As comparações a seguir
são apresentadas como sugestão, para que o leitor exercite sua imaginação e
capacidade especulativa. Que o estimulem a preencher espaços, reconstituir uma
argumentação e uma leitura mais rica do surrealismo. Os fragmentos acentuam sua
universalidade, sem negar seu caráter de exceção.
BRETON:
Imaginação querida, o
que sobretudo amo em ti é não perdoares. (...) Só a imaginação me dá contas do
que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição
terrível; é bastante também que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar
(como se fosse possível enganar-se mais ainda). (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, em Manifestos do Surrealismo, Editora
Brasiliense, 1985, pgs. 34-35)
BAUDELAIRE:
Que
misteriosa faculdade é essa rainha das faculdades! (...) A imaginação é a
rainha do verdadeiro, e o possível é uma das esferas do verdadeiro.
Positivamente, ela é aparentada com o infinito. (...) ...todo o universo
visível é apenas um lugar de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá
atribuir um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que a
imaginação deve digerir e transformar. (Baudelaire, em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos
tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pgs. 804-809)
ÉLIPHAS
LÉVI:
Mas
a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade
muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da
magia: quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano
ou o translúcido. Efetivamente, a
imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se
conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho
das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos as doenças, que
influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que
ressuscitamos os mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio
sobre o agente universal. (...) A imaginação é o instrumento da adaptação
do verbo. A imaginação aplicada à razão é o gênio. (Éliphas Lévi, em Dogma e Ritual da Alta
Magia, Editora Pensamento, São Paulo, 2002 pgs. 78-79)
NOVALIS:
A imaginação é o sentido
maravilhoso que pode substituir para nós todos os sentidos – e que já é tão
dirigido por nossa vontade. Se os sentidos externos parecem ser inteiramente
governados por leis mecânicas – então a imaginação obviamente não é subordinada
ao presente e ao contato com estímulos. (Novalis, Philosophical Writings, pg. 118)
BRETON:
... a atitude realista,
inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a
todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita
de mediocridade, ódio e insípida presunção. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op. cit. pg.
36)
BAUDELAIRE:
Acho inútil e fastidioso
representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A
natureza é feita, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade
concreta. (Baudelaire, op. cit. pg. 803-804)
BAUDELAIRE:
O que me entedia na
França é que todo mundo se parece com Voltaire (Baudelaire, Escritos íntimos, op. cit. pg. 535)
HUYSMANS:
Não recrimino o
naturalismo nem por seus termos de barcaça, nem por seu vocabulário de latrinas
e de hospícios... (...) Querer confinar-se aos lavadouros da carne, rejeitar o
supra-sensível, negar o sonho, nem mesmo compreender que a curiosidade da arte
começa lá onde os sentidos deixam de servir! (Huysmans, J. K, Lá-bas,
Plon, 1961, pg.5)
3. SONHO
BRETON:
Acredito na resolução
futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a
realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se
pode dizer. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 45)
NERVAL:
O sonho é uma segunda
vida. (...) Começa aqui para mim o que chamarei de efusão do sonho na vida
real. (Nerval, Gérad de, Aurélia, tradução e prefácio de Contador Borges, Iluminuras, São Paulo, 1991,
pgs. 35 e 39)
BRETON:
Fica a loucura, “a
loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. (...) E, de fato,
alucinações, ilusões, etc, são fonte de gozo nada desprezível. (Breton,
primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 53)
NERVAL:
O que são as coisas
deslocadas! Não me acham louco na Alemanha. (...) ...a imaginação trazia-me
delícias infinitas. Recobrando o que os homens chama de razão, não deveria eu
lamentar tê-las perdido? (Nerval, op. cit,
pgs. 28 e 35)
NOVALIS:
A loucura comunal deixa
de ser loucura e torna-se mágica. Loucura governada por leis e em plena
consciência.
Todas as artes e
ciências repousam em harmonias parciais.
Poetas, loucos, santos,
profetas. (Novalis, Philosophical Writings, pg. 61)
5. ESCRITA AUTOMÁTICA:
BRETON:
Certa noite então, antes
de adormecer, percebi, nitidamente articulada, a ponto de ser impossível
mudar-lhe uma palavra (...), frase que me parecia insistente, frase, se posso
ousar, que batia na vidraça. (Breton,
primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg. 53)
FERNANDO PESSOA:
... acerquei-me de uma
cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo
sempre que posso. E escrevi trinta a tantos poemas a fio, numa espécie de
êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida,
e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título – “O Guardador de
Rebanhos”. (Pessoa, Fernando, Obra
Poética, organização, introdução e notas de Maria Aliete Torres Galhoz,
Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960, pg. 712).
BRETON:
As hordas de palavras
literalmente desenfreadas, às quais Dada e o surrealismo fizeram questão de
abrir as portas, não são das que se retiram tão inutilmente. (Breton, Segundo Manifesto do
Surrealismo, em Manifestos do
Surrealismo, op. cit, pg. 127)
BRETON:
SURREALISMO, s. m. (...)
Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de
toda preocupação estética ou moral. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit,
pg. 58)
RIMBAUD:
Pois o eu é um outro. Se
o cobre acorda o clarim, não é por sua culpa. Isto me é evidente: eu assisto à
eclosão do meu pensamento; eu a contemplo; eu a escuto; eu lanço uma flecha: a
sinfonia faz seu movimento no abismo, ou salta sobre a cena. (Rimbaud, na
“Carta do Vidente”, na tradução de Carlos Lima em Rimbaud no Brasil, UERJ-Comunicarte, 1993)
NERVAL:
Eu é um outro. (Nerval,
anotação em um retrato seu, reproduzido por Jean Richer, cf. Richer, Jean, Gérard
de Nerval, col. Poètes d’aujourd’hui, Seghers, 1972)
MALLARMÉ:
Acabo de passar um ano
assustador: meu Pensamento se pensou. (Mallarmé, em carta a Cazalis, de 1867,
cf. várias fontes)
6. INTUIÇÃO:
BRETON:
... o grande recurso de
que (o homem) dispõe é a intuição poética. (...) Ela, enfim, libertada no
surrealismo, apresenta-se não só como assimiladora de todas as formas
conhecidas, mas ousadamente criadora de novas formas – ou seja, em posição de
abranger todas as estruturas do mundo, manifestas ou não. Só ela nos provê o
fio que remete ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da realidade
supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”. (Breton, no
parágrafo final do último dos Manifestos,
Do Surrealismo em suas Obras Vivas, op. cit. pg. 231)
PESSOA:
Um poeta é um intuitivo,
e faz versos por uma operação intuitiva. (...) No caminho ritual busca-se o
desenvolvimento da intuição pela intuição mesma, ou, se preferir, pelo instinto
(base da ação, da ação perfeita). No caminho místico (?) busca-se a obtenção da
intuição pela abdicação da personalidade. No caminho mercurial busca-se pelo
desenvolvimento da inteligência, de que a intuição depois se alimente.
(Fernando Pessoa, O grau de adepto menor,
em Fernando Pessoa: O amor, a morte, a
iniciação, de Y. K. Centeno, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1985.
Ortografia atualizada na citação)
BRETON:
O maravilhoso não é o
mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação
geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim
moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por
algum tempo. (...) Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para
suportar, eu que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de
minha época, procuro ir mais longe que os outros. (Breton, primeiro Manifesto do Surrealismo, op.cit, pg.
47)
BRETON:
... (eu sustentava que o
mundo acabaria, não por um belo livro, mas por uma bela propaganda do inferno e
do céu) (Breton, idem, pg. 54)
RIMBAUD:
Admirava as pinturas
medíocres, bandeiras de portas, cenários, telões de saltimbancos, letreiros,
iluminuras populares; a literatura antiquada, latim de igreja, livros eróticos
sem ortografia, romances dos tempos de avó, contos de fadas, almanaques infantis,
velhas óperas antigas, refrões simplórios, ritmos singelos. (Rimbaud, Alquimia do Verbo, em Rimbaud, Arthur, Prosa Poética Completa, organização e tradução de Ivo Barroso,
Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1998, pg. 161)
8. MISTÉRIO, MAGIA, HERMETISMO; SURREALISMO E
FILOSOFIA ROMÂNTICA
BRETON:
É possível que a vida
peça para ser decifrada como um criptograma. Escadas secretas, molduras de onde
os quadros deslizam rapidamente e desaparecem para dar lugar a um arcanjo de
espada em riste ou para dar passagem aos que devem avançar para sempre, botões
que são premidos muito indiretamente e provocam o deslocamento em altura e
comprimento de toda uma sala com a mais rápida mudança de ambiente: pode-se
conceber a grande aventura do espírito como uma viagem desse gênero ao paraíso
dos ardis. (André Breton, Nadja, tradução de Ivo Barroso, Cosak Naify,
São Paulo, 2007)
NOVALIS:
Diversos são os caminhos
do homem. Quando são seguidos e comparados, vê-se formarem estranhas figuras,
que parecem fazer parte deste grande criptograma que se entrevê em todo lugar:
sobre as asas dos pássaros, sobre as cascas do ovo, nas nuvens, nos cristais e
nas petrificações, à superfície das águas que se congelam, no interior e no
exterior das montanhas, das plantas e dos animais, nas constelações do céu,
sobre as placas de vidro ou de piche que se faz vibrar batendo nelas ou
acariciando-as com um arco, na limalha que se ordena ao redor do imã e nas
estranhas conjunturas do acaso. (Novalis, citado por Maurice Besset, Novalis et la pensée mystique, Aubier –
Montaigne, Paris, 1947, pg. 86)
9. HISTÓRIA DA LITERATURA - LITERATURA COMPARADA
BRETON:
Mas vejam de que
admirável e perversa insinuação já se mostrou capaz um pequeno número de obras
muito modernas, as mesmas das quais o mínimo que se possa dizer é que nelas o
ar é particularmente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (a despeito das reservas
que lhe fiz), Huysmans, Lautréamont, para ficar só na poesia. Não tenhamos medo
de erigir em lei essa insalubridade. (Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo,
em Manifestos do Surrealismo, op. cit, pg. 129)
HUYSMANS:
...pois só lhe
interessavam verdadeiramente as obras doentias, consumidas e irritadas pela
febre. (...) ...voltava-se ele obrigatoriamente para certos escritores tornados
ainda mais propícios e mais caros a ele pelo desprezo em que os tinha um
público incapaz de compreendê-los. (Huysmans, J. K, Às avessas, tradução
e estudo crítico de José Paulo Paes, Companhia das Letras, São Paulo, 1987pgs.
189 e 216)
BRETON:
...na hora em que os poderes
públicos se preparam para celebrar grotescamente com festas o centenário do
romantismo, nós dizemos que essa romantismo, do qual aceitamos historicamente
ser considerados como cauda, mas então
cauda de tal modo preênsil, por sua essência mesmo em 1930, reside
inteiramente na negação desses poderes e dessas festas, que ter cem anos é para
ele a mocidade, que o que se chama erradamente sua época heróica não pode mais,
honestamente, significar senão o vagido de um ser que apenas começa a fazer
conhecido o seu desejo através de nós e que, se se admite que o que foi pensado
antes dele – “classicamente” – era o bem, quer incontestavelmente todo o mal. (Breton, Segundo Manifesto do Surrealismo, op.
cit, pg. 129)
BRETON:
A crítica atual é
injusta com o simbolismo. Você diz que o surrealismo não procurou valorizá-lo:
historicamente resultava inevitável que se opusesse a ele, porém a crítica não
tinha porque fazer-lhe restrições. Era quem devia encontrar de novo, e pôr em
seu lugar a correia de transmissão. (Breton, André, El Surrealismo – Puntos de Vista y Manifestaciones, Barral
editores, Barcelona, 1977, pg. 15 –edição espanhola de Entrétiens, entrevistas
radiofônicas de Breton)
OCTAVIO PAZ:
Apesar da contradição
que encerra, e às vezes com plena consciência dela, como no caso das reflexões
de Baudelaire em L’art romantique, desde
princípios do século passado se fala de modernidade como de uma tradição e se
pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança. (Paz, Octavio, Os Filhos do Barro, Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1984, pg. 18)
BRETON:
Os grandes poetas do
século passado o compreenderam [ao
esoterismo] admiravelmente, desde Hugo cujas relações muito estreitas com a
escola de Fabre d’Olivet acabam de ser reveladas, passando por Nerval, cujos
sonetos famosos referem-se a Pitágoras, a Swedenborg, por Baudelaire que
notoriamente vai buscar nos ocultistas sua teoria das “correspondências”, por
Rimbaud cujo caráter de suas leituras nunca seria acentuado suficientemente, no
apogeu de seu poder criador – basta remeter à lista já publicada das obras que
toma emprestado á biblioteca de Charleville –, até Apollinaire, em quem
alternam a influência da Cabala judia e a dos romances do Ciclo de Artur. Mesmo
não sendo do agrado de certos espíritos que só se sentem à vontade na
imobilidade e no óbvio, na arte esse contato não cessou e não cessará de ser
mantido. Consciente ou não, o processo de descoberta artística, embora
permanecendo alheiro ao conjunto das suas ambições metafísicas, não é menos enfeudado
á forma e aos meios de progressão da alta magia. Tudo o mais é indigência, é
banalidade insuportável, revoltante: cartazes publicitários e versinhos. (Breton, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria
Boaventura, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, pg. 77)
OCTAVIO PAZ:
[...]
de Blake a Yeats e Pessoa, a história da poesia moderna do Ocidente está ligada
à história das doutrinas herméticas e ocultas, de Swedenborg a madame
Blavatsky. (Paz,
Os Filhos do Barro, pg. 94)
11. PARA CONCLUIR, ALGUMAS OBSERVAÇÕES MINHAS:
Os sucessores da geração
de escritores do fim de século francês, que inclui os agrupados como poetas
malditos por Verlaine, são, como herdeiro direto, Alfred Jarry, assim como
Apollinaire e Reverdy, Dada e o surrealismo. Quem vê o surrealismo
exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo,
comete um equívoco: a loucura havia campeado nas décadas precedentes, no
período que medeia entre o Simbolismo e o modernismo vanguardista, e que, mais
apropriadamente, pode ser visto como exacerbação do Romantismo. Os surrealistas
lhe deram, é certo, continuidade; mas tentaram conferir-lhe uma dimensão
política, resumida na proposta bretoniana de tornar um só o transformar a sociedade de Marx e o mudar a vida de Rimbaud. E a
sistematizaram na revisão da história da literatura proposta, com especial
clareza, no Segundo Manifesto do
Surrealismo. (...) Octavio Paz prossegue a mesma revisão da história da
literatura, entendendo o Romantismo, não como período circunscrito, delimitado
por algumas datas do final do século XVIII e meados do XIX, mas como processo,
uma vertente marcada pela rebelião e ruptura. Por isso, em Los Hijos del Limo (op. cit), fala em revolução romântica, manifestação da tradição da ruptura, contraposta ao classicismo. E distingue o
romantismo oficial, dos manuais de literatura, de um verdadeiro romantismo
francês: A poesia francesa da segunda
metade do século passado - chamá-la de simbolista seria mutilá-la - é
indissociável do romantismo alemão e inglês: é seu prolongamento, mas também é
sua metáfora. (no meu prefácio para Lautréamont – Obra Completa,
Iluminuras, São Paulo, 1997; terceira edição em 2008, pg. 55)
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)
Agulha Revista de
Cultura
20 ANOS O
MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de
2019
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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