Benjamin Péret (1899-1959), escritor francês,
não é muito conhecido no Brasil, sobretudo se o compararmos a André Breton (1896-1966).
Mas ambos compartilharam, desde o início dos anos 1920, o compromisso com o movimento
surrealista. Assim como Breton, Péret permaneceu ligado ao movimento até o fim da
vida, assinando todos os manifestos e declarações. Foi um dos editores da revista
La Révolution Surréaliste (1924-1929),
publicada pelo grupo liderado por Breton, e ao longo da vida e logo após sua morte
teve lançados 12 livros de poesia e alguns de prosa, dos quais muitas peças já haviam
sido divulgadas em publicações surrealistas. Seus textos, alguns compostos com o
método da escrita automática, são povoados de referências e linguagens que encontramos
em quadros e filmes surrealistas de outros artistas. Sua literatura é ainda permeada
por seu envolvimento em atividades políticas, sobretudo nos anos 1920 e 30: movimentos
comunistas, Guerra Civil Espanhola, resistência à Segunda Guerra. O poeta viveu
três vezes fora da França: na Espanha, no México e no Brasil (Bédouin, 1973; Ponge,
2006; Palmeira, 2000).
Este texto dedica-se a explorar alguns aspectos
de sua passagem pelo Brasil entre 1929 e 1931. Mais precisamente, interessa-me discutir
os posicionamentos e relatos expostos pelo surrealista francês em uma série de artigos
publicada no jornal paulistano Diário da Noite[1]
entre novembro de 1930 e janeiro de 1931. Intitulada “Candomblé e macumba”, a série
teve como objeto as religiões africanas no Brasil e, como base, observações realizadas
em terreiros cariocas no segundo semestre de 1930 e leituras de trabalhos científicos
e jornalísticos.[2] Procurarei
situar os escritos de Péret no quadro de duas problemáticas. Primeiro, as abordagens
sobre grupos e práticas existentes no Brasil a que se atribuem origens africanas.[3]
Se considerarmos o interesse científico que se forjou em torno desse universo, é
com Nina Rodrigues que se costuma iniciar sua história. Nina Rodrigues, no entanto,
viveu e escreveu em Salvador na passagem entre os séculos XIX e XX. Para o Rio de
Janeiro, os registros pioneiros editados em livro tiveram que esperar os trabalhos
de Arthur Ramos, o primeiro deles lançado em 1934 (O negro brasileiro). Ainda que publicados em um jornal e elaborados
por um literato, os relatos de Péret, como veremos, não estão destituídos de ambições
científicas. Apresentados como observações de campo, eles contribuem para o caudal
de textos divulgados em jornais – alguns dos quais indicarei adiante – que foram
os principais responsáveis pelo trabalho de representação lançado sobre as religiões
afro-brasileiras nas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro.[4]
Eis a pergunta: como Péret observa esses grupos e práticas e como se situam seus
escritos em relação a essa tradição de observadores?
O segundo quadro em que se inserem meus comentários
sobre os textos de Péret dedica-se a uma questão que pode ser depreendida do primeiro.
A observação dos grupos e práticas de origem africana no Brasil fez-se, desde o
final do século XIX, tendo como pano de fundo o problema da formação nacional. As
crenças e rituais africanos – que assumiram diferentes configurações e designações
na América – atraíram a atenção por permitirem levantar a questão do lugar das criações
negras no país que, com a República, declarou formalmente a igualdade de todos os
seus cidadãos.[5] A construção
de uma identidade nacional ganharia um novo capítulo nos anos 1920 com o modernismo
artístico, movimento com o qual, como veremos, Péret dialogou em sua passagem pelo
Brasil.[6]
Para o poeta francês, contudo, “Brasil” não era uma realidade autoevidente e autoexplicativa:
era uma realidade que poderia ser melhor compreendida se se atentasse para os seus
componentes – caso da África –, se fosse inserida em um quadro mais amplo – a América
–, ou ainda se fosse percebida em contraste com seus ideais – a Europa. Tais deslocamentos
podem ser associados às concepções surrealistas, em seus diálogos com outras fontes
intelectuais. O que desejo mostrar é que, mesmo não sendo uma referência precípua
para Péret, as condições e sínteses históricas ocorridas no Brasil teriam um impacto
sobre seus relatos. Isso seria possibilitado pelo fato de as elaborações em torno
do que constituiu e de como se constituiu o Brasil não terem sido matéria apenas
de intelectuais, como os modernistas, mas também de práticas e imaginários religiosos,
sobretudo os que envolviam diásporas culturais. Minha sugestão é que tais elaborações
podem ser particularmente vislumbradas em um dos rituais observados por Péret. Isso
é parte das conclusões deste texto, mas também de seu início, que especula sobre
o que teria trazido Péret ao Brasil.
A relação de Péret com modernistas brasileiros
já foi tematizada em outros estudos (Ginway, 1992; Palmeira, 2000; Ponge, 2004).
Detenho-me neste texto em destacar aspectos, a meu ver compartilhados por parte
do modernismo brasileiro e do surrealismo, que propiciavam um encontro entre arte
e ciência, literatura e pesquisa. Quanto à relação de Péret com a historiografia
acerca das religiões afro-brasileiras, os estudos sobre o autor dedicam menos atenção
a essa dimensão (ver observações breves em Ginway, 1992: 549ss; Palmeira, 2000;
Moura, 1985 apud Puyade, 2005: 18). Ao abordá-la, procuro dar continuidade ao investimento
que tenho feito nesse tema (Giumbelli, 1997, 2002, 2011, 2013). Creio que ainda
temos muito a avançar na recuperação de materiais que nos deem o devido acesso às
condições em torno das quais se processou no sudeste brasileiro a formação das religiões
que a literatura agrupa sob a categoria “mediúnicas” (espiritismo, umbanda, candomblé...)
e se traçou o destino que tomaram as crenças e práticas de origem africana em sua
relação com outras matrizes culturais. As observações de Benjamin Péret merecem
ser agregadas a esses materiais. Os comentários que sobre elas teço neste texto
procuram – ao destrinchar pressupostos, caminhos, concepções e argumentos dos artigos
do poeta francês – atingir um grau de atenção que considero inédito.
Péret
e o Brasil: um poeta que pesquisa
O
Brasil não tinha um lugar destacado no mapa surrealista. E isso literalmente, já
que em 1929 os surrealistas franceses publicaram um mapa do mundo em que continentes,
países e arquipélagos apareciam redesenhados.[7]
No centro do mapa estava o Oceano Pacífico, e várias terras adquiriam um tamanho
avantajado. À esquerda, a Rússia tomava praticamente todo o espaço, ficando a Europa
Ocidental reduzida a alguns traços e pontos. A África, ao contrário do que se podia
esperar, conhecendo-se a atração que Breton e outros tinham pela “arte negra”, não
tinha relevância; ainda assim era nomeada, ao contrário da Europa. À direita do
Oceano Pacífico, as Américas, a do Norte desenhada bem maior que a do Sul. O Alasca
tinha um tamanho descomunal, parecendo pertencer mais à Polinésia do que ao continente
americano. Os Estados Unidos pareciam não existir; abaixo do que seria sua fronteira
sul vinha nomeado o México, em letras grandes. Mais ao sul, abaixo de uma linha
do Equador que serpenteava, jamais retilínea, pelo mapa, as duas únicas denominações
eram as que designavam o Peru e a Terra do Fogo, cujas ilhas tomavam quase a metade
do continente. Nesse mapa que singularizava e engrandecia os ideais políticos e
o culto do exótico pelos surrealistas, o Brasil não era nomeado. Péret, aliás, parece
ter sido o único francês do núcleo duro surrealista a ter visitado as terras tupiniquins
(Ponge, 2004).
O que, então, poderia tê-lo trazido até aqui?
Se o Brasil não atraía os surrealistas, por outro lado havia brasileiros que estavam
interessados no surrealismo e em outros movimentos da vanguarda europeia dos anos
1920. Em Paris, Péret conheceu a brasileira Elsie Houston, com quem viria a se casar
em 1928. O evento foi testemunhado por André Breton e por Heitor Villa-Lobos. Elsie,
filha de pai estadunidense e mãe brasileira, fizera seus estudos na Europa. Havia
se tornado intérprete de composições de Villa-Lobos e uma divulgadora da “canção
popular”. A exemplo de Villa-Lobos, fazia pesquisas nesse campo, que incluía temas
religiosos. Em 1930, já casada com Péret e vivendo no seu país natal, Elsie publicou
na França um livro com letras e partituras de 42 “cantos populares do Brasil”, entre
os quais dois indígenas e dois “temas de makumba”. Em fevereiro de 1934, Elsie apresentava-se
em concerto em Paris, “Cantos Mágicos e Populares do Brasil”, entre os quais figuravam
músicas de rituais religiosos afro-brasileiros. A valorização e o registro de ritmos
populares era uma das marcas de parcela do movimento modernista no Brasil, em especial
aquele articulado pelo Manifesto Antropofágico
(1928). Elsie fazia parte desse círculo, e isso deve ter contado para o interesse
que Péret manifestou por “candomblé e macumba”; tal interesse, em contrapartida,
parece ter impactado o trabalho artístico de Elsie.[8]
O encontro entre Elsie e Benjamin evoca o
tema das relações entre o modernismo brasileiro e o surrealismo francês, que passa
por questões estéticas e políticas, reunindo afinidades e dissonâncias (Ponge, 2004;
Ginway, 1992; Karepovs, 2010). Péret foi bem recebido pelos entusiastas da Antropofagia,
Oswald de Andrade à frente. Entretanto, o mesmo Oswald escrevera, no Manifesto,
que no Brasil já se tinha, antes dos franceses, “a língua surrealista”. Péret despertou
antipatias entre outros modernistas no Brasil, como Mário de Andrade (Ginway, 1992:
545). Em relação ainda a Oswald, o engajamento deste no Partido Comunista Brasileiro
contrastou com os rumos políticos de Péret, que se havia filiado ao Partido Comunista
na França em 1927, mas seguia a linha dissidente no Brasil, o que o aproximava de
Lívio Xavier e de Mário Pedrosa,[9]
com quem fundou um grupo trotskista em 1930. A militância política causaria em 1931
sua prisão e sua expulsão do país, logo depois do nascimento do filho com Elsie.
Em 1955, Péret voltaria ao Brasil, por ocasião do casamento desse filho, e novamente
teria problemas políticos. Pesava ainda sobre ele o decreto de expulsão de 1931,
e ele só pôde deixar o país com a sua revogação, depois de uma campanha de amigos
e intelectuais. Péret ficou cerca de um ano nessa segunda estada no Brasil (Ponge,
2012).
Voltemos então ao final dos anos 1920, e meu
esforço será mostrar como o surrealismo de Péret produziu, em sua incursão pela
América, um projeto de conhecimento, havendo aí um ponto de contato com uma característica
de parcela do modernismo brasileiro. Por meio de cartas enviadas ainda da França,
sabemos que Péret pretendia fazer uma expedição, durante a qual coletaria objetos
e cantos populares e indígenas e realizaria dois filmes. Tinha mesmo em mente uma
rota para a expedição, que se embrenharia pelo Amazonas até o Peru, passando por
Lima e Cuzco, daí entrando novamente no Brasil pelo Centro-Oeste, servindo-se do
Araguaia para alcançar o litoral. Péret levantou várias cartas de apresentação,
mas teve dificuldades em obter recursos. Em agosto de 1929, seus planos já eram
mais modestos: enquanto um postal de Paul Éluard, outro poeta surrealista francês,
lhe indagava sobre o Amazonas, Péret vislumbrava um filme sobre os índios que viviam
em Minas Gerais, Pará e Goiás. Mesmo assim, o projeto da viagem não se realizou,
a não ser em 1955 e 56, quando o poeta foi a Manaus e Belém e a cidades do Nordeste,
e também à região do Xingu, onde conheceu várias aldeias, e escreveu a respeito
alguns artigos. Provavelmente animado por essa experiência, ele concluiu o que seria
a introdução da Antologia de mitos, lendas
e contos populares da América. O livro foi publicado postumamente, em 1960,
mas começou a ser preparado desde 1942, quando Péret vivia no México, já com sua
segunda esposa, a artista Remedios Varo (Palmeira, 2000). Note-se que o interesse
de Péret em 1928-9, quando preparava sua planejada expedição, recaía sobre a principal
“civilização pré-colombiana” – o que explica sua incursão pelo Peru. Nas viagens
de 1955 e 56, eram sobretudo os ameríndios que lhe interessavam, e é fácil constatar
que a grande maioria do material compilado em sua Antologia provém de registros
sobre sociedades indígenas. Isso nos permite concluir que, em Péret, o interesse
surrealista pelo exótico correspondia à busca pelo indígena, o primitivo nativo
das Américas (Courtot, 1999). Em 1930, vendo se frustrarem seus planos de conhecer
esses primitivos, o poeta, que durante sua primeira estada no Brasil ficou apenas
entre Rio de Janeiro e São Paulo, voltou-se para as religiões de origem africana.
O tema, como veremos, lhe impôs uma abordagem política, que estava relacionada à
crítica da religião em chave marxista e freudiana. Com efeito, Péret cultivava um
verdadeiro ódio às religiões e à figura de Deus.[10]
Isso não o impedia de apreciar aquilo que observava nos terreiros cariocas, pois
neles, sobretudo em alguns deles, podia reconhecer o primitivo que tanto buscava.
Eis o que ele escreveu na segunda frase da série de artigos “Candomblé e macumba”:
“Eu as considerarei [as religiões africanas no Brasil], sobretudo sob o ponto de
vista poético, pois ao contrário do que se passa com as outras religiões mais evoluídas,
delas transborda uma poesia primitiva e selvagem que é quase, para mim, uma revelação”
(Diário da Noite, 25.11.1930).
O anúncio de “um ponto de vista poético” levanta
de imediato a questão da natureza do olhar lançado por Péret aos cultos que conheceu.
Na introdução de sua Antologia (Péret, 1960), ele contrapõe claramente um critério
poético a um critério etnográfico – e isso correspondia a certa recusa a uma perspectiva
racionalista, pois o compilador dizia preferir reconhecer o parentesco entre os
mitos que recolhera e a obra que praticavam os poetas. No entanto, não é propriamente
um texto poético que temos a oportunidade de encontrar nos artigos de 1930-31. Afora
algumas passagens, o tom é outro. Podemos dividir os artigos em duas partes. Na
primeira delas, o que lemos é uma “descrição minuciosa” (Diário da Noite, 25.11.1930) do que Péret presenciou em alguns cultos,
com interpolações de referências a autores lidos ou pessoas que funcionaram como
intermediárias de contatos. Em foco estão as cerimônias que Péret frequentou, em
três ou quatro locais, com seus personagens e operações rituais, com poucos elementos
acerca das configurações espaciais e sem preocupações em exaurir a apresentação
do que foi visto. Com esse perfil, são, sem dúvida, descrições. Na segunda parte,
temos quatro artigos com o mesmo título – “As origens das crenças dos negros brasileiros”.
Trata-se de um texto único, dividido em várias edições do jornal, no qual o autor
adota um tom analítico, desenvolvendo sua interpretação sobre as religiões de origem
africana. Na verdade, esse tom já aparece no primeiro dos artigos, mas é interrompido
pelas descrições. Em suma, enquanto a primeira parte corresponde a uma descrição
que lembra as enquetes jornalísticas sobre o tema – como a que João do Rio (2006)
realizara no início do século –, a segunda parte assume o formato de análise erudita
e distanciada. Sugiro que a junção de ambas constitui uma espécie de etnografia.
O texto de Clifford (2011) acerca do surrealismo
etnográfico não menciona Péret. Este, contudo, poderia ser apresentado para corroborar
a tese do historiador estadunidense, de que o surrealismo produziu um modo de conhecimento
objetivo acerca de formas de vida e que isso propiciou diálogos e passagens entre
arte e antropologia. Péret parece jamais ter confessado alguma atração pela antropologia,
e isso não o impediu de produzir relatos a que podemos conferir estatuto etnográfico.
O Brasil não apenas propiciou a ocasião e o campo para o surrealista francês desenvolver
esse conhecimento. Os diálogos que Péret travou durante sua estada com alguns modernistas
apontam para algo compartilhado: além do interesse pelo “popular” que motivava buscas
e viagens, também a possibilidade de trânsito entre distintos gêneros textuais.
Afinal, esse trânsito ocorreu igualmente entre autores associados ao modernismo,
e talvez Mário de Andrade represente o melhor exemplo, como literato e pesquisador
ao mesmo tempo.[11] Saliento,
portanto, que os relatos de Péret acerca das religiões afro-brasileiras dialogam
com essa característica de parcela do modernismo brasileiro, combinando arte e ciência,
poesia e conhecimento.
A dimensão de um projeto de conhecimento não
era estranha ao surrealismo. Ao contrário, pode-se sustentar que ela era parte mesmo
de sua definição. Afinal, o surrealismo se propunha como uma exploração da realidade.
Em 1924, ano do primeiro manifesto do movimento, seus participantes criaram o Bureau
de Recherches Surréalistes. A pesquisa sobre aspectos psicológicos abriu caminho
para outras incursões, sobre dimensões culturais. É disso que trata o texto de Clifford
(2011). No caso de Péret, gostaria de considerar como algo significativo o fato
de que esse projeto de conhecimento foi ativado por conta de sua passagem pelo Brasil.
E o que ele encontrou no Brasil foram artistas e religiosos que estavam formulando
um novo entendimento acerca do que compunha esse pedaço da América. Sem deixar de
levar em conta as fontes europeias, estava em jogo “a vontade de criar e identificar
uma realidade civilizatória tropical própria” (Subirats, 2001: 58), explorando as
potencialidades estéticas e espirituais do ameríndio e do africano. Procurarei mostrar
como essas formulações sobre o Brasil impactaram os relatos do surrealista francês
enquanto Péret exercitava sua sensibilidade poética a serviço de um projeto de conhecimento.
Mas, antes, vejamos no conjunto de textos que constitui o foco deste artigo como
ele se relacionava com as abordagens então existentes sobre as religiões afro-brasileiras.
Péret
e a etnografia das religiões afro-brasileiras
Péret
não disfarça a simpatia por um dos personagens que conheceu, tema de duas das três
imagens que ilustram a série de artigos “Candomblé e macumba”. Os oficiantes descritos
nos artigos são quase sempre identificados por iniciais e nunca há indicação precisa
dos locais de culto. Ao revelar esses cultos, Péret não deixava de ocultá-los, explicitando
sua divergência quanto à política repressiva contra essas práticas que predominava
no período.[12] Tio
F é o herói de Péret, alguém que ele reconhece como “poeta”. Péret descreve quatro
eventos no terreiro desse “babalorixá” e ainda transcreve as duas entrevistas com
ele que fecham a primeira parte dos artigos. Péret acompanhou algumas operações
rituais de Tio F, como os preparativos para “um jantar de santo”, que compreendeu
o sacrifício de galinhas; e também, em outra ocasião, parte de uma cerimônia de
iniciação, que envolveu novamente mais sacrifícios de aves. O sangue é um elemento
recorrente nas descrições, sobretudo quando era manipulado por Tio F. Péret presenciou
vários transes ao som de atabaques e se impressionou particularmente com a dança
de uma negra: “Mas que dança! Religiosa e erótica ao mesmo tempo... O corpo inteiro
se movia. Parecia ao mesmo tempo um gato brincando com um camundongo, uma cobra
e uma flama sacudida pelo vento. Quantas pobres coitadas passam anos saracoteando
em cursos de danças para figurar como estrelas nos bailados e não chegam nunca a
apresentar uma dança tão pura quanto aquela. Foi talvez a única realmente bela que
vi em minha vida. Em qualquer palco da Europa esta dançarina inata teria um sucesso
triunfal, sem precedentes” (Diário da Noite,
28.11.1930).
Transparece nesse trecho o reconhecimento
de uma pureza, e também de uma fisicalidade, que podemos associar à busca de Péret
pelo primitivo. Tio F pertence, segundo o poeta, à Lei de Nagô, que ele contrapõe
à Lei de Angola. Vejamos o que diz em seu primeiro artigo: “Pude examinar de perto
dois ritos: o de Nagô e o de Angola. O primeiro era adotado quase exclusivamente
por negros puros pertencentes à classe operária (...), enquanto que no segundo aderiam
muitos mulatos e crioulos de um plano social mais elevado” (Diário da Noite, 25.11.1930). Esse par é
retomado por Péret na segunda parte da série de artigos, na qual cita uma série
de autores e textos que se preocupou em ler, incluindo Nina Rodrigues. Péret procura
apontar as “nações africanas que forneceram maior contingente de escravos ao Brasil”,
dando destaque à Costa dos Escravos (referidos ao Nagô) e aos povos do Gabão, do
Congo e de Angola (Diário da Noite, 8.1.1931).
Quem representa a Lei de Angola nas observações diretas de Péret é Mãe M. Ele descreve
uma festa de Xangô no terreiro dessa mulher, cuja solenidade e rigidez lhe desagradaram.
Péret ficou impressionado com a “orquestra” que encontrou naquela festa, sobretudo
com o percussionista do atabaque; observou os passos das dançarinas e acompanhou
transes de algumas delas. Sua impressão final é significativa:
Mas
nenhuma dessas danças hipnóticas deu ensejo àquelas cenas selvagens e majestosas
que presenciei no terreiro de Tio F. Davam a impressão de ser um pálido reflexo
daquelas, uma fotografia apagada, guardando apenas, das imagens, o contorno principal.
A civilização passara por ali! (Diário da Noite, 16.12.1930).
Vemos assim como é na Lei de Nagô que Péret
encontra a pureza e a selvageria que o atraíam. A isso corresponde certa poesia
que ele identifica em Tio F, o babalorixá que conversa “em africano” com as divindades
incorporadas e cujas palavras em português ganham uma transcrição que capta sua
fala “errada”. Péret admira o jeito como aprendeu os preceitos de seu culto. Péret
conta histórias que sugerem os poderes de Tio F (inclusive da sua imaginação). Péret
aprecia o vatapá que Tio F prepara em uma lata de gasolina. Duas fotos o mostram
tocando atabaque e agogô, enquanto outra exibe o altar dedicado a Iemanjá em seu
terreiro. Péret registra o modo como Tio F trabalha para infundir força em sua inicianda,
recorrendo à mediação das plantas e dos animais, que se tornam, graças à culinária
e aos sacrifícios, “comida para a cabeça”. Péret se encanta com a conclusão que
Tio F tira de um mito nagô: “Vosmicê nunca viu o raio entrando na terra, nunca ouviu
o barulho da trovoada? Pois é Xangô fugindo na terra e Ogum gritando atrás dele”
(Diário da Noite, 27.12.1929). Essa forma
de relação do humano com a natureza ocorre, segundo comentaristas (por exemplo,
Bédouin, 1973), na poesia do próprio Péret.
Nessa mesma entrevista com Tio F, surge um
assunto que é desenvolvido nos comentários posteriores de Péret. Trata-se da associação
entre as divindades africanas e os santos católicos. Em uma primeira formulação,
Péret recorre ao argumento do disfarce: “para evitar a repressão os negros foram
deste modo levados a encobrir suas crenças com um ligeiro véu de catolicismo” (Diário da Noite, 8.1.1931). Mais adiante,
Péret apresenta uma segunda formulação: teria ocorrido uma “troca de ideias selvagens”
entre as crenças africanas e católicas. Ou seja, os negros perceberam certa afinidade
entre os orixás e os santos, evidenciada pela materialidade que caracteriza a ambos.
“Efetivamente, para os negros, os deuses são homens que viveram, amaram e deixaram
uma descendência. Seus espíritos, seus ‘duplos’ ficam errando pelo mundo, mas a
palavra espírito não tem para eles, como tem para os civilizados, uma significação
imaterial. É uma emanação, com uma vida independente, algo como o ar que se respira”
(Diário da Noite, 15.1.1931).
Péret vai adiante na sua investigação das
palavras, pois apresenta uma discussão sobre a noção de “deus”. Segundo ele, é estranha
aos africanos a noção de um deus imaterial, invisível, distante. Quando ela se faz
presente, é por influência da religião monoteísta, ou vem marcada por uma espécie
de atrofia ritual. Daí a frase que introduz a tese da troca de ideias selvagens:
“Não é por acaso que se chamam [as divindades africanas] ‘santos’ e não ‘deuses’”
( Diário da Noite, 15.1.1931). Note-se
uma diferença fundamental: no catolicismo, os santos estão subordinados a um deus;
nas religiões africanas, os deuses são santos.
Péret quer com isso apontar distinções entre
o que ele mesmo chama de religiões do homem primitivo e de religiões mais evoluídas.
Esse é um tema que ressurge na Introdução à Antologia
do amor sublime (Péret, 1985) e, sobretudo, que atravessa sua Introdução à Antologia de mitos, lendas e contos (Péret,
1960). Para Péret, os mitos – principalmente as interpretações cósmicas, as explicações
que o primitivo oferece para a origem do mundo e para a sua própria origem e natureza
– seriam o primeiro estado da poesia e o eixo em torno do qual ela continua a girar.
É na medida em que expressam um pensamento em modo poético que os mitos lhe interessam.
Com base nisso, ele formula uma homologia entre o poeta e o feiticeiro: ambos são
malditos, um desacreditado por todo tipo de linguagens pobres, outro perseguido
pelas religiões instituídas. Ele sugere então uma oposição entre os mitos e os dogmas
religiosos: de um lado, a exuberância poética e a busca exaltada do maravilhoso
guiada pelo inconsciente e pelo desejo; de outro, os preceitos morais e um mecanismo
de compensação, fabricado para consolar os despossuídos e para prometer-lhes no
além aquilo de que não desfrutam na terra. Assim, enquanto a religião está relacionada
com uma ordem social marcada por desigualdade, os mitos correspondem a uma relativa
homogeneidade de condições sociais. Nessas condições é que se realiza, através dos
mitos, o ideal anunciado por Lautréamont e abraçado pelos surrealistas: “La poésie
doit être faite par tous, non par un”.[13]
Podemos agora voltar aos artigos de 1930-31
e falar de suas conclusões (Diário da Noite,
30.1.1931). Elas assumem um tom político: é preciso ver, diz Péret, nas religiões
africanas, tal como se manifestam na sua atualidade, “uma forma elementar de protesto
contra a opressão que a sociedade faz pesar sobre seus membros, sobretudo sua classe
mais miserável”. Em apoio à sua interpretação, Péret cita as revoltas de escravos
do início do século XIX na Bahia, notando a presença constante de motivações e elementos
religiosos. E insiste que “esse espírito revolucionário das religiões africanas
subsiste em nossos dias”. O autor reserva um último comentário ao catolicismo, afirmando
que a Igreja desempenhou sempre, na política, “um papel ultra-reacionário”, mesmo
que tenha nascido entre os oprimidos. Isso sugere que, para Péret, o componente
teológico ou mitológico é crucial – e somos assim remetidos novamente à diferença
que existiria entre uma religião calcada em um deus imaterial e um culto dirigido
a divindades materiais, cujo número Tio F afirma ser maior que dois mil…[14]
Tendo exposto a estrutura e os principais
traços da descrição e da interpretação de Péret, passo a situar sua etnografia tendo
como referências as abordagens contemporâneas acerca das religiões afro-brasileiras.
Um primeiro ponto relaciona o surrealista francês com o panorama mais local que
caracteriza o Rio de Janeiro. É interessante notar que os autores mencionados ao
longo dos textos, sobretudo aqueles que merecem constar em notas de rodapé, não
tratam especificamente da região sudeste brasileira. Para se movimentar entre terreiros
cariocas, Péret contou com guias que nos textos são citados com menor formalidade.
É o caso de Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, jornalista que o poeta descreve como
“altamente cotado nos meios macumbeiros” (Diário
da Noite, 28.11.1930). Foi Nóbrega da Cunha, segundo o próprio Péret no mesmo
artigo, que reconheceu nas mãos do francês “o livro de Leal de Souza sobre o espiritismo
e a macumba” e indicou um terreiro que é descrito no mesmo livro para ser visitado.
Indo até o tal terreiro, Péret e alguns acompanhantes (incluindo o casal Pedrosa)
descobrem que o pai de santo havia falecido. Depois desse insucesso, um outro guia,
de que falarei adiante, os leva ao terreiro de Tio F. Nóbrega da Cunha e Leal de
Souza estiveram entre os intelectuais que se interessaram pelo campo das práticas
religiosas de origem africana no Rio de Janeiro. Suas descrições são anteriores
àquelas, mais conhecidas, elaboradas por Arthur Ramos, que chegara à capital federal
vindo de Salvador. Nóbrega de Cunha e Leal de Souza publicaram originalmente seus
relatos em jornais cariocas, dando continuidade ao formato consagrado por João do
Rio (2006) para tratar do panorama religioso da então capital brasileira.[15]
Os artigos de Péret dialogam com essas descrições
locais e contribuem para percebermos uma característica da situação carioca: enquanto
na Bahia o termo candomblé operava como referência para a descrição dos demais cultos,
no Rio de Janeiro a categoria macumba cumpria esse papel (Giumbelli, 1997, 2002).
Retomemos a discussão que Péret elabora logo em seu primeiro artigo. O que poderia
ser tomado como prova de imprecisão é melhor compreendido se levarmos em conta as
peculiaridades que afetam a situação no sudeste brasileiro. O texto aventa a hipótese
de que macumba seria palavra corrente na Bahia e teria sido transplantada para o
Rio de Janeiro juntamente com o candomblé. Ao mesmo tempo, Péret afirma: “Sob o
nome makumba (ou macumba) designa-se comumente no Rio o conjunto de ritos de origem
africana praticados em vários pontos do território brasileiro” (Diário da Noite, 25.11.1930). Ocorre que,
nota o poeta, ainda que candomblezeiros e macumbeiros sejam termos utilizados com
pouca distinção, “vários adeptos me afirmaram ser o candomblé a expressão mais pura
da religião africana. A macumba seria o filho natural, por assim dizer, do primeiro,
das crenças indígenas e da simplificação progressiva do rito no meio ‘branco’ onde
se perpetua” (idem). Ou seja, no Rio de Janeiro, o termo que servia como descrição
geral do campo estava associado com impureza.
Essa impureza, entretanto, não deve ser confundida
com desorganização ou degradação, como parece ocorrer nas interpretações de Arthur
Ramos, as quais participam de um longo caudal de escritos que preza a pureza (Cavalcanti,
1986; Dantas 1988). No texto de Péret, o campo de práticas de origem africana guarda
uma lógica conferida pela noção de “lei”. O poeta recorre novamente ao auxílio de
Nóbrega da Cunha para citar as 12 leis que existiriam no Rio de Janeiro: “a de Nagô,
a de Mina, a de Kabinda, a de Umbanda, a de Aruanda, a de Angola, a de Benguela,
a de Moçambique, a de Gêgê, a de Mussurumi, a dos Caboclos e a das Almas” (Diário da Noite, 8.1.1931). Como já foi mencionado,
Péret estrutura sua apresentação tomando como básica a oposição entre “Lei de Angola”
e “Lei de Nagô”. Mas ele mesmo reconhece que não mais que 8 das 12 “leis” estão
recobertas por essa oposição. As demais designam ritos que recebem outras influências,
como a do islã e a dos índios com sua “religião própria”; no caso da “lei das Almas”,
“é uma mistura de crenças espíritas e negras e sua eclosão deve ser recente” (idem).
Voltamos, então, a encontrar o tema da mistura. Ao mesmo tempo, tal multiplicidade
de “leis” aproxima-se da lógica que vai prevalecer para organizar as entidades na
Umbanda. Os artigos de Leal de Souza, em 1932-3, estão entre os primeiros textos
preocupados em expor essa lógica, apresentando as “sete linhas de umbanda” (Giumbelli,
2002). Péret, portanto, ao mesmo tempo em que busca certa pureza, apreende na mistura
determinadas lógicas que descrevem a configuração dos grupos e práticas de origem
africana no Rio de Janeiro e as transformações pelas quais passam.
Em se tratando da pureza, é importante assinalar
algumas diferenças no modo como o poeta francês a concebe, quando percebemos que
o mesmo tema aparece em outras etnografias e análises das religiões afro-brasileiras.
Impossível não reconhecer aqui a discussão sobre a “pureza nagô”, paradigma de acordo
com o qual o pertencimento à nação ou rito nagô implicaria maior fidelidade às origens
africanas no culto aos orixás (Dantas, 1982). Arthur Ramos, por exemplo, foi um
dos contemporâneos que ajudaram a consolidar esse paradigma (Cavalcanti, 1986).
Como vimos, ao descrever as cerimônias protagonizadas por Tio F, que Péret associa
à “Lei de Nagô”, o texto reconhece nelas a pureza valorizada pelo poeta. No entanto,
Arthur Ramos explica essa pureza com base na superioridade cultural dos povos de
origem sudanesa em comparação com os de origem angolana. Para Péret, a pureza é
admirável exatamente pela ausência de “civilização”. Entra aqui em ação o primitivismo
surrealista, que preza o rito nagô não exatamente por ser mais fiel às origens africanas,
mas porque suas manifestações conseguem manter a poesia – e seu “ponto de vista”
– que é pervertida pela “civilização”. Assim, o interesse de Péret pelas “origens”
funda-se menos em genealogias históricas – mesmo que ele se preocupe em traçá-las
– e mais na busca de uma alternativa à civilização europeia.
Exu
conversa com Péret: o Brasil em formação
A
leitura global dos textos nos permite concluir que Péret valoriza sim o primitivo
originário – puro e selvagem, para o poeta –, mas o que ele vislumbra é uma espécie
de ultrapassagem da civilização. O que lhe interessa é imaginar o “homem de amanhã”,
não apenas admirar o “homem de ontem”. Em torno desse tema, Péret cita o mesmo texto
de Marx nos artigos da década de 30 e na introdução escrita muitos anos depois para
sua Antologia americanista. Trata-se do trecho no qual Marx trata do papel da religião
na sociedade de classes (“ópio do povo”) e da necessária crítica filosófica sobre
ela. No texto da introdução, Péret anuncia que a superação da religião, junto com
a criação de uma sociedade igualitária, levará à elaboração de novos mitos. “A religião
se esvai, mas o mito poético não se torna menos necessário, depurado de seu conteúdo
religioso” (Péret, 1960: 26). Em “Candomblé e macumba”, Marx se junta a Freud para
explicar a sobrevivência das religiões no meio moderno, inclusive as religiões africanas.
Assim, apesar da visão positiva sobre estas por parte de Péret, sua profecia prevê
também sua superação: “À medida que os negros forem adquirindo consciência de sua
situação de oprimidos, essa forma [religiosa] de revolta irá desaparecendo, transformando-se
em revolta consciente” (Diário da Noite,
30.01.1931). É significativo que, depois de se dedicar à macumba, Péret tenha feito
uma pesquisa sobre a Revolta da Chibata, quando o levante liderado por um negro
se fez sem a interferência da religião. Em 1956, escreveria um estudo sobre o Quilombo
dos Palmares (Ponge, 2006). Talvez a utopia imaginada por Péret exigisse uma abolição
total da religião em proveito do mito, coisa que os cultos africanos não respeitavam
à risca. É ainda preciso considerar que Péret jamais despreza a inserção das religiões
africanas em uma sociedade de classes, o que modifica o seu significado em relação
ao lugar que tinham em sociedades mais homogêneas. Seja como for, em 1931 Péret
conclui seu texto com um dilema, uma aporia (Ginway, 1992). O elogio do primitivo
vem acompanhado da denúncia de sua limitação, como se passado e futuro estivessem
cruelmente dissociados, como se a América fosse apenas outro cenário para o embate
de forças concebido, por Marx e Freud, a partir da Europa.
É possível, no entanto, vislumbrar outra conclusão,
apontando nos artigos do Diário da Noite
algo que, mesmo que de maneira menos redentora, entrelace mais simetricamente esses
tempos e espaços. A chave pode ser encontrada em outros textos do próprio Péret,
exatamente na parte da introdução à Antologia que foi escrita no Brasil durante
sua segunda estada. Nela, o poeta demonstra interesse pelas transformações que percorrem
um mesmo conjunto de mitos, que ele propõe que entendamos como “um vai-e-vem intelectual
constante entre as camadas superiores e inferiores da população, entre magos e sacerdotes
(…)” (Péret, 1960: 37). Ele sugere que isso se evidencia quando se observa a organização
social das grandes civilizações pré-colombianas, mas se intensifica após a descoberta
da América. O último parágrafo trata especificamente do Brasil, onde ocorreu a associação
entre mitos e ritos africanos com elementos católicos, processo que acarreta transformações
em todos os elementos implicados. Vejamos a conclusão de Péret: “Com o tempo, se
esse processo prossegue, não há dúvidas de que novos mitos nascerão dessa fermentação
à qual estão submetidas as crenças africanas, cristãs, espíritas e talvez mesmo
indígenas” (idem: 38).
Isso foi escrito em 1955 ou 56. Voltemos a
1930, especificamente ao sétimo artigo da série “Candomblé e macumba”. Ele narra,
nas palavras de Péret, “uma sessão espírita meio macumbeira” (Diário da Noite, 24.12.1930). Portanto, algo
que não se encaixava nem na Lei de Nagô, nem na Lei de Angola; talvez, especula
o francês, preenchesse a lei das Almas, com sua “mistura de crenças espíritas e
negras”, coisa não confirmada pelo oficiante, que se dizia um espírita da “linha
de terreiro” – por oposição à “linha de mesa”. Eis aí o primeiro ponto: essa mistura
é algo desconcertante para Péret. O evento que descreve parece um corpo estranho
às suas classificações, ao mesmo tempo em que introduz outras (linha de terreiro
/ linha de mesa). E, no entanto, ele estava lá, incontornável, talvez porque o oficiante
fosse o próprio guia de Péret, ou seja, a pessoa que o conduziu aos terreiros de
Tio F e de Mãe M, alguém que ele descreve como “um músico mulato, meu amigo”, a
quem chama “P”.
A sessão ocorreu na casa de P, na região suburbana
do Rio de Janeiro. Seu objetivo era livrar uma moça do feitiço preparado por um
“apaixonado desprezado”. Assim começava: “P e sua mulher estavam sentados, um em
frente ao outro, diante de uma mesa onde, ao lado de uma estatueta colorida de São
Jorge montado a cavalo, via-se uma vela acesa, um copo cheio de água e um livro
que, mais tarde, soube ser um livro de rezas espíritas de Allan Kardec”. A mulher
recebeu o “Caboco veio”, a primeira de várias entidades que transitaram entre ela
e o marido. Péret registra que eram “15 protetores, negros, brancos, mulatos, índios
e caboclos”, o que inspira o subtítulo do artigo: “‘Mané Kuru’, ‘Perekê’, Allan
Kardec e Cia”. Depois de vários protetores manifestados, a mesa foi levada para
um canto da sala. P, em transe, muniu-se de um charuto e de uma garrafa de cachaça,
com a qual tentava atrair Exu, sob cujas ordens outros espíritos perturbavam a moça
– eis a explicação para as perturbações que sofria. P alternava entre o africano
e o português no idioma. Depois de muito custo, Exu deu sinais de sua presença,
mesmo invisível. O que aconteceu em seguida – em torno de uma oferenda a Exu – vale
a longa transcrição:
Começou
então a parte mais importante da cerimônia: o despacho a Exu. Trouxeram farinha
de mandioca, azeite de dendê e 20 vinténs que P misturou bem dentro de um alguidar.
Apanhou depois um galo preto que estava no chão embrulhado em um jornal e chamou
a pessoa para quem era feito o sacrifício. Com grande pavor foi ela obrigada a segurar
pernas e asas do galináceo para que P lhe cortasse o pescoço. Enquanto o sangue
escorria dentro do alguidar P tratou de convencer Exu a deixar a moça em paz. E
mostrando-lhe a comida, o galo e juntando a tudo isso duas notas de dez mil réis,
dizia no tom mais convincente:
– Oh! Exu, c’est pour
vous... c’est pour vous...
E
com grandes gestos, mostrando a moça, o marido, o despacho, o dinheiro, insistia,
dessa vez em africano.
Para
ser agradável a Exu nos fez beber a todos um gole de cachaça em sua honra, apresentando-nos
cada um por sua vez. Exu ficou assim sabendo que eu ia escrever esses artigos, que
era francês, que tinha vindo de vapor para cá e outras coisas. E permitiu que escrevesse
os artigos recomendando que não falasse mal dele e ainda mais, que não o esquecesse,
e que recorresse a ele quando precisasse. (Diário da Noite,
24.12.1930)
Depois disso, P entabulou novo diálogo com
Exu e traçou nove pontos riscados (desenhos com função invocatória, reproduzidos
em desenho de Péret para o jornal); a pólvora que os contornava foi incinerada.
Era a partida de Exu, seguida de alguns procedimentos de purificação e da remessa,
pelo marido da moça, do despacho. Esperava-se assim convencer Exu a não mais perturbar
a moça que procurara a casa de P.
Péret não emite comentários sobre esse evento.
Ele não merece a admiração dedicada a Tio F ou a decepção suscitada por Mãe M. Não
notamos, na sua narrativa, as formulações poéticas que surgem a propósito dos rituais
e da mitologia nagôs. Minha sugestão é que vejamos a poesia se manifestar de outra
maneira, mas ainda em conexão com temas e procedimentos surrealistas. Refiro-me
à proliferação de referências e à passagem brusca entre elementos díspares: entidades
negras, brancas, mulatas, índias e caboclas; idiomas francês, português e africano;
espiritismo e macumba, mesa e terreiro; Exu e Péret. Não haveria nisso – incluindo
o modo como “Exu” e “vous” podem rimar – algo parecido com a beleza do “encontro
fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”?
Essa outra frase de Lautréamont foi também adotada pelos surrealistas para sintetizar
suas concepções estéticas (Moraes, 2002). Para eles, a matéria da arte não pode
se separar da vida, e o que, em nome daquela, se busca é a perturbação dos sentidos
para que dimensões extraordinárias da realidade se tornem acessíveis. A descrição
de Péret capta encontros entre elementos disparatados na casa-terreiro de P e não
creio que o vínculo de seu autor com o surrealismo seja sem consequências para essa
observação.
Note-se logo que é possível reconhecer configurações
semelhantes no terreiro de Tio F, como a dançarina que incorpora o que parece ser
um preto-velho que fuma charutos e dá conselhos, ou ainda a transformação de Omulu
em são Cosme e são Damião, com seu palpite para o jogo do bicho... (Diário da Noite, 9.12.1930). Ou seja, Péret,
mesmo concordando que a Lei de Nagô é uma “expressão mais pura” de suas origens
africanas, não deixa de observar a fermentação por que passam essas concepções.
Indagado sobre os “santos” e suas características, Tio F associa o diabo a Exu (Diário da Noite, 27.12.1930), evidenciando
a aproximação entre referências cristãs e africanas.[16]
Na seção anterior, procurei mostrar como a categoria macumba servia como uma espécie
de descritor geral da configuração dos cultos de origem africana no Rio de Janeiro.
Um corolário dessa situação é a criação e valorização de operadores que produzem
passagens entre arranjos que são ritualmente distintos (como as “leis” observadas
por Péret). A figura de P é exatamente uma materialização da existência desses operadores,
em sua capacidade de se movimentar no interior do universo com o qual se identifica.
Mas nos fixemos ainda em Tio F. Em outro diálogo com Péret, que lhe pergunta o “que
pensa do espiritismo”, o babalorixá responde: “quem trabalha com espiritismo não
tem a força que nóis temo, porque eles trabalham com qualqué espírito que quizé
aparecê, e nóis só trabalhamo com os espírito de luiz que tem muinto mais podê que
os outro” (Diário da Noite, 31.12.1930).
Percebe-se como a noção de “espírito” não é descartada pelo representante da Lei
de Nagô em favor de outra noção, a de orixá; ao contrário, ela é assumida, o que
gera um plano de continuidade entre essa “lei” e o espiritismo de feição kardecista.
A “sessão espírita meio macumbeira” que aconteceu
na casa de P é, por definição, um exemplo privilegiado das passagens que poderiam
ocorrer em rituais radicados no Rio de Janeiro dos anos 1920 e 30. Destaco o fato
de que nela convivem entidades de negros, brancos e índios, em uma antecipação daquilo
que alguns anos depois seria institucionalizado com o nome de “espiritismo de umbanda”.
Uma das diferenças que se estabelecem com essa institucionalização com o kardecismo
é a aceitação, na umbanda, de “protetores” que não são médicos, legisladores, padres
ou filósofos; são “pretos-velhos” e “caboclos” (Giumbelli, 2013). Péret testemunha
na casa de P a expressão de um processo do qual importa reter não apenas a heterogeneidade
de elementos com suas várias procedências, mas também o fato de que se trata de
uma espécie de reflexão e de elaboração acerca da desigualdade como questão. A umbanda
é a afirmação paradoxal do poder de entidades marginais, é a invocação feita aos
negros escravizados (pretos-velhos) e aos índios fugidos (caboclos) – ambos figurações
do primitivo – para auxiliar na construção da civilização – não qualquer civilização,
mas uma capaz de reconhecer a sua incompletude (Giumbelli, 2002). Péret registrou:
“Há casos, disse-me P, em que a linha de mesa é impotente; só mesmo meus protetores
da linha de terreiro é que poderão conseguir qualquer coisa” (Diário da Noite, 24.12.1930). Eis uma demonstração
de como a civilidade kardecista reconhecia os poderes de entidades primitivas.
Desigualdade, marginalidade, primitivismo
e civilização, na configuração apontada acima, estão necessariamente referidos a
realidades históricas e imaginários narrativos que são situados e específicos. O
que está em jogo, em outras palavras, são as condições e concepções que, naquele
contexto, constituíam o Brasil. A partir do final dos anos 40, intelectuais umbandistas
reivindicariam para a sua religião a qualidade de ser “genuinamente brasileira”.
Tal afirmação pode conter vários sentidos. Entre eles, destaco aquele que aproxima
o processo pelo qual passavam macumbeiros cariocas do projeto formulado pelos intelectuais
modernistas, sobretudo os vinculados à Antropofagia, tal como Oswald de Andrade.
Era preciso descobrir o Brasil, fazendo o primitivo atuar sobre o civilizado, o
americano e o africano interpelar o europeu. Em suma, o que quero sugerir é que
o ponto de vista poético de Péret não ocorre apenas onde é mais evidente, gerando,
como vimos, um dilema talvez insolúvel. Ele pode ser surpreendido também no relato
de encontros (não tão) fortuitos, cujos elementos estão condenados a remeter aos
tempos e espaços do trajeto do país que o poeta conheceu, sem eludir os dilemas
de sua formação. Se o elogio relativo dirigido sobretudo à Lei de Nagô evoca o olhar
europeu de Péret sobre a América, a narrativa desconcertada da “sessão espírita
meio macumbeira” pode sugerir, de um modo que articula surrealismo e antropofagia,
um Brasil a devorar o francês. Afinal, Péret, ao vir para a América, talvez não
tenha senão respondido ao chamado de um Exu macumbeiro.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
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Leyva (México, 1958)
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20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 137 | Julho de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
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ARC Edições © 2019
[1] O jornal Diário da Noite circulou em São Paulo entre as décadas de 1920 e 1980.
Em 1925 foi comprado pelos Diários Associados, importante grupo de comunicação de
massa. O Diário da Noite era conhecido
por veicular temáticas e linguagens voltadas para as camadas populares. Sobre o
jornal, ver Romero (2011).
[2] Os textos foram publicados em 13 edições
do jornal. A revista Religião & Sociedade
os reproduziu “quase na íntegra”, introduzidos e apresentados por Elizabeth Ginway
(1986). Consultei os recortes do original que estão disponíveis no Arquivo Mário
de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo.
Registro meus agradecimentos a Marta Amoroso, colega que me guiou na sede do IEB
quando lá estive em 2008.
[3] Sobre essa discussão, pode-se consultar,
entre outros, Cavalcanti (1986), Dantas (1982) e Silva (1996).
[4] Este trabalho de representação não pode ser
dissociado da própria constituição dessas religiões. Por ora, prefiro utilizar a
expressão mais genérica – “religiões afro-brasileiras”; em seguida, darei atenção
às categorias utilizadas por Péret; por fim, procurarei relacionar tais categorias
com outras, presentes em relatos de observadores externos e em reivindicações dos
próprios religiosos.
[5] Referências importantes nesse debate são,
entre outras, Correa (2000), Birman (1997), Montero (1999) e Schwarcz (1995). Estes
textos tratam do pioneirismo do médico maranhense Nina Rodrigues no registro e análise
de grupos religiosos afro-brasileiros e da linhagem de pensadores e de questões
que dele descendem.
[6] Estou ciente, mesmo sem ser especialista
no tema, de que o modernismo no Brasil é um movimento heterogêneo, inclusive com
fortes dissonâncias. O mesmo pode ser dito sobre o surrealismo na Europa. No diálogo
em que se envolve Péret, são sobretudo os nomes ligados à vertente da Antropofagia
que entram em cena.
[7] O mapa foi publicado exatamente em 1929 na
revista belga Variétés. Pode ser visto
em: https://mappingthemarvellous.files.wordpress.com/2007/09/i2-world-map.png.
[8] Elsie e Benjamin se separaram ainda nos anos
1930.
[9] Lívio Xavier destacou-se como tradutor; foi
ele quem verteu para o português os artigos de Péret sobre “macumba e candomblé”.
Mário Pedrosa trabalhava como jornalista e se tornaria um importante crítico de
arte. Era casado com a irmã de Elsie Houston.
[10] Há uma fotografia célebre de Péret, divulgada
em várias publicações surrealistas, mostrando “nosso colaborador... injuriando um
padre”. A foto pode ser vista em http://susauvieuxmonde.canalblog.com/archives/2010/05/23/17982661.html. Sua intransigência em relação às religiões,
sobretudo o catolicismo, foi um dos motivos de críticas por parte de alguns intelectuais
brasileiros.
[11] Sobre Mário de Andrade, remeto o leitor a
um trabalho recente (Jardim, 2015). Ver o estudo de Peixoto (2000) sobre Roger Bastide,
sociólogo francês que também transitou entre gêneros textuais e manteve diálogos
com parcela do modernismo brasileiro.
[12] Significativamente, Péret não utiliza em
momento algum nos textos do Diário da Noite
as expressões “baixo espiritismo” e “falso espiritismo”. Essas expressões, respaldadas
em reportagens e etnografias, serviram para orientar o trabalho repressivo de autoridades
policiais e sanitárias, que atingiu sobretudo práticas e grupos com traços africanos
(Giumbelli, 2003).
[13] Sobre a importância de Lautréamont (1846-1870)
para os surrealistas, ver, por exemplo, Moraes (2002).
[14] Goldman (2012) desenvolve uma análise acerca
do cultivo da multiplicidade no candomblé.
[15] Sobre o trajeto de Ramos, ver Corrêa (2000).
O livro a que Péret se refere é No mundo dos
espíritos, que compila a série de reportagens e entrevistas que Leal de Souza
realizou em centros espíritas no Rio de Janeiro e arredores para o jornal A Noite em 1924. Leal de Souza, que era também
um literato, publicaria em 1933 outro livro, Espiritismo, magia e as sete linhas de umbanda, já então convertido
em um intelectual da religião que se formava (Giumbelli, 2002). Nóbrega da Cunha
foi jornalista e dirigiu o jornal carioca Diário
de Notícias, onde os textos do livro de 1933 foram originalmente publicados.
Teve participação importante na IV Conferência Nacional de Educação, realizada em
1931 (Rocha, 2004: 149ss). Péret se refere a um estudo sobre “as religiões africanas
no Rio” (Diário da Noite, 8.1.1931) publicado
na revista Vanguarda em 1926 (que jamais
consegui consultar); há registros da presença de Nóbrega da Cunha no I Congresso
Afro-Brasileiro de Recife em 1934, no qual este apresentou o trabalho “Macumba no
Rio de Janeiro”. Outro exemplo de relato sobre religiões originalmente publicado
em jornais (nesse caso, Correio da Manhã)
é Magalhães Corrêa (1936).
[16] Sobre as diferenças entre o Exu africano
e o Exu brasileiro, ver Ortiz (1978). A associação entre Exu e o Diabo é crucial
na migração daquele orixá para as Américas. Negociar com as potentes forças de exu
– como se vê no ritual na casa de P – é uma das características da umbanda.
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