segunda-feira, 15 de abril de 2019

CLAUDIO WILLER | Mais sobre surrealismo e filosofia: a questão do sujeito


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O presente artigo dá prosseguimento ao que examinei em uma palestra na Unifesp, [1] subsequentemente publicada. [2] Meu ponto de partida, naquela ocasião, foi a frase de André Breton no prefácio de Nadja: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal” (2006, p. 20).
Associei a uma observação de Baudelaire, em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente, A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista” (1995, p. 789).
Na ocasião, examinei o tratamento dado por Breton à questão do sujeito em várias de suas obras. Dentre as narrativas, comentei Nadja, O amor louco, Os vasos comunicantes. Dentre os artigos e transcrições de palestras do surrealista, escolhi dois. Um deles, “Situação surrealista do objeto”, palestra de 1935 que integra o conjunto Posição política do Surrealismo, por sua vez adicionado a edições dos Manifestos do Surrealismo. [3] O outro, “Le Message automatique”, de 1933, subsequentemente publicado na coletânea Point du jour.
Através dos dois, e especialmente de “Le Message automatique”, é exposto o que Breton preconizava para que a subjetividade não se saísse tão mal em seus combates com a objetividade. São procedimentos que, certamente, Baudelaire teria adotado como “magia sugestiva”. Um deles é olhar para as nuvens, lugar de encontro do desejo e da realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos”, disso o surrealista em O amor louco (1971, p. 114); pois “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada”.
Baudelaire – que Breton cita em O amor louco – já havia tomado o partido das nuvens em um poema capital, “A viagem”, que encerra As flores do mal e no qual proclamou sua adesão incondicional ao novo:

As maiores regiões, a mais pujante aldeia,
Não continham jamais os encantos secretos
Dessas que o acaso com as nuvens delineia.
E eis que o desejo nos fazia mais inquietos! (1995, p 215)

A estrofe de Baudelaire pode até mesmo ser lida como sinopse do pensamento de Breton, pela presença de dois termos ou categorias fundamentais para o surrealista: acaso e desejo.
Outros procedimentos surrealistas para que a subjetividade prevalecesse ou tivesse chances perante a objetividade: um correlato de olhar nuvens, olhar manchas na parede até se delinearem formas, conforme recomendado por Leonardo da Vinci; a “flânerie”, caminhar ao acaso, também na esteira de Baudelaire; a escrita automática, o ditado não controlado do pensamento; as frases entreouvidas ao acaso ou captadas durante os sonhos; olhar espelhos, bolas de cristal, gotas d’água; registrar atos involuntários, delírios, sintomas psiquiátricos, dando atenção a seu valor estético. O conjunto das proposições levou-me a caracterizar o surrealismo como poética da alucinação ou do delírio.

2

“Situação surrealista do objeto”, a palestra de 1935, é um exame filosófico, em primeira instância, do que Breton entendia como “crise fundamental do objeto”:

Jamais insistirei demasiado no fato de que, em sua Estética, Hegel atacou todos os problemas que atualmente podem ser considerados os mais difíceis no plano da poesia e da arte e que, com lucidez inigualável, resolveu a maior parte deles. (p. 309).

Sendo a poesia, para Hegel, “a verdadeira arte do espírito”, “ela manifesta mais e mais a necessidade de atingir, 1º por seus próprios meios, 2º por meios novos, a precisão das formas sensíveis.” (p. 310). Contudo, Breton vê uma “fusão das duas artes”, pintura e poesia, a partir do momento em que as artes visuais passam a mostrar entidades ou coisas da esfera “interior”, do sujeito:

Não existe, no momento atual, nenhuma diferença de ambição fundamental entre um poema de Paul Eluard, de Benjamin Péret, e uma tela de Max Ernst, de Miró, de Tanguy. Libertada da preocupação de reproduzir formas tomadas ao mundo exterior, a pintura, por sua vez, tira partido do único elemento exterior que arte alguma pode dispensar, a saber, a representação interior, a imagem presente ao espírito. Ela confronta esta representação interior com a das formas concretas do mundo real, tenta, por sua vez, como fez Picasso, captar o objeto em sua generalidade e, uma vez atingido esse fim, tenta o supremo procedimento, que é o procedimento poético por excelência: excluir (relativamente) o objeto exterior como tal e só considerar a natureza em sua relação com o mundo interior da consciência. (p. 311)

Valem, penso, como reapresentação das idéias expostas por Breton em “Situação surrealista do objeto”, observações de Octavio Paz, feitas quase duas décadas depois, em sua palestra de 1954 sobre surrealismo, mais tarde publicada na coletânea La búsqueda del comienzo:
Nunca é possível o objeto em si; sempre está iluminado pelo olho que o mira, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o oprime ou empunha. O objeto, instalado em sua realidade irrisória como um rei em um vulcão, prontamente muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho que o mira o amacia como cera; a mão que o toca o modela como argila. O objeto se subjetiviza. Ou, como diz um herói de Arnim: “Posso discernir com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que vejo com os olhos da imaginação.” Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porém servindo a poderes distintos. E assim se inicia uma vasta transformação da realidade. Filho do desejo, nasce o objeto surrealista: a reunião de montanhas é outra vez cena de gigantes, as manchas na parede ganham vida, põem-se a voar e são um exército de aves que, com seus bicos terríveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.
Paz, avesso a detalhar citações e expor referências bibliográficas, não cita o artigo aqui examinado de Breton, e tampouco Hegel, paradigma oculto ou implícito dessa argumentação. Mas, claramente, é disso que trata o surrealista; e não só no texto aqui citado, porém ao longo de toda a sua obra: da subjetivização do objeto; de uma resposta do sujeito ou revanche da subjetividade ao tratamento que lhe é dado, em nossa civilização, pela objetividade. Complementada pela destruição do “eu”, pela “objetivização do sujeito”, categoria também apresentada por Paz, que é alcançada através da escrita automática e demais procedimentos surrealistas.
Cabe perguntar: o que faltou a Baudelaire para que considerações dessa ordem estivessem em seus textos como crítico de arte, desde “Salão de 1846”? Obviamente, o intervalo de 89 anos entre um e outro texto. Faltaram obras como essas que Breton cita, de Picasso, Ernst, Miró, Tanguy. A releitura da crítica de arte por Baudelaire mostra que tais obras viriam realizar o ataque do poeta ao naturalismo, ao realismo, à identificação do valor artístico à representação do objeto ou de um tema. A exclusão do “objeto exterior” e a consagração do “objeto interior” – ou, nos termos de Paz, a “subjetivização do objeto” e a “objetivização do sujeito” – foram antecipadas por ele. Não dispondo de obras de Ernst, Tanguy e Miró, escreveu sobre Delacroix (de um modo que provocou perplexidade no pintor). Provavelmente, se já existisse, Baudelaire teria se maravilhado com o “art nouveau” ou modern style, cuja exuberância desafiou a funcionalidade, a subordinação ao útil, justificando Salvador Dali tê-las como “verdadeiras realizações de desejos solidificados”, conforme cita Breton (p. 312).
Talvez as categorias de Paz já tivessem sido antecipadas e sintetizada por Lautréamont em Os cantos de Maldoror, na frase citada por Breton: “É um homem ou uma pedra ou uma árvore que vai começar o quarto canto.” (Lautréamont, 1997, p. 185) Ou seja, um ser híbrido, uma síntese e não uma aberração, ao mesmo tempo coisas, objetos, e sujeito a expressar-se.
Breton ainda cita ou transcreve uma sucessão de ataques à relação de significação. Escolhendo a dedo o que fosse à primeira vista obscuro, hermético, delirante, a começar pelo “triunfo absoluto do delírio panteístco” (p. 316) do derradeiro poema de Rimbaud, “Sonho”. É seguido pela transcrição de “O músico de Saint-Merry” de Apollinaire (“Tenho, enfim, o direito de saudar seres que não conheço” – p. 318), e pelo encadeamento de sintagmas de “Segunda feira na Rua Cristina”(“Isto parece rimar” – p. 320). Entre um e outro, a apresentação satírica por Alfred Jarry do pensamento analógico e das correspondências de Baudelaire em “Fábula”, sobre a atração de uma lata de “corned beef” por uma lagosta, “vivente caixinha automotriz de conservas” (p. 319). E, mostrando a continuidade com relação àqueles antecessores, a rica imagética de Paul Éluard em “Os mestres” e de Benjamin Péret em “Fala-me” (p. 322/323). A culminância ou fim da série é um poema de Salvador Dali, “Brochura ninada”, introduzindo, entre outras coisas, uma xícara assemelhada “a uma doce antinomia municipal árabe” (p. 324): certamente, um exemplo radical de imagem poética surrealista feita de aproximações de realidades diversas e distantes.
Para Breton, todo “o esforço técnico do surrealismo” para alcançar a vidência preconizada por Rimbaud “consistiu em multiplicar as vias de penetração das camadas mais profundas da mente”:
Na primeira linha desses meios, cuja eficácia ficou plenamente comprovada nos últimos anos, figuram o automatismo psíquico sob todas as suas formas (ao pintor se oferece um mundo de possibilidades, que vai do abandono puro e simples ao impulso gráfico até a fixação em trompe l’oeil de imagens oníricas), bem como a atividade crítico-paranóica definida por Salvador Dali: “método espontâneo de conhecimento irracional baseado na objetivação crítica e sistemática das associações e interpretações delirantes”. (p. 328)
Breton ainda adiciona páginas de transcrição do depoimento de Max Ernst sobre a gênese das “colagens” [4] e “frotagens”, além de manifestar o devido reconhecimento ao tratamento que Marcel Duchamp já vinha dando aos objetos, apresentados como “ready made”.
 O conjunto dessas menções a artistas visuais é importante, entre outras razões, por desautorizar a crença, tão frequentemente enunciada, em uma “estética surrealista” ou um “estilo surrealista”. Caso se adotassem categorias comuns entre os críticos e no mercado de artes, distinguindo, por exemplo, abstracionistas líricos, geométricos, expressionistas, figurativos etc., os artistas mencionados teriam que ser localizados em escaninhos diferentes. Embora na criação e expressão poética as imagens feitas de aproximações de realidades distantes sejam uma tônica dominante, quase uma constante, o exame mais atento mostrará diversidade equivalente. Incluirá obras que, descontextualizadas, passariam por construtivistas. Em comum aos surrealistas, não a forma, o “estilo”, porém uma atitude: a postura rebelde, a categórica rejeição da ordem estabelecida. E uma fundamentação filosófica, na qual o confronto de subjetividade e objetividade é central.
Dali ainda volta a ser citado em “Situação surrealista do objeto”, a propósito do objeto surrealista “que se baseia nos fantasmas e representações suscetíveis de serem provocados pela realização de atos inconscientes”. Para o catalão, tais objetos, “correspondendo a fantasias e desejos eróticos claramente caracterizados, só dependem da imaginação amorosa de cada um e são extraplásticos” (p. 333) Aplica-se, portanto, a eles, ao conjunto de tais objetos, o modo como ele já havia caracterizado as obras arquitetônicas do “art nouveau”, especialmente de Gaudi, conforme aqui citado, como “desejos solidificados”.
Sabemos que subsequentemente Dali decidiu tomar rumos próprios, distanciando-se do surrealismo – e ao mesmo tempo, declarando ser ele o verdadeiro surrealista. Sua aproximação a ditadores e autoritarismos, sua fracassada tentativa de surrealizar o mercado e a indústria cultural (não obstaram que Breton reconhecesse, sempre, sua contribuição, como se vê em um texto já de 1940, a Antologia do humor negro.

3

Em “Situação surrealista do objeto” Breton empreendeu uma discussão filosófica, que não está ausente do precedente “Le Message automatique”, de 1933, no qual ataca, de modo mais enfático, a separação entre subjetividade e objetividade, ao dispor-se a:

[...] esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no que diz respeito ao grau de realidade a conceder ao objeto, não pode deixar de fazer sofrer o pensamento puramente especulativo. Poetas e artistas, teólogos, psicólogos, doentes mentais e psiquiatras estão de todo modo desde sempre à procura de uma linha de demarcação válida que permita isolar o objeto imaginário do objeto real, sendo, contudo, admitido que, até nova ordem, o segundo pode facilmente desaparecer do campo da consciência e o primeiro aparecer lá, que subjetivamente suas propriedades se mostrem intercambiáveis. A escrita automática, praticada com algum fervor, conduz diretamente à alucinação visual, eu fiz pessoalmente a experiência, e basta reportar-se à “Alquimia do verbo” para constatar que Rimbaud o havia feito bem antes de mim. (p. 180).

Assim, visões e alucinações ganham o estatuto de percepções íntegras: o visionário alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal, de fato ouve. E tanto a alucinação como a escrita automática seriam aqueles momentos em que é superada a contradição de sujeito e objeto, ou de subjetividade e objetividade. Trata-se de um evidente ataque à tradição racionalista, às heranças de Aristóteles e de Descartes, fundada, me parece, muito mais em uma exacerbação da filosofia romântica, das idéias de Fichte, Schelling, Novalis e dos irmãos Schlegel, do que em Hegel.
Breton completa sua argumentação lembrando uma mística, Santa Tereza d’Ávila, que relatou haver visto sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial; ou seja, uma síntese. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: “Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”. (p. 183)
Se me fosse dado estabelecer uma hierarquia pessoal de textos bretonianos, ordenados pela preferência, “Le Message automatique” ocuparia posição de destaque. É, para mim, Breton total, em estado puro, radicalmente visionário. Certamente, sob o ponto de vista filosófico, não apenas sua argumentação, porém os exemplos nos quais a fundamenta são a expressão de um idealismo extremado. Por exemplo, ao afirmar que o astrônomo William Herschel, descobridor do planeta Urano e outros corpos celestes,

[...] em 1816 “alcança a “produção involuntária de imagens visuais cuja regularidade constituía o caráter principal, e isso em condições que tornariam absolutamente inútil toda explicação extraída da regularidade possível na estrutura da retina e dos nervos ópticos. (p. 160)

Para desafiar o positivismo, menciona também James Watt, o matemático e engenheiro escocês, não propriamente inventor das máquinas a vapor, porém aquele que as aperfeiçoou, possibilitando a construção de locomotivas e de outros equipamentos, contribuindo para desencadear a revolução industrial. Para Breton, a invenção não é mais apenas resultado do cálculo, do planejamento: tem um componente visionário, pois Watt, “em um quarto escuro, contempla a futura, a próxima máquina a vapor”. (idem)
Há observações que poderiam ter sido subscritas por um autor tão antagônico com relação ao surrealismo como Jorge Luis Borges:

A expressão “Tudo está escrito” deve, me parece, ser entendida ao pé da letra. Tudo está escrito sobre a página em branco, e são maneiras bem inúteis que se fazem os escritores para qualquer coisa como uma revelação e um desenvolvimento fotográficos. (p. 161)

Faltaria apenas adicionar, nessa afronta ao modo construtivista de pensar a criação, com todos os seus depoimentos sobre “o desafio da página em branco”, que todos esses escritos preexistentes, á espera da revelação, já estão na Biblioteca de Babel imaginada pelo genial escritor argentino.
Antecipando O amor louco, Breton também cita o procedimento recomendado por Leonardo da Vinci, de olhar manchas na parede. Mas não o equipara, ainda, a olhar para as nuvens.
Dentre os tópicos recorrentes em Breton e no surrealismo, há, ainda, a homenagem a Charcot, por haver originado “esse magnífico debate sobre a histeria”, e Schrenck-Notzing por haver chamado a atenção em 1889 para “o valor artístico dos movimentos de expressão da histeria e da hipnose”. De fato, uma gênese do surrealismo está na estada de Breton, já como residente (ele terminou o curso de medicina mas recusou o diploma) em instituições psiquiátricas, durante a Primeira Guerra Mundial; isso, enquanto tinha aulas aulas com Charcot, Pierre Janet e outros expoentes da psiquiatria, e descobria Freud.
O mais característico de “Le Message automatique”, se comparado a outros textos bretonianos, é o modo como parece deixar de lado a fundamentação freudiana, dirigindo o foco para a psicologia da percepção e para aquilo que William James denominou “psicologia gótica”; ou seja, a incipiente parapsicologia. Comenta Myers e Flournoy, iniciadores dessa disciplina. E boa parte do artigo é sobre paranormalidade, mediunidade, produção de visões, vidência, premonição. Idéias fixas de Breton, temas recorrentes, como se vê pelos relatos de visitas a médiuns videntes e cartomantes em Nadja e na “Carta às videntes” – mas sempre objetando à separação do médium e da mensagem mediúnica. Enquanto aquilo que registravam sessões espíritas e práticas correlatas corresponderia a uma divisão, a escrita automática e todas as demais práticas de alucinação voluntária ou delírio proposital preconizadas pelo surrealismo resultariam em uma integração; uma síntese, conforme o quadro de referências filosófico por ele adotado.

4

Dentre todos os autores citados e casos relatados em “Le Méssage automatique” – esse texto que, tratando de surrealismo, é, de modo consistente, surreal – observo uma ausência. Não cita Dalí, que ganharia especial atenção a seguir, em “Situação surrealista do objeto”. Isso, não obstante a argumentação bretoniana ser, de modo evidente, um exemplo de aplicação do método paranóico-crítico, entendido como manifestação do delírio interpretativo.
Os fundamentos do método paranóico-crítico haviam sido expostos por Dali em um texto de 1930, intitulado “L’Âne pourri” (o asno apodrecido ou podre):

Eu acredito que esteja próximo o momento em que, por um processo de caráter paranóico e ativo do pensamento, será possível (simultaneamente ao automatismo e outros estados passivos) sistematizar a confusão e contribuir para o descrédito total do mundo da realidade. (p. 184)

O “ditado do pensamento”, fundamento do surrealismo conforme o primeiro Manifesto do surrealismo, seria, então, passivo; o delírio interpretativo proposto por Dali seria ativo. Contudo, ao equiparar ao automatismo procedimentos como enxergar formas em nuvens e manchas na parede, além de contemplar bolas de cristal ou espelhos, Breton incorpora as proposições de Dali. Ambos falam da mesma coisa; da “imagem dupla” resultante do “processo nitidamente paranóico”. Há, portanto, relação de complementaridade entre as idéias desenvolvidas por Dali e a formulação mais ampla do que seria o automatismo psíquico por Breton. Olhar para as nuvens e paredes, recomendado em “Le Message automatique” e, em maior detalhe, em O amor louco, são a mesma coisa que a “imagem dupla” resultante da paranóia, para Dali:

É por um processo nitidamente paranóico que foi possível obter uma imagem dupla: ou seja, a representação de um objeto que, sem a mínima modificação figurativa ou anatômica, seja ao mesmo tempo a representação de um outro objeto absolutamente diferente, desprovido ele também de todo gênero de deformação ou anormalidade que poderia revelar qualquer arranjo.
A obtenção de uma tal imagem dupla foi possível graças á violência do pensamento paranóico que se serviu, com estratagema e destreza, da quantidade necessária de pretextos, coincidências etc, aproveitando-se disso para fazer aparecer a segunda imagem que nesse caso toma o lugar da idéia obsedante. (p. 185)

Tais imagens não são apenas duplas, porém múltiplas, prossegue Dali: pode haver uma terceira imagem, por exemplo de um leão, “e assim por diante até a ocorrência de um número de imagens limitado unicamente pelo grau de capacidade paranóica do pensamento”. (idem) Todas são “simulacros”; até mesmo, e aqui atacando diretamente o materialismo de Georges Bataille, “se um desses estados adotar a aparência de um asno apodrecido e mesmo que um tal asno esteja realmente e horrivelmente apodrecido, coberto por milhares de moscas e de formigas”; pois “nada pode me convencer que essa cruel putrefação do asno seja outra coisa senão o reflexo ofuscante e duro de novas pedras preciosas.” (p. 187)
Da produção de textos de Dali sobre o método paranóico-crítico, destaca-se aquele de 1933 sobre a “imagem obsedante” do Ângelus, o quadro de Millet, assim demonstrando que um chavão das artes visuais podia ser visto como representação de outras coisas, também publicado sob o título de “Novas considerações gerais sobre o mecanismo do fenômeno paranóico do ponto de vista surrealista”. É o artigo no qual proclama que suas observações sobre paranóia crítica “nada fazem senão confirmar-se de maneira rigorosa à leitura da admirável tese de Jacques Lacan “Da Psicose paranóica em suas relações com a Personalidade”; assim, remetendo ao futuro autor de novas e ousadas observações sobre a subjetividade e a constituição do sujeito (p. 186).
Nesse artigo, reafirmando sua disposição de promover o descrédito da realidade (entenda-se: da objetividade), confronta os dois delírios, aquele passivo na escrita automática e outro ativo na paranóia crítica, dialetizando sua relação:

O “drama poético” do surrealismo residia nesse momento para mim no antagonismo (chamando á conciliação dialética) dos dois tipos de confusões que implicitamente estavam previstos nessa declaração: de uma parte a confusão passiva do automatismo; de outra parte a confusão ativa e sistemática ilustrada pelo fenômeno paranóico. (p. 188)

5

Poderia estender consideravelmente uma coletânea dos ataques surrealistas ao princípio da identidade e não-contradição de Parmênides, fundamento da lógica na tradição ocidental; das reafirmações da analogia; das reiterações de que uma coisa é outra, de que a objetividade é instável ou precária, de que a subjetividade nos mostra muito mais sobre o real.
Cabe, porém, perguntar, recortando o exemplo de Dali, do asno apodrecido, reflexo de “novas pedras preciosas”: qual grande poeta já havia tratado desse modo da podridão? Sim, Baudelaire, que em vez de um asno apodrecido, em “Uma carniça”, havia poetizado um cão morto, reduzido a “uma carniça repugnante” (1995, p. 126-127, assim como as citações a seguir). E o fez de modo rigorosamente conforme aos ditames de Dali sobre a paranóia crítica.
Sabemos que Baudelaire se indignou por seus censores, os magistrados que proibiram As flores do mal em 1857, haverem classificado seus poemas como “realistas”. De fato, em seu impecável verso clássico, não poupa detalhes do estado em que estava o animal apodrecido: [5]

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
       Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
       Tudo o que ali ela reunira.

Pode-se imaginar o poeta, um provocador, antegozando a expressão do leitor ao defrontar-se com este detalhamento do estado em que se encontrava a “esplêndida carcaça”:

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saiam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

Contudo, a ambivalência de Baudelaire se faz presente. Dando ao poema um fecho platônico, a última estrofe nega as precedentes ao dirigir-se à “deusa da beleza”, “Estrela dos meus olhos, sol da minha vida”:

Então querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a subst6ância divina
De meu amor já decomposto!

Um dos muitos exemplos, portanto, do contraste do abjeto e do sublime em Baudelaire; do modo, já tão estudado, como provocava choques desses extremos, e ao mesmo tempo promovia um trânsito entre eles. A carniça é abjeta; a poesia, que preserva “a forma e a substância divina”, sublimes, incorpora e supera a abjeção.
Mas o paralelo entre o genial poema de Baudelaire e o artigo de Dali, apresentando o método paranóico-crítico, possibilita ver mais; localizar a “imagem dupla” resultante da paranóia. Em Dali, a putrefação do asno é reflexo de “novas pedras preciosas”; em Baudelaire, a carniça oferece formas que “fluíam como um sonho além da vista”, sobre “a tela esquecida, e que concluir o artista / apenas de memória um dia.” Recortadas, fariam parte de uma tela abstrata; do abstracionismo que Baudelaire profetizou em sua crítica de arte.
Tais duplas imagens, nas quais o belo emerge do horror, ou ambos se confundem, podem ser localizadas em outros poemas de Baudelaire; e em suas prosas poéticas. Há muito mais, em sua enorme contribuição, a ser visto como antecipação ou aplicação do método paranóico-crítico. Como exemplo de delírio interpretativo, certamente, suas observações sobre a modernidade em “O pintor da vida moderna”; especialmente, sobre a moda e maquiagem como expressões máximas do bem, por serem artificiais – isso, projetando a premissa de que o natural é regido pelo mal, e tudo o que é bom é artificial. Igualmente, de sua crítica literária, o artigo sobre Madame Bovary de Flaubert: saúda-a como heroína moderna por ser um andrógino, uma mulher anti-natural ao assumir atitudes e tomar iniciativas masculinas – além de inverter, no mesmo artigo, outra narrativa de Flaubert, As tentações de Santo Antão, tomando-a como erótica e não mais piedosa.
A “magia sugestiva” proposta por Baudelaire foi praticada pelos surrealistas, de modo não só deliberado, mas programático. E também incorporada. Conforme mostra Henri Béhar, o importante biógrafo e estudioso de Breton, após O amor louco ele abandona o termo “acaso objetivo”, filosoficamente fundamentado (uma derivação do “humor objetivo de Hegel”, conforme argumenta em “Situação surrealista do objeto”) e em seu lugar passa a falar em “magia”; a ponto de um de seus últimos artigos, de 1955, ser intitulado “Magie quotidienne” (Béhar, 2012, p. 623). Retorno a Baudelaire? Ou, antes, a uma tradição que Baudelaire também soube assimular e incorporar a sua poesia e poética?
A bibliografia mostrando o quanto o poeta de As flores do mal foi precursor – do simbolismo, do parnasianismo, do surrealismo, de formalismos, da arte não-figurativa, em alguma medida até mesmo dos beats – pode preencher uma estante, ou até mesmo uma biblioteca. Nestas observações, a intenção não foi apenas reafirmar a importância do poeta de As flores do mal como precursor e profeta; porém inverter a sequência, a série histórica, mostrando que o exame de surrealistas possibilita enxergar mais, não apenas em nuvens, paredes, bolas de cristal, objetos encontrados ao acaso, mas em Baudelaire – e em Rimbaud, Lautréamont, Germain Nouveau, Alfred Jarry; ou em autores nossos como Sousândrade, Cruz e Souza, Campos de Carvalho ou Manoel de Barros – e tantos outros.

NOTAS
1. A crítica filosófica e a questão do sujeito no surrealismo, palestra na II Jornada de Filosofia e Literatura da Unifesp, Departamento de Filosofia da Unifesp, Guarulhos, SP, dia 09 de dezembro de 2013
2. Em Academia.edu, “Sobre surrealismo e filosofia”: https://www.academia.edu/6542416/Sobre_surrealismo_e_filosofia
3. A edição de bolso da Gallimard dos manifestos bretonianos, de maior circulação traz apenas seus quatro manifestos. A edição da Jean-Jacques Pauvert, mais completa e a meu ver mais fiel à intenção do próprio Breton, adiciona a série de prosas poéticas Peixe solúvel, o depoimento Carta às videntes e o conjunto intitulado Posição política do surrealismo. Na escassa oferta editorial brasileira de surrealismo, o leitor tem à disposição as duas versões: aquela da Brasiliense, de 1985, que segue a da Gallimard; e a da Nau Editora, de 2001, que segue a da Pauvert. Mais completa, portanto – no entanto, com um problema editorial a meu ver grave: as notas de rodapé de Breton foram transformadas em notas de fim, o que interfere na leitura e trai a intenção do autor. Tanto é que na edição das obras completas de Breton pela coleção Pléiade, suas notas de rodapé, algumas extensas, caudalosas digressões com mais texto do que no corpo da página, são mantidas como tais; e as notas preparadas pela organizadora, Marguerite Bonnet, vêm ao final de cada volume.
4. Autores brasileiros, notadamente Sergio Lima, preferem o termo “collage” para designar os procedimentos desenvolvidos por Max Ernst, assim diferenciando-os do que já vinham fazendo cubistas e outros vanguardistas. Limito-me, sem entrar na discussão da necessidade dessa distinção, a seguir os textos que estou citando ou transcrevendo.
5. Lembrando que, nessa ótima coletânea de Baudelaire organizada por Ivo Barroso, a tradução de As flores do mal é de Ivan Junqueira.

BIBLIOGRAFIA:
BAUDELAIRE, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995,
BÉHAR, Henri (org.), Dictionnaire André Breton, Paris: Classiques Garnier, 2012;
BRETON, André, “Le Message automatique”, em Point du jour, Paris: Gallimard, 1970;
BRETON, André, “Situação surrealista do objeto”, em Manifestos do Surrealismo, tradução e notas de Sergio Pachá, Rio de Janeiro: Nau editora, 2001;
BRETON, André, Nadja, tradução de Ivo Barroso, São Paulo: Cosac Naify, 2006;
BRETON, André, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Lisboa: Editorial Estampa, 1971.
DALÍ, Salvador, “L’Âne pourri”; “Nouvelles considérations génerales sur Le mécanisme du phénomène paranoiaque du point de vue surréaliste”; em CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline, “Il y aura une fois”, Une anthologie du surréalisme, Paris: Gallimard (Folio), 2002;
LAUTRÉAMONT, Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas (obra completa) São Paulo: Iluminuras, 1997; reedições, edição revista e ampliada, em 2005 e 2008; nova edição em 2014
PAZ, Octavio, La búsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de 2019
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