freudiana. O que se expressa através da escrita automática, assim como aquilo que retemos ou transcrevemos de um sonho, pode, muito mais apropriadamente, ser associado ao pré-consciente, e não ao inconsciente. Já é uma elaboração, possível recodificação de algo mais profundo e primitivo. Mas Breton sabia disso: A pergunta “De que modo uma coisa se torna consciente?” pode, diz Freud, ser vantajosamente substituída por esta outra pergunta: “De que modo uma coisa se torna pré-consciente?” Resposta: “Pela associação com as representações verbais correspondentes” e, um pouco adiante, mais explicitamente: “De que modo podemos conduzir elementos recalcados à pré-consciência? Restabelecendo pelo trabalho analítico esses membros intermediários pré-conscientes que são as lembranças verbais”. [33]
Mesmo assim, é estranho a sintaxe ser preservada no automatismo psíquico, e o texto vir à luz com toda a pontuação. Há exceções, como os poemas automáticos de Aragon escritos em 1920, sem pontuação, [34] e as desconstruções a que procedeu Michel Leiris em Mots sans mémoire. [35] Mas suprimir pontos também parece ter sido uma decisão a priori. Enfim, cabe perguntar por que o automatismo não suscitou, no âmbito do surrealismo, algo como as glossolalias de Artaud, seus dramáticos ratara ratara kurbata keina, ou o “falar línguas” de grupos religiosos, os grupos de fonemas nos quais a relação de significação é integralmente destruída. Ou, invertendo a pergunta: será que Artaud, em suas séries de glossolalias nas Cartas de Rodez, Aqui Jaz, Para acabar com o julgamento de Deus e Van Gogh, não estava realizando aquilo a que tendia o automatismo surrealista?
Ademais, a distinção entre linguagem consciente e inconsciente é precária, a não ser em seus limites: de um lado, as linguagens ou repertórios formalizados, instrumentais, como um tratado de álgebra ou um manual de informática; de outro, quando muito, a produção de um possuído, um psicótico em surto. Mas, mesmo nesse caso, é mais próprio falar em “outra” consciência, e não em sua perda. O restante da nossa produção simbólica é sempre uma coisa e outra, em sua ambiguidade e polissemia, seu dialogismo mais ou menos evidente e proposital. Nenhuma fala é inocente, descolada do inconsciente, assim como nenhuma é sua expressão pura e integral.
Por isso, Breton mudou o foco da discussão em Le message automatique, embora essa mudança não fosse acompanhada por muitos dos que colocaram em discussão a escrita automática e a relação surrealismo-psicanálise. Deixando de citar Freud, refere-se a Myers, um psicólogo do século XIX de orientação experimentalista, precursor tanto da parapsicologia quanto da psicologia da percepção, que pesquisou imagens eidéticas, como os pós-efeitos visuais (por exemplo, quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e esta, alterada, permanece ao fecharmos os olhos). E conclui com uma afirmação ousada: Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças. Por esse raciocínio, visões e alucinações equivalem ao automatismo, e vice-versa. Ganham o estatuto de percepções reais, íntegras. Para o surrealismo, o visionário alucinado efetivamente vê; ou, no automatismo verbal, de fato ouve.
Breton exemplifica com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas, e considerar essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. Portanto, corrobora a ideia de que o automatismo equivale à percepção de fenômenos da consciência como alteridade, coisa objetiva. O exemplo leva a uma tirada brilhante: Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa.
A experiência de Tereza d’Ávila é análoga à do próprio Breton, ao relatar como uma estranha colher que havia encontrado se transformava em sapato, o sapato luminoso de Cinderela. Felizmente, dessa vez tratava-se de um poeta, e não de uma santa. Por isso, da experiência resultaram algumas das páginas de O amor louco, sobre o objeto encontrado, a psicanálise da realidade e o acaso objetivo. [36]
Mas, então, projetar o desejo, ver suas formas nas nuvens, como sugeriu Breton em O amor louco, seguindo Leonardo da Vinci e Baudelaire, também pertence à ordem do automatismo psíquico. E, igualmente, as experiências relatadas por Benjamin Péret, das visões que tinha quando esteve preso em Rennes, no início da segunda guerra mundial, e via, em janelas cobertas de tinta azul, imagens que lhe evocavam Francisco I, um quadro do “douanier” Rousseau, um cavalo empinado e o número 22. [37] A imagem de Francisco I se transformava em um navio que naufragava; a paisagem de Rousseau em uma máquina; o cavalo, na sala de um café. Só se mantinha constante o número 22, infundindo em Péret a certeza de que esta seria a data de sua libertação, como de fato ocorreu (preso em maio de 1940, foi solto a 22 de julho do mesmo ano).
O episódio foi devidamente associado por Péret àqueles relatados por Breton em O Amor Louco, para expor o que entendia por maravilhoso poético e concluir: A cifra 22 constitui, no relato precedente, quer se queira ou não, uma manifestação poética da vidência, a qual aliás nem de longe sou o primeiro a testemunhar. Sem falar de André Breton, já citado, em todos os tempos os poetas o notaram ou pressentiram:É oráculo o que digo”, certificava Rimbaud. “O homem absolutamente refletido é o vidente”, já havia dito antes dele Novalis, para quem o próprio homem é poeta. Paralelamente, Rimbaud confirma que o poeta é um vidente. Os românticos de todos os países, por vezes, aliás, de modo impróprio, falaram de suas “visões”, e os poetas, repito, sempre suspeitaram, em maior ou menor grau, a existência dessa faculdade ligada à sua natureza de poetas.
Diante disso, fica evidente que aproximações psicanalíticas ao automatismo verbal tanto podem ser esclarecedoras quanto redutoras. Teoria psicológica alguma, psicanálise inclusive, dá conta plenamente dos processos simbólicos mais complexos. Seria exigir demais. Haveria alguma ajuda, para sua melhor compreensão, por parte das teorias literárias? Uma pista é dada pela releitura dos trechos de Soupault, Péret e Breton que foram citados acima. Em todos, conforme já sugerido, está presente a intratextualidade. Relacionam-se com o restante da obra de seus respectivos autores. O estilo, imagens, obsessões, são identificáveis. A escrita é pessoal, assim como nos demais casos relatados aqui: alucinado ou não, Jorge de Lima escrevia Invenção de Orfeu; possesso e desesperado ou em plácida contemplação, García Lorca exibia seu estilo inconfundível em Poeta em Nova Iorque. A dissolução da individualidade, das características de cada autor, ocorre, nem tanto no automatismo, mas na criação coletiva, a exemplo dos jogos surrealistas, especialmente o “cadáver delicado” [38] e sua variante das perguntas e respostas, nos quais alguém prossegue o texto do outro, sem ver o que havia sido escrito.
E mais: a própria experiência do automatismo psíquico, a relação com esse fluir ou manifestar-se espontâneo ou não-controlado de imagens é diferente em cada autor. E são pessoais suas representações do que vem a ser isso. Demonstra-o bem um ensaio de Anne de Giry, comparando reflexões e depoimentos de Breton e de André Masson. [39] As histórias que cada um conta são diferentes, assim como o seriam, se a pesquisa fosse ampliada, as de Soupault, Éluard, Max Ernst, Péret, etc. Há automatismos de cada um, estilos da própria experiência, e não apenas do seu resultado. Não se trata, portanto, de um emergir ou manifestação de arquétipos, símbolos universais, assim como, no testemunho de Péret citado acima, em sua interpretação, o número 22 não era um arcano, mas uma recordação de sua infância, quando a cifra era utilizada como sinal de alerta.
Haveria, em acréscimo, intertextualidade na escrita automática? Falando não apenas como leitor, mas como alguém que pratica a criação, inclusive automática, diria que sim. [40] Para dar um pequeno exemplo do que pode ser uma nova frente de pesquisa: no trecho de Soupault citado acima, os álcoois dissolvidos remetem a Álcoois, de Apollinaire; as árvores cortadas pelo sol são uma variação sobre o célebre sol pescoço cortado do final de Zona, que integra Álcoois; [41] o sintagma Cor dos dias, noites perpétuas lembra o título da peça de Apollinaire, La couleur du temps. Do grupo formador do surrealismo, Soupault foi o mais próximo a Apollinaire, que o apresentou a Breton. Levando em conta essa convivência, comparar trechos de Soupault e Apollinaire dificilmente seria abusivo.
Quanto aos textos citados acima de Breton e Péret, conforme já observado, neles há paródia, um dos modos da intertextualidade. Aliás, Breton é densamente intertextual, seja em obras mais espontâneas ou mais construídas. Foi um grande leitor, e todas as genealogias e fontes por ele assinaladas correspondem a relações íntimas no plano da leitura. Sugiro, para quem quiser examinar intertextos mais complexos e sutis, a comparação da referência a Almani, personagem da Nouvelle Justine do Marquês de Sade, em O Amor Louco, [42] e o poema O Marquês de Sade voltou ao interior do vulcão. [43]
A noção de intertexto também é empregada por Michael Rifaterre, em um ensaio sobre a libido e a relação essencial entre desejo e linguagem, e entre o desejo e a representação da realidade na literatura. [44] Para demonstrá-las, examina um trecho de Peixe Solúvel, o fragmento 8, no qual, no monte de Santa Genoveva (padroeira de Paris), um bebedouro verte sangue, um filete de sangue precioso, que as plumas, as penugens, os pêlos brancos, as folhas desclorofiladas que ele ladeia desviam de sua finalidade aparente. Para Rifaterre (simplificando um ensaio complexo, sobre um texto mais complexo ainda), é sangue menstrual, e também o sangue dos chamados à luta em A Marselhesa. O ensaísta lembra ainda que, na Roma antiga, o local depois designado como monte de Santa Genoveva era o mons Veneris, monte de Vênus. A partir daí, vê, nesse trecho de Peixe Solúvel, signos da transgressão, de uma tensão entre o sagrado e o profano.
Rifaterre conclui que: Este processo de leitura, durante o qual interpretação, a descoberta do sentido de fato do texto literário ou do seu foco real de interesse, a descoberta do que sua forma, imagens ou história disfarçam – a descoberta, enfim, de seu simbolismo, do fato que aquilo que é dito na superfície do texto é apenas uma cifra para uma significância escondida no intertexto – todo esse processo é análogo ao processo de escuta na psicanálise. Equipara assim o texto lido ao discurso consciente do paciente, enquanto o intertexto, reprimido pelo texto mas recuperado pelo analista-leitor, seria o inconsciente para o qual o discurso serve como tela.
Localizar sentidos em um “inconsciente do texto” desse modo, tomando o poema como conteúdo manifesto e identificando conteúdos latentes ao intertexto, pode suscitar objeções. Uma delas, de que, com auxílio de contribuições teóricas recentes, estaria-se procedendo a um retorno ao mesmo reducionismo ou determinismo de Freud, apenas com uma entidade semiótica, da ordem textual, no lugar do inconsciente da primeira tópica freudiana. Interpretar desse modo pode passar ao lado de muito do que o texto tem de dialógico, polifônico. E se estaria sendo tautológico, como que chovendo no molhado, reafirmando o já dito: o intertexto se confunde com os traços mnêmicos, lembranças verbais, restos do cotidiano, observados por Freud e identificados por Breton (na palestra de 1935, já citada, e, de modo mais detalhado, em Les vases communicants). Além disso, o intertexto, passando a equivaler ao inconsciente do texto, também se confunde com todo o repertório ou acervo da linguagem. Perde-se de vista, conseqüentemente, sua dimensão propriamente literária, a relação com aquilo que o autor efetivamente leu e com o valor do que foi lido e do que está sendo escrito.
Mas não há como discordar de observações de Rifaterre, nesse ensaio, que resolvem o desajuste ou discrepância entre aquilo que seria o inconsciente freudiano, e os resultados da escrita automática: … se a escrita automática não é um produto imediato do inconsciente, tenta representá-lo, e tal esforço só pode resultar em uma escrita conforme à associação verbal, em toda a sua arbitrariedade. […] A autenticidade de um empreendimento como esse, indiscutivelmente adulterado em um nível psicológico, recupera sua pureza em termos lingüísticos.
Enfim, não resta dúvida de que, em todas essas experiências examinadas acima, as do âmbito do surrealismo e o restante, há uma relação, em primeira instância, com a esfera simbólica, com a palavra, antes de sê-lo com o inconsciente (por mais que este desempenhe papel decisivo na criação, quando não em toda modalidade de expressão), o sobrenatural, ou o que for. É como se poetas estabelecessem uma conexão direta, menos mediada, com o mundo autônomo da linguagem, e dialogassem de modo muito íntimo, em uma situação privilegiada, de especial proximidade, com o corpus da poesia.
No capítulo de O Arco e a Lira sobre inspiração é sugerida uma interpretação metafísica. Citando Heidegger, Octavio Paz vê a emergência do outro, da sua outridade, como aproximação ao Ser. Termina o capítulo com uma bela frase: A inspiração é lançar-se para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a ser. Voltar ao Ser. Mas, para Heidegger, o ser reside na palavra. Apontar relações inter e intratextuais na escrita revelada, inspirada, automática, não conflita com a visão metafísica, a interpretação de que algo essencial foi tocado, mas a reforça.
Associada às perguntas sobre a fonte do automatismo verbal, ainda pode haver uma discussão sobre a questão do valor. Breton, a julgar pelo tom adotado no final do primeiro Manifesto do Surrealismo e outros de seus textos, parecia esperar da escrita automática uma espécie de democratização da criação, realizando o a poesia será feita por todos, não por um de Lautréamont. Haveria um manancial, um reservatório de imagens do inconsciente, onde todos poderiam beber, a depreender de uma afirmação como esta, de Le message automatique: O próprio do surrealismo é haver proclamado a igualdade total de todos os seres humanos normais diante da mensagem subliminar, e haver sustentado constantemente que essa mensagem constitui um patrimônio comum, do qual cabe a qualquer um reivindicar sua parte, e que deve, a qualquer preço, deixar em breve de ser tido como apanágio de alguns. [45] Mas, no Segundo Manifesto do Surrealismo, já declarava ser lamentável que os esforços mais sistemáticos e mais constantes, tais como nunca deixou de exigir o surrealismo, não tenham sido feitos no que se relaciona com a escrita automática, por exemplo, e as narrativas dos sonhos, reconhecendo que textos dessa natureza às vezes apresentavam pouco interesse, assemelhavam-se a “trechos de bravura”, e continham clichês, por negligência de seus autores. [46] E Aragon havia chegado a afirmar, em seu Traité du style, [47] que um imbecil, fazendo escrita automática, escreveria imbecilidades. O estudo do intertexto na escrita automática pode dar razão a Aragon. Para criar algo pela via automática é preciso antes ser poeta, ter a capacidade de dialogar com a poesia e o poético. Alucinações verbais do automatismo têm isso em comum com aquelas induzidas em artistas por substâncias alucinógenas: criar algo nesses estados, ter visões realmente significativas, é necessariamente precedido pela experiência criativa e pelo diálogo. Não há criação no vazio, a partir do zero, seja pela via mística, automática ou alucinógena.

NOTAS
1. Em André Breton – par lui-même, col. Écrivains de Toujours, Éditions du Seuil, Paris, 1971.
2. A associação de Rimbaud e Mallarmé respectivamente ao dionisíaco e apolíneo é bem sustentada no ensaio Iluminuras – Poesia em Transe, de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, posfácio de Rimbaud, Iluminuras – Gravuras Coloridas, ed. Iluminuras, 1996.
3. Publicado na coletânea Point du jour, col. Folio-Essais, Éditions Gallimard, 1970.
4. A posição política da arte de hoje, texto que abre Posição Política do Surrealismo, publicada na edição brasileira dos Manifestos do Surrealismo pela Editora Nau, tradução de Sérgio Pachá.
5. Publicado como apêndice ao primeiro Manifesto do Surrealismo, de 1924; está na edição dos Manifestos do Surrealismo pela Editora Nau.
6. Em Signe ascendant; Poésie/ Gallimard, Paris, 1975, tradução minha, inclusive o lit por cama, e não por leito.
7. Estes três poemas estão na coletânea já citada, Signe ascendant. Receberam uma boa tradução na edição portuguesa preparada por Ernesto Sampaio, André Breton – Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 1994.
8. Conforme suas entrevistas a Dominique Arban e a Aimé Patri, de 1947 e 48, publicadas na coletânea de entrevistas Entrétiens.
9. Atribuido a Soupault no Philippe Soupault da coleção Poètes d’aujourd’hui, Pierre Seghers Éditeur, Paris, 1957.
10. Há comentários detalhados e esclarecedores nas notas de Marguerite Bonnet para a Oeuvre Complète de Breton, coleção Pléiade, Gallimard, Vol. I.
11. Em meu ensaio sobre acaso objetivo.
12. Esse texto, escrito em 1929, durante a primeira estada de Péret no Brasil; permaneceu inédito e foi recuperado por Sérgio Lima, que o publicou, em tradução de Leila Ferraz, primeiro em A Phala, de 1967, e depois em seu A Aventura Surrealista, Editora Vozes, 1995.
13. Entre outros, Jean-Louis Bédoin, no Poètes d’aujourd’hui da Seghers (Paris, 1961) dedicado a Péret.
14. Em Amor Sublime, tradução de Sérgio Lima e Pierre Clément, org. de Jean Puyade, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
15. Carlos M. Luis, Benjamin Péret o el mundo al revés, revista Atalaia-Intermundos, Universidade de Lisboa, novembro de 2002 e, on line, em www.revista.agulha.nom.br e www.triplov.com .
16. Na edição citada dos Manifestos do Surrealismo pela Editora Nau, tradução de Sérgio Pachá.
17. Henri Béhar e Michel Carassou, Le surréalisme, Le Livre de Poche, Paris, 1992.
18. Em André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, collection Idées, Gallimard, Paris, 1971.
19. Na tradução de Carlos Lima em Rimbaud no Brasil, UERJ-Comunicarte, 1993.
20. Reproduzido por Jean Richer, cf. Gérard de Nerval, col. Poètes d’aujourd’hui, Seghers, 1972.
21. Conforme as notas na Obra Poética de Fernando Pessoa, organização, introdução e notas de Maria Aliete Torres Galhoz, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.
22. Conforme Howl, Harper & Row, 1986, editada por Barry Miles, edição comentada, com todas as variantes, notas, etc, desse poema.
23. Conforme meu prefácio para a coletânea Uivo, Kaddish e outros poemas, de Allen Ginsberg, L&PM Editores, 1999. As observações sobre geração Beat seguem também a biografia de Ginsberg por Barry Miles e a copiosa quantidade de biografias disponíveis de Jack Kerouac.
24. Por Pierre-Olivier Walzer em Essai sur Stéphane Mallarmé, Poètes d’aujour’hui, Editions Pierre Seghers, 1963, onde é comentada a “crise” de Mallarmé.
25. Yeats, W. B., A Vision, Papermac, Londres, 1989.
26. Conforme Richard Ellman, Yeats – The man and the masks, Penguin Books, Londres, 1987.
27. Os dois trechos são de Invenção de Orfeu, cf. observações a respeito em meu ensaio sobre surrealismo no Brasil, História Subterrânea, Revista Cult nº 50, São Paulo, setembro de 2001.
28. Conforme as notas de Jorge Guillém para a Obra Completa de García Lorca, Aguilar, Madri, 1968.
29. Octavio Paz, La búsqueda del comienzo, Editorial Fundamentos/ Espiral, Madri, 1974; ou André Breton e a busca do início, em Signos em Rotação, ed. Perspectiva.
30. Em Charles Baudelaire – Poesia e Prosa, organizado por Ivo Barroso, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1996.
31. Mais a respeito em outra seção desta publicação, em meu ensaio sobre acaso objetivo.
32. Essa transcrição da correspondência Freud – Breton e as observações a respeito já estavam em meu prefácio para a edição dos Manifestos do Surrealismo de 1985, da Editora Brasiliense.
33. Também no já citado A posição política da arte de hoje, a palestra de 1935 que abre Posição Política do Surrealismo, na edição dos Manifestos do Surrealismo pela Nau.
34. Publicados em Le Mouvement perpétuel, Poésie/Gallimard, Pris, 1996.
35. Michel Leiris, Mots sans mémoire, Gallimard, Paris, 1997.
36. Mais sobre Breton e o sapato de Cinderela em meu ensaio sobre acaso objetivo, nesta edição.
37. Benjamin Péret, Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique, Éditions Albin Michel, Paris, 1960.
38. Desde o início, traduzíamos cadavre exquis por cadáver delicado; os portugueses preferiram cadáver exquisito. O nome do jogo vem da primeira frase obtida através desse procedimento: o cadáver delicado beberá o vinho do ano novo.
39. Le surréalisme: automatisme psychique pur?, de Anne de Giry, em Organon 22, Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Volume 8, número 22, 1994, dedicada a Aspectos do surrealismo.
40. Esclareço: quantas vezes já não me surpreendi “flagrando” intertexto em poemas meus escritos diretamente, com o mínimo da mediação consciente, e com todas as imagens batendo na vidraça a que teria direito. Quanta coisa já citei, parafraseei ou comentei, sem perceber. Faço comentários a respeito no prefácio de meu livro de poesias Estranhas Experiências, Editora Lamparina, 2004.
41. Traduções de Zona e outros poemas de Álcoois em Escritos de Apollinaire, tradução, seleção e notas de Paulo Hecker Filho, L&PM editores, Porto Alegre, 1984.
42. Mencionada em meu ensaio sobre acaso objetivo.
43. Traduzido na já citada coletânea por Ernesto Sampaio.
44. The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8, por Michael Rifaterre, em André Breton today, coletânea organizada por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli, Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989.
45. Em Point du jour, citado; Béhar e Carassou transcrevem o trecho e discutem bem essa questão.
46. Na edição dos Manifestos do Surrealismo pela Editora Nau, tradução de Sérgio Pachá.
47. Gallimard, Paris, 1980.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)


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20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de 2019
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