O presente artigo dá prosseguimento ao que
examinei em uma palestra na Unifesp, [1]
subsequentemente publicada. [2] Meu
ponto de partida, naquela ocasião, foi a frase de André Breton no prefácio de Nadja: “Subjetividade e objetividade
travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a
primeira costuma sair-se inteiramente mal” (2006, p. 20).
Associei
a uma observação de Baudelaire, em um texto de 1859, inacabado e publicado
postumamente, A Arte Filosófica:
“O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que
contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o
próprio artista” (1995, p. 789).
Na
ocasião, examinei o tratamento dado por Breton à questão do sujeito em várias
de suas obras. Dentre as narrativas, comentei Nadja, O amor louco, Os vasos comunicantes. Dentre os artigos
e transcrições de palestras do surrealista, escolhi dois. Um deles, “Situação
surrealista do objeto”, palestra de 1935 que integra o conjunto Posição política do Surrealismo, por sua
vez adicionado a edições dos Manifestos
do Surrealismo. [3] O outro, “Le
Message automatique”, de 1933, subsequentemente publicado na coletânea Point du jour.
Através
dos dois, e especialmente de “Le Message automatique”, é exposto o que Breton preconizava
para que a subjetividade não se saísse tão mal em seus combates com a
objetividade. São procedimentos que, certamente, Baudelaire teria adotado como
“magia sugestiva”. Um deles é olhar para as nuvens, lugar de encontro do desejo
e da realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é
a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos”, disso o surrealista em O
amor louco (1971, p. 114); pois “toda a questão da passagem da
subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada”.
Baudelaire
– que Breton cita em O amor louco –
já havia tomado o partido das nuvens em um poema capital, “A viagem”, que
encerra As flores do mal e no qual proclamou
sua adesão incondicional ao novo:
As maiores regiões, a mais
pujante aldeia,
Não continham jamais os
encantos secretos
Dessas que o acaso com as
nuvens delineia.
E eis que o desejo nos
fazia mais inquietos!
(1995, p 215)
A
estrofe de Baudelaire pode até mesmo ser lida como sinopse do pensamento de
Breton, pela presença de dois termos ou categorias fundamentais para o
surrealista: acaso e desejo.
Outros
procedimentos surrealistas para que a subjetividade prevalecesse ou tivesse
chances perante a objetividade: um correlato de olhar nuvens, olhar manchas na
parede até se delinearem formas, conforme recomendado por Leonardo da Vinci; a
“flânerie”, caminhar ao acaso, também na esteira de Baudelaire; a escrita
automática, o ditado não controlado do pensamento; as frases entreouvidas ao
acaso ou captadas durante os sonhos; olhar espelhos, bolas de cristal, gotas
d’água; registrar atos involuntários, delírios, sintomas psiquiátricos, dando
atenção a seu valor estético. O conjunto das proposições levou-me a caracterizar
o surrealismo como poética da alucinação ou do delírio.
2
“Situação
surrealista do objeto”, a palestra de 1935, é um exame filosófico, em primeira
instância, do que Breton entendia como “crise fundamental do objeto”:
Jamais
insistirei demasiado no fato de que, em sua Estética, Hegel atacou todos os
problemas que atualmente podem ser considerados os mais difíceis no plano da
poesia e da arte e que, com lucidez inigualável, resolveu a maior parte deles. (p. 309).
Sendo
a poesia, para Hegel, “a verdadeira arte do espírito”, “ela manifesta mais e
mais a necessidade de atingir, 1º por seus próprios meios, 2º por meios novos,
a precisão das formas sensíveis.” (p. 310). Contudo, Breton vê uma “fusão das
duas artes”, pintura e poesia, a partir do momento em que as artes visuais
passam a mostrar entidades ou coisas da esfera “interior”, do sujeito:
Não
existe, no momento atual, nenhuma diferença de ambição fundamental entre um
poema de Paul Eluard, de Benjamin Péret, e uma tela de Max Ernst, de Miró, de
Tanguy. Libertada da preocupação de reproduzir formas tomadas ao mundo
exterior, a pintura, por sua vez, tira partido do único elemento exterior que
arte alguma pode dispensar, a saber, a representação interior, a imagem presente
ao espírito. Ela confronta esta representação interior com a das formas
concretas do mundo real, tenta, por sua vez, como fez Picasso, captar o objeto
em sua generalidade e, uma vez atingido esse fim, tenta o supremo procedimento,
que é o procedimento poético por excelência: excluir (relativamente) o objeto
exterior como tal e só considerar a natureza em sua relação com o mundo
interior da consciência.
(p. 311)
Valem,
penso, como reapresentação das idéias expostas por Breton em “Situação
surrealista do objeto”, observações de Octavio Paz, feitas quase duas décadas
depois, em sua palestra de 1954 sobre surrealismo, mais tarde publicada na
coletânea La búsqueda del comienzo:
Nunca é possível o objeto em si; sempre está
iluminado pelo olho que o mira, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o
oprime ou empunha. O objeto, instalado em sua realidade irrisória como um rei
em um vulcão, prontamente muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho
que o mira o amacia como cera; a mão que o toca o modela como argila. O objeto
se subjetiviza. Ou, como diz um herói de Arnim: “Posso discernir com
dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que vejo com os olhos da
imaginação.” Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porém servindo a poderes
distintos. E assim se inicia uma vasta transformação da realidade. Filho do
desejo, nasce o objeto surrealista: a reunião de montanhas é outra vez cena de
gigantes, as manchas na parede ganham vida, põem-se a voar e são um exército de
aves que, com seus bicos terríveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.
Paz,
avesso a detalhar citações e expor referências bibliográficas, não cita o
artigo aqui examinado de Breton, e tampouco Hegel, paradigma oculto ou
implícito dessa argumentação. Mas, claramente, é disso que trata o surrealista;
e não só no texto aqui citado, porém ao longo de toda a sua obra: da subjetivização do objeto; de uma
resposta do sujeito ou revanche da subjetividade ao tratamento que lhe é dado,
em nossa civilização, pela objetividade. Complementada pela destruição do “eu”,
pela “objetivização do sujeito”, categoria também apresentada por Paz, que é alcançada
através da escrita automática e demais procedimentos surrealistas.
Cabe
perguntar: o que faltou a Baudelaire para que considerações dessa ordem
estivessem em seus textos como crítico de arte, desde “Salão de 1846”? Obviamente,
o intervalo de 89 anos entre um e outro texto. Faltaram obras como essas que
Breton cita, de Picasso, Ernst, Miró, Tanguy. A releitura da crítica de arte
por Baudelaire mostra que tais obras viriam realizar o ataque do poeta ao
naturalismo, ao realismo, à identificação do valor artístico à representação do
objeto ou de um tema. A exclusão do “objeto exterior” e a consagração do
“objeto interior” – ou, nos termos de Paz, a “subjetivização do objeto” e a “objetivização
do sujeito” – foram antecipadas por ele. Não dispondo de obras de Ernst, Tanguy
e Miró, escreveu sobre Delacroix (de um modo que provocou perplexidade no
pintor). Provavelmente, se já existisse, Baudelaire teria se maravilhado com o
“art nouveau” ou modern style, cuja
exuberância desafiou a funcionalidade, a subordinação ao útil, justificando
Salvador Dali tê-las como “verdadeiras realizações de desejos solidificados”,
conforme cita Breton (p. 312).
Talvez
as categorias de Paz já tivessem sido antecipadas e sintetizada por Lautréamont
em Os cantos de Maldoror, na frase
citada por Breton: “É um homem ou uma pedra ou uma árvore que vai começar o
quarto canto.” (Lautréamont, 1997, p. 185) Ou seja, um ser híbrido, uma síntese
e não uma aberração, ao mesmo tempo coisas, objetos, e sujeito a expressar-se.
Breton
ainda cita ou transcreve uma sucessão de ataques à relação de significação. Escolhendo
a dedo o que fosse à primeira vista obscuro, hermético, delirante, a começar
pelo “triunfo absoluto do delírio panteístco” (p. 316) do derradeiro poema de
Rimbaud, “Sonho”. É seguido pela transcrição de “O músico de Saint-Merry” de
Apollinaire (“Tenho, enfim, o direito de saudar seres que não conheço” – p. 318),
e pelo encadeamento de sintagmas de “Segunda feira na Rua Cristina”(“Isto
parece rimar” – p. 320). Entre um e outro, a apresentação satírica por Alfred
Jarry do pensamento analógico e das correspondências de Baudelaire em “Fábula”,
sobre a atração de uma lata de “corned beef” por uma lagosta, “vivente caixinha
automotriz de conservas” (p. 319). E, mostrando a continuidade com relação
àqueles antecessores, a rica imagética de Paul Éluard em “Os mestres” e de
Benjamin Péret em “Fala-me” (p. 322/323). A culminância ou fim da série é um
poema de Salvador Dali, “Brochura ninada”, introduzindo, entre outras coisas,
uma xícara assemelhada “a uma doce antinomia municipal árabe” (p. 324):
certamente, um exemplo radical de imagem poética surrealista feita de
aproximações de realidades diversas e distantes.
Para
Breton, todo “o esforço técnico do surrealismo” para alcançar a vidência
preconizada por Rimbaud “consistiu em multiplicar as vias de penetração das
camadas mais profundas da mente”:
Na
primeira linha desses meios, cuja eficácia ficou plenamente comprovada nos
últimos anos, figuram o automatismo psíquico sob todas as suas formas (ao
pintor se oferece um mundo de possibilidades, que vai do abandono puro e
simples ao impulso gráfico até a fixação em trompe
l’oeil de imagens oníricas), bem como a atividade crítico-paranóica
definida por Salvador Dali: “método espontâneo de conhecimento irracional
baseado na objetivação crítica e sistemática das associações e interpretações
delirantes”. (p. 328)
Breton
ainda adiciona páginas de transcrição do depoimento de Max Ernst sobre a gênese
das “colagens” [4] e “frotagens”,
além de manifestar o devido reconhecimento ao tratamento que Marcel Duchamp já vinha
dando aos objetos, apresentados como “ready made”.
O conjunto dessas menções a artistas visuais é
importante, entre outras razões, por desautorizar a crença, tão frequentemente
enunciada, em uma “estética surrealista” ou um “estilo surrealista”. Caso se
adotassem categorias comuns entre os críticos e no mercado de artes,
distinguindo, por exemplo, abstracionistas líricos, geométricos,
expressionistas, figurativos etc., os artistas mencionados teriam que ser
localizados em escaninhos diferentes. Embora na criação e expressão poética as
imagens feitas de aproximações de realidades distantes sejam uma tônica
dominante, quase uma constante, o exame mais atento mostrará diversidade
equivalente. Incluirá obras que, descontextualizadas, passariam por
construtivistas. Em comum aos surrealistas, não a forma, o “estilo”, porém uma
atitude: a postura rebelde, a categórica rejeição da ordem estabelecida. E uma
fundamentação filosófica, na qual o confronto de subjetividade e objetividade é
central.
Dali
ainda volta a ser citado em “Situação surrealista do objeto”, a propósito do
objeto surrealista “que se baseia nos fantasmas e representações suscetíveis de
serem provocados pela realização de atos inconscientes”. Para o catalão, tais
objetos, “correspondendo a fantasias e desejos eróticos claramente
caracterizados, só dependem da imaginação amorosa de cada um e são
extraplásticos” (p. 333) Aplica-se, portanto, a eles, ao conjunto de tais
objetos, o modo como ele já havia caracterizado as obras arquitetônicas do “art
nouveau”, especialmente de Gaudi, conforme aqui citado, como “desejos
solidificados”.
Sabemos
que subsequentemente Dali decidiu tomar rumos próprios, distanciando-se do
surrealismo – e ao mesmo tempo, declarando ser ele o verdadeiro surrealista.
Sua aproximação a ditadores e autoritarismos, sua fracassada tentativa de
surrealizar o mercado e a indústria cultural (não obstaram que Breton
reconhecesse, sempre, sua contribuição, como se vê em um texto já de 1940, a Antologia do humor negro.
3
Em
“Situação surrealista do objeto” Breton empreendeu uma discussão filosófica,
que não está ausente do precedente “Le Message automatique”, de 1933, no qual ataca,
de modo mais enfático, a separação entre subjetividade e objetividade, ao
dispor-se a:
[...]
esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no
que diz respeito ao grau de realidade a conceder ao objeto, não pode deixar de
fazer sofrer o pensamento puramente especulativo. Poetas e artistas, teólogos,
psicólogos, doentes mentais e psiquiatras estão de todo modo desde sempre à
procura de uma linha de demarcação válida que permita isolar o objeto
imaginário do objeto real, sendo, contudo, admitido que, até nova ordem, o
segundo pode facilmente desaparecer do campo da consciência e o primeiro
aparecer lá, que subjetivamente suas propriedades se mostrem intercambiáveis. A
escrita automática, praticada com algum fervor, conduz diretamente à alucinação
visual, eu fiz pessoalmente a experiência, e basta reportar-se à “Alquimia do
verbo” para constatar que Rimbaud o havia feito bem antes de mim. (p. 180).
Assim,
visões e alucinações ganham o estatuto de percepções íntegras: o visionário
alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal, de fato ouve. E tanto a
alucinação como a escrita automática seriam aqueles momentos em que é superada
a contradição de sujeito e objeto, ou de subjetividade e objetividade. Trata-se
de um evidente ataque à tradição racionalista, às heranças de Aristóteles e de
Descartes, fundada, me parece, muito mais em uma exacerbação da filosofia
romântica, das idéias de Fichte, Schelling, Novalis e dos irmãos Schlegel, do
que em Hegel.
Breton
completa sua argumentação lembrando uma mística, Santa Tereza d’Ávila, que
relatou haver visto sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras
preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial; ou seja,
uma síntese. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: “Tereza
d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os
médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”. (p. 183)
Se
me fosse dado estabelecer uma hierarquia pessoal de textos bretonianos,
ordenados pela preferência, “Le Message automatique” ocuparia posição de destaque.
É, para mim, Breton total, em estado puro, radicalmente visionário. Certamente,
sob o ponto de vista filosófico, não apenas sua argumentação, porém os exemplos
nos quais a fundamenta são a expressão de um idealismo extremado. Por exemplo,
ao afirmar que o astrônomo William Herschel, descobridor do planeta Urano e
outros corpos celestes,
[...]
em 1816 “alcança a “produção involuntária de imagens visuais cuja regularidade
constituía o caráter principal, e isso em condições que tornariam absolutamente
inútil toda explicação extraída da regularidade possível na estrutura da retina
e dos nervos ópticos.
(p. 160)
Para
desafiar o positivismo, menciona também James Watt, o matemático e engenheiro
escocês, não propriamente inventor das máquinas a vapor, porém aquele que as
aperfeiçoou, possibilitando a construção de locomotivas e de outros
equipamentos, contribuindo para desencadear a revolução industrial. Para
Breton, a invenção não é mais apenas resultado do cálculo, do planejamento: tem
um componente visionário, pois Watt, “em um quarto escuro, contempla a futura,
a próxima máquina a vapor”. (idem)
Há
observações que poderiam ter sido subscritas por um autor tão antagônico com
relação ao surrealismo como Jorge Luis Borges:
A
expressão “Tudo está escrito” deve, me parece, ser entendida ao pé da letra.
Tudo está escrito sobre a página em branco, e são maneiras bem inúteis que se
fazem os escritores para qualquer coisa como uma revelação e um desenvolvimento
fotográficos. (p. 161)
Faltaria
apenas adicionar, nessa afronta ao modo construtivista de pensar a criação, com
todos os seus depoimentos sobre “o desafio da página em branco”, que todos
esses escritos preexistentes, á espera da revelação, já estão na Biblioteca de
Babel imaginada pelo genial escritor argentino.
Antecipando
O amor louco, Breton também cita o
procedimento recomendado por Leonardo da Vinci, de olhar manchas na parede. Mas
não o equipara, ainda, a olhar para as nuvens.
Dentre
os tópicos recorrentes em Breton e no surrealismo, há, ainda, a homenagem a
Charcot, por haver originado “esse magnífico debate sobre a histeria”, e
Schrenck-Notzing por haver chamado a atenção em 1889 para “o valor artístico
dos movimentos de expressão da histeria e da hipnose”. De fato, uma gênese do
surrealismo está na estada de Breton, já como residente (ele terminou o curso
de medicina mas recusou o diploma) em instituições psiquiátricas, durante a
Primeira Guerra Mundial; isso, enquanto tinha aulas aulas com Charcot, Pierre
Janet e outros expoentes da psiquiatria, e descobria Freud.
O
mais característico de “Le Message automatique”, se comparado a outros textos
bretonianos, é o modo como parece deixar de lado a fundamentação freudiana,
dirigindo o foco para a psicologia da percepção e para aquilo que William James
denominou “psicologia gótica”; ou seja, a incipiente parapsicologia. Comenta Myers
e Flournoy, iniciadores dessa disciplina. E boa parte do artigo é sobre
paranormalidade, mediunidade, produção de visões, vidência, premonição. Idéias
fixas de Breton, temas recorrentes, como se vê pelos relatos de visitas a
médiuns videntes e cartomantes em Nadja
e na “Carta às videntes” – mas sempre objetando à separação do médium e da
mensagem mediúnica. Enquanto aquilo que registravam sessões espíritas e
práticas correlatas corresponderia a uma divisão, a escrita automática e todas
as demais práticas de alucinação voluntária ou delírio proposital preconizadas
pelo surrealismo resultariam em uma integração; uma síntese, conforme o quadro
de referências filosófico por ele adotado.
4
Dentre todos
os autores citados e casos relatados em “Le Méssage automatique” – esse texto
que, tratando de surrealismo, é, de modo consistente, surreal – observo uma
ausência. Não cita Dalí, que ganharia especial atenção a seguir, em “Situação
surrealista do objeto”. Isso, não obstante a argumentação bretoniana ser, de
modo evidente, um exemplo de aplicação do método paranóico-crítico, entendido
como manifestação do delírio interpretativo.
Os
fundamentos do método paranóico-crítico haviam sido expostos por Dali em um
texto de 1930, intitulado “L’Âne pourri” (o asno apodrecido ou podre):
Eu
acredito que esteja próximo o momento em que, por um processo de caráter
paranóico e ativo do pensamento, será possível (simultaneamente ao automatismo
e outros estados passivos) sistematizar a confusão e contribuir para o
descrédito total do mundo da realidade. (p. 184)
O
“ditado do pensamento”, fundamento do surrealismo conforme o primeiro Manifesto do surrealismo, seria, então,
passivo; o delírio interpretativo proposto por Dali seria ativo. Contudo, ao
equiparar ao automatismo procedimentos como enxergar formas em nuvens e manchas
na parede, além de contemplar bolas de cristal ou espelhos, Breton incorpora as
proposições de Dali. Ambos falam da mesma coisa; da “imagem dupla” resultante
do “processo nitidamente paranóico”. Há, portanto, relação de complementaridade
entre as idéias desenvolvidas por Dali e a formulação mais ampla do que seria o
automatismo psíquico por Breton. Olhar para as nuvens e paredes, recomendado em
“Le Message automatique” e, em maior detalhe, em O amor louco, são a mesma coisa que a “imagem dupla” resultante da
paranóia, para Dali:
É
por um processo nitidamente paranóico que foi possível obter uma imagem dupla:
ou seja, a representação de um objeto que, sem a mínima modificação figurativa
ou anatômica, seja ao mesmo tempo a representação de um outro objeto
absolutamente diferente, desprovido ele também de todo gênero de deformação ou
anormalidade que poderia revelar qualquer arranjo.
A
obtenção de uma tal imagem dupla foi possível graças á violência do pensamento
paranóico que se serviu, com estratagema e destreza, da quantidade necessária
de pretextos, coincidências etc, aproveitando-se disso para fazer aparecer a
segunda imagem que nesse caso toma o lugar da idéia obsedante. (p. 185)
Tais
imagens não são apenas duplas, porém múltiplas, prossegue Dali: pode haver uma
terceira imagem, por exemplo de um leão, “e assim por diante até a ocorrência
de um número de imagens limitado unicamente pelo grau de capacidade paranóica
do pensamento”. (idem) Todas são “simulacros”; até mesmo, e aqui atacando
diretamente o materialismo de Georges Bataille, “se um desses estados adotar a
aparência de um asno apodrecido e mesmo que um tal asno esteja realmente e
horrivelmente apodrecido, coberto por milhares de moscas e de formigas”; pois
“nada pode me convencer que essa cruel putrefação do asno seja outra coisa
senão o reflexo ofuscante e duro de novas pedras preciosas.” (p. 187)
Da
produção de textos de Dali sobre o método paranóico-crítico, destaca-se aquele
de 1933 sobre a “imagem obsedante” do Ângelus, o quadro de Millet, assim
demonstrando que um chavão das artes visuais podia ser visto como representação
de outras coisas, também publicado sob o título de “Novas considerações gerais
sobre o mecanismo do fenômeno paranóico do ponto de vista surrealista”. É o
artigo no qual proclama que suas observações sobre paranóia crítica “nada fazem
senão confirmar-se de maneira rigorosa à leitura da admirável tese de Jacques
Lacan “Da Psicose paranóica em suas relações com a Personalidade”; assim,
remetendo ao futuro autor de novas e ousadas observações sobre a subjetividade
e a constituição do sujeito (p. 186).
Nesse
artigo, reafirmando sua disposição de promover o descrédito da realidade
(entenda-se: da objetividade), confronta os dois delírios, aquele passivo na
escrita automática e outro ativo na paranóia crítica, dialetizando sua relação:
O
“drama poético” do surrealismo residia nesse momento para mim no antagonismo
(chamando á conciliação dialética) dos dois tipos de confusões que
implicitamente estavam previstos nessa declaração: de uma parte a confusão
passiva do automatismo; de outra parte a confusão ativa e sistemática ilustrada
pelo fenômeno paranóico.
(p. 188)
5
Poderia
estender consideravelmente uma coletânea dos ataques surrealistas ao princípio
da identidade e não-contradição de Parmênides, fundamento da lógica na tradição
ocidental; das reafirmações da analogia; das reiterações de que uma coisa é
outra, de que a objetividade é instável ou precária, de que a subjetividade nos
mostra muito mais sobre o real.
Cabe,
porém, perguntar, recortando o exemplo de Dali, do asno apodrecido, reflexo de
“novas pedras preciosas”: qual grande poeta já havia tratado desse modo da
podridão? Sim, Baudelaire, que em vez de um asno apodrecido, em “Uma carniça”,
havia poetizado um cão morto, reduzido a “uma carniça repugnante” (1995, p.
126-127, assim como as citações a seguir). E o fez de modo rigorosamente
conforme aos ditames de Dali sobre a paranóia crítica.
Sabemos
que Baudelaire se indignou por seus censores, os magistrados que proibiram As flores do mal em 1857, haverem
classificado seus poemas como “realistas”. De fato, em seu impecável verso
clássico, não poupa detalhes do estado em que estava o animal apodrecido: [5]
Ardia o sol naquela pútrida
torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à
Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
Pode-se
imaginar o poeta, um provocador, antegozando a expressão do leitor ao defrontar-se
com este detalhamento do estado em que se encontrava a “esplêndida carcaça”:
Zumbiam moscas sobre o
ventre e, em alvoroço,
Dali saiam negros bandos
De larvas, a escorrer como
um líquido grosso
por entre esses trapos
nefandos.
E tudo isso ia e vinha, ao
modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a
estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.
Contudo,
a ambivalência de Baudelaire se faz presente. Dando ao poema um fecho
platônico, a última estrofe nega as precedentes ao dirigir-se à “deusa da
beleza”, “Estrela dos meus olhos, sol da minha vida”:
Então querida, dize à carne
que se arruína,
Ao verme que te beija o
rosto,
Que eu preservei a forma e
a subst6ância divina
De meu amor já decomposto!
Um
dos muitos exemplos, portanto, do contraste do abjeto e do sublime em
Baudelaire; do modo, já tão estudado, como provocava choques desses extremos, e
ao mesmo tempo promovia um trânsito entre eles. A carniça é abjeta; a poesia,
que preserva “a forma e a substância divina”, sublimes, incorpora e supera a
abjeção.
Mas
o paralelo entre o genial poema de Baudelaire e o artigo de Dali, apresentando
o método paranóico-crítico, possibilita ver mais; localizar a “imagem dupla”
resultante da paranóia. Em Dali, a putrefação do asno é reflexo de “novas
pedras preciosas”; em Baudelaire, a carniça oferece formas que “fluíam como um
sonho além da vista”, sobre “a tela esquecida, e que concluir o artista /
apenas de memória um dia.” Recortadas, fariam parte de uma tela abstrata; do
abstracionismo que Baudelaire profetizou em sua crítica de arte.
Tais
duplas imagens, nas quais o belo emerge do horror, ou ambos se confundem, podem
ser localizadas em outros poemas de Baudelaire; e em suas prosas poéticas. Há
muito mais, em sua enorme contribuição, a ser visto como antecipação ou
aplicação do método paranóico-crítico. Como exemplo de delírio interpretativo,
certamente, suas observações sobre a modernidade em “O pintor da vida moderna”;
especialmente, sobre a moda e maquiagem como expressões máximas do bem, por
serem artificiais – isso, projetando a premissa de que o natural é regido pelo
mal, e tudo o que é bom é artificial. Igualmente, de sua crítica literária, o
artigo sobre Madame Bovary de
Flaubert: saúda-a como heroína moderna por ser um andrógino, uma mulher
anti-natural ao assumir atitudes e tomar iniciativas masculinas – além de
inverter, no mesmo artigo, outra narrativa de Flaubert, As tentações de Santo Antão, tomando-a como erótica e não mais
piedosa.
A
“magia sugestiva” proposta por Baudelaire foi praticada pelos surrealistas, de
modo não só deliberado, mas programático. E também incorporada. Conforme mostra
Henri Béhar, o importante biógrafo e estudioso de Breton, após O amor louco ele abandona o termo “acaso
objetivo”, filosoficamente fundamentado (uma derivação do “humor objetivo de
Hegel”, conforme argumenta em “Situação surrealista do objeto”) e em seu lugar
passa a falar em “magia”; a ponto de um de seus últimos artigos, de 1955, ser
intitulado “Magie quotidienne” (Béhar, 2012, p. 623). Retorno a Baudelaire? Ou,
antes, a uma tradição que Baudelaire também soube assimular e incorporar a sua
poesia e poética?
A
bibliografia mostrando o quanto o poeta de As
flores do mal foi precursor – do simbolismo, do parnasianismo, do
surrealismo, de formalismos, da arte não-figurativa, em alguma medida até mesmo
dos beats – pode preencher uma
estante, ou até mesmo uma biblioteca. Nestas observações, a intenção não foi apenas
reafirmar a importância do poeta de As
flores do mal como precursor e profeta; porém inverter a sequência, a série
histórica, mostrando que o exame de surrealistas possibilita enxergar mais, não
apenas em nuvens, paredes, bolas de cristal, objetos encontrados ao acaso, mas
em Baudelaire – e em Rimbaud, Lautréamont, Germain Nouveau, Alfred Jarry; ou em
autores nossos como Sousândrade, Cruz e Souza, Campos de Carvalho ou Manoel de
Barros – e tantos outros.
NOTAS
1. A crítica filosófica e a questão do sujeito
no surrealismo, palestra na II Jornada de Filosofia e Literatura da
Unifesp, Departamento de Filosofia da Unifesp, Guarulhos, SP, dia 09 de
dezembro de 2013
2.
Em Academia.edu, “Sobre surrealismo e filosofia”: https://www.academia.edu/6542416/Sobre_surrealismo_e_filosofia
3.
A edição de bolso da Gallimard dos manifestos bretonianos, de maior circulação
traz apenas seus quatro manifestos. A edição da Jean-Jacques Pauvert, mais
completa e a meu ver mais fiel à intenção do próprio Breton, adiciona a série
de prosas poéticas Peixe solúvel, o
depoimento Carta às videntes e o
conjunto intitulado Posição política do surrealismo.
Na escassa oferta editorial brasileira de surrealismo, o leitor tem à
disposição as duas versões: aquela da Brasiliense, de 1985, que segue a da
Gallimard; e a da Nau Editora, de 2001, que segue a da Pauvert. Mais completa,
portanto – no entanto, com um problema editorial a meu ver grave: as notas de
rodapé de Breton foram transformadas em notas de fim, o que interfere na
leitura e trai a intenção do autor. Tanto é que na edição das obras completas
de Breton pela coleção Pléiade, suas notas de rodapé, algumas extensas,
caudalosas digressões com mais texto do que no corpo da página, são mantidas
como tais; e as notas preparadas pela organizadora, Marguerite Bonnet, vêm ao
final de cada volume.
4.
Autores brasileiros, notadamente Sergio Lima, preferem o termo “collage” para
designar os procedimentos desenvolvidos por Max Ernst, assim diferenciando-os
do que já vinham fazendo cubistas e outros vanguardistas. Limito-me, sem entrar
na discussão da necessidade dessa distinção, a seguir os textos que estou
citando ou transcrevendo.
5.
Lembrando que, nessa ótima coletânea de Baudelaire organizada por Ivo Barroso,
a tradução de As flores do mal é de
Ivan Junqueira.
BIBLIOGRAFIA:
BAUDELAIRE, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos
tradutores, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995,
BÉHAR, Henri (org.), Dictionnaire André Breton, Paris: Classiques Garnier, 2012;
BRETON, André, “Le Message automatique”, em Point du jour, Paris: Gallimard, 1970;
BRETON, André,
“Situação surrealista do objeto”, em Manifestos
do Surrealismo, tradução e notas de Sergio Pachá, Rio de Janeiro: Nau
editora, 2001;
BRETON, André, Nadja, tradução de Ivo Barroso, São
Paulo: Cosac Naify, 2006;
BRETON, André, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto
Jorge, Lisboa: Editorial Estampa, 1971.
DALÍ, Salvador, “L’Âne pourri”; “Nouvelles
considérations génerales sur Le mécanisme du phénomène paranoiaque du point de
vue surréaliste”; em CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline, “Il y aura une fois”, Une
anthologie du surréalisme, Paris: Gallimard (Folio), 2002;
LAUTRÉAMONT, Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas (obra completa) São Paulo: Iluminuras, 1997; reedições, edição
revista e ampliada, em 2005 e 2008; nova edição em 2014
PAZ, Octavio, La
búsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO
SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Isabel Meyrelles
(Portugal, 1929)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
132 | Abril de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC
Edições © 2019
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