O poeta surrealista francês Benjamin Péret
(1899-1959) viveu três vezes nas Américas: seis anos no México, de 1942 a 1948,
e duas estadas no Brasil: inicialmente, de 1929 a 1931 (três anos) e, posteriormente,
em 1955-1956 (quase onze meses), totalizando uma apreciável vivência de quatro anos
no país verde-amarelo. Durante seus dez anos em solo americano, Péret procurou entender
cada um dos dois países em que morou: conhecer os habitantes e seus costumes, falar
a língua vernacular, descobrir a geografia, fauna e flora, explorar as diversas
regiões, examinar o campo e a cidade, as formas de habitação e de transporte, observar
e analisar as crenças e os rituais religiosos, estudar o passado e o presente, compreender
os processos históricos, políticos e sociais desde os tempos pré-colombianos até
a época contemporânea.
Durante seus anos americanos e depois, escreveu
sobre o que viu e sobre o que estudou: em sua correspondência, em entrevistas e
em artigos.
O presente trabalho objetiva dar uma ideia
da imagem (e das imagens) que, em seus escritos, Benjamin Péret ofereceu do Brasil
urbano durante parte de sua segunda estada brasileira. Baseado em sua correspondência
(complementada, quando necessário, com outros documentos), este trabalho concentra-se
em dois aspectos: por um lado, sua visão do Rio de Janeiro (às vezes contrastada
com suas lembranças de sua primeira estada, nos anos 1929-1931); por outro lado,
suas anotações e comentários relativos à viagem que o levou a Manaus e às capitais
do Norte e Nordeste.
Antes, faz-se necessário apresentá-lo, iniciando
com alguns elementos de informação relativos à sua trajetória de vida, situando
na mesma o lugar da América Latina: o México e, particularmente, o Brasil.
1899-1959: trajetória de Péret,
na França e alhures
França,
1899-1928
Benjamin
Péret nasce em 1899, no oeste da França, filho único de uma familha modesta. Em
1917, é obrigado a alistar-se na Primeira Guerra Mundial, da qual consegue sair
são e salvo, porém extremamente revoltado.
Seus primeiros passos na poesia são de inspiração
simbolista. A partir de 1918, descobre a poesia moderna através dos escritos de
Guillaume Apollinaire (1880-1918), Arthur Rimbaud (1854-1891), Lautréamont (1846-1870)
e Alfred Jarry (1873-1907); é uma autêntica revelação. Engaja-se então na busca
de uma aventura poética e intelectual colocada sob o signo do não-conformismo: inicialmente,
a partir de 1920, no dadaísmo; a partir de 1922 e para o resto de sua vida, no surrealismo.
Em 1924-1925, junto com Pierre Naville, é incumbido da direção dos três primeiros
números da revista La Révolution surréaliste
(A Revolução Surrealista).
Em 1926, Péret adere ao Partido Comunista
Francês – que abandona em 1928, decepcionado pela sua política e pelo seu funcionamento
antidemocrático, burocrático. Daí em diante, passa a se identificar com a esquerda
antistalinista de sensibilidade trotskista.[1]
No mesmo ano de 1928, Péret casa-se, em Paris,
com a cantora lírica brasileira Elsie Houston (cunhada do jovem Mário Pedrosa),
uma carioca que “possuía uma voz de timbre inesquecível, incluía em seu repertório
peças modernas […]”[2] e desenvolveu
uma brilhante carreira internacional. No início de 1929, Elsie e Benjamin rumam
para o Brasil.
Brasil,
1929-1931
O
que leva Benjamin Péret ao Brasil? Sem dúvida, seu amor por Elsie e uma provável
vontade desta de viver algum tempo em sua terra natal. Mas, também, o interesse
de ambos pelas artes populares e primitivas deste país e da América Latina. Elsie
tinha, com efeito, publicado, em Paris, um livro intitulado Chants populaires du Brésil (Cantos populares
do Brasil) (Houston-Péret,1930). Quanto a Benjamin, junto com seus companheiros
surrealistas, vê, nas artes populares e, sobretudo, primitivas, a essência do pensamento
poético, do pensamento analógico.
A chegada de Elsie e Benjamin ao país, no
início de fevereiro de 1929, recebe, inicialmente, uma boa cobertura da imprensa.
Em entrevistas e artigos, Péret procura explicar o que é o surrealismo. Tece laços
com a Revista de Antropofagia, que o saúda
calorosamente e reproduz alguns de seus Provérbios
atualizados para o gosto de hoje. Elsie e ele participam da famosa comitiva
de antropófagos que acompanha Tarsila do Amaral ao Rio para sua exposição de julho
de 1929.
Péret tenta empreender uma viagem no Norte
e Nordeste do Brasil e entre os índios brasileiros; sem sucesso, por falta de dinheiro.
Também, procura realizar um filme no qual o palhaço Piolim ficaria com o papel principal
(novamente, sem sucesso e por ausência de suporte financeiro). Desenvolve dois estudos,
no Rio: um sobre os cultos afro-brasileiros, que resulta numa série de treze artigos,
intitulados “Candomblé e macumba” e publicados no Diário da Noite de São Paulo, de 25.11.1930 a 30.01.1931, trabalho cujo
“pioneirismo” foi destacado pelo historiador Clovis Moura;[3]
o outro estudo versa sobre a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, para o qual pesquisa
nos arquivos da Marinha.[4]
Em agosto de 1931, Elsie dá a luz a Geyser, seu filho. Em novembro, em função de
seu envolvimento com o grupo trotskista brasileiro (dos quais são fundadores seus
amigos Lívio Xavier, Fúlvio e Lélia Abramo, além de seu cunhado, Mário Pedrosa),
é preso pela polícia política, provavelmente em função de uma denúncia. Na ocasião da prisão ou durante as buscas policiais
decorrentes, o manuscrito do estudo sobre a Revolta da Chibata desaparece. No final
de dezembro, após inquérito policial sumário, sem qualquer processo judicial e sem
sequer direito a defesa, Benjamin Péret é expulso do país.[5]
França,
1932-1941
De
volta a Paris, no início de 1932, Péret reencontra os amigos surrealistas (com os
quais se manteve em contato durante sua estada brasileira) e consegue empregar-se
como revisor, atividade profissional que será a sua até o final de sua vida.
Em agosto de 1934, Elsie e ele decidem separar-se
(motivo: “sobretudo o fim do amor”[6]).
Esta retorna ao Brasil, levando junto o filho, Geyser.
Em 1936-1937, da mesma forma que outros intelectuais
(como André Malraux e George Orwell), transfere-se à Espanha para ajudar na luta
contra o golpe de Estado franquista. Em Barcelona, conhece a pintora Remedios Varo,
que se torna sua companheira. Em meados de 1937, volta para a França; Remedios o
acompanha.
Em 1939, começa a Segunda Guerra Mundial.
Péret é mobilizado. Após o colapso das tropas francesas diante daquelas do Terceiro
Reich, refugia-se, com Remedios, em Marselha, onde solicita asilo no México.
México,
1942-1947
No
início de janeiro de 1942, chega no México onde, durante seis anos, vive no exílio
com Remedios, com quem casa, em 1943, após o falecimento de Elsie Houston.
Desenvolve intensa pesquisa sobre os povos
pré-colombianos e começa a reunir textos de mitos, lendas e contos da América, com
vistas à organização de uma antologia. Redige a primeira parte do texto de apresentação
desta – um original estudo sobre as relações entre os mitos e a poesia, o qual é
publicado por André Breton, em Nova Iorque (onde está exilado).
França,
1948-1955, 1956-1959
Volta
à França no início de 1948 (Remedios fica no México). Trabalha como revisor. Como
sempre fez, continua colaborando nas revistas e atividades do grupo surrealista.
É na França que publica o que o México lhe ditou: em 1952, seu magnífico poema Ar mexicano; em 1955, sua excelente “Apresentação”
e sua bela tradução, do espanhol para o francês, do Livro de Chilám Balám de Chumayel.
Seus problemas de saúde agravam-se, até sua
hospitalização em 1954. Convalescência difícil. Seu filho convida-o para vir ao
Brasil, para descansar, encontrá-lo, e – o mais importante para alguém que passou
a vida inteira com constantes dificuldades materiais – manda o dinheiro para a passagem.
Fica no Brasil de 7 de junho de 1955 a 18 de abril de 1956.
De volta a Paris, Péret permanece trabalhando
como revisor. Consegue terminar sua Antologia
do amor sublime e sua Antologia dos mitos,
lendas e contos populares da América. Falece em 1959 de problemas cardíacos.[7]
Deixou atrás de si várias coletâneas de poesia,
contos, ensaios e escritos de crítica.[8]
Em 1985, foi publicado no Brasil, em edição bilíngue, um belo volume, Amor sublime, contendo uma seleção de poemas
de Péret, um longo extrato de seu prefácio à Antologia do amor sublime, fotos dele, de Elsie Houston, depoimentos
sobre eles.
A
segunda estada brasileira: imagens do Rio de Janeiro
No
dia 24 de maio de 1955, Péret embarca no porto francês de Le Havre, com destino
ao Brasil.
Quais são seus projetos? Além de rever seu
filho e amigos, bem como descansar, pretende obter objetos ou fotos para sua coleção,
ler sobre o Brasil, viajar a diversas regiões do país, terminar a redação de um
ensaio e organizar dois livros.
Após uma travessia transatlântica “perfeita”
(“tempo bom continuamente”, p. 417),[9]
desembarca no Rio de Janeiro em 7 de junho de 1955.
No
reencontro com o Rio, uma surpresa!
Em
sua correspondência, suas três primeiras apreciações são sobre o clima, o reencontro
com seu filho (21 anos depois!) e a cidade. Elogia o filho (piloto da Varig) e o
clima; o tom de suas observações muda radicalmente quando se refere à urbe: “Não
reconheci nada da cidade, pois ela foi revirada de alto a baixo” (p. 417).
Quinze dias depois, viaja a São Paulo. Sua
reação é a mesma: “A mudança na cidade é incrível. Mais do que uma mudança, trata-se
de uma metamorfose. Sequer conseguia encontrar a casa em que morava. A qual, por
acaso, ainda está de pé” (p. 418).
O que motiva a surpresa de Péret? Certamente,
o contraste com a realidade urbana que conheceu em 1929-1931. Procuremos, então,
conhecê-la, reconstituí-la, limitando-se, neste trabalho, à cidade do Rio de Janeiro.
O Rio em que Péret viveu, por ocasião de sua
primeira estada brasileira e que deixou no final de 1931, era uma grande urbe, com
uma população de cerca de um milhão e quatro centos mil habitantes. Já podia ser
considerada moderna: possuía grandes avenidas, iluminação pública elétrica, linhas
de bondes, novas construções. Apesar de ser predominantemente horizontal (sobretudo
com casas particulares e prédios coletivos de dois a quatro e, às vezes, cinco ou
seis andares), em seu centro já existiam prédios maiores do que oito andares e,
mesmo, alguns arranha-céus. Nada, porém, que pudesse, então, surpreender um Péret
procedente de Paris, cidade cujas ruas, desde o século 19, enfileiram-se entre dois
paredões de fachadas de prédios de seis andares.[10]
A partir de 1932 (sobretudo no final dos anos
trinta e ao longo dos anos quarenta e cinquenta), enquanto Péret estava na França,
abriu-se na vida do então Distrito Federal um novo período de crescimento e mudanças,
com um acelerado aumento populacional, a proliferação das favelas, o crescimento
da nova zona sul em torno de Copacabana, a aceleração do processo de verticalização
dos prédios, uma febre de construção viária (avenidas, vias expressas, túneis) e
a transformação da área central da cidade e adjacências (abertura de várias avenidas,
com destaque para a av. Presidente Vargas, construção do aeroporto Santos Dumont
e urbanização da esplanada do Castelo). Em meados dos anos 1950, quando Péret volta
ao Brasil, a cidade possui cerca de dois milhões e oitocentos mil habitantes.[11]
Uma
cidade tomada pelos “cogumelos venenosos”
Pode-se
agora entender o choque levado por Benjamin Péret ao desembarcar, em 1955, num Rio
de Janeiro em que a população duplicou: “A cidade mudou muito, tornou-se até irreconhecível”.
Imediatamente, acrescenta: “isso não constitui de forma alguma um progresso, muito
pelo contrário”. Por quê? Porque “os arranha-céus cresceram de maneira desordenada,
feitos cogumelos venenosos” (p. 416). A imagem é significativa! Na correspondência
do poeta francês, essa resposta e avaliação aparecem com outra formulação, menos
metafórica, mas não menos expressiva: a cidade encontra-se “extremamente norteamericanizad[a]”
(p. 427).
Isso é também verdade, e muito mais, relativamente
a São Paulo. Porém, Péret observa que, diferentemente da urbe paulistana, “Rio ainda
apresenta algum interesse”, por causa de… seus jardins (p. 427). Aliás, salienta
ele, no Rio,
[…]
há uma única coisa que permaneceu quase intacta: o Jardim Botânico, com a ressalva
de que os esquilos pretos desapareceram. A não ser por isso – o que não é pouca coisa –, o Jardim Botânico continua maravilhoso e
cheio de pássaros (p. 416, grifo meu).
Grifei o inciso, o que não é pouca coisa,
pois remete a uma postura de Benjamin Péret: a mesma que adota diante de São Paulo
(“uma cidade de arranha-céus”, a qual “abriga vagas borboletas que vagueiam melancolicamente
de uma parede de concreto a outra […]”, p. 421). Com o desaparecimento dos esquilos
no Rio de Janeiro e com a rara presença de melancólicas borboletas em São Paulo
– dois fatos justapostos à multiplicação dos arranha-céus (ou seja, a floresta de
concreto que acaba com os bosques e jardins) –, Péret sugere, aponta dois dos medidores
com os quais ele avalia a habitabilidade das cidades:
– uma cidade à escala do ser humano, em que
o homem não seja esmagado pela altura e pela quantidade de arranha-céus (isto é,
pelo adensamento de sua presença);
– uma cidade em que haja a preservação da
natureza enquanto meio vegetal e animal no qual, ao lado do qual e com o qual vive/convive
o homem. Ou seja, uma cidade em que a natureza possa viver, como relembra oportunamente
Péret, em outra correspondência, a respeito de um bairro: “Neste lugar, outrora
[isto é, em 1929-1931], havia preguiças. Desapareceram, provavelmente mortas pelos
gases dos automóveis.” (p. 420).
Isso, numa época em que a ecologia não se
tornara ainda uma reivindicação premente!
Péret não era avesso ao progresso, ao moderno.
Mas, há moderno e moderno: ele não poderia ser ufanista, modista; não poderia enxergar
carinhosamente o Rio de Janeiro sem um olhar atento, rigoroso – um olhar crítico,
justamente porque carinhoso!
A
“loucura” da febre modernizante
Basta-lhe
uma curtíssima frase (extraída de carta a uma amiga francesa) – “Aqui, a loucura
reina” – para dar sua opinião a respeito da febre modernizante que tomou conta do
Brasil, inclusive e particularmente do Rio (estamos às vésperas do período “Cinquenta
anos em cinco!” de Juscelino Kubitschek, que está em plena campanha eleitoral quando
Péret desembarca no Brasil).
Mas, por
que reina a loucura? Continuo citando a mesma carta:
[…]
nesse país, do qual os três quartos, se não for mais, são inabitados, eles passam
seu tempo conquistando do mar alguns miseráveis metros de terra firme, gastando
somas fabulosas, quando o deserto [entenda-se: áreas com baixa densidade populacional]
começa a poucos quilômetros de lá, assim que se deixa o litoral. (p. 416)
A referência é, obviamente, ao aterramento
para a via expressa ligando Copacabana ao centro do Rio, mas ela tem valor geral,
remetendo às somas fabulosas gastas para outros aterros ou túneis ou seja lá o que
for.
No caso, tratava-se de adequar a cidade maravilhosa
(e, para tanto, submetê-la) às imperiosas necessidades de um meio de transporte
individual e particular – o carro –, cuja vertiginosa multiplicação estava sendo
incentivada, em detrimento, por exemplo, de um então inexistente – e hoje ainda
raquítico – meio de transporte coletivo: o metrô!
De forma que, sem querer, as observações de
Benjamin Péret sobre o Rio de Janeiro dos anos 1950 ainda possuem algum grau de
atualidade. O que não deixa de ser um convite à reflexão!
A
segunda estada: o interior de São Paulo, o Norte e o Nordeste
Essas
são as primeiras impressões e imagens de Benjamin Péret sobre o Rio. O que mais
ele pensa e faz a seguir?
Esforça-se em obter, das mais diversas fontes,
borboletas (que adora colecionar), bem como objetos e/ou fotos de objetos de arte
brasileira indígena e popular. Procura documentar-se sobre o país; um amigo brasileiro
lembrará “a febre que o possuía de ler tudo que tratasse do Brasil”. As obras sobre
o quilombo dos Palmares “solicita[vam] em especial seu interesse”,[12]
pois tenciona produzir um ensaio sobre o assunto. Além deste, está projetando dois
outros livros: um de fotos de peças de arte primitiva, pré-colombiana e popular
do Brasil; outro, bem mais volumoso (150 a 200 páginas), no qual desenvolveria seus
trabalhos de etnografia já publicados em 1950-1952.
Em agosto, viaja pelo interior paulista e
passa quinze dias numa fazenda cafeeira do oeste do estado, onde escreve a segunda
parte da “Introdução” à Antologia dos mitos,
lendas e contos populares da América que vem organizando desde o México;[13]
trabalha, ainda, na redação do texto sobre Palmares, que consegue terminar durante
a primeira quinzena de setembro.
Volta-se então para seus dois projetos de
livros (não alcançará, porém, terminar e editá-los) e para suas viagens no resto
do país, que são várias vezes adiadas (em particular para participar do casamento
de seu filho).
Manaus,
as capitais do Norte e do Nordeste
Finalmente,
em 5 de outubro, Benjamin Péret inicia uma viagem na Amazônia, Norte e Nordeste.
Os aviões da FAB ou do CAN (Correio Aéreo Nacional) o levam de capital em capital,
ficando uns 4, 5 ou 7 dias em cada uma; às vezes, explora alguns recantos do interior
profundo.
O roteiro o conduz inicialmente a Manaus:
é uma decepção, a cidade não lhe agrada nem um pouco (“Impossível encontrar algo
interessante. […]. E quanta miséria!”). Depois, alcança Belém (a cidade é “mais
simpática e um pouco menos quente”, p. 431). Segue para São Luís, Fortaleza e, no
interior do Ceará, Granja. Chega a Recife, onde fica uma semana e dá uma entrevista
ao Diário de Pernambuco. Finalmente, Salvador,
a cidade “mais estranha” (p. 418) que viu em sua viagem (talvez por ser “uma espécie
de Roma negra” (Péret, 1992, p. 73)).
De Salvador, Péret volta a São Paulo e ao
Rio, onde chega em torno do 25 de novembro, após percorrer cerca de nove mil quilômetros
em aviões a hélice. O périplo durou um pouco mais de sete semanas. Quais são as
lembranças que se sobressaem do mesmo, quais imagens marcantes ele traz de volta?
Antes de mais nada, a miséria: “[…] a miséria é fantástica no Norte. Em Manaus,
mais da metade da população vive em condições infra-humanas.” (p. 433)
A declaração não vale apenas para Manaus,
mas para todo o Norte e Nordeste dominados pela carestia, insalubridade, disenteria,
sífilis, analfabetismo etc. Para não deixar margem à dúvida, ele comenta: “Em suma,
é apenas nas grandes cidades que os trabalhadores têm uma vida mais ou menos suportável
[…]” (p. 433).
Nas grandes cidades? Não em Manaus, nem em
suas similares, mas no Rio, em São Paulo (e, talvez, em algumas outras), cidades
em que “a mudança mais notável está no nível de vida das pessoas que se veem na
rua. Enquanto 25 anos atrás a população nunca andava inteiramente vestida e trajava
farrapos, ela agora se veste razoavelmente.” (p. 418).
E por que essa diferença? “[…] devido […]
ao considerável desenvolvimento da indústria”, o que, segundo ele, “representa uma
mudança fantástica” (p. 418).
Seria Péret ufanista em relação às grandes
cidades, ditas modernas? De forma alguma; observemos que ele fala em pessoas vestidas
razoavelmente e em vida mais ou menos suportável! E, novamente para não deixar dúvida
nenhuma, ele imediatamente acrescenta uma precisão fundamental: esse nível de vida
mais ou menos suportável dos trabalhadores das grandes cidades “não chega perto
daquele dos trabalhadores dos países mais atrasados da Europa”, mas ele reconhece
que deve obviamente ser descontado um fato: no Brasil, “as necessidades imediatas
são menores” do que na Europa (p. 433).
Final
da segunda estada brasileira
Péret
fica no Rio até 26 de janeiro de 1956 quando embarca num avião da FAB com destino
ao Mato Grosso. Visita uma aldeia de índios xavantes, em Xavantina (hoje Nova Xavantina).
Volta ao Rio.
Pelo 10 de fevereiro, viaja de novo ao Mato
Grosso, visitando inicialmente uma aldeia de índios karajás, na ponta norte da ilha
de Bananal, a seguir o posto Capitão Vasconcelos (hoje posto Leonardo Villas Boas)
instalado pelo Serviço de Proteção ao Índios (SPI) à beira do rio Kuluene, no Alto
Xingú (hoje Parque Indígena do Xingú). Prevista para dez dias, essa segunda viagem
entre os índios acaba durando um mês.
Em 18 de abril, embarca no navio que o leva
de volta à terra natal, onde chega em 3 de maio.[14]
Balanços
Qual
balanço Péret faz de sua segunda estada brasileira?
A viagem a Manaus, ao Norte e Nordeste foi
decepcionante “no tocante aos achados”; comenta com uma pitada de humor: “Nenhum
objeto selvagem, como se todos os índios do Brasil só vestissem fraque, viajassem
de Cadillac e morassem em arranha-céus com um refrigerador à mão!” (p. 440).
Mesmo assim, o balanço é globalmente positivo:
“Fiz uma excelente viagem” (p. 430). Por que excelente? Porque conseguiu “muitas
fotos de arte pré-colombiana, primitiva e popular” (p. 434), porque observou bastante.
O balanço não é menos positivo relativamente
ao conjunto da estada de dez meses e meio: “Minha viagem ao Brasil foi muito frutífera”.
Com efeito, Péret teve a imensa satisfação de realizar vários dos projetos que o
tinham motivado a vir ao Brasil em 1929 (“Conheci todo o norte do país até a Amazônia
e fiquei um mês entre os índios do Brasil central […]”, p. 455). Sobretudo, me parece,
porque viu e aprendeu em abundância. São testemunho e prova disso sua correspondência,
as várias entrevistas que deu no Brasil e na França, a mina de material (principalmente
fotográfico) que reuniu para o livro sobre as artes primitivas e populares do Brasil
(material que continua inédito até hoje), bem como os textos sobre o Brasil redigidos
durante sua viagem e após sua volta, entre os quais o importante ensaio interpretativo
sobre o quilombo de Palmares (publicado nos números 65 e 66 – abril e maio de 1956
– da Anhembi, uma importante revista cultural
paulista da época)[15]
e cinco artigos sobre os indígenas do Brasil (publicados: um na Manchete, outro na Anhembi, os demais em revistas francesas).[16]
REFERÊNCIAS
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Rio de Janeiro: IPLANRIO (Instituto de Planejamento Municipal do Rio de Janeiro)/Zahar,
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BENCHIMOL,
Jaime Larry. A modernização do Rio de Janeiro.
In: DEL BRENNA, Giovanna Rosso (Org.). O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão II. Rio de Janeiro: Index,
1985. p. 599-611.
BENTO, Antônio.
O ambiente no Rio ao tempo de Ismael Nery. Cadernos
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COELHO, Ruy.
Prefácio a: PÉRET. O quilombo de Palmares.
Lisboa: Fenda Edições, 1988. p. 9-12.
COURTOT, Claude. Introduction à la lecture de Benjamin
Péret. Paris: Le Terrain vague/Association des amis de Benjamin Péret, 1965.
GOUTIER, Jean-Michel (Dir.). Benjamin Péret. Paris: Henri
Veyrier, 1982.
HOUSTON-PÉRET, Elsie. Chants populaires du Brésil, première série recueillie et publiée par
Mme Elsie Houston-Péret. Introduction par Philippe Stern. Paris: Librairie orientaliste
Paul Geuthner, “Bibliothèque musicale du Musée de la parole et du musée Guimet”,
1930. KAREPOVS.
“Benjamin Péret: surrealismo e trotskismo no Brasil”. In: COGGIOLA, Osvaldo (Org.).
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MOURA, Clovis.
Três vertentes de interesse de um poeta francês sobre o negro brasileiro. Conferência
apresentada em 07 nov. 1985, na SEMANA SURREALISTA, organizada pela Aliança Francesa
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PÉRET, Benjamin. Œuvres
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PÉRET, Benjamin. Œuvres
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PÉRET, Benjamin.
O quilombo dos Palmares. Organização,
ensaios e comentários por Robert Ponge e Mário Maestri. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
PONGE, Robert. Des anthropophages de São Paulo aux indiens
kalapálos qui ont “mangé l’explorateur Fawcett”: les séjours brésiliens de Benjamin
Péret. Trois Cerises et une sardine, Paris: Association des amis de Benjamin Péret,
n. 17, p. 2-15, Oct. 2005.
PRÉVAN, Guy. Benjamin Péret. Paris: Syllepse, coll. “Archipels
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PUYADE, Jean. “Benjamin Péret: um surrealista no Brasil”. Revista
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de Pós-Graduação em Letras, n. 1, 13 p., oct. 2005.
REZENDE, Vera
F. “Evolução da produção urbanística na cidade do Rio de Janeiro: 1900-1950-1965”.
In: LEME, Maria Cristina da Silva (Org.). Urbanismo
no Brasil: 1895-1965. São Paulo: FAU e FUPAM da USP/Studio Nobel, 1999. p. 39-70.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: José Ángel
Leyva (México, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 137 | Julho de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
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[1] Sobre a atividade política de Péret, ver
Prévan (1999).
[2] Segundo o depoimento de Bento (1966, p. 67).
[3] Moura, Clovis. “Três vertentes de interesse
de um poeta francês sobre o negro brasileiro”. Conferência apresentada em 07.11.1985,
na “Semana surrealista” organizada pela Aliança Francesa de São Paulo. Citado a
partir do manuscrito dessa, (s.p.), ainda inédito, o qual me foi inicialmente comunicado
por Jean Puyade: a ele meus agradecimentos.
[4] Sobre a estada brasileira de Péret em 1929-1931,
ver Puyade (2005, 13 p.).
[5] Sobre a atividade política de Péret no Brasil,
ver Karepovs 1994, p. 217-234).
[6] Péret (1995, p. 330). Nesta e nas demais
citações originariamente em francês, a tradução para o português é minha, salvo
indicação em contrário.
[7] Esta trajetória de Péret é uma versão reduzida
daquela constante em: Ponge (2009, p. 237242). Para maiores informações biográficas
sobre Péret, ver: Bedouin (1961); Courtot (1965); Goutier (1982).
[8] As obras completas de Péret foram publicadas
pela Association des Amis de Benjamin Péret (AABP) em colaboração com a editora
Éric Losfeld/Le Terrain vague (tomos 1 a 3) e, depois, com a editora José Corti
(tomos 4 a 7).
[9] PÉRET. “Correspondance (1921-1959)”. 1985.
p. 417. A correspondência relativa à segunda estada brasileira de Péret encontra-se
nas p. 416-445 do referido tomo 7 das Œuvres
complètes. Doravante, informarei diretamente no texto, entre parênteses, a(s)
página(s) das citações extraídas da correspondência.
[10] Ver, entre outros: Abreu (1987, p. 71-91);
Benchimol (1985, p. 599-611).
[11] Ver, entre outros: Abreu (1987, p. 93-115);
Rezende (1999, p. 44 ss)
[12] COELHO, Ruy. “Prefácio” a: PÉRET. O quilombo de Palmares. Lisboa: Fenda Edições,
1988. p. 11.
[13] A primeira parte desta introdução havia sido
finalizada em novembro de 1942, no México; fora publicada por Breton, em Nova Iorque
(onde estava exilado), em 1943, sob o título A palavra está com Péret.
[14] Sobre os últimos meses da segunda estada
de Péret no Brasil e suas duas viagens ao Mato Grosso, ver: PONGE, Robert. “Des anthropophages
de São Paulo aux indiens kalapálos qui ont ‘mangé l’explorateur Fawcett’: les séjours
brésiliens de Benjamin Péret”. Trois Cerises
et une sardine, nº 17. Paris: Association des amis de Benjamin Péret, oct. 2005.
p. 6-8.
[15] O quilombo
dos Palmares de Péret foi republicado, em formato de livro, em 1988, em Portugal
(Lisboa: Fenda Edições) e em 2002, no Brasil (Porto Alegre: Editora da UFRGS).
[16] Podem ser encontrados em: PÉRET. Œuvres complètes, tome 6. Op. cit.
p. 117-164.
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