O nome do poeta francês Benjamin
Péret pela primeira vez chegou ao Brasil – é claro que para um círculo bem mais
amplo do que aquele reduzidíssimo que acompanhava as letras francesas e que já travara
conhecimento com o movimento surrealista – de forma escandalosa: através de um poema
em que o autor de modo desabrido expunha o seu ódio à guerra, ao patriotismo e à
religião, personificando-o na figura do recém-falecido Cardeal Mercier.[1]
O órgão dos empregados em hotéis, restaurantes, confeitarias, bares, cafés e congêneres
da cidade de São Paulo, O Internacional,
dirigido pelos comunistas, traduziu e publicou em suas páginas o poema “À morte
do Cardeal Mercier”:
Vindo de imundas mãos, cheias de pus,
Mercier – cresceste avacalhando
a cruz.
Existia em teu peito enorme chaga
A se desenvolver como uma praga:
Saíram dela as hóstias mal cheirosas
Que depunhas nas línguas gordurosas.
Um dia, Deus à mente te aparece
Como uma nódoa, como um grande escroto:
Desde então, ao fazeres tua prece,
A virgem vias em qualquer esgoto.
Teu pai pegara em armas em Bruxelas,
E em Malines a virgem arrancavas
Das entranhas leprosas das cadelas.
Foste visto a cavalo, num secreta:
Uma latrina podre semelhavas
De brancas hóstias a estourar repleta.
Sentiste Deus como a ferida o pus,
E como tal, Mercier, também Jesus.
Todos têm uma cólera divina,
Meio latente como que ressone;
A tua vinha à melodia fina
Do Miserere ou do hino Brabançonne
Cumpriu-se, enfim, teu sonho infame: a guerra.
As bênçãos que espalhavas pela terra,
Tomando a trajetória das metralhas,
Serviam como estímulo aos canalhas,
Tua água-benta rebentava então
Tal e qual melinita pelo chão.
Foi assim que um asmático ficaste,
Purpúreo como um veado sem o couro;
E assim que os teus cabelos, como um traste,
Enchem da Bélgica as custódias d’ouro.
Eras uma hóstia e os porcos te comeram;
Mas os porcos não vivem, já morreram.
E tu sobreviveste com cinismo,
Graças à obstinação e ao patriotismo [2]
Que preferiste a todos os assuntos.
Mas agora que a morte te levou,
Se o mundo menos pútrido ficou,
As hóstias têm o gosto dos defuntos. [3]
De Victor Maurice Paul Benjamin
Péret (1899-1959), ou simplesmente Benjamin Péret, aquele que André Breton qualificava
como seu melhor e mais antigo companheiro de luta [4],
pode-se dizer que conduziu sua vida pela máxima surrealista que unia Marx a Rimbaud:
“Transformar o mundo e mudar a vida”. Este poeta esteve no Brasil nos anos 1930
e nos anos 1950. Sua primeira passagem (de 1929 a 1931) foi marcada, além da divulgação
das ideias surrealistas, pela militância nas fileiras da Oposição de Esquerda, convencionalmente
conhecida como movimento trotskista. É sua passagem como militante da Liga Comunista
do Brasil que iremos aqui abordar, enfocando especialmente dois “processos” a que
foi submetido, um em terras brasileiras e outro na França.
Péret, como parte significativa
do grupo surrealista francês, após um processo de aproximação com o comunismo,
vai aderir ao PC francês em 1927. Foi, porém, um passo em falso: crendo aderir ao
partido da revolução, logo os surrealistas, particularmente André Breton e Péret,
ficarão de sobreaviso com as “comissões de controle” a que eram submetidos a fim
de abjurar aquela “heresia política e cultural” [5].
Quando, em fins de 1927, Pierre Naville volta de Moscou convencido
que a Oposição de Esquerda era mesmo aquela ‘reserva de ouro da Revolução Russa’,
como dirá Panaït Istrati, Benjamin Péret estará atento ao que vem desta minoria
que, atendendo ao chamado e ao exemplo de Trotsky, não apenas se recusou a capitular
perante o secretário-geral do PCUS, mas não parou, ao mesmo tempo, de desenvolver
suas próprias teses, seu próprio programa de orientação e de salvação da revolução,
mais do que nunca ameaçada pelas palavras de ordem e pelas manobras dos defensores
do 'socialismo num só país'. De fato, desde essa época, o ex-crítico de cinema do
L'Humanité já não alimenta a menor ilusão a respeito do que será a carreira do antigo
seminarista de Tiflis (mais um aspecto que deveria agradá-lo em relação a esse personagem)…
e irá, como resultado disso, agir.[6]
Ao mesmo tempo em que se
aproxima das ideias da Oposição de Esquerda, estreita seus laços com o jornalista
e futuro crítico de arte Mario Pedrosa. O relacionamento de ambos será sempre marcado
por esse duplo aspecto: o pessoal/familiar e o político (no qual sempre permanecerão
dentro do campo das ideias de Leon Trotsky). Em Paris, em 1927, casaram-se Péret
e a cantora brasileira Elsie Houston; tornando-se, desse modo, concunhado de Mario
Pedrosa, companheiro da irmã de Elsie, Mary. Ambos se conhecerão pessoalmente em
1928 em Paris. Mario Pedrosa havia sido escolhido pela direção do PCB para frequentar
a Escola Leninista de Moscou, mas, no caminho, em Berlim, desiste. Adere definitivamente
à Oposição de Esquerda, cujas posições já conhecia do Brasil. É, também, sob este
duplo aspecto que se pode associar a trajetória de Péret pelo Brasil, de 1929 a
1931, à da seção brasileira da Oposição Internacional de Esquerda, muito embora
os traços materiais de sua militância política não sejam tão abundantes. Porém,
vários depoimentos colhidos com camaradas de Péret são unânimes em destacar a importância
de Pedrosa em seu engajamento político no Brasil.
Pouco antes de viajar ao
Brasil, Péret fez uma tentativa frustrada de entrevistar-se com um dos principais
dirigentes oposicionistas franceses, Pierre Naville -que, destaque-se, integrara
também o grupo surrealista em seus primórdios -para tratar de assuntos políticos
[7].
Péret e Elsie embarcaram para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em princípios
de fevereiro de 1929. Algum tempo depois foi a vez de Pedrosa retomar ao país.
Benjamin Péret e Mario Pedrosa
encontram o Brasil no período final do trabalho de parto da “revolução” de 1930,
que estoura, finalmente, em outubro desse ano, quando a oligarquia paulista dos
“barões do café” é desalojada do poder, depois de 40 anos de domínio político
do país sustentado pelos proventos da exportação do café e por sua direta subordinação
ao imperialismo. Esgotada a fonte de divisas produzidas pela comercialização cafeeira,
em concomitância com a crise mundial do capitalismo que levara ao crack da Bolsa de Nova York no ano anterior,
a oligarquia cafeeira paulista foi colhida gravemente pelo processo debilitante
de sua força política como consequência de seu quase súbito empobrecimento em termos
de expressão máxima da concentração da economia nacional.
Abriu-se, desse modo, o caminho
a novos setores da economia e da política dos outros estados da federação, até
então subordinados à direção do Partido Republicano Paulista, o instrumento partidário
dos fazendeiros de São Paulo, e constantemente discriminados em suas ambições em
face da hegemonia paulista, o que os permitiu organizarem-se e tentarem assumir
o poder.
Mas a isso se opôs a política
do PRP, representado pelo seu elemento mais destacado, o Presidente da República,
Washington Luiz. A burguesia paulista não queria abandonar o domínio da nação. As
oligarquias regionais de Minas e do Rio Grande do Sul, aliadas esporádicas e com
interesses divergentes em torno da tarefa de se substituírem à força de São Paulo,
conseguiram, aos poucos e com numerosos incidentes, estruturar um instrumento
a que denominam Aliança Liberal (AL). Para atrair partidários em todos os campos
da opinião nacional, a AL agitou um programa que prometia voto secreto, anistia
aos presos e exilados (uma reivindicação nacional, pois na época eram milhares os
que sofriam as punições do poder), liberdade de expressão e de organização. A AL
exigia para os estados da federação maior participação no poder central. Mas Washington
Luiz, mediante concessões aos gaúchos, então sob governo de Getúlio Vargas, e perseguições
aos políticos mineiros, conseguiu evitar a queda de seu partido e realizou as eleições
para a presidência da República, indicando o paulista Júlio Prestes para substituí-lo.
Com as habituais fraudes eleitorais daquele período de nossa história, o candidato
de Washington Luiz venceu as eleições. Parte da oposição, inclusive Getúlio Vargas,
reconheceu a vitória de Júlio Prestes. Mas as expectativas das oposições, formadas
por um amálgama de setores políticos regionais, de movimentos que visavam a uma
afirmação nacional, como os “tenentes”, e com a massa dos elementos da pequena
burguesia e de frações do proletariado das grandes cidades, não aceitaram a vitória
do candidato paulista, que foi imediatamente denunciada como fraudulenta. A fração
oposicionista que visava à derrubada do poder por um movimento de força, os “tenentistas”,
remanescentes dos grupos que se originaram nos levantes de 1922, 1924 e da chamada
“Coluna Prestes”, ganhou alento na imposição de sua orientação. Havia conquistado
influência no meio militar e apoio dos grandes conglomerados urbanos, como ficara
demonstrado pelas apoteóticas recepções que Getúlio Vargas obtivera em São Paulo
e no Rio de Janeiro quando de sua campanha eleitoral, em 1929 e 1930.
Não havia, nesse conglomerado
de interesses, uma visão clara da luta de classes. A posição dos movimentos operários
e dos partidos que então ainda não tinham grande expressão, como o PCB, pouco refletindo
da preocupação de dotar seus militantes de instrumentos de análise e ação que refletissem
os direitos reais da massa dos trabalhadores, na sua luta pelos interesses de classe.
Mas, apesar de suas origens
heterogêneas e confusas, dos recuos e dos avanços pelos quais passava a conspiração,
quando ocorre o assassinato de João Pessoa -candidato a vice-presidente na chapa
derrotada da AL -em Recife e é denunciado como um fato político -embora, recorde-se
aqui, tivera razões absolutamente particulares e pessoais –, nada mais consegue
impedir o ímpeto insurrecional dos “tenentes” que exigem solução rápida. A opinião
pública já estava inteiramente dominada pela convicção de que os “tenentes” e Getúlio
Vargas trariam a anistia política aos milhares de exilados e presos, a igualdade
social, a extensão dos direitos constitucionais aos trabalhadores, a liberdade de
imprensa e de organização, a escola livre, o voto secreto, enfim, tudo o que estava
há décadas no centro das reivindicações do povo brasileiro.
Assim, quando em 3 de outubro
iniciam-se os assaltos e os bombardeios às unidades militares de Porto Alegre, que
terminam pela vitória dos insurretos algumas horas mais tarde, na madrugada do dia
4, e quando, no dia 5, todas as demais unidades militares do estado gaúcho já se
haviam rendido aos “tenentes”, a revolução iniciou sua marcha vitoriosa na direção
norte: Santa Catarina, Paraná, São Paulo e finalmente Rio de Janeiro, onde os cavalos
gaúchos foram amarrados ao famoso obelisco. Os movimentos surgidos em outros estados
também obtiveram vitórias rápidas. Estava terminado o processo de modificação do
controle do poder central e concentrador do país. Mas não para benefício das “grandes
massas”, das classes trabalhadoras e exploradas, conforme as promessas de seus
executores, logo transformados em novos tiranos.
Mas o Brasil que Benjamin Péret encontrou não foi
exclusivamente o do terremoto político que deu início à marcha das massas para a
lenta tomada de consciência de seu papel histórico, processo no qual se engajou.
Foi também o Brasil indígena, o país que conservava em seu território povos arcaicos,
totalmente alheios à civilização dos europeus; o país dos incontáveis traços peculiares
de cultura, religiões e rituais primitivos, um mundo que forçava as inteligências
a se aprofundarem em seu conhecimento; que já inspirara o movimento da “Antropofagia”
e, antes deste, a “Semana de 22”, um amálgama de expressões artísticas que confundia
no mesmo caldeirão elementos de classes antagônicas, representantes de movimentos
culturais de corte conservador ou renovador, quando não revolucionário. Artista
já plenamente formado e consciente de seu papel no movimento surrealista, cujo
caráter revolucionário sempre denodadamente afirmou, Benjamin Péret teve a rara
oportunidade de encontrar no seu novo habitat todos os motivos vitais para o deslanche
de uma atividade política e artística que sintetizava adequadamente suas inclinações,
suas preferências pessoais e o cabedal de ideias que formavam sua privilegiada
mentalidade.
Munido de apresentações oferecidas
pelo compositor Heitor Villa-Lobos, o que explica a boa cobertura dada pela imprensa
quando de sua chegada, Péret vem ao Brasil com o objetivo de fazer pesquisas e adquirir
objetos pré-colombianos, realizar um filme documentário e um filme “romanceado”
sobre as lendas indígenas, publicar, como enviado especial, artigos para o Petit Parisien e um livro, e recolher cantos
e músicas populares e dos indígenas[8].
Para realizar tal empreitada pretendia passar pelo Amazonas, Peru, norte da Bolívia,
Mato Grosso, Goiás, via rio Araguaia até o mar. Os recursos, que orçara em cem
mil francos, pretendia obtê-los junto a pessoas como Arnaldo Guinle e outros.
Acolhido pelos modernistas,
sobretudo os ligados à Revista de Antropofagia,
Péret deu início a um trabalho de divulgação das ideias do surrealismo em terras
paulistas durante o ano de 1929 por meio de palestras, artigos na imprensa e polêmicas,
como a que travou com o crítico conservador Raul de Polillo através das páginas
do Diário de S. Paulo.
Mas logo a dura realidade
se impunha. Os empréstimos que aqui pretendia obter para seus projetos acabam não
vindo, o que o conduziu a uma situação material cada vez mais aflitiva. Some-se
a isso o fato de que seus principais contatos na imprensa, Pedro Mota Lima e Danton
Jobim, eram membros ou simpatizantes do PCB e não viam com bons olhos sua posição
de apoio às ideias de Trotsky. Com o agravante de que o PCB atravessava então o
período final de stalinização de sua direção. Processo semelhante, aliás, ao que
já havia testemunhado na França. Evidentemente, Péret não poderia deixar de se manifestar.
Tudo isso se combinou com o desenrolar do processo que levou à chamada “Revolução
de 1930” e como os comunistas brasileiros se posicionaram frente a estes acontecimentos.
Interpretar todos esses acontecimentos
sob o ângulo da análise marxista não era tarefa fácil para os militantes que se
empenhavam em construir um partido revolucionário, inspirado naquele que realizara
a grande façanha histórica da conquista do poder na Rússia. E mais difícil ainda
se afigurava o problema devido à existência de acirrada luta de tendências que dominava
os comunistas, em todos os países: o conflito a respeito dos mais legítimos princípios
da luta revolucionária contra as classes dominantes, e divergências que não mais
deveriam terminar, entre as concepções de partido revolucionário, estado socialista,
burocracia de estado, socialismo num só país, e, principalmente, alianças entre
classes, talvez o fator predominante da cisão profunda e insanável entre trotskismo
e stalinismo. Este já alcançara predomínio internacional nas diversas “seções nacionais”
dos PCs.
A posição do PCB em face
do movimento de 1930 era, quando muito, caudatária e passiva ante as forças que
o realizaram. Mas os membros da sua Oposição de Esquerda, que se haviam reunido
em torno de Mario Pedrosa, dos advogados Rodolfo Coutinho e Castro Rebello e do
gráfico João da Costa Pimenta, aos quais se juntava agora esse francês artista e
revolucionário que era Benjamin Péret, passaram imediatamente a enfrentar a tarefa
de analisá-lo, segundo os princípios do marxismo, mas sem afastar-se da “deformação”
nacional com que os problemas de classe se manifestam nos diversos países e especialmente
nas nações atrasadas.
O fruto desse primeiro esforço
de interpretação da situação nacional, obra que se deve notadamente a Mario Pedrosa
e ao advogado, jornalista e futuro crítico literário Lívio Xavier, intitulado “Esboço
de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, foi publicado em versão
francesa de Benjamin Péret, auxiliado por Mary Pedrosa, no órgão da Oposição de
Esquerda da França, La Lutte des Classes,
de fevereiro-março de 1931, e serviu, durante muitos anos, como texto-base para
o Secretariado Internacional da Oposição de Esquerda sobre o Brasil. (O original
português desse texto, que foi publicado em A Luta de Classe nº 6, foi confiscado pelo governo, perdendo-se, assim.
Isto obrigou a uma re-tradução do texto [9].)
Num dos trechos mais significativos,
o “Esboço” afirmava, ao examinar o papel das oligarquias regionais (que tanta importância
desempenharam em 1930): “Estas oligarquias têm cada vez mais necessidade do poder
federal e isso na medida em que o estado se fortalece e se centraliza e que o capitalismo
transforma a base econômica sobre a qual elas se sustentam. Daí a luta constante
pela presidência da república. O levante atual marca um momento desse processo.
Os estados revoltados procuram resolver pelas armas a violenta contradição que opõe
a forma política federativa ao desenvolvimento pacífico das forças produtivas. A
burguesia brasileira procura uma forma conciliadora entre a tendência à centralização
do governo e a forma federativa, garantia da unidade política do Brasil”.
E, nas suas linhas finais:
“Mas, seja qual for o resultado da luta atual, a unidade do Brasil mantida pelo
domínio da burguesia será garantida na razão direta da exploração crescente das
classes oprimidas e do achatamento sistemático das condições de vida do proletariado.
O grau mais ou menos elevado de sua consciência de classe, o tempo mais ou menos
longo que levará para formar-se decidirão da sorte dessa unidade, neste momento
impossível dentro dos estritos limites capitalistas do estado burguês nacional”.
Apontando como errôneas e
falsificadoras as interpretações do movimento de 1930 como uma “vitória das massas
exploradas”, os trotskistas brasileiros apontaram com justeza, como a história demonstrou,
que a aliança de classes não conduz senão a derrotas e maiores sofrimentos.
Este sumário panorama nos
apresenta alguns elementos que o levaram a engajar-se mais ativamente na militância
nas fileiras da Oposição de Esquerda brasileira. E mais: acresça-se outro fator
de ordem pessoal – Elsie Houston ficara grávida e ambos decidem que a criança deveria
nascer no Brasil. Em 21 de agosto de 1931 nasceu Geyser Péret, no Rio de Janeiro.
Em 21 de janeiro de 1931
(aniversário da morte de V. I. Lênin), na sede da Associação dos Empregados do Comércio
de São Paulo, reuniram-se nove militantes para fundar a Liga Comunista do Brasil,
seção brasileira da Oposição Internacional de Esquerda. Entre eles, sob pseudônimo
de Maurício, estava Benjamin Péret.[10]
Nesta reunião adotaram-se também como seus os estatutos da Liga Comunista francesa,
resolveu-se que a sede da Comissão Executiva (CE) seria São Paulo e elegeu-se sua
direção. Além disso, elaborou-se o primeiro manifesto da Liga, onde se afirmava
que a “revolução de outubro de 1930” mantivera a unidade nacional burguesa à custa
de uma maior opressão dos trabalhadores, unidade essa que se dava “num país em que
o desenvolvimento das forças produtivas, nos diferentes estados, se faz desigualmente,
acelerando o processo de desagregação pela invasão do capital financeiro internacional”,[11]
agravando a dependência do Brasil em relação ao imperialismo. Por meio do manifesto
foi lançada a palavra de ordem de “assembleia constituinte”, com o objetivo de “aprofundar
o movimento iniciado em outubro de 1930 e dar um programa político às massas que
então davam mostras evidentes de interesse político. O PCB, porém, boicotou essa
“…palavra de ordem, e o resultado foi o refluxo dessas massas, caídas de novo no
desinteresse político habitual, e a consolidação das posições do novo governo”.[12]
Na assembleia de constituição
da Liga Comunista do Brasil, Péret fora eleito para integrar a Comissão de Agitação
e Propaganda, coordenada por Lívio Xavier, encarregado de “agitprop” na CE. Nesta
época, a militância de Péret se dava em um campo organicamente mais restrito. De
um lado, havia o fato de ser estrangeiro num período de nossa história em que houve
uma sistemática perseguição a militantes do movimento operário originários de outros
países, com o fim de deportá-los. Isto o obrigava a se expor ao estritamente necessário.
E, de outro, suas relações nos meios intelectuais e a autoridade que neles detinha
faziam com que o campo da cultura fosse um espaço privilegiado de sua atuação.
Algumas propostas por ele
feitas atestam tal atuação. Logo após a “Revolução de 1930”, começam a ser exibidos
aqui filmes mais explicitamente políticos, sobretudo os da escola soviética. Péret,
como ex-crítico de cinema, propusera em reunião de 1º de fevereiro de 1931, a criação
de “uma cooperativa cinematográfica, para a exibição de filmes revolucionários”.
Outra proposta de Péret,
apresentada na mesma reunião, fora a de que ele escrevesse um folheto, “em linguagem
popular”, sobre os acontecimentos de outubro de 1930, apresentando, ao mesmo tempo,
os pontos de vista da Liga Comunista. Tal sugestão foi aprovada. Chamamos a atenção
para o fato de que a avaliação de um episódio de vulto da luta de classes brasileira
tenha sido deixada a Péret, unanimemente. Isto é extremamente revelador do respeito
que gozava nas fileiras da Liga, pois algo que não faltava nas reuniões da direção
da Liga era franqueza (e com frequência).
A partir de abril de 1931
ocorreu uma ampliação, um salto qualitativo, nas atribuições de Péret, com sua ida
ao Rio de Janeiro.
O grupo da Oposição do Rio,
após outubro de 1930, ficou desarticulado. Com a fundação da Liga, Pedrosa fica
encarregado de reorganizá-lo. O trabalho, no entanto, evolui num ritmo mais lento
que o desejável. Na reunião da CE de 1º de maio de 1931 discutiu-se a vinda de Pedrosa
para São Paulo. No entanto, ela ficara condicionada ao esforço de deixar minimamente
articulada a seção carioca. Tal tarefa foi finalmente concretizada em 24 de abril,
quando se organizou o primeiro núcleo da Liga na antiga capital (que reagrupava
vários militantes do antigo Grupo Comunista Lênin), reunindo sete militantes, além
de Péret.[13]
É importante esclarecer que a data assinalada na “Papeleta de Adesão” de Péret (24-4-1931)
reproduzida na obra de Courtot[14]
serve apenas para assinalar a fundação da seção carioca, já que sua adesão, como
vimos, se dera bem antes.
Algum tempo depois, Péret,
que, além de Maurício, também usava como identificação os números “6” ou “7”, já
que os militantes cariocas adotavam então números ao invés de nomes de guerra,
assume as funções de secretário do Comitê de Região.
Sua primeira atividade como
dirigente foi de estruturar organicamente a região: “Tenho – afirmava Péret – um
monte de coisas para fazer aqui para o 1º de maio. E as coisas ainda estão em desordem
por aqui. É impossível, por exemplo, fazer com que as pessoas cheguem na hora marcada.
Você pode imaginar quando se trata de algo mais sério… A discussão que você pediu
para fazer vai começar somente amanhã. Certamente serão necessárias várias reuniões
e não poderemos enviar o resultado antes de dez dias pelo menos”.[15]
Na tentativa de reverter
este quadro são discutidas e propostas algumas atividades. No campo da formação
dos militantes toma-se a iniciativa de dar cursos, dos quais um dos primeiros é
o sindical, que seria ministrado por Wenceslau Escobar de Azambuja, em julho.
Outro ponto é o da criação
de um órgão de imprensa regional, O Bolchevique,
com o objetivo de acompanhar os acontecimentos de “atualidade proletária: greves,
manifestações etc.”, e destinado, de acordo com Péret, a um universo maior que o
“de militantes já com certa educação revolucionária”, que era o de A Luta de Classe, órgão oficial da Liga.
Além disso, “no que concerne aos custos deste jornal, creio que as despesas que
ele ocasionará não provocarão nenhum prejuízo à Luta, pois encontraremos recursos para este jornal onde não poderíamos
encontrá-los para Luta”.[16]
Embora firmemente defendido por Péret, a direção da Liga rejeitou categoricamente,
argumentando dificuldades financeiras e ponderando que a atividade jornalística
da organização deveria ser feita por meio de A Luta de Classe[17]
(mas a ideia acabou se concretizando algum tempo depois da expulsão de Péret: em
1932 saiu o primeiro número de O Bolchevique.).
No entanto, esse processo
de reorganização encontrou dificuldades em virtude das precárias ligações entre
o Rio e a CE instalada em São Paulo. Várias vezes Péret manifestara-se em relação
a isso: “A culpa deste imbroglio não é
nossa, mas de vocês, que não comunicam quase nada do que se passa aí. É preciso
que adivinhemos literalmente”.[18]
Ou, então, iradamente: “Estamos aqui de novo de relações cortadas com vocês […]
Isto não é ligação, não é nada”.[19]
Exemplo dessa dificuldade
de comunicações é o que ocorreu envolvendo a Gráfico-Editora Unitas. Esta editora
era propriedade de um militante, que permaneceu pouco tempo na Liga, Salvador Cosi
Pintaúde. Foi pela Unitas que se publicaram quase todos os textos de Trotsky no
Brasil durante os anos 1930. Foi também por seu intermédio que o projeto de publicações
marxistas ideado pela Liga teve vazão. No entanto, antes que isto ficasse estabelecido
no nível da Liga, a edição de livros e folhetos era feita através da arrecadação
de fundos com simpatizantes. Foi assim que, em determinado momento, por meio de
Luiz Carlos Prestes, que ainda não havia aderido ao PCB, foi possível obter a edição
de sete obras, além da edição do Manifesto Comunista, “paga por Prestes, mas saindo
como edição ‘Luta de Classe’”.[20]
Isto até a aparição do livro da Unitas No
caminho da insurreição, coletânea de textos de Lênin escritos entre setembro
e novembro de 1917, com tradução de Aristides Lobo. A Unitas e a Liga entraram
em acordo para a publicação de seu plano de obras, no qual trabalhariam Lívio Xavier,
Mario Pedrosa e os jornalistas Aristides Lobo e Victor de Azevedo. Além disso, a
difusão das obras também contaria com o apoio da estrutura organizacional da Liga.
Mas para os militantes do Rio nada disso foi comunicado. Foi preciso que adivinhassem,
como disse Péret. Ele se queixava de que isto provocara trabalho inútil na corrida
atrás de editores e na tradução de algumas obras. Em função disso, decidiu-se enviar
um representante do Rio, Wenceslau Escobar de Azambuja, para acertar a situação.[21]
Por intermédio das cartas
de Péret passavam os problemas burocráticos do dia-a-dia da seção do Rio, e o acompanhamento
da luta de classes naquela cidade, sobretudo a violenta repressão dirigida pelo
governo provisório de Getulio Vargas contra o movimento operário, da qual Péret
também seria uma das futuras vítimas. Dando notícias sobre as prisões e a libertação
dos militantes comunistas, como Octavio Brandão e Roberto Morena – destacados dirigentes
do PCB –, Péret tentou articular um movimento de solidariedade aos presos, nada
conseguindo, entretanto. A censura à imprensa e o clima pesado e tenso dificultavam
tudo. Péret chegou a anunciar uma visita à Detenção, juntamente com Octaviano Galvão,
para 18 de setembro. Tal visita, certamente, despertou a atenção da polícia, se
é que ela já não estava atenta à presença e atuação de Péret.[22]
Algum tempo depois, em 1933,
este período da vida da Liga fora assim avaliado: “Em consequência da política
estéril e sectária do PC, as massas um instante despertadas refluíram novamente,
e começou então a reação de parte da burguesia de São Paulo contra o novo governo
ditatorial. O resultado dessa oposição e da ausência lamentável do Partido Comunista
foi a repressão que se abateu sobre o movimento político proletário, atingindo
seu ponto culminante com a deportação para o estrangeiro de muitos militantes daqui
[São Paulo] e do Rio. […] A atividade ficou assim quase suspensa, limitando-se
a lançar alguns manifestos contra a reação e as ligações entre os membros restantes.
[…] O desejo de ver a nossa organização crescer nos levou a facilitar demais o
recrutamento: o resultado foi que a maioria desses novos aderentes, sem uma perfeita
consciência do papel de nossa fração, não pôde demorar-se dentro da organização,
ora por falta de qualquer senso organizatório, ora por incompreensão ou ausência
da educação política necessária para um militante da Oposição de Esquerda”.[23]
É também por intermédio da
correspondência de Péret que podemos acompanhar a conclusão da obra, que seria
o pretexto para sua expulsão do país: O Almirante
Negro. Impressionado com a história da revolta dos marinheiros, em 1910, para
acabar com os castigos corporais na Marinha, e que foi liderada pelo marinheiro
negro João Cândido, Péret decidiu escrever uma obra sobre o tema, tendo como pano
de fundo a luta de classes daquela época e estabelecendo um paralelo com a revolta
do encouraçado Potemkin na Rússia de 1905.[24]
(Aliás, não foi mera coincidência o fato de Péret ter prefaciado uma obra sobre
a rebelião do Potemkin[25]
[em anexo], publicada graças aos esforços da Liga, com tradução de Aristides Lobo.)
Para isso, valendo-se das amizades conquistadas enquanto intelectual, Péret conseguiu
ter acesso aos arquivos das forças armadas para realizar suas pesquisas. O seu principal
“protetor” neste acesso fora um amigo de Mário Pedrosa e de Lívio Xavier, Antenor
Navarro, ligado ao movimento tenentista e que fora nomeado interventor pelo Governo
Provisório no Estado da Paraíba.
Em carta de 12 de maio de
1931 anunciava “que estou prestes a encerrar o trabalho de pesquisa”, mas em 9 de
junho constatou que:
Imaginava haver terminado minhas pesquisas para O Almirante Negro, mas há um documento que quero ver e que está
nos arquivos secretos do Ministério da Guerra e gostaria de vê-lo, mesmo me servindo
do amigo de Lívio (Xavier) e Mario (Pedrosa) que chegou por estes dias da Paraíba.
Farei tudo o que puder para copiar este documento, se o conseguir, isto dará uma
história formidável, pois há aí certamente coisas formidáveis, infâmias de primeira
ordem.[26]
Não se sabe se conseguiu
copiar nem qual era este documento, mas o fato é que em princípios de setembro
Péret anunciava estar enviando o manuscrito completo para São Paulo com vistas à
sua publicação.
Até o momento não se pôde
recuperar todo o manuscrito, mas a descoberta de umas poucas páginas, quatro para
sermos precisos, encontradas entre alguns papéis por ele aqui deixados e que foram
apreendidos pela polícia em 1937 e anexados ao processo movido pelo Tribunal de
Segurança Nacional contra Mario Pedrosa, nos permitiu retirar a carga mitológica
que pesava sobre O Almirante Negro. Talvez
estas páginas fizessem parte de uma cópia do manuscrito que foi preservada entre
os camaradas brasileiros de Péret. Em um postal de 1933 conservado no acervo de
Lívio Xavier, Elsie Houston instava a que Aristides Lobo e Xavier pressionassem
Salvador Pintaúde para sua publicação pela Unitas[27],
o que acabou não ocorrendo.
Estas quatro páginas não
estão em sequência, impedindo a exposição completa de uma ideia. Citemos aqui algumas
palavras daquilo que seria provavelmente a conclusão, para termos a dimensão de
sua força:
Mas a grande importância da revolta foi a de mostrar aos oficiais
que os marinheiros sabiam querer e obter o que desejassem e se na sua luta eles
cometeram um erro, eles o levariam em conta no futuro e saberiam que a palavra,
a promessa de um político burguês, de um oficial, não vale absolutamente nada, que
só há o direito que se apóia sobre a força e da próxima vez não se deixariam desarmar
por vãs promessas, e, apoiados pelos operários revolucionários, que desta vez não
mais se contentariam em lhes manifestar uma platônica simpatia, mas apoiariam suas
reivindicações mais radicais através da greve geral revolucionária, levando consigo
o exército e os camponeses à conquista do poder, realizando a completa emancipação
da classe operária.[28]
Em 28 de novembro de 1931
Péret, juntamente com o gráfico João Matheus, foi preso, tendo sido com eles apreendidos
os arquivos da Liga do Rio de Janeiro. A prisão dos dois não foi noticiada devido
à censura à imprensa, que era impedida, como dizia Péret, até de publicar a palavra
“comunismo”. Péret ficou dois dias preso na 4ª Delegacia Auxiliar, incumbida dos
chamados crimes políticos, antes de ser recolhido à Casa de Detenção, em 30 de novembro.
De acordo com informação
existente em seu prontuário conservado nos arquivos da Polícia Política do Distrito
Federal foram apreendidos com Péret um exemplar do livro O Encouraçado Potemkin, um exemplar do livreto editado pela Liga Comunista
Os objetivos do proletariado na revolução,
de autoria de Lenin, algumas fotografias e reproduções fotográficas e “um maço de
correspondências, cartões, papéis, etc.”[29]
Curiosamente, ao contrário do que era prática usual da repressão, nenhum desses
documentos foi preservado pela Polícia Política e tampouco foram anexados ao seu
processo de expulsão. Mesmo assim é lícito supor-se que talvez a repressão tenha
encontrado o manuscrito d’O Almirante Negro.
Mas, com certeza, foram encontradas as cópias das cartas de apresentação de que
fez uso para ter acesso a vários arquivos do Estado brasileiro, o que permitiu que
a Polícia conseguisse estabelecer as finalidades de sua pesquisa. Isto deve ter
deixado profundamente irritadas as autoridades brasileiras, especialmente as da
Marinha, que, aliás, até hoje têm dificuldades em fazer seu ajuste de contas com
o episódio da Revolta da Chibata. O chefe de Polícia do Distrito Federal, João Baptista
Lusardo, em um ofício reservado dirigido ao ministro da Justiça e Negócios Interiores,
deixa muito clara esta irritação e amplifica a ação de Péret, transformando-o no
chefe supremo da Liga Comunista do Brasil e, em particular, a sua pesquisa sobre
João Cândido e a revolta da armada de 1910 em um episódio de “conhecer dos segredos
da defesa e da segurança nacionais”. Apesar da longa extensão, vale a pena transcrever
o documento em sua integridade para atestarmos isto:
Rio de Janeiro, 1 de Dezembro de 1931
Exmo. Snr. Ministro da Justiça e Negócios Interiores
Rogo se digne V. Ex. de providenciar no sentido de ser expulso
do território nacional, como sugere a 4ª Delegacia Auxiliar, o cidadão francês Benjamin
Péret, filho de Paul Péret e de Lucie Rabreau Péret, de 32 anos de idade, casado,
escritor, domiciliado nesta Capital, à rua Carvalho Monteiro nº 42, casa VII, o
qual é elemento perigoso à ordem pública e nocivo à segurança social, em virtude
da larga propaganda comunista que vinha desenvolvendo nesta cidade.
Verdadeiro agente internacional de ideias subversivas, Benjamin
Péret chegou a ser entre nós o sacerdus magnus e verdadeiro orientador da Liga Comunista, filiada à Oposição Internacional
de Esquerda, cujos membros assumiam o compromisso de “orientar a atividade revolucionária
de acordo com os ensinamentos de Marx e de Lenine e de lutar até o fim pela vitória
da Revolução Proletária Internacional no setor brasileiro da luta de classes”.
Não se tratava, pois, de simples orientação intelectual, sem
objetivismo prático. Pelo contrário, Péret levava a sua atividade subversiva às
raias da maior audácia. Bastante é frisar que em seu poder foram apreendidas cartas
de apresentação dirigidas aos arquivistas e bibliotecários da Guerra e da Marinha
e do Palácio do Catete, o que lhe evidencia os perigosos propósitos de entrar no
conhecer dos segredos da defesa e da segurança nacionais. Demais, em sua residência
foi apreendida uma máquina rotativa, tipo mimeógrafo, onde eram impressos boletins
de agitação nos meios proletários e militares.
Claro parece, portanto, que Benjamin Péret, preferindo ao labor
probo e pacífico uma atividade subversiva da ordem pública e da organização social
do país que o amparou e acolheu, se tornou passível da sanção da medida estatuída
no § 33 do art. 72 da Constituição Federal.
É o que venho solicitar de V. Ex.[30]
O resultado do pleito foi
o esperado:
O chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos
do Brasil
Considerando que o francês Benjamin Péret, conforme foi apurado
pela Polícia desta Capital, se tem constituído elemento nocivo à tranquilidade pública
e à ordem social, resolve expulsá-lo do território nacional.
Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1931, 110º da Independência
e 43º da República
Getulio Vargas
Osvaldo Aranha[31]
Em 30 de dezembro Péret foi
embarcado no navio “Siqueira Campos”, com destino ao Havre.
Quinze anos mais tarde este
decreto ainda o perseguiria, levando-o à cadeia novamente em 1956, quando de sua
segunda vinda ao Brasil. Neste meio tempo, a repressão brasileira, deixando marcado
o seu rancor com o audacioso francês, ainda fez questão de envolver o nome de Péret
numa rocambolesca e confusa trama que acabava desembocando na execução de Elza Fernandes,
companheira do ex-secretário geral do PCB Antônio Maciel Bonfim, a mando da direção
do PCB em 1936.[32]
Após seu retorno à França,
Péret dirigiu um pedido de adesão à Liga Comunista francesa (com a qual se mantivera
em contato por intermédio de Pierre Naville), mas, diante de uma tentativa obscurantista
de impedir o seu ingresso nas fileiras da organização francesa, voltou-se para o
grupo oposicionista do 15º Distrito, onde foi admitido em 11 de novembro de 1932.[33]
A respeito desta obstrução
novos elementos permitem esclarecer a questão, além de se ter uma dimensão de seus
ecos no Brasil.
Em carta aberta de 19 de
março de 1932, Péret expôs a situação. Contou que, após ser expulso do Brasil,
escreveu a Naville pondo-se à disposição da Liga francesa. Naville pediu-lhe a
redação de um relatório sobre a situação brasileira, no que foi prontamente atendido.
Algum tempo depois foi procurado pela direção, que lhe informara ser impossível
pertencer à Liga e ser surrealista ao mesmo tempo. E que, para continuar como militante,
Péret deveria denunciar publicamente o surrealismo. Acusando tal iniciativa de
sectarismo stalinista e Naville de caluniador e intrigante, Péret defendeu o surrealismo
e negou-se a aceitar a imposição dos dirigentes franceses, não vendo qualquer incompatibilidade
entre ser militante da Liga e ser surrealista. Além disso, protestou contra a direção
em não admiti-lo como militante sem ter havido qualquer discussão a respeito [34].
Ao mesmo tempo, em 24 de
março, Péret também enviou outra carta, mais pessoal, a Lívio Xavier. Nela afirmava
estar revoltado com a situação na França. Em primeiro lugar com Naville, que criou
a situação exposta na carta aberta sem qualquer discussão e com base em informações
falsas, que, inclusive, transmitiu ao Brasil. Péret negava categoricamente ter
assinado qualquer manifesto contra Trotsky. “Tudo isso é mentira”, disse. E quem
poderia falar mais sobre Naville era o médico brasileiro Manoel Karacik, que ficou
algum tempo exilado na França, militando na Liga francesa e que retornara ao Brasil
em junho de 1932.
Em segundo lugar revoltava-se
com a situação interna da seção francesa, da qual traçou um corrosivo perfil:
O pessoal passa o tempo das reuniões a dizer besteiras (no melhor
dos casos, e no pior a se denunciar como contrarrevolucionário). Trabalho prático:
nada… Ao contrário, o movimento está em regressão: 72 membros na região parisiense
na conferência nacional de outubro e agora uns 15… O manda-chuva é o Molinié,[35] mas que manda-chuva! Há gente que é menos besta do que parece,
mas quanto ao Molinié tenho a impressão bem nítida que é o oposto. Enfim, desde
o primeiro contato fiquei revoltado. Só há alguns camaradas que me parecem sérios,
os camaradas judeus. O nosso amigo pernambucano [Manoel Karacik] deve me apresentar
a eles estes dias. Há também um francês e um italiano que me parecem ser bons. Felizmente!
De outro modo seria um desastre!
E conclui que se ele, Péret,
se queixava da qualidade da seção brasileira, naquele momento, diante de tal quadro,
ele era obrigado a dizer “Viva o Brasil!”.[36]
Porém, pouco ou nada valeram
as cartas de Péret diante do excesso de zelo e rigor disciplinar da Comissão Executiva
da Liga Comunista do Brasil. Esta, em resposta à carta aberta de 19 de março, após
destacar algumas afirmações de publicações surrealistas, que no seu entender seriam
“desvios da linha bolchevique-leninista”, em 20 de abril, afirmou: “Achamos, assim,
que a LCF [Liga Comunista da França] está no direito de exigir de você, para a sua
readmissão nas fileiras oposicionistas, uma dessolidarização nítida com esses textos,
ao mesmo tempo em que uma reafirmação pública, da parte do cam[arada], da justeza
da linha política da Oposição de Esquerda”.[37]
Além disso, a discussão sobre
o caso Péret foi levada às bases da Liga, como se pode verificar nas atas de reunião
do Grupo de Bairro nº 2, de 24 de maio. Após a leitura da carta aberta de Péret
e da resposta da CE, o secretário do GB2 propôs que se escrevesse uma carta a Péret
apoiando a posição da Liga francesa. Afirmava-se que o surrealismo era uma arte
individualista e que seus aderentes não davam importância à disciplina. Ao que outro
militante, de modo muito cuidadoso, para não ferir certas suscetibilidades, ponderava
que o surrealismo aceitava o marxismo, sendo possível conciliá-los. Mas logo retornou
à “linha política” e afirmou que Péret faltou à disciplina da Liga, que devia controlar
qualquer publicação feita por seus militantes. Propôs apoiar simplesmente a carta
de resposta da CE e dirigir outra a Péret. Proposta aceita unanimemente, o GB2 enviou-lhe
o seguinte texto: “Em reunião de hoje, o nosso grupo examinou o vosso caso com a
Liga francesa. Foram lidos dois documentos: a vossa carta às organizações da Oposição
de Esquerda e a resposta que vos foi enviada por nossa CE. Analisando detidamente
a questão, resolvemos, baseados nos referidos documentos, apoiar a decisão do nosso
órgão central dirigente, isto é: uma declaração pública de vossa parte reafirmando
inteira solidariedade com o programa e a tática da Oposição Internacional de Esquerda”.[38]
O resto já se sabe: Péret
não faz qualquer declaração, conseguiu sua entrada e teve de engolir o seu “Viva
o Brasil!”…
ANEXO
Prefácio
Este não é um livro como os outros. A advertência
que precede estas linhas já vos disse que o “Encouraçado Potemkin” foi realizado
em perfeito acordo com os arquivos czaristas. É dizer que foi banido dele toda literatura.
Assim não se espere achar uma dessas histórias banais que uma chuva de asneiras
fez germinar – como se fosse uma espécie de mofo mental – nos cérebros poeirentos
dos profissionais do romance.
É a vida! A vida abominável
dos marinheiros, filhos do povo, a quem
os oficiais, filhos dos nobres, tratavam
pior que aos cães de suas amantes. Podiam mesmo ser fuzilados sem julgamento. E
para que os rostos contorcidos pelas convulsões da agonia não perturbassem a digestão
feliz dos oficiais, estes os cobriam com uma lona.
F. Slang, o autor deste livro
conseguiu seguir passo a passo a ação do filme e traduzir numa linguagem simples
as imagens perturbantes que se desenrolam na tela. Desde o início da revolta, transportada
para as páginas do livro, a emoção atinge de repente o paroxismo, que não se modificará
durante o resto da narrativa. Assim como quando assistimos ao filme ele cessa de
ser uma película cinematográfica para entrar numa realidade imediata, a narrativa
do motim deixa de ser uma simples narrativa para se tornar uma cena à qual assistimos
e da qual participamos. Quantos livros atingem esse fim? Talvez seja o único. De
minha parte não conheço nenhum outro que chegue a me fazer esquecer que estou lendo.
Veem-se, acompanham-se os
marinheiros que voltam da guerra russo-japonesa, cansados e tratados como cães.
Eles não estão satisfeitos. Estão fartos da guerra que dá condecorações aos oficiais
e deixa os marinheiros mutilados e mais miseráveis que antes. Para quem apelar?
Quem tem razão? A Rússia é um imenso comício de milhares e milhares de homens e
mulheres que fazem uma propaganda desenfreada de teorias aparentemente as mais diversas.
Mas todas têm um ponto comum: a autocracia, o poder absoluto do czar deve desaparecer.
É demais; um homem dispõe segundo os seus caprichos da existência de 100 milhões
de outros homens. Chegou a vez dos 100 milhões imporem a sua vontade. O grito da
liberdade está em todas as bocas. Liberdade e Assembleia Constituinte!
*****
Tudo isso mostrará este livro,
atrás do cartaz depositado sobre o cadáver de Wakulintchuk:
– Por uma colherada de sopa!
BENJAMIN PÉRET
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA
| CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada:
José Ángel Leyva (México, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO
CONOSCO
Número 137 | Julho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
[1] Désiré-Félicien-François-Josep Mercier (1851-1926),
sacerdote católico belga, foi arcebispo de Bruxelas, de 1906 até falecer, sendo
elevado a cardeal em 1907. Foi um defensor da resistência belga à ocupação alemã
em 1914.
[2] O autor inseriu aqui a seguinte nota: “Obstinação e patriotismo - Mandamento do Cardeal Mercier durante a guerra,
quando, parafraseando a palavra do seu Cristo – “Não matarás” –, incitava seus compatriotas
à revolta e a matar os alemães.”
[3] PÉRET, Benjamin. “À morte do Cardeal Mercier”.
O Internacional. São Paulo: nº 109, 11-9-1926,
p. 2. Este poema foi publicado pela primeira vez na revista Clarté. Paris, nº 1, 15-6-1926, e foi posteriormente
publicado em livro em 1936, pelas Éditions Surréalistes de Paris, na coletânea de
Péret intitulada Je ne mange pas de ce pain-la.
[4] “Você sabe, caro Mario Pedrosa, que perdi
em Benjamin meu melhor e meu mais velho amigo. Você também sabe que tenho a mais
alta consciência de meus deveres em relação a ele e que há aí um verdadeiro legado
espiritual do qual me sinto pessoalmente responsável.” (Carta de André Breton
a Mario Pedrosa. Paris, 21-10-1959.)
[5] André BRETON. Entrevistas. Lisboa: Salamandra, 1994, p. 132; Maurice NADEAU, Histoire
du surrealisme. Paris:
Seuil, 1946, p. 148-149.
[6] Guy PRÉVAN. “Trajectoire
politique d'un révolutionnaire poete” In Jean-Michel GOUTlER. Benjamin
Péret. Paris: Henri Veyrier,
1982, p. 84.
[7] Entrevista de
Pierre Naville ao CEMAP. Paris, 18-1-1985.
[8] Objetivos que se verão de certo modo parcialmente
concretizados em sua obra póstuma Anthologie
dês mythes, legendes et contes populaires d’Amérique, publicado em 1960 pela
editoria parisiense Albin Michel.
[9] O texto está publicado em Fulvio ABRAMO e
Dainis KAREPOVS (Orgs.). Na Contracorrente da História. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 66-82.
[10] Eram eles: o Aristides Lobo e João Jorge
da Costa Pimenta, Lívio Barreto Xavier, João Matheus e Plínio Gomes de Mello, que
formavam a Comissão Executiva, Benjamin Péret, Mario Pedrosa, Manuel Carreira Medeiros
e Victor de Azevedo Pinheiro.
[11] “Comissão Executiva Provisória da Liga Comunista
(Oposição). Aos Trabalhadores do Brasil” In Fulvio ABRAMO e Dainis KAREPOVS
(Orgs.). Na Contracorrente da História. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 59.
[12] Comissão Executiva da Liga Comunista. Relatório
apresentado pela Comissão Executiva à Primeira Conferência Nacional da Liga
Comunista. São Paulo,
maio de 1933, p. 1-2.
[13] São eles: os advogados Octaviano Du Pin Galvão
e Wenceslau Escobar de Azambuja, o gráfico José Caldeira Leal, o sapateiro José
Salvador e os professores Rodolfo Coutinho e Edmundo Moniz.
[14] Claude COURTOT.
Introduction à la lecture de Benjamin Péret. Paris: Le Terrain Vague.
1965. p. 20-21.
[15] Carta de 7 a pessoa inidentificada. Rio de
Janeiro, 12-5-1931.
[16] Carta de Mauricio a Antonio (Aristides Lobo).
Rio de Janeiro, 9-6-1931.
[17] Carta da Comissão Executiva da Liga Comunista
à seção do Rio de Janeiro. São Paulo, 16-6-1932.
[18] Carta de 6 a Lívio (Xavier). Rio de Janeiro,
1-8-1931.
[19] Carta de Benjamin a Lívio (Xavier). Rio de
Janeiro, 7-9-1931.
[20] Ata de reunião da Comissão Executiva da Liga
Comunista de 1-3-1931.
[21] Carta de 6 a Lívio (Xavier). Rio de Janeiro,
1-8-1931.
[22] Carta de Maurício a Antonio (Aristides Lobo).
Rio de Janeiro, 17-9-1931.
[23] Comissão Executiva da Liga Comunista. Relatório
… passim.
[24] A respeito deste episódio da história política
e social brasileira remetemos aos imprescindíveis livros de Edmar MOREL (A Revolta da Chibata: Subsídios para a história
da sublevação na Esquadra pelo marinheiro João Cândido em 1910. 5ª Ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2009) e de Álvaro Pereira do Nascimento (Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio
de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008).
[25] F. SLANG. O Encouraçado Potemkin. São Paulo: Lux, 1931.
[26] Carta de Maurício a Antonio (Aristides Lobo).
Rio de Janeiro. 9-6-1931. Péret refere-se a Antenor Navarro.
[27] Postal de Elsie Houston a Lívio Xavier. Salvador,
4-5-1933.
[28] Processo 495 do Tribunal de Segurança Nacional
(Mario Pedrosa e outros), fls. 44(48).
[29] Prontuário nº 15.574, de Benjamin Péret (Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro).
[30] Ofício reservado do Chefe de Polícia do Distrito
Federal ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro, 1º-12-1931
(Processo de expulsão de Benjamin Péret - nº 117, de 1931, fls. 3-4 - Arquivo Nacional). Grifos do original. O trecho
citado entre aspas foi extraído dos termos de compromisso da papeleta de adesão
à Liga Comunista do Brasil.
[31] Cópia do decreto de expulsão de Péret (Processo
de expulsão de Benjamin Péret -nº 117, de 1931, fls. 5 -Arquivo Nacional). A irritação
com Péret parece ter sido tão grande que o Presidente da República e o Ministro
da Justiça assinaram, em 21 de dezembro, outro decreto de expulsão. Neste decreto
Péret era qualificado de “elemento nocivo aos interesses da República” e não mais
“elemento nocivo à tranquilidade pública e à ordem social”. Em 23 de dezembro um
zeloso e anônimo funcionário notou a dupla expulsão…
[32] “Descoberta no Rio a casa do carrasco vermelho”.
O Globo. Rio de Janeiro, 24-4-1940, p.
1 e 4. Na primeira página foi publicada uma foto de Péret, extraída de seu prontuário
da Polícia Política.
[33] Isto se passou em meio ao chamado “affaire
Aragon”, no qual os surrealistas franceses recusaram-se a aceitar as imposições
antissurrealistas feitas pelo Partido Comunista francês. Com o apoio de Marcel Fourrier,
Péret acabou admitido.
[34] Benjamin Péret. Carta aberta à Liga Comunista
- Aos camaradas do Brasil, aos camaradas
da região parisiense, à CE e ao Secretariado Internacional. Paris, 19-3-1932.
[35] Péret refere-se, grafando de maneira jocosa
e deliberadamente errônea o seu nome, a Raymond Molinier (1904-1994), que começou
a militar no Partido Comunista francês em 1920, do qual foi excluído em 1924. Em
1926 ligoiu-se à Oposição de Esquerda. Foi Diretor do Instituto Francês de Reembolso.
Foi líder da chamada “ala marxista” e passava por “homem de confiança” de Leon Trotsky.
Rompe com Trotsky em 1935 e funda o Partido Comunista Internacionalista. Durante
a II Guerra refugia-se na Inglaterra e depois na Argentina. Após o final da Guerra
retornou à França, onde no final de sua vida militou na Liga Comunista Revolucionária.
[36] Carta de Maurício a Lyon (Lívio Xavier).
Paris, 24-3-1932.
[37] Carta da Comissão Executiva da Liga Comunista,
assinada por Francisco (Victor de Azevedo), a Benjamin Péret. São Paulo. 20-4-1932.
[38] Ata de reunião do Grupo de Bairro nº 2, de
24-5-1932.
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