Em 1985, o crítico e poeta José Paulo Paes
declarou: “Do surrealismo literário no Brasil quase se poderia dizer o mesmo
que da batalha de Itararé: não houve”. [1]
Isso, no ensaio “O surrealismo na literatura brasileira” da coletânea Gregos e
Baianos (Brasiliense), onde comentava escritores que podiam ser associados
a esse movimento: o narrador Adelino Magalhães (1887-1963), catalogado como
impressionista; Prudente de Morais Neto (1895-1961), jornalista que dirigiu a
revista modernista Estética com o historiador Sergio Buarque de Holanda; e o
poeta Sosígenes Costa (1901-1968), contribuindo para seu resgate. A propósito
de surrealismo em Prudente de Morais Neto e Sergio Buarque de Holanda, cabe
indagar se não foi criado um mito, endossado não só por Paes mas, entre outros,
por Valentim Facioli e Sergio Lima. A leitura da revista Estética mostra seus
dois editores interessados em primeira instância em James Joyce e T. S. Eliot,
com Prudente de Morais Neto chegando a declarar que a escrita automática seria
moda passageira.
Paes voltaria ao assunto
em 1998 ao resenhar a coletânea de entrevistas Escritura Conquistada de Floriano Martins, utilizando a expressão
“tardosurrealismo”. Sua morte,
logo a seguir, impossibilitou uma discussão que só poderia ser produtiva. Em “O
surrealismo na literatura brasileira”, também mostrou a convergência de
julgamentos por figuras de primeiro plano da crítica brasileira como Antonio
Candido e Silviano Santiago.
O artigo “Surrealismo no Brasil” de Antonio
Candido (em Brigada Ligeira e outros escritos, Editora Unesp), invocado
por Paes, trata de O Agressor, romance de Rosário Fusco (1910-1977)
publicado em 1943. Espanta estar na sequência, nesse livro, do que escreveu
sobre Clarice Lispector. É como se fossem dois críticos adotando paradigmas
opostos. Clarice é, para
Candido, uma ruptura com “um certo
conformismo estilístico” que afetaria a narrativa realista. Fez,
portanto, revisão crítica da corrente então dominante. Já O Agressor de Fusco ensejou
reparos a uma “tendência
irracionalista” reduzida à “crise
desse espírito, desintegrado pelo individualismo burguês e, em seguida, pela
crise do capitalismo”. Interessaria como “ilustração desta crise”. Isso poderia ser assinado por um
defensor do realismo socialista. É como se o Gyorgy Lukàcs de O assalto à razão (ou A destruição da razão em uma edição
recente) tivesse momentaneamente baixado em nosso pensador da literatura.
A propósito de correntes
dominantes na crítica brasileira, suas divergências e sua convergência na rejeição do surrealismo, a
crítica formalista é bem representada por Haroldo de Campos em Teoria da
Poesia Concreta – Textos críticos e manifestos (Livraria Duas Cidades, 1975): “Evidentemente, a poesia
concreta repudia o irracionalismo surrealista, o automatismo psíquico, o caos
poético individualista e indisciplinado [...] O poema concreto não se nutre nos
limbos amorfos do inconsciente, nem lhe é lícita essa patinação descontrolada
por pistas oníricas de palavras ligadas ao subjetivismo arbitrário e inconsequente”.
Subsequentemente, a
adoção da semiótica, semiologia e outros formalismos pela crítica viria
acompanhada de novas recusas do surrealismo. Por exemplo, em A falência da crítica de Leyla
Perrone-Moisés (Perspectiva, 1974), sobre Lautréamont. Acompanhavam seus
mestres; mas na França o surrealismo teve um impacto enorme, levando autores a
estabelecer limites para não serem confundidos – como na época em que Philippe
Sollers e seus companheiros da Tel Quel, então maoístas de revolução cultural,
rejeitavam o surrealismo como burguês.
Precedem tais críticas
ao surrealismo sua recusa pelo modernismo brasileiro. Especialmente, por seu
principal pensador, Mário de Andrade. Valem como manifestos o “Prefácio
Interessantíssimo” e “A Escrava que
não era Isaura”, de 1922. Alertava contra os “perigos formidáveis da substituição
da ordem intelectual pela ordem subconsciente”. Proclamava, enfático: “Mas, oh bem-pensantes! É coisa evidente: NÃO
SOMOS LOUCOS...” Chamava de “erro perigosíssimo o modo como avulta na poesia modernista a associação de imagens”. Rejeitava,
liminarmente, o que, na época, ia sendo adotado como fundamento por Breton,
Aragon, Éluard ou Max Ernst. O tom de prédica ao apontar “erros” e “perigos”
mostra, em pleno calor da Semana de 22, o programa de um modernismo bem-comportado.
Ademais, Mário, Oswald e seus companheiros da Semana de 22 desconheceram
antecessores, como os poetas mais inventivos que constituem a marginalia do simbolismo;
e Sousândrade, que no século anterior realizara tanta coisa que o modernismo
iria propor. Seriam bem resgatados, Sousândrade e marginalia do simbolismo, especialmente
Pedro Kilkerry, por nossos formalistas.
Mais tarde, Mario faria
melhor – especialmente em Macunaíma,
de 1928. Mas o empreendimento de 22 fixou-se no confronto entre formas abertas
e o parnasianismo dominante, de modo diverso do surrealismo, que deu
importância ao que Breton denominou “correia de transmissão” com o simbolismo.
E, também, diverso do que sucedeu em literaturas hispano-americanas, em que
vanguardistas vieram à tona em relação direta de continuidade com o simbolismo.
E nas quais o surrealismo esteve intensamente presente, através de movimentos,
publicações e poetas extraordinários.
Os dois poetas
brasileiros do século 20 de maior influência, até hoje, são Carlos Drummond de
Andrade e João Cabral de Melo Neto. Drummond rejeitava o surrealismo, embora
tivesse escrito, em momentos de distração, belos poemas de associações livres.
Cabral defendeu um cartesianismo poético: “A emoção não cria”, dizia. Sua
poética voltada para a mensagem foi adotada por gerações subsequentes.
Revisões desse tipo de
julgamento demorariam a vir. Uma delas, a coletânea Surrealismo e novo mundo, organizada por Robert Ponge (Editora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999). Nela, Valentim Facioli , que
organizou Breton-Troski: por uma arte
revolucionária independente (Paz e Terra, 1985), observa, no ensaio
“Modernismo, vanguardas e surrealismo no Brasil”, a “perversão, apagamento da
memória, soterramento, verdadeiro exílio das culturas dos dominados e das obras
libertárias” a propósito de marginalização de manifestações surrealistas. Associa-a ao nacionalismo
anti-cosmopolita a serviço da “modernização conservadora e seletiva,
constituídas por um moderno atrasado ou um atraso modernizado” no Estado Novo
conduzido por Getúlio Vargas. Correntes antagônicas como integralistas e
comunistas seriam componentes dessa configuração nacionalista-retrógrada.
Sérgio Lima, autor de A Aventura Surrealista (tomo 1 pelas
editoras Vozes/ Unesp/ Unicamp, 1995; tomo 2 pela Edusp, 2010), em “Surrealismo
no Brasil: mestiçagem e seqüestros”, revê cronologias para demonstrar que
houve, sim, atividade surrealista importante associada ao modernismo
brasileiro, mas convertida em história subterrânea: não só no caso de Jorge de
Lima e Mutilo Mendes, dois grandes nomes de nossa poesia, mas em outros, como
os autores que se reuniram ao redor da revista Verde de Cataguazes, Rosário
Fusco, Guilhermino Cesar e o cineasta Humberto Mauro.
Isso não significa que o
exame do surrealismo no Brasil seja um deserto bibliográfico. Há títulos como A estética surrealista de Álvaro Cardoso
Gomes (Ática, 1994) e O desconcerto do mundo:
do renascimento ao surrealismo, de Carlos Felipe Moisés (Escrituras, 2001),
com ensaios sobre Mário Cesariny e Roberto Piva, além da contribuição
específica de Floriano Martins, que será examinada à frente. Em 2001, a
propósito de uma exposição de arte surrealista promovida pelo Banco do Brasil,
a revista Cult publicou um dossiê com artigos de Contador Borges, Eliane Robert
Moraes – autora de ensaios sobre o tema e do livro O corpo impossível (Iluminuras, 2003), centrado em Bataille mas com
pertinentes comentários sobre surrealismo – e contribuição minha. Bons ensaios
acompanham a edição brasileira de O
camponês de Paris de Aragon (Imago 1996), pela tradutora Flavia Nascimento
e por Jeanne-Marie Gagnebin. De Michel Löwy, A estrela da manhã: surrealismo e marxismo (Civilização Brasileira,
2002).
Em uma publicação mais recente,
a enorme coletânea (de mil páginas) O
surrealismo, de 2008 (Perspectiva), incumbi-me do exame da poesia e poética
surrealista, acaso objetivo e escrita automática (o conjunto daria um livro
autônomo). Nessa coletânea, artigos de Sergio Lima e Luis Nazário examinando
surrealismo no Brasil – o de Nazário, confrontando afirmações minhas e de
Sergio Lima. Um ensaio de Jorge Schwartz, “Surrealismo no Brasil? Décadas de
1920 e 1930”, retomando suas contribuições sobre vanguardas latino americanas.
Um diálogo de Floriano Martins comigo, perscrutando a rejeição do surrealismo
pela crítica brasileira. Pelo que essa coletânea tem de excessivo e desigual,
acabou circulando pouco. Ficaram obliteradas contribuições como a de Maria
Lúcia Dal Farra, importante poeta, sobre surrealismo e esoterismo, e de Jorge
Coli, tratando da contenda dos intelectuais ligados à Tel Quel com
surrealistas.
Histórias da literatura
brasileira tocam, de algum modo, no surrealismo. No entanto, só aparece em
tópicos na recente e enorme História da
literatura brasileira de Carlos Nejar (Leya, 2011); um deles, “O
surrealismo: Claudio Willer”; outro, examinando como surrealistas a Roberto
Piva, Carlos Augusto de Lima, Floriano Martins, Péricles Prade e Sebastião
Nunes.
Correlatamente à recusa
pela crítica, é fraca a presença de surrealismo no mercado editorial
brasileiro. Por isso, cabe menção às publicações da infelizmente extinta Cosac
Naify, com uma boa reedição de Nadja
de Breton e obras de Jacques Prévert e Michel Leiris. E, em um passo adiante,
edições de Joyce Mansour e Radovan Ivsic por uma pequena editora, a Lumme,
graças ao trabalho de Éclair Antonio Almeida Filho, que também vem oferecendo
importantes traduções de Robert Desnos – porém através de um circuito, mais que
alternativo, subterrâneo, constituído pelas editoras Sol Negro e Nephelibata.
A partir de 2000, o meio
digital passa a ter presença decisiva. As melhores fontes sobre surrealismo
talvez estejam lá. A revista Agulha de Floriano Martins vem tratando do tema
sob os mais diversos ângulos. Derivado de Agulha, organizado por Floriano e
Maria Estela Guedes, o dossiê “Surrealismo, poesia e liberdade” na TriploV de
Portugal. Surrealismo também é examinado em artigos e dossiês em outras
publicações digitais, como Zunaí de Claudio Daniel e em ocasionais matérias em
suplementos e revistas literárias, por sua vez disponíveis no meio digital.
2. Poetas
e prosadores
Há dois modos de olhar o surrealismo. Um deles
examina obras, poéticas inclusive. O outro desloca o foco para o autor e para
uma atitude surrealista. Tais olhares não são excludentes, porém
complementares. Mas, conforme a atenção a um ou outro, obra ou autor, produção
ou atitude, muda a história do surrealismo no Brasil.
Tomando a poesia no
sentido estrito, como gênero literário, os dois grandes modernistas associados
ao surrealismo no Brasil continuam a ser Jorge de Lima (1893-1953) e Murilo
Mendes (1901-1975). Quanto a este, seus antecedentes estão não só no
surrealismo, mas em um exasperado catolicismo. Contudo, o rótulo de “poeta
católico” reduz o alcance de uma lírica plural, na qual, se encontra o que
houve de inovador em seu tempo. Há uma linha evolutiva da “poesia em Cristo”
até o ganho em síntese e vigor de As
Metamorfoses, de 1941: “Estamos vestidos de alfabeto,/ Não sabemos nosso
nome.// Cavalos brancos vermelhos/ Mastigam o mundo:/ Olhai a sombra da terra,/
Uma enorme guilhotina.// Galopa fantasma/ Vida contra a vida”. Poeta de imagens
visualmente sugestivas, que poderiam passar por descrições de quadros de
Magritte, Delvaux, Dali e Ismael Nery, resumiu, em 1935, uma questão à qual
Breton dedicaria páginas de O amor louco
em 1938: “Muro, nuvem do pintor”.
Mesmo admitindo, como
sustenta Sérgio Lima, a precedência surrealista em Jorge de Lima, não se vê, em
suas próprias declarações, qualquer manifestação de interesse por Breton e
demais surrealistas. Apontou, como importantes em sua formação, autores que
foram execrados pelo surrealismo, como Paul Claudel; ou aos quais o surrealismo
permaneceu indiferente, como Marcel Proust. Foi, porém, não só um leitor de
Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, como alguém que efetivamente entendeu o
alcance de suas contribuições e as incorporou: especialmente, a ideia de que,
para refazer as navegações, tema das grandes epopeias, é preciso embarcar no
barco bêbado (ou barco ébrio, ou embriagado, para alguns) de Rimbaud: aquele
cuja equipagem foi exterminada e que navega em liberdade. [2] E o Teve o período
parnasiano, nativista-regionalista, católico, onírico-surreal, até a grande
síntese, Invenção de Orfeu. O
onírico-surreal está em Anunciação e
encontro de Mira-Celi, série de poemas em prosa. No Livro de Sonetos, ponto máximo do gênero em nossa literatura do
século 20, uma reflexão sobre a poesia, afim a idéias surrealistas: “Não
procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados,/ pois eles
vivem no âmbito intranquilo/ em que se agitam seres ignorados”. São palavras
que anunciam a poesia hermética e cósmica de Invenção de Orfeu, onde reitera a ideia do poeta sonâmbulo ao
descer a um mundo arquetípico: “Minha cabeça estava em pedra, adormecida,/
quando me sobreveio a cena pressentida.// Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos
culpados/ dos passos e dos gestos em vão desperdiçados”. Seu processo criativo
permite aproximações à escrita automática e ao sono hipnótico. Abraçando o
catolicismo, ao mesmo tempo cultuou uma religiosidade primordial, xamânica. Daí
a temática do mineral, do subsolo em Invenção
de Orfeu: é descida ao inconsciente e à experiência religiosa arcaica. E,
principalmente, imagens poderosas combinadas a alusões, como nesta passagem de
“As alucinações”, de Invenção de Orfeu:
Entre livro e cavalo o homem instalou
Duas escadas e uma bússola;
Depois verificou que sendo duplas
As suas asas dúbias, duplo o voo.
Pousou na escuridão, e repousou,
Pois era o dia sete de seus súcubos.
Foi quando se exclamou: Faça-se a luz.
E a luz dentro das trevas se formou.
Maldoror! Mal-e-horror! Ó terra nata,
Tão empresa, tão ébria, tão perjura
E sempre e ao mesmo tempo tão amarga!
Que lume bruxuleia sobre as vagas?
Candelabro ou veleiro ou raio obscuro
Que ora sobe na proa ora se apaga?
Olhando o vivido, e não
só o escrito, é possível encontrar sincronia com surrealismo na manifestação
mais significativa associada ao Modernismo, a Antropofagia. O que Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp desenvolviam incluiu a acolhida a
Benjamin Péret em sua vinda ao Brasil em 1929. Preocupações do grupo
antropófago convergiam com a busca do outro por Péret, levando-o à compilação
de mitos de índios, ao contato com os rituais sincréticos, umbanda e candomblé,
e a examinar episódios da nossa história, do que resultou um livro sobre o “almirante
negro” João Cândido, líder da Revolta da Chibata. [3]
A primeira estada de
Péret, que casou com a cantora lírica brasileira Elsie Houston, encerrou-se com
sua prisão e deportação e a destruição pela polícia dos originais daquele
livro. [4] Sua volta ao Brasil se
daria em 1955, quando coligiu novo material para Mithes et légendes des peuples de L’Amérique Latine, além de um
livro sobre Zumbi dos Palmares.
Uma vanguarda
intelectual e política articulou-se, através de Péret, com o surrealismo.
Incluiu nomes ligados à formação de uma esquerda trotskista: a escritora
Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), Flávio de Carvalho (1899-1973) e o crítico
Mário Pedrosa (1900-1981), concunhado de Péret (casado com a irmã de Elsie).
Pagu e Flávio foram hóspedes de Péret e Elsie em Paris, em 1934-35,
acompanhando os debates que moveram Breton a escrever Position Politique du Surréalisme. [5]
Se o presente artigo
abarcasse artes visuais, teria que examinar não só Flávio de Carvalho, criador
múltiplo, mas, especialmente, Ismael Nery e Maria Martins. E contemporâneos
como Maninha Cavalcante, Leila Ferraz e outros, além da contribuição
especificamente visual de Floriano Martins e Sergio Lima. Mas, dando atenção à
coerência e integridade, o nome mais significativo do surrealismo no Brasil é
Flávio de Carvalho. Sua pintura poderia ser associada ao expressionismo; mas
suas intervenções famosas, em uma procissão acarretando um quase linchamento em
1931, e com roupagens tropicais nos anos 50, são surrealismo autêntico, na
exteriorização e nas intenções. E também sua atuação como arquiteto,
esquivando-se ao mercado e à orientação funcionalista dominante, para
concentrar-se em uns poucos projetos. Acima de tudo, a peça Bailado do deus morto, proibida ao
estrear em 1933, resultando no fechamento do teatro, assim como, logo a seguir,
teria uma exposição fechada. Coragem, recusa da ordem estabelecida, isso sim, é
surrealismo, além da assimilação das ideias de Freud e a valorização da arte
dos “alienados”. [6] A propósito da
censura a Flávio de Carvalho, e do banimento de Péret, cabe observar que a
circulação restrita do surrealismo deve muito à repressão policial, e não só à
adesão de intelectuais à razão consciente, à realidade nacional, ao que fosse.
Sobra pouco, até os anos
de 1960, para ser indicado como surrealista na poesia brasileira. Quanto a
Sosígenes Costa, a qualificação procede, não só pela poesia exuberante e
excêntrica mostrada em Iararana
(Cultrix, 1979), mas, novamente, pela conduta, ao colocar-se à margem da vida
literária instituída; daí seu resgate tardio. Caberia, no capítulo da expressão
surrealista no Brasil, a referência a Paulo Mendes Campos, esperando-se o
reconhecimento de sua poesia em prosa, de imagens e associações livres. No
âmbito da geração de 45, há autores em segundo plano, como Fernando Ferreira de
Loanda e André Carneiro, a demandarem reexame. E, principalmente, o crescimento
de interesse por Manoel de Barros (1916), surrealista declarado, com sua obra
completa editada recentemente (Leya, 2010). Expressos por um vocabulário e uma
sintaxe pessoais e inventivas, nele reaparecem o pensamento analógico e a
sacralização do natural. Poeta da natureza, do microcosmo, das pequenas coisas,
assim como os herméticos neo-platônicos, ele enxerga o universo em cada coisa;
o alto no baixo, o maior no menor.
Afora isso, onde se vai
encontrar poesia surrealista no Brasil é na prosa, em uma estirpe à margem do
realismo dominante. Entre outros, em Aníbal Machado (1894-1964), crítico e
narrador refinado em “Viagem aos seios de Duília” e “O iniciado do vento”, que,
expressamente, se declarou surrealista. E Rosário Fusco, reeditado com O Agressor (Ao Livro Técnico, 2000) e o
inédito a.s.a. - associação dos solitários anônimos (Ateliê, 2003). Mas
essas edições repercutiram pouco, e o débito com relação ao anarquista de
Cataguazes se mantém. Além de maior difusão, merece biografia, o registro de
sua vida movimentada.
Do elenco de prosadores,
a inclusão mais importante é a de Campos de Carvalho, por sua afinidade
declarada, a narrativa
descontínua e onírica, a crítica a valores e categorias do conhecimento, a
qualidade das imagens poéticas em sua prosa, e, principalmente, a ética
pessoal. Um transgressor em A lua vem da
Ásia, sobre a loucura; e Vaca de
nariz sutil e Chuva imóvel, onde
há de tudo: incesto, pedofilia, assassinato, suicídio. Mereceria figurar na Antologia do Humor Negro de Breton, com
sua lírica defloração sobre túmulos e tantas outras passagens memoráveis nos
enredos lacunares, que parecem não levar a lugar algum, e que, em O púcaro búlgaro, seu último livro,
compõem a viagem a lugar algum. Promove o encontro de Rimbaud, Lautréamont e
Machado de Assis. Celebra a autonomia da palavra, separada de seus sentidos
habituais para ganhar novos significados, em uma conversão do abstrato em
concreto, e, reciprocamente, abstração do concreto, subvertendo-os. Escrevia
espontaneamente, proibindo-se de refazer textos – o oposto de outro autor da
mesma família, Murilo Rubião, que nunca parou de reescrever-se. É um escândalo a
obra de Campos de Carvalho haver desaparecido de vista, sem reedição, por três
décadas, após ele resolver sair de cena e até a publicação de sua Obra Reunida (José Olímpio Editora,
1996).
3. Contemporâneos
Na década de 60 reaparece a identificação de poetas
brasileiros com o surrealismo. O que houve nesse período da nossa literatura
obriga a rebater a ideia de um surrealismo tardio, o “tardosurrealismo”. Vistas
a partir do século 21, coordenadas temporais tornam-se relativas. Mário
Cesariny e seus companheiros promoveram agitações em Portugal uns dez ou quinze
anos antes de nós nos movermos nessa direção – e até depois: as reuniões no
Café Gelo foram até 1963, quando já promovíamos anarquia por aqui. Ao lermos Le
Surrealisme Même e La Brèche (onde seríamos resenhados, Sérgio Lima, Roberto
Piva e eu, em 1965), [7] ao
comprarmos os volumes da Oeuvre Complète
de Artaud à medida que saíam pela Gallimard, éramos atualizados, com relação ao
ambiente cultural brasileiro, e não atrasados. Até hoje, promover a leitura de La Liberté ou l’amour! de Robert Desnos
ou Sens-plastique de Malcolm de
Chazal é trazer à tona o que o Brasil desconhece; o novo, independentemente da
publicação originária.
Já foi observado o
caráter negativo do conjunto de 20 ou 30 poetas que figuram como Geração 60 em
São Paulo: nem acadêmicos, nem concretistas, nem de orientação
nacional-populista. Nada de estranho que o mais radical deles, Roberto Piva
(1937-2010), mostrasse a poesia mais impregnada de surrealismo, desde sua
estreia em livro com Paranóia
(Instituto Moreira Salles, 2000 e 2009; primeira edição, Massao Ohno, 1963).
Tal radicalidade já havia sido expressa em 1962, nos manifestos distribuídos em
folhas de mimeógrafo (publicados nas Obras
Reunidas da Globo Livros, três volumes de 2005 a 2008): “Nós nos
manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela
motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo Box” e também
“contra a mente pelo corpo” e “contra a lógica pela Magia”. São o marco inicial
no Brasil de uma relação com surrealismo, não apenas no plano da realização
artística, mas da discussão da relação entre poesia e sociedade.
Piva classificou Paranóia como “beat-surreal”. O termo
pode ser estendido ao restante da sua obra. Sua expressão foi através de
imagens surrealistas. E seu intertexto é beat. Se em Paranóia apropriara-se de passagens de Allen Ginsberg e Gregory
Corso, em obras subsequentes, avançaria sobre o que haviam escrito Michael
McClure, Gary Snyder, Jack Kerouac e Philip Lamantia. Surrealismo e beat foram
as duas grandes rebeliões poéticas do século 20. Suas relações são complexas a
ambivalentes. Pode-se afirmar que a confluência veio a ocorrer na poesia de
Piva.
Sérgio Lima (1939) pode
ser vinculado ao surrealismo como movimento organizado. Ao lançar seu primeiro
livro, Amore (Massao Ohno, 1963),
vinha de Paris e uma participação no movimento francês. Seus esforços para
promover atividade surrealista no Brasil, ao longo de décadas, resultaram em
reuniões e manifestações entre 1963 e 65, com a participação minha e de Piva,
entre outros; a seguir, com Leila Ferraz, Raul Fiker e Paulo Paranaguá, em uma
Exposição Internacional do Surrealismo em 1967 e na publicação coletiva A Phala (que trouxe Cesariny e o
argentino Aldo Pellegrini). Intervenções e atividades entre 1990 e 1996 incluíram
um manifesto, com artistas plásticos e os poetas Juan Sanz Hernandez e Floriano
Martins. Contribuíram para reduzir o alcance das iniciativas de Lima e da sua
contribuição como poeta (especialmente, Alta
licenciosidade de 1985) e artista plástico o tratamento não só autorreferente,
mas permeado por afirmações incorretas, como ao declarar que a dissolução do
grupo de 1963 ocorreu “em função de divergências que passam a ter um certo
vulto (sobretudo por parte de Piva e Willer, mais preocupados com a beat
generation e o pop art)” [8] – isso,
sem minimamente levar em conta o que Piva e eu teríamos a dizer (bastante) sobre
o que ocorreu. Apresentar-se como instância legitimadora é formar um clero ou
burocracia surrealista; e tomar como sua representação grupos e movimentos que,
nesta altura (e não só no Brasil), podem guardar a mesma relação com o
surrealismo histórico (que, ao constituir-se, reuniu os melhores poetas
franceses daquela geração e alguns dos principais artistas visuais do século
XX) que os clubes positivistas com o positivismo do século 19 ou lojas
maçônicas atuais com aquelas do tempo de Elias Ashmole.
Vinculadas a esse ciclo,
publicações de Leila Ferraz e Raul Fiker (O
Equivocrata, Massao Ohno Editor, 1976, reeditado pela Córrego em 2017), a
riqueza imagética de Juan Sanz Hernandes (Biografia
a três, Feira de Poesia, 1979; Horas
queridas, Massao Ohno, 1985) e de Péricles Prade, autor de uma obra extensa
na qual explora todos os matizes e possibilidades da simbologia esotérica, ora
tratando-a como discípulo, ora ironicamente – e apresentando-se,
categoricamente, como um seguidor de Marcel Duchamp.
A publicação de Ser
Infinitas Palavras - poemas escolhidos e versos inéditos (Azougue
Editorial, 2001) de Afonso Henriques Neto (1944), do ensaio e coletânea Cidade vertigem (Azougue, 2005) e Uma cerveja no dilúvio (Sete Letras, 2011) mostram-no à margem da
poesia marginal e demais tendências nas quais é distribuída a poesia
brasileira. Sua visualidade, evidente em títulos como “Abismo com violinos”, “Piano
mudo”, “A água não envelhece”,
“Tímpanos da neblina” permite
observar que, se Francisco Alvim teria sido o Manuel Bandeira da geração
“marginal”, então essa tem em Afonso Henriques Neto seu Murilo Mendes. Mas um
Murilo sem catolicismo, sem nada além da reafirmação do poder transformador da
poesia. Avesso à política literária, é reconhecido, porém pouco citado.
A entrada em cena de
Floriano Martins (1957), desde a publicação da coletânea Escritura conquistada – Diálogos com poetas latino-americanos (Letra e Música, 1998) e reuniões de
seus próprios poemas – Alma em chamas (Letra e Música, 1998), Estudos de pele (Lamparina, 2004) e os
recentes Abismanto (Sol Negro,
2012) em parceria com Viviane de Santana Paulo e o bilíngue Fuego en las cartas / Fogo nas cartas
(publicado na Andaluzia) – além de ensaios e antologias de surrealismo na
América (O Começo da busca,
Escrituras, 2001, Un nuevo continente –
Antologia del Surrealismo en la Poesía de Nuestra América, Monte Ávila,
2008), e, ultimamente, de tudo o que tem saído por seu próprio selo editorial,
ARC, inclusive a reunião de poemas A vida
inesperada, de 2015, além das obras resultantes da produtiva parceria com o
artista plástico Valdir Rocha – tudo isso possibilita considerações adicionais.
Agitar esses temas não é apenas inclinação pessoal, evidente nos poemas de
Floriano. É questão, principalmente, de honestidade intelectual, que se traduz
na orientação dada à Agulha Revista de
Cultura. Reparar omissões, cobrir lacunas, leva a examinar surrealismo.
O elenco de poetas que
pode ser associado ao surrealismo no Brasil ultrapassa os citados aqui. Deve-se
deslocar o foco de um surrealismo militante, episódico, para uma configuração
de obras pautadas pela recusa de amarras formalistas. Isso significa valorizar,
entre os que já pertencem à “geração 90”, a prosa poética de Weydson Barros
Leal (A música da luz, edições
Bagaço, 1997); aquela de Contador Borges (Angelolatria,
Iluminuras, 1998, O reino da pele,
Lamparina, 2003), tradutor e estudioso de Nerval, Sade e Bataille; a tradição
hermética retomada de modo refinado por Jorge Lúcio de Campos (À maneira negra (Sete Letras, 1997). E a
lírica de Sérgio Cohn, desde Os lábios
dos afogados, (Nankin, 1999) até O
sonhador insone (Azougue, 2006), associada à orientação da revista por ele
dirigida, Azougue, e à subsequente editora. Declaradamente influenciado por
Piva, a quem divulgou em várias ocasiões, a ele também cabe o termo
beat-surreal.
Preservando o caráter
coletivo do surrealismo, apresentam-se os integrantes do movimento Decollage,
ativo desde 1998 com Alex Januário, Marcus Salgado e outros. Promoveram
intervenções, temperadas por bastante humor; a mostra Convocação dos Cúmplices
– 80 Anos do Primeiro Manifesto do Surrealismo em 2004; [9] reeditaram Os ossos do mundo de Flavio de Carvalho;
publicaram um boletim; criaram a Edições Loplop (nome de um personagem de Max
Ernst), pela qual saíram, entre outros títulos, Os deuses falam pelos govis de
Pierre Mabille, traduzido por Marcus Salgado, também autor de um recente e portentoso
ensaio sobre Flavio de Carvalho, A
arqueologia do resíduo: os ossos do mundo sob o olhar selvagem (Antiqua,
2013) e Caixa Gris – Collage de Alex Januário. Anunciam mais
lançamentos e manifestações.
A circulação de obras
poéticas no Brasil, beneficiada pela divulgação adicional no meio digital e
edições mais viáveis em livro, permite observar que, quase 90 anos após o
manifesto de Breton, o surrealismo compõe um hibridismo, junto com beats,
outras correntes e autores; em especial, com a leitura de Piva. Isso vale para
autores que comentei recentemente, [10]
como José Geraldo Neres e sua prosa onírica; Chiu Yi Chih; o trio Érica
Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz; Augusto de Guimarães Cavalcanti, com o
vertiginoso Fui à Bulgária procurar por Campos de
Carvalho (Sete Letras, 2012), além de sua recente tese sobre surrealismo em
Campos de Carvalho, Flavio de Carvalho e Jorge de Lima. E, entre outros, Fabrício
Clemente, com Congresso espiritual dos
Ranúnculos (edições Ricochete, 2013) e dos recentes Jeanine Will com Caminhão de mudança (Córrego, 2018) ou
Diogo Cardoso com Sem lugar a voz.
Não se constituem em grupo ou coletivo – mas interagem, inclusive através de
poemas coletivos, estimulados por Paulo Sposati Ortiz, autor de A diferença do fogo.
O ano de 2012 teve as
bem sucedidas encenações de São Paulo Surrealista 1 e 2 pelo Teatro do Incêndio
de Marcelo Marcus Fonseca: a primeira, imaginando Breton em São Paulo e
focalizando seu reencontro com Artaud; a segunda, homenageando Piva.
Completando, o livro de poemas do encenador, Da terra o paraíso (Kazuá, 2013).
Tais publicações e
acontecimentos justificariam otimismo quanto à circulação, não apenas do
surrealismo histórico, mas do que lhe dá sentido: a rebelião, a adesão à poesia
como modo de transformar o mundo?
NOTAS
1. Confronto entre
insurgentes e tropas governistas durante a revolução de 1930, na localidade de
Itararé, fronteira de São Paulo e Paraná, que não ocorreu - governistas desistiram do combate e abriram
caminho para os liderados por Getulio Vargas.
2. Conforme bem
sustentado na copiosa produção ensaística de Luciano Marcos Dias Cavalcanti,
especialmente no livro Metamorfoses de Orfeu: a 'utopia' poética na
lírica final de Jorge de Lima.
São Paulo/Belo Horizonte: Todas as Musas/FAPEMIG, 2015. E na boa dissertação de
mestrado de Bianca Ribeiro, O simbolismo na poesia de Jorge de Lima, UNESP –
Araraquara, 2012.
3. Em 1910, João Cândido
Felisberto liderou uma revolta de marinheiros, diretamente inspirada naquela do
Encouraçado Potemkin dois anos antes, contra maus tratos, especialmente a
aplicação de açoites como punição.
4. Um dossiê sobre Péret
no Brasil na coletânea Amor sublime
(Brasiliense, 1985), organizada por Jean Puyade, tradução de Sergio Lima e
Pierre Clement. Um relato detalhado dessa estada por Jean Puyade em “Benjamin
Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931)”, disponível em http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/benjamin-peret-surrealista-brasil-jean-puyade.pdf
5. Conforme Pagu - Vida e Obra, de Augusto de
Campos, Brasiliense, 1982.
6. Conforme apontado por
Sérgio Lima, “Os anos modernistas de Flávio de Carvalho”, revista Xilo, n. 1, Fortaleza, Ceará, setembro
de 1999.
7. Le surréalisme a São Paulo,
nº 8 de La Brèche - Action Surréaliste,
novembro de 1965.
8. Em http://www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html . Dei um tratamento
mais detalhado a esse tipo de interpretação em http://www.triplov.com/willer/2006/surrealismo-marxismo.htm
9. Registrado em http://odorsodarainha.wordpress.com/2012/02/28/memoria-grupo-decollage-a-convocacao-dos-cumplices/
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EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Isabel Meyrelles (Portugal, 1929)
Agulha Revista de
Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 132 | Abril de
2019
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
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difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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