segunda-feira, 15 de abril de 2019

CLAUDIO WILLER | Algumas observações sobre surrealismo e marxismo, seguidas de outras sobre surrealismo no Brasil


I | A quantidade de títulos brasileiros sobre surrealismo pode ser contada nos dedos. Este é um dos motivos para registrar A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo de Michael Löwy (Editora Civilização Brasileira). Seu autor conhece o assunto, por tê-lo pesquisado e pela participação, há décadas, em atividades surrealistas. Daí a argumentação fluente, fundamentada em uma sólida bibliografia.
Pode, contudo, por causa do subtítulo, criar uma expectativa e subsequente frustração, pois sugere a discussão da relação entre o corpus do que é entendido por marxismo, ou abrangido por esse significante (bastante coisa, é claro), e tudo o que é designado por outro termo saturado de sentido, surrealismo.
Mas A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo é, antes, uma coletânea de ensaios. Tem um fio condutor, o exame da natureza revolucionária do surrealismo. A estrela da manhã do título é sua metáfora. Remete ao final de Arcano 17 de Breton: é a estrela especialmente luminosa emanada, segundo Éliphas Lévi, do anjo rebelde, Lúcifer, e que representa ao mesmo tempo amor e liberdade. O belíssimo final dessa obra complexa de Breton, Arcano 17 (editado pela Brasiliense), equivale às etapas finais de um processo iniciático: Breton evoca o sentido da Estrela da Manhã, Vênus, a supremacia do feminino, ao descobrir o estudo de Viatte mostrando o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, mostrando como partilharam a crença nesse mito liberador.
Um dos ensaios de Löwy é sobre Walter Benjamin. Comenta o modo como surrealismo impressionou o autor de O drama barroco alemão, resultando em influência e intertexto, especialmente de O Camponês de Paris de Aragon, evidente em Rua de Mão Única e outros de seus escritos. Examina sua apreciação lúcida e pioneira, levando-o, já em 1929, a partilhar com Breton e Aragon a ideia de iluminações profanas, a admiração pelo romantismo radicalizado de Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, a percepção do maravilhoso que emerge no mundo moderno; e mais, o que Löwy chama de marxismo gótico, a sensibilidade para a dimensão mágica das culturas do passado. Os conceitos weberianos de desencantamento e re-encantamento do mundo são invocados, na introdução do livro e neste ensaio, a propósito da conexão Benjamin-surrealismo.
Outro capítulo, sobre Pierre Naville, pensador político importante, um dos editores de La Révolution Surréaliste, é oportuno. Divergências filosóficas à parte, o tratamento dado por Breton a Naville em 1930, difamando-o no Segundo Manifesto do Surrealismo, não foi algo que se faça. Recuperando Naville, revela bastidores da relação surrealismo-trotskismo nos anos 30. Ao que parece, se não fossem as diferenças entre ambos, Breton e Naville, a aproximação de Breton e Trotski poderia ter-se dado antes.
Em seguida, vem um texto sobre O romantismo noir de Guy Debord e situacionismo. Chega em boa hora, por coincidir com a publicação, no Brasil, de manifestos da Internacional Situacionista e outras obras de Debord pela Conrad Livros. Traça um perfil de Debord, ao expor as linhas gerais de seu pensamento. Mas, dentro dos propósitos de A estrela da manhã, o exame das diferenças e afinidades entre surrealismo e o autor de La Societé du spectacle não poderia ficar restrito a um breve parágrafo, em acréscimo ao que é dito nas páginas iniciais do livro, supondo afinidades eletivas a aproximarem a atitude surrealista e a deriva situacionista.
Finalizam a série dois textos interligados, que poderiam compor um só artigo: um elogio a Vincent Bounoure, e um balanço da situação de grupos e movimentos surrealistas depois da morte, em 1966, de Breton.
Vincent Bounoure, morto em 1996, participou ativamente do surrealismo desde 1955, publicando em periódicos como Surréalisme même e La brèche. Em 1969, insurgiu-se contra a dissolução do surrealismo por Jean Schuster (legatário de Breton), José Pierre e Gérard Legrand (co-autor, com Breton, de L’Art magique), entre outros integrantes de peso desse movimento. Mas teve apoio de outros surrealistas de expressão, como Jean-Louis Bédouin, a excelente poeta Joyce Mansour e Robert Lebel. Daí em diante, Bounoure editou periódicos e a coletânea La Civilisation surréaliste. Estimulou manifestações e atividades no mundo todo. Criticou sua apropriação acadêmica, universitária. Segundo Löwy, …Se a aventura surrealista ainda continua em nossos dias, e se ela prossegue no século XXI, como esperamos, isso se deve e há de se dever, em absoluto primeiro lugar, ao espírito de insubmissão de um homem: Vincent Bounure. Entre outras informações sobre a movimentação surrealista pós-bretoniana, Löwy registra sua aproximação à Quarta Internacional, trotskista, em 1976; por conseguinte, aos marxistas revolucionários.
A seguir, relata o prosseguimento dessa aventura surrealista, a traduzir-se em publicações, manifestações e atividades no mundo todo, freqüentemente ignoradas pela mídia e especialistas da área universitária, levando-o a afirmar: …pior para os críticos, especialistas e outros dignos membros perpétuos da Academia das Inscrições e Belas-Letras. O surrealismo está alhures. (parafraseando Breton, que por sua vez adaptou Rimbaud, no final do primeiro Manifesto, ao dizer que a verdadeira vida está alhures, em outro lugar).
Essas observações têm um alvo: aqueles do grupo liderado por Breton que se moveram na direção da Sorbonne e outras universidades, e de núcleos acadêmicos de pesquisa, como o C. N. R. S. e o Centre de Recherches du Surréalisme dirigido por Henri Béhar, biógrafo de Breton, autor de obras sobre surrealismo e estudos importantes sobre Alfred Jarry.
Mas Löwy, neste capítulo sobre O surrealismo depois de 1969, teria que mostrar melhor o que há nesse alhures, para que os leitores saibam o que, nele, ultrapassa o epigonal. Apenas elencar publicações, grupos e atividades equivale a um relatório protocolar. Não adianta dizer-se surrealista e declarar o ímpeto revolucionário, sem mostrar algo no plano da criação, da produção intelectual. É um paradoxo: mas, com todo o seu discurso crítico com relação a artes e literatura, o que mantém o interesse por surrealismo é sua ligação ao melhor do que se produziu nesses campos no século XX, incluída, frise-se, a obra de Breton. Por isso, por ser um pensador e um escritor denso e complexo, é estudado, inclusive na área acadêmica.
Além disso, um pouco de teoria literária nunca fez mal a ninguém. Estudos universitários sobre surrealismo não precisam ser vistos como antagônicos com relação a seu prosseguimento como movimento. E trabalhos como aqueles dos estudiosos ligados a Béhar, bem como de scholars norte-americanos por sua vez ligados a Anna Balakian, trazem contribuição real para o conhecimento de obras surrealistas. Não há motivo para ninguém – nem os da ala acadêmica, nem os militantes – quererem, nesta altura, monopólio do surrealismo.
Conforme observado acima, na introdução e nos capítulos iniciais de A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo, Löwy dava a impressão de que a discussão da relação entre marxismo e surrealismo, da compatibilidade entre ambos, seria enfrentada no corpo do livro. Há até mesmo um parágrafo sobre Philosophie du surréalisme de Ferdinand Alquié (de 1955), um dos autores que achavam que não, que essa compatibilidade não existia. Já em 1933, Alquié havia denunciado o vento de cretinização sistemática que sopra da URSS, em uma carta que foi publicada em SASDLR, a revista de então dos surrealistas, antecipando a ruptura definitiva de Breton com o estalinismo em 1935. A tese de Alquié em Philosophie du surréalisme, polêmica, jamais foi impugnada por Breton – tanto é que o filósofo continuou a participar das publicações surrealistas e a constar como fonte bibliográfica. Simplificando uma argumentação técnica em uma obra complexa: para Alquié, por trás de cada referência a Marx por Breton, estava Hegel; e, por trás de cada referência a Hegel, estava Kant.
Ao fim, a argumentação de Löwy acaba por reduzir-se a um silogismo: o surrealismo é revolucionário, pois a utopia revolucionária é a energia musical deste movimento; o marxismo é revolucionário; portanto, são do mesmo âmbito, concordes, afins. Pode-se chegar ao contrário, utilizando as categorias revolução e revolta do modo como o faz Octavio Paz em Signos em Rotação, vendo-as como antitéticas. Nesse caso, surrealismo pertence ao âmbito da revolta; marxismo, ao da revolução.
Breton, note-se, distinguia rebelião romântica e pensamento marxista, até mesmo ao querer transformá-los em um só, como na célebre proclamação de 1935: “Transformar o mundo”, disse Marx; “mudar a vida”, disse Rimbaud: estas duas palavras de ordem, para nós, são uma só.
Em especial, é discutível esta afirmação de Löwy: Como Breton sempre afirmou, desde o Segundo Manifesto do surrealismo até seus últimos escritos, a dialética hegeliana-marxista está no coração da filosofia do surrealismo. Não, não foi isso o que Breton afirmou sempre. Desde o Segundo Manifesto do surrealismo até seus últimos escritos, o pensamento de Breton mudou, e muito. Na disjuntiva Marx-Rimbaud, parece ter ficado com Rimbaud. Afastou-se do marxismo. A fundamentação enfática em Marx e Engels de obras de 1930, como o Segundo Manifesto do Surrealismo e Les Vases Communicants, já não está em O Amor Louco, de 1937. E mesmo então, suas afirmações sobre Nicolas Flamel e alquimia, no Segundo Manifesto do Surrealismo, e a defesa de unidade do sonho e realidade, e da astrologia como ciência, em Les Vases Communicants, provocavam arrepios nos marxistas ortodoxos.
Conforme Löwy resume de modo apropriado, a relação entre surrealismo e PC explodiria de vez em 1935, com as denúncias mostrando a equivalência do regime soviético com aquilo que a sociedade burguesa tinha de mais retrógrado. Concomitantemente, o apoio a Trotsky, a traduzir-se no manifesto Por uma arte revolucionária independente, de 1937. Mas em seguida, nos Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não de 1942, Breton expressaria restrições ao racionalismo de Trotsky, para culminar na idéia dos Grandes Transparentes, do homem não mais como centro do universo, mas parte de um todo. Substitui Marx e Engels por Gérard de Nerval, seu interlocutor imaginário em Arcano 17, seu livro de 1944 (publicado com acréscimos em 1947).
Em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei perdoado, propõe-se a …convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente o rei da criação, como se vangloria. Pergunta sobre a oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes Transparentes. Observa que o homem não é talvez o centro, o ponto de mira do Universo, e critica o antropomorfismo, a crença de que o mundo encontra no homem o seu acabamento (sigo a mais recente edição brasileira dos Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Ed. Nau, Rio de Janeiro, 2001). Dando a palavra final em matéria de manifestos, Breton diz, no último parágrafo de Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953, que …a esse respeito, sua posição (do Surrealismo) se uniria à de Gérard de Nerval no famoso soneto Versos Dourados. Nele, o autor de Aurélia, expressando as idéias de Fabre d’Olivet, duvida de que sejamos o centro do universo e os detentores exclusivos da razão.
Sem que por isso o surrealismo perdesse em combatividade, ou se afastasse da discussão dos temas propriamente sociais e políticos, o mesmo movimento está presente na poesia bretoniana da década de 1940. Um de seus poemas de maior fôlego é a Ode a Charles Fourier, sobre o precursor do “socialismo utópico” e de uma visão da sociedade regida pelo pensamento analógico, pelas correspondências. Em outro poema da série, Les états géneraux, invoca Fabre d’Olivet e sua idéia de uma linguagem universal, e Saint-Yves d’Alveydre e seus estados gerais, reflexo mundano da ordem cósmica.
Tudo isso é observado por Löwy. São citados, em A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo, os momentos desse percurso: a entrada no PCF, em 1927, a ruptura de 1935, o encontro com Trotski e a fundação da FIARI em 1938. Dá como etapas seguintes a redescoberta de Charles Fourier, a proclamação de novas utopias, e a aproximação com anarquistas em 1949-1953.
Mas, cabe perguntar: é o mesmo percurso? Onde Löwy vê continuidade, não haveria, antes, inflexão, mudança na base do ímpeto revolucionário, no pensamento que o sustenta? Adotar Charles Fourier equivale a adotar Marx? Ou são antitéticos? Qual a chance de compatibilidade entre “socialismo utópico” e “socialismo científico”? Nenhuma, para Marx. Nem para Trotski, a julgar pelo tratamento dado a insurreições anarquistas enquanto comandava o Exército Vermelho.
Ver marxismo em Arcano 17, nos dois últimos manifestos, e em Les états géneraux não equivaleria a demonstrar que o taoísmo é um marxismo? Que Lao-Tsé é um precursor de Marx? Ou então, que, escavando através de camadas de racionalismo de Marx, Engels, Lênin e Trotski, pode-se encontrar a imagem do mundo regida pelas analogias e correspondências de Swedenborg, dos “iluminados” do século XVIII e de Éliphas Lévi?
Breton apontou com clareza quais eram os limites de qualquer tentativa de assimilá-lo a doutrinas e sistemas em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, de 1942. Além de avisar que não era homem de sistema, Breton diz com quem se alinha, contrapondo-se ao alinhamento dos partidos políticos: Mas, se a minha própria linha, bastante sinuosa, admito, mas quando menos minha, passa por Heráclito, Abelardo, Eckhardt, Retz, Rousseau, Swift, Sade, Lewis, Arnim, Lautréamont, Engels, Jarry e alguns outros?
É evidente que Marx e Engels, de um lado, e Sade, Mestre Eckhardt ou Jarry, de outros, certamente não são a mesma coisa. E a sinuosidade dessa percurso, dessa “linha” de Breton, desaparece na argumentação de Löwy. Ele apenas atenua essa clivagem: Se o marxismo foi um aspecto decisivo do itinerário político do surrealismo – sobretudo durante os vinte primeiros anos do movimento -, ele está longe de ser exclusivo. Desde a origem do movimento, uma sensibilidade libertária percorreu o pensamento político dos surrealistas. É como se adesão ao marxismo e sensibilidade libertária não fossem uma coisa e outra, traduzida na aproximação ao PC em 1927, e ao anarquismo, em 1949. Se fossem compatíveis, nem Robert Desnos precisava ter-se desligado em 1927, por preferir o anarquismo ao marxismo, nem Antonin Artaud, por entender que a rebelião romântica, individual, era um caminho para a transformação do mundo.
Tratando de Benjamin Péret, o mais militante dos grandes nomes do surrealismo, Löwy observa, corretamente, que sua obra esboça uma antropologia da liberdade. Mas não menciona que, em 1946, Péret se desligou da Quarta Internacional. Essa data – associada também ao período de publicação dos poemas “utópicos” de Breton, Ode à Charles Fourier e Les États Géneraux, - é, portanto, aquela da desvinculação de surrealismo e marxismo, em qualquer uma de suas formas, modalidades e tendências.
Cabe perguntar: por quê o afastamento das organizações de orientação marxista não foi proclamado com a mesma ênfase dada à aproximação de 1927? A resposta me parece evidente: Breton e seus companheiros jamais iriam fornecer água para o moinho da reação, dando argumentos, às custas do surrealismo, que fortalecessem o outro lado no mundo da Guerra Fria, cindido entre macarthismo e estalinismo. Em Entrétiens, seus depoimentos autobiográficos, a melhor fonte sobre o pensamento bretoniano, é apenas reticente, e se omite. Mas também não há nada que se assemelhe às declarações, verdadeiras profissões de fé em favor do marxismo, de vinte anos antes.
Críticos já apontaram inconsistências no pensamento de Breton. Mas o que é invocado por alguns como argumento contrário ao surrealismo em geral, e a Breton, em particular, na verdade é qualidade, argumento a favor, pelo que estimula e sugere, e pelas armadilhas e obstáculos à decodificação fácil, à transformação em doutrina.
Em suma, no terceiro capítulo de A estrela da manhã, sobre marxismo libertário de Breton, Löwy atenua o que nele há de contraditório e assistemático, a despeito da advertência bretoniana, em Prolegômenos. Omitidas as diferenças e incompatibilidades entre marxismo e surrealismo, deixa de ser estranho que o surrealismo, na versão pós-bretoniana liderada por Vincent Bounure, se ligasse à Quarta Internacional, ao que sobrou de trotskismo, do qual se havia afastado em 1946. O resultado são documentos como um recente manifesto surrealista, veiculado pela Internet, sustentando o apoio à Quarta Internacional, a ruptura com o FMI e o fim do bloqueio econômico a Cuba. São boas causas. Mas, de surrealismo, mesmo, não há mais nada nesses documentos. Acabam servindo como argumento para salvar ou justificar marxismo e trotskismo. É uma inversão do que ocorria nos anos de 1930 e 40, quando a crítica de fundamentação marxista, especialmente lucacsiana, o impugnava pelo “irracionalismo”. Antigamente, o surrealismo tinha que justificar-se, argumentando, perante o marxismo. Agora, organizações de esquerda justificam-se ao se apresentarem como surrealistas.
Cabe invocar uma categoria utilizada por Löwy, o pessimismo revolucionário, uma crítica ao triunfalismo, mas revertendo-a. Tem que haver uma recíproca, a dúvida quanto à possibilidade da projeção do paradigma marxista, em qualquer uma de suas modalidades, resultar em outra coisa além da reedição dos autoritarismos da esfera do socialismo real. Mais ainda, quando o trotskismo continua a ser apresentado como retomada do verdadeiro leninismo, contraposta ao desvio estalinista, ignorando que a centralização na URSS, atrelando os soviets ao Partido, foi obra de Lênin, com a participação ativa de Trotski.
Enfim, a discussão de marxismo e surrealismo também deveria levar em conta os argumentos sustentando o antagonismo entre rebelião romântica e revolução marxista. Incluem aqueles de Octavio Paz, ao falar, em Conjunções e Disjunções, em tirania do futuro, em detrimento do presente, no pensamento marxista. Antes, já em 1927, Artaud defendia a autonomia da rebelião individual, romântica, argumentando que marxismo não passaria de mais um produto da civilização ocidental.
Löwy apresenta-se como surrealista ativo, militante, além de ser apresentado como tal, no posfácio de A estrela da manhã, escrito por Sergio Lima. E uma versão inicial desta resenha havia sido divulgada antes da veiculação na Internet de um artigo intitulado Valores de uma nueva civilización, do início de 2004, escrito em parceria, a quatro mãos, por Michel Löwy e Frei Betto, disponível em La hoja Latinoamericana, publicação do Centro de Estudios y Trabajo América Latina (Cetal) de Uppsala – Suecia.
É claro que, ao longo de três anos, entre A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo e este Valores de uma nueva civilización, muita coisa pode ter acontecido – até mesmo, uma conversão de Löwy, agora abraçando a fé católica, e, conseqüentemente, abandonando o surrealismo. Ou não: a parceria entre Löwy e o sacerdote, assessor de Luís Inácio Lula da Silva, atual presidente do Brasil, não envolve aproximação religiosa. Decorre apenas do entendimento, na afirmação da solidariedade e na crítica à mercantilização do mundo, enunciada de modo eloqüente por ambos, Löwy e Frei Betto.
Conforme observado, a relação entre surrealismo e marxismo foi, ao longo das décadas de existência de um surrealismo “histórico”, não-linear, “sinuosa”, marcada por graus distintos de aproximação e afastamento com relação ao marxismo e a modos de militância. Já a relação com o cristianismo e com a Igreja Católica sempre foi a mesma: de repulsa total. Nunca houve a mínima sinuosidade. Há um anti-clericalismo surrealista, evidente não só nos filmes de Buñuel ou nas reações indignadas de Benjamin Péret à vista de um padre, que impressionaram seus amigos brasileiros durante suas estadas neste país. Tanto é que, ao final de Arcano 17, Breton refere-se a um importante ensaio com decodificações herméticas de Rimbaud, mas recusa-se a escrever o nome do autor, por tratar-se de um jesuíta.
Tudo isso é bem conhecido por Löwy. Por isso, não há nenhuma chance de, seguindo-se a Surrealismo e Marxismo, vir a ser publicado, pelo mesmo autor, Surrealismo e Comunidades Eclesiais de Base, ou então, Surrealismo e a Teologia da Libertação.

II | Complementa A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo o texto de Sergio Lima, Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de 1920 até aos dias de hoje), disponível na Internet em Triplo V, www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html .
Sergio Lima é qualificado para falar sobre surrealismo em geral, e no Brasil em especial. Pode confundir sua biografia e currículo com o tema, como o faz neste depoimento, pela participação em atividades surrealistas e por um extenso conhecimento do assunto. É, no mínimo, uma referência bibliográfica importante, em acréscimo ao que criou em poesia e artes visuais.
Mas seu relato é distorcido. Em sua ótica, surrealismo no Brasil tem duas fases distintas: antes e depois dele, Sergio Lima.
Na primeira fase, até por volta de 1960, a abordagem é inclusiva, ao tratar do que chama de surrealismo difuso. Comete exageros. Juntar, como faz, na mesma frase e na mesma seqüência Elsie Houston-Péret e Pagu, e Fernando Mendes de Almeida, A. J. Ferreira Prestes, Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Livio Xavier, Osório César, Jamil Almansur Haddad e Raguna Cabral, não passa de enumeração caótica. É reescrever história de modo assemelhado ao “método confuso” criado por Mendes Fradique. Espera-se que as relações com surrealismo dessas e outras personalidades também elencadas (Wagner Castro, Eros Volusia, Albino Braz, Febrônio Índio do Brasil, Raul Bopp, Tarsila do Amaral) sejam esclarecidas nos anunciados volumes seguintes de seu A Aventura Surrealista, ou na publicação de sua tese de doutoramento. A propósito, que estranho: por que cargas d’água não consta, no relato autobiográfico de Sergio, tão detalhado, a tese que defendeu na USP em 1998, Surrealismo: polêmica de sua recepção no Brasil modernista, orientada por Valentim Facioli, por sua vez autor de obra sobre a conexão Breton-Troski, e que foi aprovada com louvor? Não consta, também, sua participação nas duas substanciosas coletâneas organizadas por Robert Ponge, professor na UFRGS, Organon 22, de 1994, dedicada a Aspectos do surrealismo, e Surrealismo e novo mundo, de 2001, publicadas pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Parece que, para Sergio Lima, apresentar-se como surrealista militante o obriga a omitir seus estágios no surrealismo universitário.
Já na segunda fase, pós-SL, só recebe ingresso para o mundo surreal quem participou de atividades com ele, Sergio Lima. Evidentemente, todos têm o direito de valorizar seu trabalho e dar destaque à sua atuação. Ninguém negaria sua condição de porta-voz e avatar surrealista; menos ainda, deixaria de reconhecer tudo o que ocorreu por sua iniciativa. Mas não havia necessidade de alterar datas e falsear outras informações.
Daqui para a frente, trato do assunto de modo detalhado, diante do risco de alguém acreditar em tudo o que Sergio Lima afirma, e sua versão acabar indo parar em algum manual de história da literatura, ou dos movimentos culturais do século XX no Brasil, disseminando informação falsa Vamos ao que relata (uso a facilidade de copiar a versão on line): Voltando de Paris para São Paulo em 1962, passei a me reunir com os poetas ditos “novíssimos” (estreantes que eram editados na série “novíssimos”, por Massao Ohno). Logo organizamos, Roberto Piva, Claudio Willer e eu, uma central ou núcleo de debates sobre o Surrealismo. (…) Logo temos os três primeiros livros publicados por nossa turma, os quais passam a ser centro das discussões (e disputas) principais entre nós: Paranóia (lançado no final de ’62), do R. Piva; Amore, de S. Lima (editado em ’63, com textos de ’59 e ‘60); e, pouco depois, no começo de ’64, Anotações para um Apocalipse, de C. Willer (onde se encontram as primeiras reflexões de Willer em relação à beat generation e suas implicações literárias). Anotações é lançado juntamente com um segundo livro de Piva, o Piazzas (1964), o qual, escrito em ’63 portanto, já sinalizava, por assim dizer, um diapasão distinto de seu primeiro livro de poemas, o Paranóia. Cumpre salientar que começavam, então, a se formar certas distâncias entre a perspectiva surrealista, de uma atuação específica, e aquela mais descompromissada, pretendida pelos demais nomes da turma. (…) Embora não tenha prosseguido enquanto grupo, essa turma era, digamos assim, o gérmen do primeiro grupo surrealista que iria se formar logo depois, fins de ’64, com novas participações e amigos do Rio de Janeiro.
E chega ao seguinte: Sucedendo a este núcleo inicial, e em função de divergências que passam a ter um certo vulto (sobretudo por parte de Piva e Willer, mais preocupados com a beat generation e o pop art), assumo de vez a liderança e, com as novas aderências de Fiker e Leila Ferraz, mais Zuca Saldanha e Paulo Antônio Paranaguá, vindos do Rio de Janeiro, organizo o primeiro grupo surrealista S.Paulo/Rio, cuja vida breve - 1965 a 1969 - não deixou de ser pródiga de realizações.
Não. Decididamente, não. Essas datas estão erradas. Paranóia, escrito no final de 1961 e começo de 1962, foi lançado em abril ou maio de 1963, e não em 62. Sergio Lima  nos foi apresentado por Roberto Piva depois disso, não me lembro se em maio ou junho de 1963 – fazia frio e garoava naquela noite que se estendeu pela madrugada afora, em que pela primeira vez nos reunimos. Enfim, Paranóia de Roberto Piva não tem qualquer relação com atividades surrealistas por iniciativa de Sergio Lima. Tudo o que há de surrealismo na poesia de Piva (bastante) é por conta dele mesmo, sem dever nada a Sergio Lima ou a quem for, exceto à sua própria condição de leitor voraz e à sua inquietação e talento.
E a publicação de Piazzas de Piva e do meu Anotações para um Apocalipse foi em outubro de 64. Nós dois, Piva e eu, nos afastarmos de surrealismo porque teríamos passado a nos interessar por beat, é ficção, fantasia pura. Tanto comprávamos La Brèche na Livraria Francesa (entre muitas outras coisas) quanto recebíamos as edições beat da City Lights, vindas de San Francisco; e isso bem antes de Sergio Lima entrar em cena. Quando nos procurou, sabia disso. A descoberta epifânica de Allen Ginsberg é evidente já na Ode a Fernando Pessoa de Piva, do final de 1961 ou começo de 1962. Há intertexto de Ginsberg em Piva em Paranóia, obra especialmente importante, que aos poucos vai sendo reconhecida como marco de renovação da poesia brasileira. Piazzas, justamente, poderia ser tido como obra mais "surrealista" de Piva, se interessasse catalogar desse jeito. Enfim, quanto a Roberto Piva e a mim, vínculos com surrealismo são aqueles apontados na bibliografia crítica já existente, e, principalmente no que temos a dizer e já dissemos a respeito.
Há mais para corrigir na cronologia de Sergio. O grupo, com reuniões regulares em um bar, durou alguns meses. Logo depois do necrológio distribuído na abertura da Bienal de São Paulo, em 1963, dispersou-se. Mas continuamos a nos encontrar, inclusive para falar de surrealismo. Em 1965, houve reuniões regulares no ateliê de Wesley Duke Lee. A propósito, ser detido pela polícia e ir parar em delegacia, isso não poderia ser atividade surrealista? Em 1965, viajamos - Piva, Sergio, Argos Machado e eu - até Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, a convite de um grupo de Cataguazes de tendência anarquista, encabeçado por Paulo Bastos Martins, que nos havia sido apresentado por Sergio, para participar de manifestações, que incluíam projeções de L’Age d’Or, encenações de Ionesco, desconstruindo-o, exposição de quadros, venda de livros. Houve emissões radiofônicas que alarmaram a cidade, fazendo que a programação desaguasse na delegacia local. Durante algumas horas, permanecemos diante de um delegado perplexo, tentando resolver o que fazer com a trupe. Felizmente, nos liberou. É daqueles episódios que me fazem rir sozinho quando me lembro dele. Que pena então não haver vídeo. Que erro, não levar sempre a máquina fotográfica e gravador.
Em La Brèche – Action Surréaliste nº 8, de fevereiro de 1965, saiu, graças aos bons ofícios de Sergio, uma nota sobre Le surréalisme a São Paulo, declarando que, com Paranóia de Roberto Piva, Amore de Sergio Lima e meu Anotações para um Apocalipse, pela primeira vez o Brasil dispunha de obras cujos autores se reclamam abertamente do surrealismo. O trecho dedicado a Anotações para um Apocalipse enriquece meu currículo de modo hilariante: O autor dispõe de uma formação científica muito livre e as experiências que lhe deixaram uma vida violenta e o hábito dos tóxicos. Francamente, não merecia tanto. A referência a essas publicações em La Brèche, obviamente omitida por Sergio em seu relato, basta para desmontar toda a sua cronologia.
Em um 6 ou 8 de fevereiro de 1966, Sergio Lima me convidou para almoçar – em companhia de Leila Ferraz e Paulo Paranaguá – em um restaurante chinês no bairro da Liberdade, para expor como seria a Mostra Surrealista Internacional que acabou tendo lugar em 1967. Não quis participar, por achar que Sergio centralizava demais. Já estava tudo resolvido, pronto na cabeça dele, sem admitir qualquer discussão ou sugestão. Pelo mesmo motivo, outros convidados não se interessaram. O grupo então formado – Sergio, Leila, Fiker e Paranaguá – logo se dissolveu. Existiu em função do colossal esforço de preparação daquela mostra e da edição de A Phala. Encerrada a mostra, cada qual foi para seu lado.
Importa questionar, no modo Sergio Lima de escrever história, como ele passa ao largo de tantas obras e autores recentes, das últimas décadas, que dialogam com surrealismo. De 1980 para cá, houve crescimento gradativo da circulação, recepção e relação com surrealismo no Brasil. Mas Sergio, confinado ao paroquialismo, pouco tem a ver com isso. Em nome de uma ortodoxia, acaba por fazer o mesmo que critica na recepção brasileira ao surrealismo, ignorando manifestações.
Na obra de Breton, é freqüente o uso da expressão diálogo. Seus elogios a contemporâneos e autores mais novos – por exemplo, a Malcolm de Chazal, Aimé Césaire ou Frida Kahlo –, foram pela qualidade do que faziam, e não pela disposição de participarem de atividades, grupos ou movimentos surrealistas. Seu foco se dirigia, de modo muito honesto, em primeira instância para o valor. Frida Kahlo não queria saber de surrealismo, e o que interessou a Breton foi ela ser uma extraordinária artista. Essa dimensão do valor desaparece nos elencos de surrealistas preparados por Sergio. Interessa-lhe apenas, em uma versão particular da política literária, se concordaram em compor grupos com ele. O que há nas obras nunca é analisado ou discutido.
A meu ver, Juan Sanz Hernandes merece qualificação como surreal, não por ter freqüentado reuniões no ateliê de Lia Paes de Barros por volta de 1990, mas pela imagética torrencial em Biografia a Três e Horas Queridas. Raul Fiker tem que figurar em catalogações do que houve desde 1960, pela densidade de O Equivocrata, obra que ainda não teve a leitura que mereceria, e não por haver colaborado na montagem da mostra de 1967. E, se alguém quiser saber sobre relação com surrealismo, na versão militante ou não, que pergunte a eles.
Quanto a mim, e à minha relação com grupos e movimentos surrealistas, no começo de 1968, convidado por Paulo Paranaguá, fui a uma das reuniões na Promenade de Venus, em Les Halles. Em seguida, fomos ao apartamento de Vincent Bounoure. Divergências sobre geração beat, que ele não admitia de modo algum, resultaram em uma discussão exaltada, de algumas horas. Grupo surrealista francês fez bem em encerrar-se. Mostrava-se paroquial e epigonal. Se fosse para tomar posição nas ramificações e versões do surrealismo, teria sido mais próxima àquela de Alain Jouffroy e Jean-Jacques Lebel, que nunca viram surrealismo e beat como excludentes. Como tradutor de Allen Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, autor de um sem-número de textos sobre Breton e surrealismo, e de poemas, inclusive em escrita automática, não concebo antagonismo entre esses campos, respeitadas, é claro, suas diferenças, a integridade e especificidade de cada um. O antagonismo é com relação à ordem estabelecida, ao mundo em que vivemos. Isso, na perspectiva do prosseguimento da rebelião romântica, e da manutenção de seu ímpeto revolucionário.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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