domingo, 4 de outubro de 2020

MARIA ESTELA GUEDES | Arrabal e a instalação das suas circunstâncias



A mulher estava vestida de púrpura e vermelho
e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas.
Segurava um cálice de ouro, cheio de coisas repugnantes
 e da impureza da sua prostituição. Na sua testa havia esta inscrição: 
MISTÉRIO: BABILÓNIA, A GRANDE; A MÃE DAS PROSTITUTAS  E DAS PRÁTICAS REPUGNANTES DA TERRA.

Apocalipse 17:4-5.

 

1 O performer

A minha vida é a instalação das minhas circunstâncias”, define Arrabal, fundindo aquilo que outros separam em vida e obra. Raros, como este singular artista espanhol, nascido em África, com o francês como segunda língua, não caminham em duas vias paralelas, a artística e a profana, esta de trabalho, de fazer algo para ganhar a vida, na perspetiva valorizante que ganhou com a ascensão da burguesia. Trabalho, para a sua imaginação aristocrática, é algo estranho; o vocábulo goza de misteriosa ascendência linguística, que de um lado designa um mecanismo de tortura (recordando os meus velhos tempos de estudante de Francês, era necessário saber que a palavra “travail” apresenta dois plurais, “travaux” e “travails”, destinando-se a segunda forma a referir instrumentos de tortura), de outro as dores do parto, como declara numa entrevista. A circunstância, mais do que apontar a excecionalidade linguística, aponta dois vetores na sua criação: de um lado o interesse pela língua, nos seus aspetos semânticos e etimológicos mais crípticos; de outro, a obsessão pela tortura, no enquadramento das diversas maneiras de infligir dor em que a sua obra é pródiga.

Voltando ao ganha-pão, por felicidade de Arrabal, a sua esposa é docente na Sorbonne, por isso ganha ela para os dois, de acordo ainda com as suas próprias declarações (ver “Arte do Artista”, no YouTube), que deixam na obscuridade o facto de ser imensa a sua obra, alguma da qual decerto lhe garantiu merecidos direitos de autor – ainda que ele o negue, afirmando que quem ganha dinheiro são os pintores, e eu nem discuto, acredito que sim.

A Wikipédia dá conta do volume das suas criações até à data: dirigiu sete longas-metragens, publicou catorze novelas, setecentos livros de poesia, umas duas dezenas de ensaios e a Carta al General Franco, em vida do ditador. O seu teatro completo, editado nas principais línguas, tem sido publicado, em dois volumes de mais de duas mil páginas, na Colección Clásicos Castellanos de Espasa. Para o caso do teatro, meu principal corpus é o Teatro Completo de Fernando Arrabal, em dois volumes, com uma introdução de Francisco Torres Monreal, que enriquece a obra com um extenso e aprofundado estudo, publicados os volumes pela Editorial Everest em 2009. Deixo a lista das longas metragens, por também me servirem de corpus: Viva la muerte (1971), J’irai comme un cheval fou (1973), El árbol de Guernica (1975), Odyssey of the Pacific (1982)/ L’Empereur du Pérou (1982), Le cimetière des voitures (1983), Borges: una vita di poesia (1998) e Adieu Babylone (2001). Há trailers ou mesmo versões integrais de todos os filmes no YouTube.

Voltando à instalação das suas circunstâncias, Arrabal tem só uma vida, ele é um sujeito só, o criador e o criado, quer se coloque na posição de ator/autor, quer na de entrevistado. Do facto ressalta que a sua obra é profundamente autobiográfica. Por isso é fascinante ver como se perfila em pé de igualdade com atores como Jô Soares, numa entrevista para a televisão, recheada de anedotas picantes ou como se aguenta num debate televisivo com vários autores, uns mais irritados do que outros, depois de ter bebido em cena mais do que um cálice de tinto (e quem sabe se a embriaguez não terá sido uma performance), ou ver como ele atua numa rua de Toledo, em contracena com uma jornalista que o entrevista, decidindo ir a uma cabine telefónica fazer uma chamada para Deus (YouTube, “Fernando Arrabal habla con Dios desde una cabina de Toledo”). Quando o encontro com o jornalista se verifica na rua, Arrabal facilmente descobre maneira de entrar em contracena com os transeuntes, o que é bem característico do teatro de vanguarda; tratando-se de belas mulheres, o encontro proporciona cenas de amor cortês, ou seja, de quem fazia a corte nos idos medievais, e anote-se que cortejar é um dos seus temas de conversa, neste âmbito de cultura medieval. Exemplo amável é o de como fez a corte a Gala, mulher de Salvador Dalí. É um homem íntegro, show man, performer a tempo inteiro, sem divisões entre autor, personagem e ator, sem separações entre vida e obra.

Nas muitas entrevistas em linha no YouTube, fica assim à vista que o homem é um criador total. Não tanto porque represente, mas por nos aparecer como sendo assim, ter nascido assim, ser assim o seu natural: permanecer, vinte e quatro horas por dia, na situação de virtuoso da criação artística. E, porque está sempre no plateau, apresenta-se com fato incomum, adereços como o cálice de vinho tinto e o duplo par de óculos, e por vezes deixa-se entrevistar em cenário extravagante, seja um cadeiral de madeira trabalhada, imenso para a sua pequenez e demasiado barroco para o seu vanguardismo, apropriado no entanto à sua vocação cerimonial.

Questionado sobre o porquê do duplo par de óculos (as “gafas”, na sua língua materna) por Carlos Mayoral, em entrevista publicada na Agulha Revista de Cultura, nº 154, responde: “Siempre me entran ganas de decir para verte mejor. Creo que las llevo porque me sigue deslumbrando la vida. Aunque, en realidad, no sé muy bien por qué las llevo. Será porque me gusta cambiar”. “Dá-me sempre vontade de dizer que uso dois pares de óculos para te ver melhor” – eis-nos no centro da história do Capuchinho Vermelho, mundo da infância que inevitavelmente frequentamos, por ser habitual na obra de Arrabal.

 

2 A repetição como regra fractal do caos


Arrabal gosta da matemática e de jogos associados, como o xadrez, que o teve como comentador nas páginas de jornais. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, escreveu Mallarmé, e Einstein, tendo-o provavelmente em atenção, do acaso deixou a notícia: Der Alte nicht würfelt, God does not throw dice, ou, em outra das muitas línguas que o repetiram: Deus não joga aos dados, Deus rege as leis deterministas, Deus é quem governa, não consente que domine a desordem do Acaso.

Um dos focos da conversa de Arrabal, a propósito das forças criadoras, é a confusão, por vezes identificada com o caos. Diz ele, na primeira parte da entrevista «Arte do Artista» (ver YouTube) que durante toda a sua vida combateu a confusão. Claro que a arte é maneira de gerir o caos, de criar, de pôr uma ordem nas coisas, porém a arte de Arrabal só organiza objetos externos e físicos como cenários, adereços, viagens pelo Magrebe. Interiormente, a obra é a força do caos, a energia das paixões, a confrontação entre o amor e a repulsa, entre a doçura e a ira. Não existe nenhuma ordem no caos das emoções que gera na tela ou na página a imagem das mulheres, seja uma bela desconhecida, seja a conhecida, ou, corrijo, a mais desconhecida de todas as mulheres - a mãe, e muito em especial a mãe marcada por ferros autobiográficos, a mãe dele, Arrabal. A única ordem possível no caos emocional é a sucessão numérica, dada pela repetição: pela primeira, segunda e terceira vez, o assunto materno aflora nas páginas, é sempre o mesmo assunto, mudem quanto possam as circunstâncias em torno dele.

Uma das mais violentas maneiras de mostrar as forças do caos decorre das cenas de sexo, orgiásticas ou não, que recobrem toda a paleta, desde o encantamento ingénuo até ao sado-masoquismo, acompanhado por todos os seus adereços: chicotes, correntes de bondage, passando pelo ato solipsista, voyeurismo, homossexualidade e mais. Porém não é nesta pulsão de vida, exacerbadíssima, que reside a mais intensa energia do caos, sim nas imagens que nos obrigam a desviar os olhos, por muito que saibamos que em teatro e cinema tudo não passa de encenação, de efeitos especiais, luz e sombra sobre uma tela, caso da coprofagia, da antropofagia, da necrofilia e similares. Na peça La primera comunión, temos, como personagens, a Avó, a Menina, dois homens e um necrófilo. O burlesco adoça a transgressão quando vemos o último, excitadíssimo, a correr atrás do caixão. No filme J’irai comme un cheval fou, o anão, bon sauvage, come a mão do amigo, entre outras incivilidades, tais como a coprofagia. Em suma, a máxima desordem reside na natureza do corpo, na incivilidade das funções fisiológicas, sobretudo sexuais. A civilização decorre do aculturamento do corpo, da sua domesticação. A criança, em meios civilizados, é ensinada. O homem, ao civilizar-se, começou por legislar sobre as funções corporais: urinar e defecar quando possível e não quando apetece, selecionar alimentos em bons e proibidos, pois nem tudo se deve comer e nem tudo se deve beber. Do mesmo modo, nem tudo se deve praticar quanto à sexualidade, altamente regulamentada em culturas mais fechadas, nas quais pode até o transgressor ser condenado à morte. A repressão das pulsões naturais civiliza, opõe a cultura à natureza. O que temos em cena na obra de Fernando Arrabal é precisamente a força e a desordem da natureza, que lembra quer o confronto entre o homem civilizado e o bon sauvage das Lettres persanes, de Montesquieu, em versão suave, quer o antropófago da literatura de viagens, em versão mais crua. Noutra dimensão, a sagrada, vemos como se expõe toda a selvajaria do catolicismo, mediante atos sacrílegos que a denunciam. Diversas obras representam ou referem episódios e liturgias do catolicismo. Le cimetière des voitures coloca-se, desde a abertura, sob o manto do Apocalipse segundo São João. Lelia, a protagonista de Adieu Babylone, declara ter o sangue envenenado, o que remete para as averiguações inquisitoriais a respeito do sangue limpo e do sangue sujo. Em Oração, peça de fundo bíblico, em que se representa o Génesis e alude à morte de Cristo, as personagens “brincam de carniça”, resultando deste desejo de carnificina a questão de saber o que é a Justiça.

A tortura é outro espelho de incivilidade; vemo-la quer nos fuzilamentos da guerra quer nas cenas de sexo. Em La coronación, a protagonista é toucada com uma coroa de ferros, o que traz à memória a coroa de espinhos de Cristo crucificado; em Strip-tease de los celos - ballet en un acto, a mulher é beijada, presa com grilhetas e chicoteada até à morte. Alguns especialistas da obra de Arrabal interpretam os jogos de tortura e dominação como manifestações do drama do artista em criança: ele amou e odiou a mãe em tempo de exceção, o da mais cruel das guerras, a fratricida, guerra civil. Imaginou a mãe uma delatora fascista, por isso responsável pelo fuzilamento do pai, condenado por Francisco Franco, o ditador. A hipótese não exclui outras, certo é que Arrabal labora com forças libidinais muito poderosas e indomesticadas. Uma delas pode ser a necessidade de catarse. No filme Adieu Babylone, a protagonista declara a sua impureza e o sangue envenenado. Como purificação, aparece algo insólito, impróprio para o efeito, os poemas de Rimbaud. A poesia é o lugar sagrado de Leila, secreto, refúgio, espaço de purificação.

Se assistirmos, de seguida, a vários espetáculos de um artista de stand up, verificamos que o texto vai variando na generalidade, mas que comporta sempre duas ou três anedotas já conhecidas. Isso não acontece por falta de novas narrativas, sim pelo gáudio da assistência, quando reconhece algo já visto e ouvido. Dentro da lei da repetição, é o inciso da previsibilidade, nós gostamos do que antecipamos, a previsibilidade dá-nos a segurança de conhecedores. Note-se que parte do horror à cultura decorre da falta de referências, ora algo que se repete num espetáculo dá-nos a alegria dessas referências, o conforto de pertencermos à paróquia. Em Arrabal, há muitas repetições, de naturezas diversas, motivos então para nos sentirmos familiares da sua obra. Assinalemos uma, nas entrevistas, pelo quanto tem de original e de astuto: a história de como nenhum dos grandes acidentes da sua biografia foi merecido, ele é uma pessoa igual às outras, sem especiais méritos, tudo o que lhe aconteceu foi por acaso. O primeiro acaso foi o de ter vencido um prémio para crianças superdotadas, salvo erro em Ciudad Rodrigo, cidadezinha onde cresceu, em Espanha, perto de Salamanca. A um jornalista que o entrevista diz, negando-se merecedor do geral apreço: “Não devia ter-me apresentado como o maior dramaturgo do mundo, sim como um tigre de Bengala”.

Devem-se unicamente ao Acaso, esse grande fautor do discurso da Evolução darwiniana e dos processos criadores surrealistas, os sucessos que se produziram na sua vida: fama, prémios, e castigos que foram benesses para a arte, como o fuzilamento do pai, a proibição das suas obras no franquismo e a sua prisão, em 1967. Já depois da morte de Franco, com Santiago Carrillo, La Pasionaria, Líster e El Campesino, foi integrado no grupo dos cinco espanhóis mais perigosos, por isso impedido de retornar ao país durante alguns anos. Nem todos têm no currículo episódios tão merecedores de ser integrados numa obra artística, porém o “merecedores” não quer dizer que tenham ocorrido por mérito de Arrabal, pelo contrário, enfim, depende do ponto de vista. Assim, também não foi por mérito que conheceu inúmeras personalidades importantes no meio artístico e cultural, antes por acaso, e foi por mero acaso que tomou parte no que considera os quatro avatares da modernidade - Dadá, Surrealismo, Pânico e Patafísica, fundada esta por Alfred Jarry, não como arte, sim como “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções”. Na realidade, a ligação foi frutuosa, e, no caso do Movimento Pânico, influenciado por Buñuel, o cineasta, diríamos mesmo que Fernando Arrabal foi o seu pai, em cooperação com Alejandro Jodorowsky e Roland Topor. Diria eu que, fundado em Paris o movimento, em 1962, só por lei da exceção tal teria acontecido por acaso.


O acaso de Arrabal é o darwiniano, talvez na modalidade moderna da Sociobiologia, o darwinismo social, e digo-o porque no programa “Nature” (Youtube), Arrabal refere Edward O. Wilson, seu polémico fundador, a propósito do invulgar acasalamento das baratas.

Comenta ele, ou uma personagem da peça La coronación: “Debe imaginar, por ejemplo, en una primera hipótesis, que el porvenir crea el mundo, que el porvenir es fruto del azar, y así descubrirá las leyes que rigen el azar. Gracias a estas leyes, apoyándose en la confusión, usted pone las bases de un sistema.” Constituído o sistema, estabelecidas as regras, produz-se a cosmificação, desaparecendo com ela o acaso. Em teoria, claro. Na prática, em nada adianta ao génio desordeiro de Arrabal a obediência a regras que mais não fariam do que recriar o classicismo. De qualquer modo, uma das leis de Arrabal é a repetição, analisávamos. A repetição consiste em usar a memória como arca de lembranças. Define ele, na entrevista “Cineasta y director” (Youtube), que “O cinema é a arte de combinar recordações”. As dele são fortíssimas, por isso anulam as ligeiras, e estão sempre a vir à cena, repetem-se, tornam-se uma das leis que regem o acaso.

Sim, vemos que existem leis. As mesmas personagens circulam por obras independentes, os mesmos temas reaparecem em filmes e peças distintos, o que tanto favorece a organização como a desordem do caos. Arrabal convive com a desordem, visto que é geradora de vida, um motor de ações. Porém, para trabalhar neste sistema caótico, trespassado por forças poderosas, algumas leis, ainda que mínimas, são necessárias. A repetição, seja de temas, em primeiro lugar autobiográficos, ligados quer ao desejo pela mãe, quer à descoberta do pai, condenado à morte por obra de Franco, quer portanto à Guerra Civil Espanhola, a repetição é central. A guerra, e muito em especial guerra civil, aquela em que membros da mesma família se matam, é o nervo contínuo em toda a obra, e não apenas em Viva la muerte ou Pic-Nic. Certos tópicos repetem-se, como um leitmotiv, a exemplo do tema de Babilónia, que não só aparece nas obras que a referem em título, como no interior de outras, a exemplo de Le cimetière des voitures. Fora das peças, em entrevistas e outros documentos pessoais, disponíveis no Youtube, vemos como se apresentam essas repetições. Na entrevista de Toledo, dirige-se a uma cabina telefónica para falar com Deus; no documento “Nature”, a dado passo vai atender o telefone, e fala com Deus uns segundos, até se aperceber do engano, pois o interlocutor é na verdade o Marquês de Sade.

É também o caso de Guernica, no filme L'arbre de Guernica. O termo Guernica refere-se à povoação bombardeada e também à árvore de Guernica, o carvalho símbolo das liberdades do País Basco, em frente da sede da administração. O carvalho permaneceu de pé apesar do bombardeamento de 1937. Durante todo o filme, Lira quer saber se a Guernikako Arbola, na língua euskera, se mantém de pé, viva, como ela, apesar de presa nos escombros. Finalmente, Guernica refere-se ainda à tela de Picasso, atualmente no Museo Reina Sofía, em Madrid, obra com a qual Fernando Arrabal mantém empatia tão forte que o leva a transportar para a peça o pormenor da mulher com a menina ao colo da tela de Picasso. Mais um elemento cultural ibérico muito profundo liga a obra dos dois artistas, o animal, com a presença do touro e do cavalo. A tourada, tão polémica hoje, devido aos movimentos a favor dos direitos dos animais, pertence à raiz da cultura mais antiga, quer em Espanha quer em Portugal. Em suma, todos estes elementos, Guernica e animais, se repetem em diversas obras.

Também a música pode ser leitmotiv. Tal acontece com a canção infantil que passa de filme para filme, e abre, por exemplo, Viva la muerte e, em Borges, una vita di poesia, não só dá início ao filme como o remata. Este é um filme modelo quanto à repetição, visto que essencialmente construído pela conversa de Borges, entrecortada por fragmentos dos filmes de Arrabal. Reconhecê-los causa a alegria do sentimento de pertença à obra, empatia com a arte.

Sendo tão autobiográfica a obra de Arrabal, não admira que algumas personagens familiares nela se repitam, tal acontecendo com a mãe, o pai e sobretudo a criança, o menino que ele foi, e se torna adulto. En J’irai comme un cheval fou, o bon sauvage magrebino, o anão, parece uma imagem especular de Arrabal, se bem que a personagem principal, belo homem, alto, vestido de fato e gravata, na travessia do Sahara, por ter morto ou desejado matar a mãe, se adapte psicologicamente melhor à tarefa do autorretrato. As personagens e as ações ganham vigor com a música, quando o mais puro flamenco serve de fundo a um ato atroz, quando o mais excelso gregoriano acompanha uma cena de canibalismo.

Pela repetição e diversidade, uma vez abolido o entrecho pelas vanguardas, o que se apresenta é uma sucessão de quadros, conduzidos pelo fio das personagens, hipercarregados ambos de simbolismo e História, o que torna muito complexas todas as cenas.

Outra forma de repetição é a personagem dupla ou itinerante. Os mesmos nomes de personagem passam de obra para obra. Ou dada obra duplica-se, caso do filme para crianças The Odyssey of the Pacific, com Mickey Rooney, Imperador do Peru nesta e na versão francesa intitulada L’Empereur du Pérou. Outro modo de repetição de personagem ocorre em Pic-Nic: os dois soldados protagonistas têm quase o mesmo nome, Zapo e Zepo, são iguais, vestem-se de igual maneira, salvo que a cor das fardas é diferente, mas tal não diz respeito às pessoas, sim à rivalidade dos exércitos. Iguais como Dupont e Dupond, e digo isto apenas para trazer a cultura mais popular à colação, pois Arrabal preza todas as artes e todas refere, num momento ou noutro. A sua bagagem é eclética e aberta a sua mente. Nesta mesma peça, Pic-Nic, é notória a referência às fotografias de caçadores africanos, com o pé dominador sobre o leão abatido, no caso aplicado um tom burlesco à imagem do soldado com o pé sobre o corpo do prisioneiro. Em Adieu Babylone explodem as artes populares urbanas, em Nova Iorque.


As mortes são inúmeras, devem constar de todas as obras. Seja, mais em evidência, em Viva la muerte!, seja em Oração, um divertimento no cemitério, seja em Cimetière des voitures, em que naturalmente morrem os automóveis em primeiro lugar, seja em Adieu Babylone, filme que nos dá de Nova Iorque uma imagem compósita, na qual desfila todo o tipo de figuras incomuns, desde mendigos a artistas. Num cenário carregado das práticas de vanguarda, sendo as artes de rua as mais visíveis, com o grafitti, o teatro, a dança, o mimo, a música, o desfile de máscaras, a morte aparece de maneiras inesperadas, bastando um exemplo: a respeito de Lelia, a protagonista, diz o narrador que era preciso “sentá-la delicadamente numa cadeira elétrica último modelo”.

Mais inacreditável exemplo, para não falar da morte do pai, em Viva la muerte!, que assimila o que a vox populi refere do fuzilamento atroz de Federico García Lorca, recorda Emanuelle Riva, a atriz principal de J’irai comme un cheval fou, que a sequência mais difícil, entre as maiores dificuldades da antevista censura que esperava a longa metragem, tinha sido a do matadouro. Durante a rodagem, tal fora a agonia, que George Shannon, o ator com quem contracenava, tinha desmaiado (ver “Cineasta y director”, no YouTube).

Em suma, a Guerra Civil Espanhola é o motor preponderante da imaginação explosiva de Arrabal; direta ou indirectamente, ela figura em todas as obras, com toda a sua crueldade, causadora de uma incurável ferida: o pai fuzilado e a culpa que atribuiu à mãe.

A diversidade das repetições cria uma outra lei, maior, que já não se relaciona com a vanguarda, sim com o classicismo, a lei da unidade. Dito de maneira mais moderna, a obra de Fernando Arrabal flui como um poema contínuo, uno, a despeito da explosiva diversidade das cenas.

 

ARRABAL AGORA E SEMPRE

Volvido um centenário sobre as primeiras manifestações de vanguarda, Arrabal, que se diz ancorado nos quatro avatares da modernidade, Dadá, Surrealismo, Movimento Pânico e Patafísica, não perdeu nada do seu pantagruelismo visceral, ele continua vivo, ardente, e muito mais polémico do que atuais muito bons sucessores, se existem. Ocorre-me Quentin Tarantino, mas este cineasta, obcecado pelo sangue, fica muito circunscrito à violência, e, dentro dela, à violência em situação de banditismo, ao passo que Arrabal é explosivo em todas as tão variadas circunstâncias da vida, sua e alheia, e o sangue não é nele elemento preponderante. A diversidade na obra de Arrabal é uma riqueza difícil de ultrapassar.

Tão Arrabal hoje como há cinquenta anos, não admira que regularmente recebamos notícias das suas atividades ou das atividades de outrem sobre a sua obra. Basta pesquisar o Google para vermos que armazena uns três milhões de registos sobre o artista.

Diego Moldes, em Agulha Revista de Cultura, nº 154, dá-nos a imagem da importância de Fernando Arrabal, ao escrever: “En una carrera como escritor y, fundamentalmente, dramaturgo (se dice que es el más representado del mundo, no sólo entre los de lengua española)”.

A ação de Arrabal sobre a sua geração e sequentes é por certo imensa. Contam-se por centenas os artigos e livros sobre a sua obra; a Wikipédia menciona umas dezenas, entre eles alguns publicados na Agulha Revista de Cultura, em especial de Wilson Coêlho, que dedicou a Arrabal a sua tese de doutoramento. E porque o meu contributo se insere na série daqueles com que a Agulha o vem homenageando nos últimos meses, é justo mencionar sobretudo os números 154, de junho, e 157, de setembro de 2020, por mais concentrada e exclusivamente o darem a conhecer no seu esplendor de expoente máximo da modernidade.

A ação sobre outrem pode ser involuntária. Assim, por curiosidade, refiro que existe um filme, de Raphaël Frydman, intitulado Adieu Babylone, posterior ao homónimo de Arrabal e, já agora, confesso que fiquei incomodada ao verificar que, antes de aparecer, em 2019 (Ed. Urutau) e 2020 (em versão trilingue das editoras Cintra e ARC), o meu livro de poemas Clitóris Clítoris, já Arrabal tinha publicado o seu livro-poema Clítoris em 2008, que ainda não tive oportunidade ler. O Clítoris de Arrabal conta atualmente com 56 traduções. Se bem que eu repudie a ideia popular de que uns artistas são melhores do que outros, ou seja, que a arte é uma competição, tenho de me vergar à evidência de que raros poderão competir com Arrabal. Ele é inigualável, seja qual for o ângulo que escolhamos para o analisar.

Arrabal continua a ser encenado, lido e visto no YouTube. A tradução continua, e cabe mencionar as peças traduzidas para português por Floriano Martins, uma delas, Oração, publicada já, no número da Agulha Revista de Cultura de junho deste ano.

Para a consagração de um ator de comédia português, Raul Solnado, já desaparecido há uns anos, contribuiu muito um monólogo sobre a guerra que recorda cenas bélicas de Arrabal, em especial da peça Pic-Nic, na qual se transporta o drama para o comezinho literal do piquenique, não só quanto ao que se come e bebe, mas sobretudo pela insólita situação de a guerra se tornar situação de discurso quotiano, em sáo viáveis perguntas como esta: “cuando empieza outra vez la batalla?” “A história da minha ida à guerra de 1908”, interpretada por Raul Solnado (disponível no YouTube) nos anos 70, é um monólogo burlesco, em que também se pergunta a que horas começa e acaba a guerra, se refere a necessidade de o soldado levar cavalo, e várias outras situações idênticas às de Arrabal.

Termino com a nota da minha primeira experiência do teatro de vanguarda, teatro de rua, cujo guião, Paradise Now, não pertence, mas podia pertencer a Arrabal, que aliás é amigo de Julian Beck e Judith Malina, os dois pilares do Living Theatre. Foi em 1977, em Lisboa, durante a Alternativa Zero, desencadeada por Ernesto de Sousa. Data e acontecimento memoráveis, por equivalerem nas Artes àquilo que na vida dos cidadãos correspondeu a revolução de 25 de Abril de 1974: o grito de liberdade. Ora, se nos pedissem para resumir a uma só palavra a grandeza da obra de Arrabal, a palavra só poderia ser essa: Liberdade. 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 158 | outubro de 2020

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

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