segunda-feira, 15 de abril de 2019

CLAUDIO WILLER | A escrita automática e outras escritas: um depoimento


No final de setembro de 2006 – dia 29 de setembro, para ser preciso – dei palestra no Recife, no Colóquio de Estudos Literários Contemporâneos promovido pela Universidade Federal de Pernambuco e coordenado por Lucila Nogueira. Meu tema, A poesia Visionária – A Fantasia no Surrealismo. Fui precedido por uma mesa, Surrealismo e Geração Beat no Brasil, que incluiu a comunicação “Na convulsão das tempestades: o erotismo em Claudio Willer” por Cristhiano Aguiar.
Depois do que ouvi sobre minha poesia, senti-me no direito de ser auto-referente, além de autobiográfico: dei palestra sobre minha criação. Ou, antes, parti do modo como um de meus poemas foi escrito para tratar de questões gerais.
Dias depois, repeti a mesma exposição em um curso de surrealismo na Escola Livre de Literatura Casa da Palavra de Santo André; e também em outra palestra, no Encontro de Letras da Faculdade de São Bernardo do Campo. Aprende-se ao dar palestras, cursos, oficinas. Discussões e reflexões adicionais enriqueceram o que tinha a dizer. Essa versão enriquecida, mas nem por isso livre de novos acréscimos – o tema, criação poética, é inesgotável – que vai para publicação, convertido em relato em capítulos, os primeiros mais narrativos, os seguintes mais especulativos.

1

Avisei que seria autobiográfico.
Início de 1980. Fevereiro, penso. Ou janeiro: recebi a visita de uma moça atraente e talentosa que veio mostrar-me seus poemas e passou a noite comigo.
No dia seguinte, sábado, havia combinado de ir ao sítio de meu amigo Rodolfo Geiser, na região de Juquitiba, contrafortes da Serra do Mar, em plena Mata Atlântica. Lugar isolado, no meio do mato, ninguém por perto. Depois de passear no mato e nadar no lago, acomodamo-nos no galpão que servia como sede. Noite de lampião de querosene e completo silêncio. Comecei um poema sobre a véspera:

É ASSIM QUE DEVE SER FEITO


pouca gente é capaz de fazer tudo isso que fizemos
nos encontrar e ficarmos juntos
                                                nesta hora mais inexplicável
clarões de incêndios distantes
                                                refletindo-se em nossas peles
nossos gritos de prazer chicoteando as esferas da noite
    nossos gritos de prazer explodindo pela madrugada afora
        nossos uivos de prazer ecoando pelas ruas
                            desta cidade agora adormecida
e esta confusão de pedaços de corpos
todos gritando o mesmo nome selvagem espalhados sobre a colcha
Daí em diante, imagens foram aderindo espontaneamente a um mote ou anáfora, nossos corpos:
nossos corpos druídicos formando círculos mágicos sinalizando o reinício dos tempos
nossos corpos que se precipitam como os regatos que escorrem pela encosta da montanha buscando seu rápido destino final
nossos corpos de vísceras entrelaçadas redescobrindo a pulsação das galáxias
nossos corpos no turbilhão do galope de potros bravos à beira-mar
nossos corpos com seus relâmpagos rompendo o calor denso da noite na selva tropical
nossos corpos de muitas vozes, muitas vozes que se confundem
nossos corpos sobre os quais viajamos como navegantes em busca da Terra Prometida
nossos corpos recobertos de inscrições que passamos dias e noites tentando decifrar
nossos corpos entregues a um êxtase canibal
nossos corpos percorrendo os labirintos do prazer e suas alamedas ladeadas por tufos de azaléia elétrica
nossos corpos de bruma, mapa de penugens, texto sânscrito
nossos corpos pisoteando o braseiro da memória dançando animados por um batuque que sai do centro da terra
nossos corpos mergulhando na água transparente de um lago gelado no desvão de uma gruta calcária
nossos corpos embarcando em uma nave especial feita de palha trançada
nossos corpos investidos de seus plenos poderes, salvo-condutos para qualquer viagem, licença para voar, passaporte para o delírio
nossos corpos suando gotas de fogo que escorrem por nossas costas
nossos corpos sombrios e úmidos nesta hora de fetos arborescentes e samambaias, agora liquefeitos contra os filtros do crepúsculo, transparentes como uma profecia
nossos corpos amarelos, azuis, laranja, cor de camaleão enlouquecido estampado contra as paredes do tempo
nossos corpos impressos em milhares de figurinhas coloridas que são distribuídas entre adolescentes dos subúrbios
E por aí afora, por mais algumas páginas do caderno (quem quiser o poema todo, adquira Estranhas Experiências ou ache Jardins da Provocação em algum sebo: os dois livros em que “É assim que deve ser feito” foi publicado).
No dia seguinte, domingo à tarde, já em casa, prossegui, escrevi mais sobre nossos corpos:
nossos corpos pronunciando as palavras sagradas, o agora, mais, põe, vem, mais, com a certeza messiânica de um orador agitando as massas
nossos corpos preparando um gigantesco patuá de uma magia negra das mais pesadas para desviar o rumo da história e acabar de vez com a barbárie capitalista
nossos corpos anarquistas defendendo a formação de sociedades igualitárias regidas unicamente pelo princípio do prazer
nossos corpos com suas sacolas de escorpiões famintos, luas trêmulas, ventos que ressecam a pele em paisagens de dunas movediças
nossos corpos cheios de reentrâncias, escadarias de pedra recobertas de musgo, esquinas tão cheias de mistério quanto uma cidade-fantasma invadida por um bando de bêbados altas horas da noite
nossos corpos recostando-se mansamente na beira de um lago, sentindo a água na temperatura da pele, deitando-se e sendo recobertos aos poucos pelas folhas que vão caindo das árvores ao redor
nossos corpos elípticos, cordas tensas prontas para disparar as flechas incendiárias do prazer
nossos corpos rolando abraçados sobre este chão de cílios vibratórios que recobrem a terra, esse balão luminoso que pisca na neblina
Foi quando parei. Senti que, depois dessas imagens fortes, o chão de cílios vibratórios, a terra um balão luminoso piscando na neblina, a escrita se tornaria fórmula fácil. Mas sabia que o poema não estava terminado.

2

Em julho daquele ano, 1980, recebi um convite para passar alguns dias no recém-inaugurado Club Mediterranée em Itaparica, tudo por conta da casa, desde que, na volta, fizesse um relatório, dizendo o que havia achado, quais haviam sido minhas impressões.
Se fosse com meus recursos, iria a Machu-Pichu. Mas meus recursos nunca bastam para viagens mais longas. Sou um permanente convidado – e isso é bom, pois adiciona o imprevisto, o não-programado. Tem algo a ver com a disponibilidade surrealista. Sou um flâneur planetário, singrando ao acaso, ao sabor dos convites que recebo. Ainda aguardo um convite para Machu-Pichu.
Naqueles dez dias de Mediterranée em Itaparica, um belo lugar, além de velejar – em um catamarã, passava pela barreira de arrecifes e circulava pela Baía de Todos os Santos – e pedalar – fui de bicicleta até o Mar Grande, para ver um pouco do Brasil propriamente dito –, passava manhãs lendo à beira da piscina, por sua vez na beira da praia. Entre outras leituras, Signe Ascendant, o último livro de poesias de Breton. Já havia lido, mas era a ocasião para entrar nos poemas, entendê-los mais a fundo. Um instrutor de natação do Mediterranée, francês e letrado, me ajudava, atencioso dicionário bípede, a interpretar a amplidão vocabular e o estilo tortuoso de Breton na “Ode a Charles Fourier”, “Les états géneraux”, “Fata Morgana”, “Pleine Marge”.
Em uma das manhãs ao sol, vieram-me imagens à mente, da mesma família daquelas que batiam na vidraça relatadas por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo. Ao anotá-las, sabia que eram o final do poema dos corpos, escrito e interrompido, deixado inconcluso, alguns meses antes:

                         armários em chamas rolam pelas escadarias
     um arco-íris tenta executar os passos finais de um balé
          ele tropeça e cai
          desabando sobre as encostas da Serra da Mantiqueira
          explodindo em um caleidoscópio de cores
          as montanhas racham-se
          fontes de água quente jorram contra as nuvens
     sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas
                         com suas botas vermelhas
     uma vitrola distante toca In a Silent Way de Miles Davis
          um montão de papel picado é jogado para o alto
               multidões rezam orações sem sentido
     um avião se transforma em gota d’água e fica suspenso no céu
os navios da noite chegam mais perto
          eles já dobram a barra do porto
               suas luzes piscam
                    já se ouve a música das festas nos conveses
duas mil lavadeiras
          batem peças de roupa em suas tábuas
                    em uma praia na margem direita do rio Araguaia
no fundo do quarto há uma porta
          ela se abre para uma escada de ferro em caracol
                                             pela qual descemos
     para penetrar no bojo deste cometa alucinado dos nossos corpos

A criação deste poema, ela poderia ser classificada como escrita automática? Creio que sim. Não há escrita automática pura, conforme reconheceu Breton em “Le méssage automatique”, ensaio de 1933 publicado na coletânea Point du jour (Gallimard, 1970), ao observar que seria “quase supérfluo nos embaraçarmos com uma divisão da escrita dita de modo corrente “inspirada”, que pretendemos opor à literatura de cálculo, em escrita “mecânica”, “semi-mecânica” ou “intuitiva”, esses três qualificativos não visando senão a dar conta de diferenças de graus”.
Escrita automática não é um mundo à parte com relação ao restante da criação daqueles autores que a praticaram. Há qualquer coisa de universal, talvez inerente à própria experiência poética, no que surrealistas denominaram escrita automática. Por isso, Octavio Paz a discute no capítulo intitulado “A inspiração” de O Arco e a Lira. Toma-a como caso particular do que, para Platão, já era o delírio, a possessão que movia os poetas. E denuncia um viés ideológico na negação da inspiração, justificando poéticas, filosofias ou psicologias da criação centradas na reflexão e elaboração. Críticos e alguns poetas incorporaram uma representação do homem e da consciência que é histórica e ideológica: aquela exposta por Descartes, que contrapõe o “cogito”, a consciência pensante, a um mundo inanimado e dessacralizado. A negação da inspiração nada mais seria que transposição da ideologia burguesa do trabalho; do bíblico “ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Cito-o: “O ato poético era trabalho e disciplina; escrever: “lutar contra a corrente”. Não é exagero ver nessas idéias uma transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da estética. Um dos maiores méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz moral dessa estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade e dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que escondem a noção de prêmio e castigo: o “toma lá dá cá” com que a burguesia, segundo Marx, substitui as antigas relações humanas. O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor”.
Meu relato de todas essas circunstâncias biográficas na criação desse poema foi para mostrar alguns dos lugares de onde vinha a inspiração. Principalmente, que não vinha de um ou outro lugar, mas de uma relação entre lugares. Não foi a noite em meu apartamento; nem a noite seguinte no meio do mato: foram um e outro; não foi a manhã à beira da piscina em Itaparica: foi aquela manhã e aquelas noites anteriores. E foram as leituras – a de Breton e outras – que tornam o episódio, a criação desse poema, muito mais interessante.

3

Passaram-se outros três anos. Em 1983, preparava minhas traduções de Allen Ginsberg. Ao examinar um poema que, com certeza, não havia mais lido desde 1967 (quando preparei, junto com Décio Bar, uma encenação teatral feita de leituras de poemas beat), e do qual me havia esquecido completamente, levei um susto. É este poema, publicado em Kaddish, escrito em 1958 em Paris, na fase do Beat Hotel, para Peter Orlovsky, que já havia retornado aos Estados Unidos, e que vai a seguir, do modo como está traduzido em Uivo e outros poemas, publicado pela L&PM:

MENSAGEM

Desde que mudamos
transamos conversamos
trabalhamos choramos & mijamos juntos
eu acordo pela manhã
com um sonho nos meus olhos
mas você partiu para NY
lembrando-se de mim Bom
eu te amo eu te amo
& teus irmãos são loucos
eu aceito seus casos de bebedeira
Há muito tempo tenho estado só
há muito tempo tenho estado na cama
sem ninguém a quem pegar no joelho, homem
ou mulher, tanto faz, eu
quero o amor nasci para isso quero você comigo agora
Transatlânticos fervem no oceano
Delicados esqueletos de arranha-céus não terminados
A cauda do dirigível roncando sobre Lakehurst
Seis mulheres nuas dançando juntas num palco vermelho
As folhas agora estão verdes em todas as árvores de Paris
Chegarei em casa daqui a dois meses e olharei nos teus olhos

Comparem este poema de Ginsberg com o final do meu poema sobre os corpos, “É assim que deve ser feito”, escrito de um só jato em uma manhã inspirada em Itaparica.
Havia adaptado, transposto, os últimos versos do poema de Ginsberg, do qual me esquecera. Os transatlânticos que fervem no oceano de Ginsberg, eu os transformei em navios da noite; suas seis mulheres nuas dançando juntas num palco vermelho tornaram-se três dançarinas nuas com suas botas vermelhas, sapateando sobre um palco de cartolina azul; o desastre do zepelim Hindenburg, A cauda do dirigível roncando sobre Lakehurst, foi substituído por um avião que se transforma em gota d’água e fica suspenso no céu.
Principalmente, adotei a mesma estrutura, a mesma solução de Ginsberg: terminar um poema com algo de narrativo, mais linear, com uma seqüência, em uma espécie de apoteose, uma sucessão não-linear de imagens.
Agora sim, pode-se falar em escrita automática, em intervenção ou participação do inconsciente na criação poética. Um inconsciente – ou subconsciente, ou pré-consciente, ou uma não-consciência, tanto faz – capaz de reter poemas lidos uma década e meia antes e que aparentemente haviam-se apagado da memória. Em meio às leituras à beira-mar de um criador da escrita automática, emergiu um poema do beat.

4

O poema do Ginsberg foi um intertexto do meu poema dos corpos, sem que eu me desse conta ao escrevê-lo. Um intertexto inconsciente, digamos assim.
A noção de intertexto é empregada por Michael Rifaterre, em um ensaio muito esclarecedor, e que vem muito a propósito desse episódio que estou relatando, intitulado “The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8”, publicado em André Breton today, coletânea organizada por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli (Willis, Locker & Owens, Nova Iorque, 1989). É sobre “a relação essencial entre desejo e linguagem, e entre o desejo e a representação da realidade na literatura”. Para mostrar essa relação, Rifaterre examina um trecho de Peixe Solúvel de Breton, o extenso texto de escrita automática publicado junto com o primeiro Manifesto do Surrealismo. É o fragmento 8, no qual, do monte de Santa Genoveva (padroeira de Paris), um bebedouro verte sangue, um filete de “sangue precioso, que as plumas, as penugens, os pêlos brancos, as folhas desclorofiladas que ele ladeia desviam de sua finalidade aparente”. Para Rifaterre (simplificando um ensaio complexo, sobre um texto mais complexo ainda), é sangue menstrual, e também o sangue dos chamados à luta em A Marselhesa. O ensaísta lembra ainda que, na Roma antiga, o local depois designado como monte de Santa Genoveva era o mons Veneris, monte de Vênus. A partir daí, vê, nesse trecho de Peixe Solúvel, signos da transgressão, de uma tensão entre o sagrado e o profano.
Como isso é simbólico. Como essa prática cristã, de construir suas igrejas sobre templos pagãos, se ajusta às categorias duais de princípio da realidade e princípio do prazer, Ego e Id, consciente e inconsciente, por sua vez regido por Eros. Prática tão generalizada – por exemplo, à beira do lago Titicaca, na Bolívia, o santuário de Nossa Senhora de Copacabana erigido sobre um templo da civilização pré-incaica de Tihuanaco – e tão didática, ao exemplificar as relações entre a repressão e o reprimido. Como é feliz a interpretação de Rifaterre, apontando dois estratos sobrepostos, o do mundo pagão e do mundo cristão, no lugar da fundação de Paris mencionado por Breton.
Rifaterre conclui que: “Este processo de leitura, durante o qual interpretação, a descoberta do sentido de fato do texto literário ou do seu foco real de interesse, a descoberta do que sua forma, imagens ou história disfarçam – a descoberta, enfim, de seu simbolismo, do fato que aquilo que é dito na superfície do texto é apenas uma cifra para uma significância escondida no intertexto – todo esse processo é análogo ao processo de escuta na psicanálise”. Equipara assim o “texto lido ao discurso consciente do paciente”, enquanto “o intertexto, reprimido pelo texto mas recuperado pelo analista-leitor, seria o inconsciente para o qual o discurso serve como tela”. O intertexto passa a equivaler, portanto, ao inconsciente do texto.
Não há como discordar de observações de Rifaterre. Resolvem o desajuste ou discrepância entre aquilo que seria o inconsciente freudiano, e os resultados da escrita automática: ... “se a escrita automática não é um produto imediato do inconsciente, tenta representá-lo, e tal esforço só pode resultar em uma escrita conforme à associação verbal, em toda a sua arbitrariedade. [...] A autenticidade de um empreendimento como esse, indiscutivelmente adulterado em um nível psicológico, recupera sua pureza em termos lingüísticos”.
Aceita essa argumentação, o que escrevi era, de fato, escrita automática. E o poema de Ginsberg, “Mensagem”, um componente do inconsciente do meu texto.
É possível, sempre, apontar relações intertextuais em textos de escrita automática. Do pioneiro Les champs magnétiques de Breton e Philippe Soupault, transcrevo um trecho de autoria de Soupault, intitulado “La glace sans tain” (esse título se traduz como espelho sem o estanho, tain, que lhe dá a propriedade reflexiva):
“Nós corremos nas cidades sem ruídos e os cartazes de rua encantados não nos tocam. [...] Nada existe senão esses cafés onde nós nos reunimos para beber essas bebidas frescas, esses álcoois dissolvidos, e as mesas são mais pegajosas que essas calçadas nas quais tombaram nossas sombras mortas de véspera.// Às vezes, o vento nos cerca com suas grandes mãos frias e nos prende às árvores cortadas pelo sol. [...] As estações de trem maravilhosas jamais nos abrigam: os longos corredores nos metem medo. [...] Cor dos dias, noites perpétuas, será que vocês também, vocês irão nos abandonar?”
Nesse trecho atribuído a Soupault, os álcoois dissolvidos lembram Alcoóis, o título do livro de poemas de Apollinaire; as árvores cortadas pelo sol são uma variação sobre o célebre sol pescoço cortado do final de Zona, que integra Alcoóis; o sintagma Cor dos dias, noites perpétuas lembra o título da peça de Apollinaire, La couleur du temps. Do grupo formador do surrealismo, Soupault foi o mais próximo a Apollinaire, que o apresentou a Breton. Levando em conta essa convivência, comparar trechos de Les champs magnétiques escritos por Soupault e outros de Apollinaire dificilmente seria abusivo.

5

Cito Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu:

Minha cabeça estava em pedra, adormecida,
quando me sobreveio a cena pressentida.

Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados
 dos passos e dos gestos em vão desperdiçados

Ou então:

Pra unidade deste poema,
ele vai durante a febre.

Falei sobre Jorge de Lima em minha palestra no aqui mencionado Colóquio de Estudos Literários Contemporâneos da UFP, no Recife. O evento foi em homenagem ao poeta César Leal, presente para a apresentação de sua coletânea de ensaios, Dimensões Temporais da Poesia (Imago, 2005). Citei passagens do ensaio de Leal, “Universalidade de Jorge de Lima”, dessa coletânea. Há uma vigorosa defesa do autor de Invenção de Orfeu, rebatendo as acusações de que seria ininteligível, abusivamente hermético. Por algumas páginas, Leal interpreta poemas de Invenção de Orfeu, como os do Canto IV, comparando-os com passagens de A Divina Comédia de Dante e mostrando como, à luz dessa comparação, o aparentemente esdrúxulo e arbitrário da poesia de Jorge de Lima vai ganhando sentido – desde que se conheça Dante, é claro.
Uma dupla relação de Jorge de Lima com Dante Alighieri: consciente, é claro, e também em um nível mais profundo. A Divina Comédia, intertexto e inconsciente do texto em Invenção de Orfeu. Um deles: no subsolo da epopéia fragmentária de Jorge de Lima, encontra-se de Homero a Lautréamont e García Lorca, passando por Camões e muito mais.

6

No ensaio Le message automatique, de 1933, Breton mudou o foco da discussão da escrita automática. Deixando de citar Freud, refere-se a Myers, psicólogo do século XIX de orientação experimentalista, precursor tanto da parapsicologia quanto da psicologia da percepção, e que pesquisou as imagens eidéticas, os pós-efeitos visuais (por exemplo, quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e esta, alterada, permanece ao fecharmos os olhos). Breton conclui esse ensaio com uma afirmação ousada: “Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças”. Visões e alucinações equivalem ao automatismo, e vice-versa. Ganham o estatuto de percepções reais, íntegras. Para o surrealismo, o visionário alucinado efetivamente vê; ou, no automatismo verbal, de fato ouve.
Breton exemplifica com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o leva a uma tirada de humor: “Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”.
Retornemos à comparação do final do meu poema dos corpos e de “Mensagem” de Ginsberg. As minhas dançarinas: “sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas/ com suas botas vermelhas”. As dançarinas de Ginsberg: “Seis mulheres nuas dançando juntas num palco vermelho”. As seis dançarinas de Ginsberg se tornaram três: uma condensação. O palco vermelho de Ginsberg se torna azul. E o vermelho do palco de Ginsberg passa para as botas das dançarinas. Deslocamentos. Típicos processos de formação de conteúdos manifestos do sonho, em sua relação com os conteúdos latentes, com o que simbolizam. Há mais, porém: essa inversão cromática, do vermelho para o azul, é característica da percepção eidética estudada por Myers. Se alguém olhar para uma fonte de luz vermelha e em seguida fechar os olhos, verá, contra o fundo escuro, uma mancha azul: é a percepção eidética.

7

Em O Arco e a Lira, Octavio Paz faz uma defesa da inspiração e da espontaneidade na criação poética. A idéia de que o poema deva ser “trabalhado” seria, diz, subo0rdinação à ideologia do trabalho. Mas no capítulo final do livro retoma a discussão da escrita automática: “Entre os meios destinados a consumar a abolição da antinomia poeta e poesia, poema e leitor, tu e eu, o de maior radicalismo é a escrita automática”. Expõe suas objeções: “A escrita automática não está ao alcance de todos. Diria ainda que sua prática efetiva é impossível, já que supõe a identidade entre o ser do homem individual e a palavra, que é sempre social”. A dificuldade, segundo Paz, reside na identificação do nome e da coisa nomeada, do signo e do significado:

A escrita automática é um método de alcançar um estado de perfeita coincidência entre as coisas, o homem e a linguagem; se esse estado fosse alcançado, isso consistiria numa abolição da distância entre a linguagem e as coisas e entre a primeira e o homem. Porém, sendo essa distância que cria a linguagem, a distância se evapora se a linguagem desaparece. Ou, dito de outro modo: o estado a que a escrita automática aspira não é a palavra e sim o silêncio.

Discordo. Não é silêncio o que se encontra, que emerge, aparece no fim do túnel ou no fundo do poço ao final dessas descidas pelo inconsciente, pela vertigem poética: é a palavra. No fundo do poema escrito através da escrita automática, haverá outro poema. Outra voz. Desde que se seja poeta, é claro – e, por isso, leitor de poesia. O inconsciente é simbólico. É constituído pelo símbolo. Mas isso já foi dito antes – inclusive por Lacan.


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



Um comentário:

  1. Uma pequena nota sobre as imagens escolhidas para ilustrar os textos de Claudio Willer.
    Isabel Meyrelles, neste mês de abril, faz 90 anos. O corpo está meio curvo e as pernas talvez cansadas, mas a cabeça permanece alerta e lúcida.
    Continua a trabalhar todos os dias no seu atelier, dividido em dois espaços separados por uma estante vazada: num, faz tradução de poemas do português ou do espanhol para o francês, como exercício diário, não para os outros, mas para ela; no outro, uma massa de barro coberta por um pano húmido encima de um cavalete revela que continua a criar peças e as manda cozer num forno artesanal próximo. No primeiro espaço, há livros e dicionários e uma mesa pequena; no outro, com uma janela para o jardim minúsculo, tem os instrumentos de escultura e uma outra pequena mesa. Na parede ao lado da janela por onde entra a luz, duas fotos, uma de Gide (talvez a única foto em que Gide é belo), outra de Michaux.
    Ela faz, melhor do que ninguém, a ponte entre o surrealismo francês e o surrealismo português, poesia e escultura. E o elo oculto entre texto/língua e obra plástica é iluminado pelo título da obra, muitas vezes o lugar do humor. Pena que justamente os títulos não apareçam no número 132.
    Suas esculturas preferidas são três: a mão enluvada com um ovo, o peixe-barco ou o barco-peixe de Ulisses cujo perfil parece uma vela, e a Licorne aquática.
    Pessoalmente gosto das três preferidas da Isabel, sobretudo, talvez, de Ulisses. Gosto também de outras, por diferentes motivos: as irónicas ou esculturas piadas (Delfim que chora, ou o Ovo estrelado com uma gema agressiva de folhos de gargantilha renascentista, grávido de ovinhos; o conjunto da orquestra com 8 diferentes instrumentos mais o regente por formarem uma narrativa sintética e carnavalizada; a Conversação que é a transformação do Ouroboros que se morde a cauda num diálogo de serpentes; e sobretudo gosto daquela que chamo a Barca fúnebre com o ovo da vida por ser uma revisão da barca fúnebre do Livro dos Mortos navegando para uma nova gênese. E da escultura intitulada Auto-retrato, ou seja o dragãozinho azul fumando cachimbo. Isabel vem do Norte de Portugal: ao principal time de futebol do Porto chamam os Dragões e a bandeira do clube é azul e branco. Podia também dizer que os Braganças são da raça dos Dragões, que protegem a Árvore do reino: pelo menos é isso o que diz a gravura da Lusitania liberata.
    Pequena nota: a Mulher com cauda felpuda não é uma escultura, mas uma instalação.
    Lilian Pestre de Almeida

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