sexta-feira, 17 de junho de 2022

GASPAR GARÇÃO | Luis Buñuel e os jogos do imaginário: surrealismo, sexo e religião

 


Luis Buñuel y Portolés, nascido na vila de Calanda, Espanha, a 22 de Fevereiro de 1900, o “actor” principal deste breve resumo biográfico e artístico, é hoje unanimemente considerado como um dos expoentes máximos da arte cinematográfica mundial, um dos grandes Mestres (a par de Bergman, Visconti, Fellini, Antonioni e Kurosawa), não só pela nova gramática que trouxe ao inconsciente colectivo dos seus espectadores, feita de Desejo, Sexo, Paixão, Pulsão e Perversão, mas também pela coragem e bravata das suas experiências, das suas transgressões fílmicas, pela nitidez com que expôs no grande ecrã as fraquezas, delírios e prazeres de toda uma sociedade que se viu reflectida no espelho e teve receio de retribuir o olhar…

Buñuel, artista multifacetado, forjado na experiência surrealística e no ambiente culturalmente rico da Es­panha pré-Guerra Civil, tentou sempre levar até aos limites a noção de que tudo era questionável na sociedade contemporânea, desde os dogmas religiosos até às noções de pudor e de decoro social, procurando nos seus filmes um olhar ao mesmo tempo límpido e oblíquo sobre as relações humanas, sobre os jogos sociais e o absurdo da vivência social, tentando compreender a psique humana.

A vida de Buñuel, extremoso pai de família e a antítese psicológica dos seus protagonistas, é cheia de episó­dios, de descobertas, de realizações e contradições, que iremos abordar neste trabalho de uma forma sintética, que poderá não fazer jus a um criador de tamanha complexidade e qualidade, mas que poderá abrir as portas à obra de um artista inigualável, que foi, como refere João Benárd da Costa na sua resenha fílmica no catálogo da Cinemateca Portuguesa, um cineasta do “profundo desejo em latência e profundamente perturbador, cuja raiz, como a de qualquer mistério, não é muito facilmente explicável, ou não o é de todo”.

Referência esta feita a propósito do seu primeiro filme, o polémico, ultra-surrealista e desvairado Un Chien Andalou, de 1929, que inicia uma viagem ímpar pelos mundos dum cinema pessoal, obcecado e de autor, que pode balizar todo o seu percurso iconoclasta e irreverente pela tela dos sonhos.

 

O virar do século – infância e adolescência

A vila de Calanda, no início do século XX, e a infância e juventude de Luis Buñuel passadas nessa “so­ciedade isolada, imóvel, marcando muito claramente as diferenças entre as classes”, foram decisivas para o seu desenvolvimento como adulto e para a sua obra, como o próprio refere na sua autobiografia: “É a Calanda que eu devo os meus primeiros encontros com a Morte que, juntamente com uma fé profunda e o despertar do instinto sexual, compõe as forças vivas da minha adolescência”.

Nesta frase assustadoramente sincera, já se vislumbra o Buñuel dos filmes blasfemos sobre a religião, dos seus encontros com a perversão e o libertar do desejo sexual e a sua correspondente frustração, que analisaremos nos próximos capítulos.

Outro episódio marcante do imaginário psicológico de Calanda para a criança Buñuel, é o ritual dos tam­bores de Calanda, que o fascinou e o perseguiu durante toda a sua carreira, chegando a incorporar essa batida sincopada em muitos dos seus filmes. Os tambores de Calanda, segundo relata na sua autobiografia, “batem sem interrupção, ou quase, desde o meio-dia de Sexta Feira Santa até ao dia seguinte, sábado santo, à mesma hora, comemorando as trevas que se estenderam sobre a terra no instante da morte de Cristo. (…) Cerimónia colectiva impressionante, extremamente comovente, que ouvi pela primeira vez no berço, com a idade de dois meses, participei nela depois muitas e várias vezes (…) dando a conhecer estes tambores a numerosos amigos, que tal como eu, ficaram fulminados de emoção”. Emoção devida “às pulsações de um ritmo secreto que nos surpreende do exterior e nos transmite uma espécie de fricção física, fora de qualquer razão”.

Mas no resto do tempo, Calanda era uma vila obstinadamente aragonesa, fechada, conservadora, religiosa e beata e, apesar da família Buñuel se ter mudado para Saragoça quando Luis fez quatro meses, era nela que passava a maior parte do seu tempo mental e as férias. O seu desejo de mudança era já difícil de controlar, e a sua família, de classe média e moderadamente religiosa, já se havia apercebido disso, quando Buñuel foi expulso, aos catorze anos, do colégio de Jesuítas onde havia ingressado muito novo. Os desafios filosóficos e religiosos do aluno, dotado e rebelde, levaram os seus pais a matriculá-lo no Instituto de Saragoça, laico, onde terminou o liceu e descobriu as obras de Spencer, Rousseau, Marx e Darwin, que o fizeram perder o pouco de Fé que ainda lhe restava.

Na Saragoça da sua infância e adolescência, de que Buñuel se relembra como uma “cidade calma e plana, onde os carros puxados a cavalo caminhavam já ao lado dos comboios”, dá azo ao seu prazer de encenações teatrais imberbes com os pequenos teatros que os pais lhe traziam de Paris, e ao seu amor precoce pelo cine­ma, uma etapa de transição para o alargar de horizontes que se deu quando mudou para a capital, Madrid, aos dezassete anos.

O período que passa na Residência de Estudantes em Madrid, de 1917 a 1925, onde sucessivamente es­tudou Engenharia Agrónoma, Engenharia Industrial e depois Filosofia, é o primeiro capítulo da história de Buñuel verdadeiramente como “mito”, tão bem demonstrado no filme/fantasia que Carlos Saura dedicou a esta época riquíssima da sua vida, Buñuel y la Mesa del Rey Salomon.

Na Residência conheceu, privou e fez amizade com homens que se tornariam grandes vultos da cultura espanhola, como os poetas Rafael Alberti e Federico Garcia Lorca, e a mais marcante, com o genial pintor Salvador Dalí, com quem manteve uma relação atribulada, que foi desde a mais estreita colaboração até ao rompimento total.

Nesta época, enfrentou-se “com uma escolha inevitável. O ambiente em que vivia, o movimento literário que agitava Madrid nesse momento e o encontro de amigos inestimáveis – tudo isso influenciou esta escolha. Em que exacto momento decidi eu a minha vida? Hoje é quase impossível dizer”.

Começou aí o seu interesse pela cultura, pelas “penãs”, tertúlias literárias que juntavam uma série de gera­ções de intelectuais, de pensadores, de filósofos, onde conheceu Ramón Gomez de la Serna, que o iniciou no cinema, e o grande pensador Miguel de Unamuno, além de Jorge Luis Borges. Mas nesta época, os interesses do jovem Buñuel eram mais terrenos e “normais”: “É-me impossível contar dia após dia o que foram esses anos de formação e encontros, as nossas conversas, o nosso trabalho, os nossos passeios, as nossas bebedeiras, os bordéis de Madrid (…) e as nossas longas noitadas na Residência”.

As paixões de Buñuel eram já nesta altura muito “surrealistas”, e obviamente de curta duração, desde a música tradicional espanhola (tentou aprender a tocar banjo), até às partidas originais que faziam aos incautos (chegou a fingir ser guia turístico no Museu do Prado, levando dezenas de turistas atrás, fascinados pelas suas absurdas e absolutas mentiras sobre as obras de arte), e ao hipnotismo. A criação mais interessante dos seus inícios “estudantis” e culturais foi, em 1923, a Ordem de Toledo, apócrifa e original, que consistia em rituais típicos da juventude, mas que demonstravam já um fascínio pelo proibido, pelo inalcançável, pelo mistério e pelo Saber.

Foi nesta época que o cinema voltou a interessar o jovem Buñuel, que já anteriormente, quando criança em Saragoça, se havia apaixonado por Méliès e Greta Garbo. Em Madrid, assiste, em encontros românticos, a filmes de Harold Lloyd, Buster Keaton e Chaplin. Reflecte Buñuel, muitos anos depois, que “o cinema trazia uma forma de narração tão nova, tão desabitual, que a imensa maioria do público mal conseguia compreender o que se passava no écran”.

Na sua autobiografia, Buñuel continua a elaborar estas reflexões a posteriori, dizendo, algo cruelmente, que acha que “o cinema exerce sobre os espectadores um certo poder hipnótico. Basta olhar para as pessoas que saem duma sala de cinema, sempre em silêncio, com a cabeça baixa e um ar longínquo. (…) A hipnose cinematográfica, ligeira e inconsciente, exerce-se, sem dúvida, através da obscuridade da sala, mas também por meio das mudanças de planos, luzes e movimentos de câmara, que enfraquecem a inteligência crítica do espectador e exercem sobre ele uma espécie de fascínio e violação”. Fascínio e “violação” das expectativas e da personalidade do espectador que, pode ser dito, foram os objectivos do seu cinema, e o resultado do seu poder e “hipnose” perante nós, os seus “discípulos”.

A morte do pai, em 1923, é o momento mais marcante destes seus anos como estudante universitário, re­gressando a Saragoça para o enterro (onde têm uma alucinação com uma visita do pai, fantasma, como muitos anos depois ficcionará em Viridiana), tornando-se ele o chefe de família, o primogénito de sete filhos.

Este trágico acontecimento marca o início da próxima etapa da sua vida: “sem a morte do meu pai, teria talvez permanecido mais tempo em Madrid. Conseguira o meu diploma de Filosofia e renunciara a prosseguir os meus estudos até ao Doutorado. Queria partir a todo no custo, só estava à espera duma ocasião, que surgiu em 1925”.

Buñuel parte para Paris em 1925, a cidade onde havia sido concebido, e onde dará os passos decisivos, adultos, no mundo da cultura e no mundo do cinema, que tomará de assalto em 1929.

 

O inicío da viagem cinematográfica – Dalí, Un chien andalou & L’age d’or

A primeira estadia de Buñuel em Paris dá-se com o pretexto de acompanhar e ajudar um amigo, Eugenio d’Ors, que vai ocupar um cargo numa instituição cultural internacional, passando Buñuel os dias a ler e a aper­feiçoar o seu francês e o seu inglês, vivendo frugalmente com o dinheiro enviado pela mãe.

Buñuel retoma as suas participações em tertúlias, convivendo com os “metecos” (emigrantes espanhóis), tomando contacto com as delícias da vida boémia parisiense, com o vinho e as mulheres de Montparnasse, confraternizando com pintores e escritores como Picasso, embora nesta época o movimento surrealista não o atraísse ainda.


Nestes anos iniciais em Paris, Buñuel escreve algumas peças teatrais curtas que encena com amigos (Ham­let, inédita em livro até aos anos 80, quando a Cinemateca Portuguesa a publicou), tendo a sua primeira grande oportunidade no mundo cultural com a encenação da peça Retablo de Maese Pedro, com música de Manuel de Falla, a partir de Don Quixote, representada com sucesso em Amesterdão.

Apesar das suas frequentes visitas a Madrid, onde convive como antigamente com o seu grupo de amigos, e onde assiste à estreia da peça Dom Perlimplim, ou Bélise no seu Jardim, de Garcia Lorca, o passo seguinte de Buñuel seria envolver-se no mundo do cinema, começando a escrever críticas na revista “Cahiers d’Art”, so­bre Buster Keaton, Eric Von Stroheim, Fritz Lang, Eisenstein, Murnau etc. Em 1927 participa, como assisten­te de realização, nos filmes Mauprat e A Queda da Casa de Usher, de Jean Epstein, dando os primeiros passos na aprendizagem técnica do seu futuro “métier”. Nesta época tem ainda experiências fugazes como figurante, e como assistente da caprichosa estrela americana Josephine Baker, no filme A Sereia dos Trópicos.

Buñuel pretendeu ainda, em 1928, realizar o seu primeiro filme, a pretexto das comemorações do centená­rio da morte de Goya, tendo inclusive escrito um argumento, mas o projecto não teve seguimento por razões económicas, fazendo ainda uma nova tentativa gorada na escrita de argumentos, com um projecto baseado em contos de Rámon Gomez de la Serna, amigo dos tempos de Madrid, sobre as diversas etapas da produção de um jornal.

No entanto, o início da sua careira cinematográfica não poderia ter sido mais marcante e “explosivo”, com uma curta-metragem icónica que contém mais ideias e uma imagética visual mais poderosa que muitos épicos actuais.

Un Chien Andalou, o primeiro filme inteiramente surrealista, nasce do “encontro de dois sonhos. Ao chegar a casa de Dalí (…) contei-lhe que sonhara, pouco tempo antes, com uma nuvem afilada que cortava a Lua e com uma lâmina de barba que fendia um olho”, e o argumento, escrito a duas mãos com Salvador Dalí, revolucionará o cinema e o movimento surrealista, uma influência cinematográfica e narrativa que ainda hoje se sente.

O filme consiste numa série de sketches, cuja idealização respeitou apenas uma regra, “não aceitar nenhu­ma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural; abrir as portas ao irracional”.

Os membros mais ilustres do movimento surrealista, ao qual Buñuel havia aderido em 1928 (Man Ray, Louis Aragon, Max Ernst, André Breton, Paul Eluard, Tristan Tzara, René Magritte, Benjamin Péret etc.), visionam e aprovam o filme, que é finalmente apresentado perante uma plateia de convidados em 1929, no cinema “Les Ursulines”. Além dos surrealistas, a fina-flor cultural de Paris está presente (Picasso, Jean Coc­teau, Le Corbusier etc.), e Buñuel sente alguma ansiedade, estando por detrás do pano a escolher a banda sonora (tangos e música clássica), com os bolsos cheios de pedras “para lançá-las sobre a assistência em caso de falhanço”. Tal medida desesperada não foi necessária: “no fim do filme, atrás do écran, ouvi os aplausos prolongados e desembaracei-me discretamente dos meus projécteis, atirando-os para o chão”.

Un Chien Andalou é, como Breton tão surrealisticamente o definiu, “belo, como o encontro dum guarda-chuva e dum cão na mesa de autópsia”, um filme sobre “a punição do próprio acto de olhar (…) associado à proibição do prazer erótico (…), à morte. Neste sentido (…), é uma prodigiosa introdução a uma imagética e a uma ética”, como refere Bénard da Costa.

A este sucesso fílmico, segue-se a integração de pleno direito no grupo surrealista, nas suas reuniões e acti­vidades, muito centradas na ideia de revolução “contra as desigualdades sociais, a exploração do homem pelo homem, a dominação embrutecida da religião, o militarismo grosseiro e colonialista”, ideias que levaram muitos membros a desligar-se do movimento e a aderir ao Comunismo, do qual Buñuel foi apenas um simpa­tizante fugaz, um “compagnon de route” até aos anos 50.

No entanto, a génese do envolvimento social era uma parte intrínseca do movimento, como o próprio Buñuel refere: “o verdadeiro objectivo do surrealismo não consistia em criar um novo movimento literário, ou pictórico, ou mesmo filosófico, mas sim em fazer estoirar a sociedade, mudar a vida”.

Depois do sucesso crítico e de público do filme (que ainda assim recebeu denúncias na polícia por obsce­nidade e crueldade), Buñuel passou por algumas quezílias com o cada vez mais politizado movimento surrea­lista. Mas é ainda sob a égide do surrealismo que realiza o seu segundo filme, a média-metragem L’ Age d’Or, em 1930. Patrocinado pelo Visconde de Noailles, mecenas das artes vanguardistas, Buñuel inicia o argumento de novo com Dalí, mas dá-se uma ruptura profissional, por motivos de opinião, à qual se seguirá, muitos anos depois, a ruptura pessoal. Ainda assim, Buñuel mantém Dalí nos créditos como co-argumentista.

O cineasta, que reconhece na sua autobiografia não ter voltado a ver o filme desde a sua estreia, refere que este é principalmente um filme “de amor louco, dum impulso irresistível que impele um para o outro, sejam quais forem as circunstâncias, um homem e uma mulher que nunca se podem unir”, um conceito recorrente nos seus filmes finais.

L’Age d’Or, uma série de três episódios visceralmente violentos e anti-clericais, inspirados na obra do Marquês de Sade, é, segundo Benárd da Costa, apenas “a explicitação da omnipresente associação entre o Amor e a Morte”, na sua obra, provocando na sua estreia ondas de ultraje e de denúncia, com os meios con­servadores e de extrema-direita a tomarem a dianteira na sua repulsa por essa provocação abjecta e os jornais católicos a proferirem a excomunhão de Buñuel, recomendação que o Vaticano esteve quase a seguir (Buñuel no futuro dar-lhes-ia razões para reverem esta atitude). Os grupos de extrema-direita, nessa altura e até ao final da guerra muito activos em França, chegaram a lançar bombas para os cinemas onde o filme era projectado, e a destruírem as suas cadeiras. O filme foi imediatamente proibido pelo direitista chefe da polícia de Paris, e só seria visto neste país cinquenta anos depois (em Portugal só seria projectado em 1982).

Buñuel está, nesta época, no pleno desabrochar das suas capacidades criativas, e além do grupo surrealista com quem continua a conviver (e que o defende na polémica que se seguiu), conhece também outras figuras importantes do mundo cultural, como Juan Miró, Georges Battaile e Antonin Artaud. Reflectindo muitos anos depois sobre o movimento surrealista, o cineasta escreve que este “estava pouco preocupado em entrar glo­riosamente nas histórias da Literatura e da Pintura, o que ele desejava acima de tudo, desejo imperioso e irre­alizável, era transformar o mundo e mudar a vida (…). Devorados por sonhos imensos (…) não éramos nada – nada mais que um pequeno grupo de intelectuais insolentes, que palavreavam num café e publicavam numa revista. No entanto, ficou-me para toda a vida alguma coisa da minha passagem (…) pelas fileiras exaltadas e desordenadas do surrealismo, [o] livre acesso às profundezas do ser, reconhecido e despojado, este apelo ao irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que vêm do nosso eu profundo. Apelo esse que ressoava (…) com uma tal força, uma tal coragem, e que se rodeava de uma rara insolência, dum gosto pelo jogo, duma intensa perseverança no combate contra tudo o que nos parecia nefasto”.

Depois da obra-prima que é L’Age d’Or, Buñuel entrará numa fase criativa irregular, voltando apenas a filmar em Espanha em 1932, outro filme polémico e censurado, o documentário Las Hurdes, que descreve uma Espanha pobre e envergonhada, a mesma Espanha que brevemente iria mudar drasticamente com o início da Guerra Civil.

 

A guerra civil espanhola – A fuga para França e o “exílio” em Hollywood

Apesar do escândalo de L’Age d’Or, Buñuel é ainda assim convidado pelo chefe dos estúdios da Metro- Goldwyn-Mayer em Paris, impressionado pelo que vira no filme, a empreender uma viagem de seis meses a Hollywood, de aprendizagem e de troca de conhecimentos. Na sua primeira estadia em Hollywood, Buñuel conhece e priva com grandes nomes do cinema e das artes, como Chaplin, Bertolt Brecht, Josef Von Sternberg, Serguei Eisenstein, assim como os chefes dos grandes estúdios.

Mas rapidamente se desilude com a máquina dos estúdios de Hollywood e, sendo ignorado e pago mesmo sem efectuar qualquer trabalho, limita-se a comparecer a festas e cocktails dados pelos seus amigos, pouco aprendendo desta primeira passagem pela Meca do cinema.

Ao chegar a Paris, Buñuel tem à sua espera a noiva, Jeanne, e juntos partem para Madrid, onde pouco de­pois é proclamada a República Espanhola, em abril de 1931.

É em Espanha, depois de um progressivo afastamento do grupo surrealista, cada vez mais embrenhado na política, que Buñuel realizará o seu terceiro filme, o documentário Las Hurdes, uma média-metragem chocan­te e dolorosamente real, sobre a pobreza duma região montanhosa entre Cáceres e Salamanca, na Extremadu­ra. O filme tem uma génese algo “surrealista”, segundo conta Buñuel na sua autobiografia. Ramón Acin, um seu amigo anarquista, depois fuzilado na Guerra Civil, prometeu-lhe financiar o filme se lhe saísse a lotaria, e dois meses depois, o “impossível” aconteceu, e Buñuel partiu apenas com um assistente e um operador de câmara para a desolada região. O documentário, apresentado em 1933 apenas com imagens, sem narração, foi prontamente proibido pela jovem República, com o argumento de que dava uma imagem feia e desagradável de uma Espanha que se queria moderna (o filme, com narração em voz off e banda sonora de música clássica, apenas foi permitido em 1937).

Buñuel comenta na sua autobiografia que “estas montanhas deserdadas conquistaram-me rapidamente. A destreza dos habitantes fascinava-me, assim como a sua inteligência e o seu apego à terra perdida, à sua terra sem pão [o subtítulo do filme em português]”.

Bénard da Costa considera Las Hurdes um filme “aparentemente (…) nos antípodas do surrealismo de­lirante das duas primeiras obras”, mas ao assistir-se ao desfile de caras cheias de dor e fome, de pobreza, angústia e desespero, mas também de altivez e de esperança, antevê-se um pouco do que transpareceria mais detalhadamente em Los Olvidados: o microcosmos da natureza humana. Como Buñuel referiu, ”não são as imagens que são surrealistas, o mundo é que o é”.

A imagem final que nos fica deste filme, e uma das ideias-chave da sua obra, é a litania que uma velhota murmura ao atravessar o lugarejo miserável onde vive: “nada pode manter-nos mais acordados do que pensar permanentemente na morte”.

Depois de mais uma proibição dum filme seu, Buñuel casa-se com Jeanne, em 1934, e nesse ano nasce o seu primeiro filho e futuro realizador, Juan-Luis. Decide então enveredar por uma carreira de produtor, mais promissora em termos económicos, através da colaboração com Ricardo Urgoiti, com o qual fará uma série de filmes populares. Nem os seus biógrafos concordam sobre qual terá sido exactamente o papel de Buñuel nesta época, embora se julgue que tenha co-realizado e co-escrito, embora sem aparecer nos créditos, La Hija de Juan Simon e Don Quintin el Amargao (1935), o último filme o seu maior sucesso desta época e que depois rodará no México em 1951, como La Hija del Engano, e ainda Centinela Alerta! e Quien me Quiere a Mi?, de 1936.


Depois da eclosão da revolta militar, em 1936, e do início da Guerra Civil, Buñuel mantém-se em Madrid, longe da mulher e do filho, que haviam partido anteriormente para Paris. Buñuel descreve com paixão, tristeza e angústia estes anos, que viveu por dentro, descrevendo o caos, a desorganização e o terror, mas também a coragem e a militância dos habitantes da capital espanhola, juntando-se aos combatentes e chegando a salvar de um fuzilamento certo o seu amigo Saenz de Heredia, realizador de La Hija del Engano e simpatizante fran­quista. Apesar das suas simpatias teóricas pela anarquia, Buñuel não aprova o comportamento arbitrário dos seus apoiantes e das suas brigadas, assim como não apoia as brigadas do P.O.U.M., um grupo trotskista, já se antevendo aqui os conflitos que iriam minar a resistência republicana.

O acontecimento mais dramático nesta época, para Buñuel, foi o assassinato do seu amigo Federico García Lorca, em 1936, de quem se lembra emocionadamente como alguém que “pela força da nossa amizade, [me] transformou, fez-me conhecer outro mundo. Devo-lhe bastante mais do que aquilo que possa dizer”.

Em 1937, Buñuel parte para Paris, para ajudar a República em acções de propaganda, a pedido do Minis­tro dos Negócios Estrangeiros, sendo chefe de protocolo na embaixada espanhola, supervisor dos filmes de propaganda rodados em Espanha (tendo colaborado em Espana Leal en Armas, de 1937). Nesta altura, viaja também pela Europa, com o intuito de angariar fundos para a causa republicana. Em 1939, vai continuar es­sas funções em Hollywood, onde será brevemente conselheiro histórico e técnico de filmes de propaganda, privando de novo com Chaplin, a quem acusa de não ter ficado abertamente ao lado da Espanha, e com René Clair, realizador francês com quem compartilha muitos dos interesses fílmicos.

Após a derrota dos republicanos e o fim da Guerra Civil, Buñuel pede asilo político aos Estados Unidos, iniciando-se assim mais um capítulo da sua vida, pautado pelo deserto cinematográfico e criativo, que só ter­minará em 1946.

 

O “exílio” mexicano – Los olvidados

A chegada de Buñuel a Nova Iorque em 1940 (onde nasceria o seu 2º filho, Rafael, nesse mesmo ano), dá-se para trabalhar no Museu de Arte Moderna (MoMA), para supervisionar documentários de resistência aos Na­zis, e ainda a remontagem de vários filmes de propaganda nacional-socialista, como O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, dobrados em várias línguas para distribuição no estrangeiro. Nesta época, convive com ou­tros expatriados do movimento surrealista, como Breton, Ernst, Marcel Duchamp, Ferdinand Léger, e conhece escritores como Saint-Exupéry e Claude Lévy-Strauss, além de muitos outros apátridas da Guerra Mundial.

Em 1943, Buñuel demite-se do seu cargo (para não ser demitido), devido às polémicas declarações de Dalí na sua recém-publicada autobiografia, em que apelida Buñuel de comunista e ateu. As relações entre ambos, que já eram frias, ficariam irrevogavelmente danificadas, tendo os dois apenas trocado correspondência cortês e tido alguns encontros esporádicos e “diplomáticos” até ao final das suas vidas.

Sem emprego e com problemas de saúde, Buñuel parte de novo com a família para Los Angeles, onde passará os dois próximos anos a viver às custas do dinheiro amealhado em Nova Iorque. Nessa época, porá as esperanças numa série de projectos, que definiu como “inúteis”: um esboço de argumento com o pintor Man Ray, uma sequência escrita (e não creditada), para o clássico The Beast with 5.000 Fingers, de Robert Florey, e ainda uma fracassada realização de uma adaptação de A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca, a ser filmada na recém-libertada Paris. Das cinzas deste projecto nasceu uma viagem ao México, na qual ocorrerá o episódio que irá marcar a sua carreira futura, um contacto telefónico com um produtor mexicano seu conhe­cido, Óscar Dancigers, que lhe propõe filmar um musical à mexicana com as duas estrelas do momento, uma “encomenda” com óbvio interesse económico que Buñuel aceitará, marcando com a sua presença, de forma indelével, esta “época de ouro” do cinema mexicano.

Dos muitos filmes feitos nesta época, que poderemos considerar a sua primeira fase mexicana, são de me­nor interesse para os críticos as “encomendas” que realizou (algumas com muito sucesso, outras nem tanto), embora todas tenham alguns pontos de interesse para o espectador, principalmente pelo subtexto e a irraciona­lidade inesperada e irreverente que se encontra sub-repticiamente nalguns desses filmes.

Podem-se incluir nesta lista de encomendas os filmes Gran Casino, de 1947, uma comédia musical de amo­res e desamores, em que os dois actores principais fazem um despique de tangos, e que foi um grande fracasso; El Gran Calavera, de 1949, uma comédia de costumes contemporânea sobre um pândego rico, que reconhece os males do seu comportamento, um enorme sucesso que lhe possibilitou fazer projectos mais pessoais (este filme marca também a sua primeira colaboração com Luís Alcoriza, o seu argumentista de escolha na primeira fase mexicana, com quem colaboraria em 11 filmes, até El Ángel Exterminador); e Una Mujer Sin Amor, de 1952, uma complicada “telenovela” à mexicana, que Buñuel considerava o seu pior filme.

Dos filmes que realizou já com argumentos mais pessoais e com uma maior qualidade cinematográfica, destacam-se obras por vezes algo desequilibradas, como Susana, de 1951, uma metáfora sobre o poder do desejo e do pecado, disfarçada de história banal, em que a Susana do título (“perversa” como o subtítulo português a descreveu), semeia a discórdia numa família burguesa; La Hija del Engano, de 1951, drama sen­timental, sobre um pai insensível e a sua filha ilegítima, que é um remake de Don Quintin el Amargao, uma das suas produções dos anos 30; El Bruto, de 1953, com Pedro Armendáriz e Katy Jurado, um drama político e social sobre o ciúme e a violência; Abismos de Pasión, de 1954, uma adaptação para o México contemporâ­neo do clássico O Monte dos Vendavais, de Emily Bronté (um dos romances preferidos dos surrealistas), que Buñuel considerou um fracasso devido ao elenco que lhe foi imposto; El Rio y la Muerte, de 1954, um drama geracional sobre o poder da violência, situado no México profundo; e La Ilusión Viaja en Tranvía, de 1954, um filme que Buñuel não admirava, mas que a crítica recuperou como uma das suas melhores obras deste período, sobre uma surrealista viagem de eléctrico e os estranhos ocupantes da viatura.

Além destas obras, destacam-se nesta fase alguns projectos que rodou no México (com uma excepção), em língua inglesa e francesa. Os filmes em língua inglesa, para distribuição em Hollywood e com co-financia­mento americano, são The Adventures of Robinson Crusóe, de 1953, o seu primeiro filme a cores, adaptação do clássico de Daniel Defoe, que foi um dos maiores sucessos da sua carreira e que valeu uma nomeação ao Óscar de Melhor Actor a Dan O’Herlihy (e ainda três prémios “Ariel”, o Óscar mexicano, a Buñuel, para Melhor Filme, Realizador e Argumento); e The Young One, de 1960, um dos filmes mais incompreendidos e subvalorizados da sua carreira, uma pessoalíssima e crua reflexão sobre o desejo e o racismo, com laivos de Lolita, sobre a relação de um órfã adolescente, Evvie, que vive sozinha numa ilha do Sul dos EUA, com um negro fugido à justiça e o seu pretendente adulto e branco, uma personagem que é o arquétipo fiel do apoio à segregação e discriminação desta época. Bénard da Costa classifica a personagem de Evvie como o retrato da “inocência perversa, assombrosa mescla de capacidade de detonação do mal e da ingenuidade mais despreve­nida”. O filme, que foi um fracasso de público, ainda assim recebeu um prémio internacional importante, a Menção Especial do Festival de Cannes.

Os filmes realizados em língua francesa e em co-produção com a França foram menos conseguidos e mais frustrantes para o realizador, podendo ser também considerados “encomendas”, embora tratando temas mais importantes e adultos que os seus primeiros filmes mexicanos. Cela s’Apelle l’ Aurore, de 1956, filmado na Córsega, é um drama sobre relações sociais e políticas, adaptado a partir de um best-seller de Emmanuel Ro­blés; La Mort en ce Jardin, de 1956, com co-argumento do grande escritor Raymond Queneau, é um drama passado numa colónia francesa, opressivo e labiríntico, sobre a luta de classes, a opressão colonial, o amor e a cobiça, com Simone Signoret e Michel Piccoli, que se viria a tornar um dos seus melhores amigos e colabora­dores; e La Fièvre Monte à El Pao, de 1960, uma parábola política passada num país imaginário da América do Sul, o último filme de Gérard Phillipe, falecido nesse mesmo ano.

Três dos filmes mais importantes da sua primeira fase mexicana, são (a par do já mencionado The Young One), Subida al Cielo, de 1952, um drama com personagens pertencentes às classes baixas, passado numa aldeia à beira mar e durante uma viagem de autocarro, que Bénard da Costa considera um “dos seus filmes mais delirantes e deslumbrantes”, onde se sentem, talvez pela primeira vez, na fase mexicana as suas raí­zes surrealistas, na mescla entre o quotidiano e o burlesco, entre o sagrado e o erótico, mas do qual Buñuel, despretensiosamente, apenas guardou na sua autobiografia principalmente as boas recordações em termos da facilidade e rapidez das filmagens; El, de 1953, um dos filmes favoritos do realizador, muito mal recebido pela crítica, mas que o famoso psicanalista Jacques Lacan escolheria como base de um curso sobre a paranóia. O filme é um estudo sobre a burguesia, o ciúme, a frustração sexual e a “castração” religiosa, centrado numa personagem ciumenta e paranoica, Francisco, rico burguês de meia-idade, religioso e virgem que, depois de um casamento e de um divórcio doloroso que o levou à loucura, se refugia num convento, onde a sua jovem ex-mulher pensa que, aparentemente, a sua perturbação paranoica se atenuou, excepto pelo facto de Francisco não conseguir andar a direito, de se mover aos ziguezagues. Bénard da Costa descreve-o como “um filme que sistematicamente afasta qualquer interpretação linear, e onde a zona de perturbação é mais funda do que o diagnóstico de paranoia, ou de que a análise de um comportamento de classe levado ao extremo”. Sobre a paranoia, e a propósito das razões que o levaram a escolher este tema, Buñuel refere que “os paranoicos são como os poetas, já nascem assim. Depois, interpretam sempre a realidade no sentido da sua obsessão, com a qual tudo se relaciona”; Ensayo de un Crimen, de 1955, é uma delirante e irresistível viagem pela mente de um arquitecto rico e mimado, aspirante a “serial killer” e obcecado pelas mulheres que deseja e que pretende assassinar, mas que, sem capacidade para tornar reais as suas pulsões, recorre ao casamento e ao “assassina­to” e queima de manequins que representam essas mulheres, para depois se entregar, sem sucesso, à polícia. É uma comédia negra na “corda bamba entre os obscuros desejos de fusão sexual e os desejos (ainda mais obscuros) de que essa fusão não se dê (...) chegando ao ponto máximo de tensão, sem jamais haver descarga. A ideia do desejo prevalece sobre a sua satisfação, os fantasmas ocultos sobre qualquer representação real”, como tão bem a descreve Bénard da Costa, no seu essencial livro sobre a obra de Buñuel.

Mas uma das obras-primas do seu primeiro período mexicano é o filme Los Olvidados, de 1950 (prémio do Melhor Realizador em Cannes e vencedor de quatro prémios “Ariel”, para Melhor Filme, Realizador, História Original e Argumento), que na época chocou a sociedade mexicana de todos os quadrantes, desde a Igreja Católica até ao Partido Comunista, com o seu retrato desapiedado e “cruel” das crianças da rua da Cidade do México, a sua entrada numa espiral de delinquência e morte, os adultos que se aproveitam deles e a humani­dade que se encontra até nesses lugares “esquecidos”.

Apenas depois da consagração do filme em Cannes, o prémio mais importante, à época, do cinema me­xicano, lhe foi dada uma segunda oportunidade, tanto pelo público como pelos críticos, sendo hoje em dia considerado um clássico do cinema neo-realista. Um dos seus grandes apoiantes na altura foi o futuro Prémio Nobel da Literatura, o mexicano Octavio Paz, que distribuiu ele próprio uma crítica na sua estreia no Festival de Cannes, onde refere que Los Olvidados é um filme “sobre o conflito entre a consciência humana e a fatali­dade externa, e esse conflito é a essência da tragédia”.

André Bazin, o grande crítico francês, escreveu a propósito de Los Olvidados, que “a grandeza deste filme só se capta quando se sente que Buñuel nunca se refere a categorias morais. Não há qualquer maniqueísmo nas suas personagens. (…) Aquelas crianças são belas, não por fazerem o bem ou o mal, mas porque são crianças mesmo no crime e na morte”.

O outro filme fundamental desta época na obra de Buñuel é Nazarín, de 1959, adaptado a partir do romance do grande escritor espanhol Benito Pérez Galdós, originalmente situado no séc. XIX, em Espanha, vencedor do Prémio Internacional no Festival de Cannes. Nazarín é o seu primeiro trabalho marcadamente religioso, sobre um jovem padre, Nazarín, interpretado magistralmente por Francisco Rabal, que vive num bairro po­bre da Cidade do México, com tendências crísticas, de mártir, que convive com os pobres e desapiedados da sociedade mexicana, mas que se deixa enredar nas malhas humanas do amor e do desejo. Bénard da Costa caracteriza os dilemas de Nazarín como “[nem] uma blasfémia, nem uma apologia. É uma encenação sobre uma impossibilidade e uma frustração, sobre o lugar do santo (…) num mundo norteado (…) por valores opostos”.

Buñuel disse de Nazarín, que “entre os filmes que realizei no México, é certamente um dos que prefiro”, e apesar dos mal-entendidos vindos tanto do campo clerical como do campo anti-religioso, ainda chegou a receber um diploma de honra pelo filme, atribuído pelo Cardeal de Nova Iorque, que Buñuel obviamente recu­sou, embora o seu produtor tenha feito a viagem para receber o prémio. A polémica seguinte, aquando do seu regresso a Espanha, foi menos um mal-entendido do que uma “provocação” deliberada por parte do realizador, e as suas repercussões e consequências muito maiores do que as de Los Olvidados ou Nazarín.

 

A polémica e a excomunhão – O regresso a Espanha e Viridiana

A génese de Viridiana, o mais polémico filme de Buñuel (numa carreira onde as polémicas abundaram), dá-se com o seu regresso a Espanha, em 1960, ao fim de 24 anos de exílio forçado (durante muitos anos, os seus encontros com a família serão feitos na parte francesa da fronteira).

Buñuel, naturalizado cidadão mexicano em 1949, obtém sem grandes dificuldades um visto no consulado espanhol em Paris, viajando para Madrid com a família, que o esperava na fronteira para o avisar de qualquer perigo. Em Madrid, encontra-se com o actor espanhol Francisco Rabal, que lhe apresenta o produtor mexicano Gustavo Alatriste, que lhe financiará, com total liberdade, os seus próximos três filmes.

Nesta altura com 60 anos, e com um grave problema de surdez, Buñuel leva uma vida tranquila em Madrid, vivendo num prédio de apartamentos com a irmã e frequentando com prazer, mais uma vez, as tertúlias e as tascas madrilenhas. Terá ainda também possibilidade conviver com o seu irmão Alfonso, que falecerá pouco depois, em 1961).

Quanto a Viridiana, escrito a meias com Julio Alejandro (com quem também escreveu Abismos de Pasión, Nazarín, Simon del Desierto e Tristana), é, segundo ele, “um velho devaneio quimérico, erótico” sobre a visita de uma noviça (interpretada por Silvia Pinal) à quinta do seu tio e benfeitor (Fernando Rey), que nutre por ela, desde há muitos anos, fantasias e desejos eróticos, que tentará concretizar. Depois da sua fuga e do suicídio do tio, Viridiana regressa a casa, para cuidar dos pobres e mendigos que, no entanto, abusam dela, tudo culminando num final subentendido com o seu primo (Francisco Rabal) e a amante deste, depois de Viridiana renunciar à sua vocação.

O argumento, aparentemente literal e nada chocante (uma das razões porque terá passado pela censura franquista), tem um final que é mais um “achado” na carreira do realizador: depois de a censura proibir uma cena final aparentemente inócua, em que Viridiana batia à porta do primo e entrava, Buñuel imaginou “um outro final, mais pernicioso que o anterior, porque sugere bastante claramente um[a] ménage à trois. Viridiana vem participar numa partida de cartas que coloca o seu primo defronte à outra mulher, que é a sua amante. E o primo diz-lhe: “eu sabia que tu acabarias por jogar conosco ao tutu!”.


Buñuel, cujas ideias sobre o amor e o sexo não eram de todo convencionais ou românticas (embora tenha sido um pai extremoso e um marido fiel de mais de 50 anos), guardou os seus pensamentos mais transgres­sores para os filmes. A propósito do tema do sexo, menciona na sua autobiografia: “não esperem de mim confidências extraordinárias. Os homens da minha geração (…) sofriam duma timidez ancestral relativamente às mulheres e dum desejo sexual que era talvez o mais forte do mundo”. Este desejo sexual e obsessivo da sua personalidade, Buñuel guarda-o para as personagens femininas de Viridiana, de Belle de Jour, e para os retratos dos “homens da sua geração” de Tristana e Cet Obscur Object du Désir.

Devido a Viridiana, Buñuel voltou também a cair nas boas graças dos exilados republicanos, que o haviam apelidado de traidor por ter ido filmar à Espanha Franquista, já que este “caldeirão” de costumes transgredi­dos e religião desrespeitada foi uma enorme polémica, imediatamente proibido em Espanha, embora fosse a entrada oficial espanhola no Festival de Cannes de 1961.

Com a polémica atribuição a Viridiana da Palma de Ouro (recebida em palco pelo Director-Geral do Cine­ma espanhol, que autorizara o filme e que foi imediatamente despedido ao regressar a Espanha), o filme segue um percurso internacional que o levará obviamente a ser proibido em Portugal (onde só estreará em 1976, sem nenhuma polémica), e em 1962 em Itália, tendo Buñuel sido condenado, à revelia, a um ano de prisão e o jornal oficial do Vaticano apelado à sua excomunhão e à excomunhão de quem visse o filme. Nos locais onde foi permitido, a publicidade do filme perturbou Buñuel, que em Paris era descrito nos seus cartazes como o “cineasta mais cruel do mundo”, e até mesmo Vittorio de Sica, que muito admirava Buñuel, perguntou à sua esposa Jeanne, depois de ver o filme no México, se era verdade que Buñuel era um monstro e se lhe batia. Jeanne respondeu que até para matar aranhas Buñuel pedia a sua ajuda…

Bénard da Costa, nas suas folhas da Cinemateca, apelida o filme de obra-prima, e destaca a sua estrutura onírica, cada vez mais vincada na sua obra, e a importância dada ao tema da morte e ao simbolismo erótico-religioso da obsessão do tio de Viridiana (que lhe fazia lembrar a sua noiva, morta na noite de núpcias). Bénard da Costa conclui a sua resenha crítica com a noção de que o “essencial é o sonho [da loucura], ou finalmente o regresso à razão [de Viridiana]”. E Buñuel remata, dizendo: “a minha heroína é mais virgem no fim [do filme] do que no princípio”.

O filme seguinte de Buñuel, El Ángel Exterminador, de 1962 (Prémio da Crítica em Cannes), é um ponto alto na sua carreira, e a obra que aponta de forma mais clara para os seus filmes seguintes em França, centrados em episódios interligados, no “nonsense”, no sonho, na imaginação e no inexplicável.

A acção decorre durante um jantar de cerimónia, numa residência burguesa, da qual os convidados inex­plicavelmente não conseguem sair (apenas os criados o conseguem). Os seus comportamentos começam gra­dualmente a reverter para a barbárie, para a selvajaria, para comportamentos adúlteros e luxuriosos. Também de forma inexplicável, conseguem finalmente sair de casa, dirigindo-se a uma igreja para celebrar missa e agradecer o “milagre”. No final desta, o padre apercebe-se de que não consegue franquear a sacristia…

Este filme-sátira, mirabolante e ainda muito actual, tem diversos traços surrealistas, que não se conseguem captar à primeira visão, como a repetição de cenas, conversas e motivos sem razão aparente, que levaram inclusive o operador-chefe do filme a abordar Buñuel, julgando que este se estava a enganar, ao repetir con­tinuamente diálogos na montagem. Buñuel, que ao contrário do habitual reviu o filme várias vezes, via nele um tema recorrente na sua obra, um filme sobre “um grupo de pessoas que não podem fazer aquilo que têm vontade de fazer, sair duma sala. Uma impossibilidade inexplicável de satisfazerem um desejo”.

O seu único lamento em relação ao filme, no qual gozou de liberdade total, era não ter sido filmado na Europa, e da sua auto-censura, mencionando que deveria ter deixado “os personagens fechados durante uma semana, até chegarem ao canibalismo, à luta até à morte, para mostrar que a agressividade é, porventura, coisa inata”. Bénard da Costa sintetiza o filme, dizendo que este é “uma recapitulação genial de toda a obra de Buñuel, podendo-se estabelecer nele um inventário de todos os seus filmes (…) através da sua portentosa gale­ria de personagens e situações que ecoam sempre outras já vividas. (…) Interpretar El Ángel Exterminador é tarefa impossível. As pistas são tantas, os despistes também, que qualquer tentativa de racionalizar o irracional está à partida condenada ao fracasso”.

O último filme de Buñuel no México, Simon del Desierto, de 1965 (vencedor do Prémio Especial do Júri e do Prémio da Crítica no Festival de Veneza), é uma média-metragem inspirada na vida de São Simão Estilita (interpretado por Claudio Brook), um eremita do séc. IV que passou mais de quarenta anos no cimo de um pilar, no deserto da Síria, renunciando a todos os prazeres terrenos e ao contacto com a família e amigos, devo­tando todo o seu tempo à oração. Este filme admirável, que não pôde ser concluído como Buñuel o pretendia devido a problemas financeiros (ficando por isso de fora vários episódios que ocorreram na realidade, como a visita do Papa a Simão), incorpora, além dos factos documentados da vida de São Simão, outros inventados por Buñuel, como a visita de um sedutor diabo (na pele de Silvia Pinal, a doce actriz de Viridiana) e um final brusco e transcendental (que torna verdadeiro o adágio de que a necessidade aguça o engenho), em que Simão, pensando ter resistido à tentação do Diabo, se vê de repente numa discoteca moderna, na pele dum intelectual boémio, observando com uma entediada Silvia Pinal a dança frenética da juventude, intitulada “carne radioac­tiva”. Quando Simão se quer ir embora, o Diabo aconselha-o a ficar por ali, diletantemente, já que nos tempos modernos não há lugar nenhum a que pertença.

Bénard da Costa considera Simon del Desierto uma das “obras mais importantes de Buñuel, das mais fascinantes e perturbadoras. E das que mais explicitamente evoca a tentação incessantemente suscitada pelo universo religioso, mesmo quando se possa dizer que esse universo é levado a irrisão”.

Como tal, o filme é um precursor das obsessões carnais, da importância do sonho e da imaginação que per­mearão a sua fase final cinematográfica, maioritariamente rodada em França, talvez a sua fase mais conhecida e certamente a que teve mais sucesso comercial e crítico, a que não foi estranha a estreita colaboração com o argumentista Jean-Claude Carrière, com quem também escreveu a sua autobiografia.

 

A consagração do cineasta surrealista – A bela de dia & O charme discreto da burguesia

A fase francesa de Luis Buñuel e a sua prolífica colaboração com o argumentista Jean-Claude Carrière e o produtor Serge Silberman iniciou-se em 1964, com Le Journal d’une Femme de Chambre, filme adaptado do famoso romance de Octave Mirbeau, sobre as experiências de Célestine, criada de quarto de uma família burguesa da província, que depressa adquire os (muitos) vícios dos seus patrões e (poucas das suas) virtudes. É uma adaptação mais fetichista, metafórica e “rasteira” ao nível sexual do que a filmada por Jean Renoir em 1946 e, mesmo sendo o filme menos conseguido desta fase, foi um projecto em que Buñuel trabalhou muitos anos e onde ainda assim consegue, através dos seus habituais pormenores e elementos autobiográficos (além das interpretações de Jeanne Moreau e Michel Piccoli), o ajustar de velhas contas com a extrema-direita fran­cesa dos anos 30, que tanto o demonizou. Em 1964 e 1965, Buñuel teve uma breve experiência no mundo da actuação, que bastante lhe agradou, interpretando um carrasco no filme Llanto por um Bandido, de Carlos Saura, filmado em Espanha, e de um padre em En Este Pueblo no Hay Ladrones, de Albert Isaac, a partir de um argumento de García Márquez, filmado no México.

O seu filme seguinte (depois de gorada a tentativa de filmar o célebre romance gótico O Monge, de Mat­thew Lewis, um dos favoritos dos surrealistas, filmado depois em 1972 com argumento seu e de Jean-Claude Carriére, por Aldo Kyrou), é porventura o momento mais alto da sua carreira, o famoso Belle de Jour, de 1967 (vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza), a partir do romance de Joseph Kessel. É a história de Séverine, interpretada pela bela e “glacial” Catherine Deneuve, uma jovem esposa burguesa casada com um bem-sucedido médico que, no entanto, é frígida. O filme é o retrato da sua transformação numa prostituta de luxo, profissão que exerce apenas de dia, e as suas escapadelas para um mundo de prazer, sonho e devas­sidão, e as personagens do submundo que encontra, com todas as “nuances” que Buñuel conseguia pôr nestes estereótipos, entre as quais encontramos de novo Michel Piccoli, um amigo do marido que a deseja apenas enquanto Séverine é virginal e inalcançável. Buñuel consegue “descrever bastante fielmente alguns casos de perversões sexuais (…), mas devo dizer que sinto [por elas] única e exclusivamente uma atracção teórica e exterior. Divertem-me e agradam-me, mas não existe nada de perverso no meu comportamento sexual. O con­trário seria surpreendente, acho que um perverso não gosta de mostrar publicamente que o é, porque se trata do seu segredo”.

Segundo Bénard da Costa, Buñuel coloca-nos “na posição e na perversão de Séverine, sempre querendo ver mais, sempre nos sendo frustrada a visão”. Ainda a propósito da noção de frustração/desejo na sua obra, Belle de Jour contém uma cena que pode sintetizar a obra de Buñuel: “de todas as perguntas inúteis que me fizeram sobre os filmes, uma das mais frequentes, mais obcecantes, diz respeito à caixinha que um cliente asi­ático transporta consigo, quando está no bordel. Ele abre-a, e mostra às raparigas o conteúdo (mas nós não o vemos). As raparigas afastam-se da caixa, soltando gritos de horror, excepto Séverine, que se mostra bastante interessada. Já não sei quantas vezes me perguntaram, especialmente as mulheres: ‘que está dentro da caixinha?’. Como eu não sei, a única resposta possível é: ‘o que quiser[em]’”.

La Voie Lactée, de 1969 (Vencedor do Prémio Interfilm e Menção Honorária dos Críticos do Festival de Berlim), com Michel Piccoli, Claudio Brook, Georges Marchal e Delphine Seyrig, é uma série de episódios interligados sobre religião. Conta a história contemporânea de dois peregrinos a caminho de Santiago de Compostela, uma viagem que se desdobra no espaço e no tempo, através da revisitação de alguns dos grandes dogmas e cisões da Cristandade. Os episódios do filme vão desde as Bodas de Canãa, até à cura falhada de um cego por Jesus Cristo, e a Virgem Maria a dizer ao seu filho que se barbeie. Apesar deste tom satírico e iconoclasta, os episódios históricos do filme são factuais, baseados no “Dictionnaire des Heresies”, do Abade Pluquet, escrito no séc. XVIII e, mesmo não podendo ser considerado um filme “herético” e anti-religioso, La Voie Lactée demonstra claramente a ideia que Buñuel tinha da religião: “acreditar ou não acreditar é a mesma coisa. Se me provassem agora mesmo a luminosa existência de Deus, isso não alteraria absolutamente em nada o meu comportamento”.

A propósito do tema central do filme, Buñuel afirmou: “interessam-me as heresias, como me interessam todos os inconformismos do espírito humano, sejam na religião, na cultura ou na política”. Deste precioso manual de dogmatismos, com um humor negro ácido mas não intransigente, consta também uma das frases mais emblemáticas e reveladores do realizador, posta na boca de uma personagem anónima: “o meu ódio à ciência e o meu horror à tecnologia ainda me acabarão por levar a essa absurda crença em Deus”.

Em 1969, dá-se ainda um episódio marcante na sua vida, o falecimento da sua mãe, Maria, a quem foi mui­to chegado e que foi quem mais o apoiou nos seus primeiros anos de “lutas” cinematográficas.

Tristana, de 1970 (nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro), subintitulado em português “Amor Perverso”, é outra adaptação de um romance de Pérez Galdós, situada em Toledo, com Catherine Deneuve e Fernando Rey nos papéis principais.

Tristana é a história de uma criança órfã, recolhida por Don Lope, um libertino em plena decadência sexual e financeira, que a pretende iniciar nos valores que ele preza (como a rejeição do casamento e o amor livre). Apesar de Tristana, já adulta, se tornar relutantemente sua amante, abandona-o para fugir com um jovem pintor, regressando pouco depois com uma infecção numa perna, que a obrigará a cortá-la e a substituí-la por uma perna de pau.

Buñuel voltou a ser autorizado a filmar em Espanha em 1969, depois de lhe ser levantada a proibição que durava desde Viridiana, e as filmagens correram sem problemas nem polémicas aquando da estreia do filme, unanimemente considerado pela crítica e pelo público como uma obra-prima. Curiosamente, Tristana foi o único filme de Buñuel desde 1956 a ser permitido estrear em Portugal.

Apesar da ruptura narrativa com os seus filmes anteriores, esta narração clássica apenas acentua a qualidade do filme (o argumento foi o único desta fase a não ser escrito com Jean-Claude Carriére, sendo uma colabora­ção com Julio Alejandro, de Viridiana), o “ponto limite da peregrinação de Buñuel em torno de um arquétipo feminino (…) combinando-o, no limite da explosividade, com análoga peregrinação em torno dos arquétipos masculinos”. Esta frase de Bénard da Costa liga intrinsecamente a personagem de Don Lope, o arquétipo masculino de Buñuel por excelência, no final do filme um velho “castrado” e de fervor religioso, com a perso­nagem principal masculina (também interpretada por Fernando Rey) do seu último filme, Cet Obscur Object du Désir, de 1977.

A propósito do filme, Alfred Hitchcock, o mestre do fetichismo e da obsessão, grande admirador desta obra, disse apenas a Buñuel a seguinte frase, aquando do seu encontro em Hollywood em 1973: “Oh, that leg, that damned cut leg!”.

O sucesso e a consagração de Buñuel em Hollywood (onde tinha sido incluído na “Lista Negra” devido às suas opções políticas), chegaria com o filme Le Charme Discret de la Bourgeosie, de 1972 (Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, Bafta da Academia Britânica para Melhor Argumento, e ainda nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original e para o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro). O filme é protagoni­zado por vários dos “habitués” de Buñuel, como Michel Piccoli, Fernando Rey, Delphine Seyrig e ainda por Stéphane Audran (Melhor Actriz nos Prémios Bafta), e contém muitas semelhanças narrativas e estruturais com El Ángel Exterminador, sendo de novo uma série de episódios surrealistas interligados, centrados na alta burguesia e nos seus costumes, relacionando o sexo com a comida e a violência, através de sequências mirabo lantes onde os convidados de um jantar se escapam para a casa de banho para comer com vergonha, enquanto na sala de jantar os convidados defecam e conversam tranquilamente. Outras cenas de “vintage” Buñuel, são uma série de sequências em que as personagens caminham constantemente sem chegar a lado algum, e inú­meros jantares e conversas sobre iguarias sumptuosas, mas que nunca chegam a ser provadas, e as cenas de sexo iminente, sempre frustrantemente interrompidas por terceiros, “o desencanto indiscreto de uma classe que vive para o prazer e que o frustra constantemente”.

A propósito da Imaginação e do seu significado para a sua obra, Buñuel refere na sua autobiografia que “ela é o nosso primeiro privilégio, tão inexplicável como o acaso que a provoca. Durante toda a minha vida, esforcei-me por aceitar, sem tentar compreender, as imagens compulsivas que se me apresentavam”.

Le Fantôme de La Liberté, de 1974, com Michel Piccoli, Michael Lonsdale e Monica Vitti, segue mais uma vez o esquema dos episódios interligados, aqui com uma maior conotação com o sonho, e com uma construção fílmica baseada no acaso, delirantemente mais surrealista à medida que o filme avança. Os episódios têm uma relação muito ténue, com o ideal de descrever relações fugazes entre personagens que se podiam repetir ad infinitum, começando em Toledo com as invasões napoleónicas de Espanha, e continuando com personagens contemporâneas de criados, médicos, assassinos-poetas, comissários da polícia, engraxadores, frades etc, um caleidoscópio de ideias, imagens e relações surrealistas que não foi muito bem recebida pela crítica (incluindo Bénard da Costa), que levianamente apodou o filme de “surrealismo by the numbers”.

A propósito do Sonho e da importância do sonhar para a sua obra, Buñuel menciona que “este amor louco pelo sonho, pelo prazer de sonhar, totalmente despojado de qualquer tentativa de explicação, é um dos gostos profundos que me fizeram aproximar do surrealismo”. E em relação às tentativas de explicação dos seus filmes (e supomos que também em relação aos seus críticos), Buñuel é mordaz: “não gosto da Psicologia, da Análise nem da Psicanálise. Assim como a Psicologia me parece uma disciplina arbitrária, constantemente desmentida pelo comportamento humano (…), a Psicanálise surge[-me] como uma terapêutica reservada a uma classe social, a uma categoria de indivíduos a que não pertenço”.

Buñuel considerava também este (mal-amado) filme parte de um tríptico/trilogia iniciado com La Voie Lactée e Le Charme Discret da la Bourgeosie, filmes que “falam da procura da verdade, e que é preciso fugir quando acreditamos tê-la encontrado. Falam também do ritual social implacável e (…) da procura indispensá­vel do acaso, da moral pessoal, do mistério que é preciso respeitar”.

O último filme de uma carreira de quase meio século, Cet Obscur Object du Désir, de 1977 (nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Argumento Original, e para o Globo de Ouro de Melhor Fil­me Estrangeiro), é baseado num romance de Pierre Louys já várias vezes levado ao grande ecrã (filmado por exemplo em 1935, com o título de The Devil is a Woman, de Josef Von Sternberg e com Marlene Dietrich). O seu início é “puro” Buñuel: Mathieu, um rico e velho burguês de Sevilha (interpretado por Fernando Rey), entra para a carruagem de um comboio, depois de ter uma discussão com Conchita, a sua amante. Inespera­damente, quando o comboio está a partir, Conchita aparece na plataforma e Mathieu atira-lhe então com um balde de água à cara, para estupefacção dos outros passageiros. O filme procede depois como um longo “flash­back”, contado aos seus companheiros de carruagem, que ficam dessa forma a saber a história de Conchita, a sua antiga empregada, agora bailarina que, no início da relação de ambos, se conseguiu sempre furtar aos seus avanços, afirmando-se enganadoramente como virgem, e os desenvolvimentos desse turbulento relacio­namento.

Este magnifico rematar de carreira possui um episódio deliciosamente "Buñueliano", que o mesmo des­creve na sua autobiografia: “em Madrid, na altura em que já desesperava [devido a um desentendimento com Maria Schneider, a actriz que deveria fazer o papel de Conchita], não sabendo se havia ou não de continuar a rodagem (…) o produtor tomou a decisão de parar com as filmagens (…) e fomos os dois para um bar, bas­tante abatidos. De repente (…) surgiu-me a ideia de arranjar duas actrizes para desempenharem um só papel, coisa que nunca tinha sido feita até então. Serge [Silberman] delirou com a ideia, que lhe apresentei como um capricho, e o filme foi salvo graças a um bar”.

A escolha recaiu na bela e “fria” actriz francesa Carole Bouquet, e na quente e sensual Angela Molina, sua conterrâ­nea, actrizes muito diferentes mas que viriam a “confundir” muitos espectadores, entre os quais Bénard da Costa: “ao contrário dos receios de Buñuel (“vão pensar que são duas personagens diferentes”), toda a gente aceitou e muitos até viram o filme sem perceber que a actriz não era a mesma. Foi o meu caso e foi uma das minhas grandes humilhações críticas. Quando vi o filme pela primeira vez, não reparei na diferença e só cá fora, quando gabei a intérprete, a minha companheira de visão me fez observar (…) que não havia intérprete, mas intérpretes”.

A este fenómeno, original e tremendamente surrealista, Buñuel apenas contrapôs o seguinte: “é para que vejam como o cinema é uma espécie de hipnotismo”.

Depois do filme, rodado aos 77 anos, no ano do falecimento da sua irmã mais velha, Alicia (o seu irmão mais velho, Leonardo, faleceria em 1980), Buñuel retira-se para a Cidade do México, onde escreverá, nos últimos anos de vida, um derradeiro argumento, levado ao cinema em 1998 por Antonio Simón, La Novia de Medianoche. Com graves problemas de visão e de audição, mas com o seu espírito de lutador e de rebelde ainda muito presente, escreve em colaboração com Jean-Claude Carriére a sua brilhante autobiografia, Mon Dernier Soupir, lançada em 1982 (ano em que recebeu o Leão de Ouro da Carreira do Festival de Veneza).

Luis Buñuel faleceria a 26 de julho de 1983, por insuficiência renal e cardíaca, no Hospital Inglês da Ci­dade do México.

O legado da sua obra é o de ainda hoje ser considerado um dos cineastas mais importantes da história do cinema, e uma influência importante para a geração de cineastas espanhóis (ou de língua espanhola) que se lhe seguiram, como Carlos Saura, seu discípulo, Fernando Trueba, Victor Erice, Arturo Ripstein, Alex de la Iglé­sia, entre outros, e também uma influência decisiva para muitos realizadores consagrados do cinema mundial, como David Lynch, Peter Greenaway, Terry Gilliam, Emir Kusturica e Nicholas Roeg, além das suas influên­cias se notarem hoje em dia em muitos nomes emergentes no mundo do cinema, como Michel Gondry, Darren Aronofsky, David Fincher, Wes Anderson e Spike Jonze, que não só vão buscar a Buñuel o estilo fílmico e o delírio da imaginação, mas também a ideia de que os costumes e os hábitos estão intrinsecamente ligados com as convenções, numa cadeia de relações por vezes absurda com os mais secretos desejos e obsessões do indivíduo comum, uma relação “blasfema” entre amor e sexo, entre religião e perversão.

Buñuel, desafiador até ao seu “último suspiro”, termina a sua autobiografia com palavras coerentes e sere­nas, num extenso capítulo intitulado “O Canto do Cisne”: “há muito tempo que o pensamento da morte me é familiar (…), nunca quis ignorá-la, negá-la. Mas não há grande coisa a dizer da morte, quando se é ateu como eu. É preciso morrer com o mistério. Algumas vezes digo para mim próprio que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe nem durante, nem depois. Depois do Tudo, o Nada”.

Mas num último assombro de irreverência, acrescenta: “imagino bastantes vezes uma última partida. Con­voco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro”. ­

 

 


GASPAR GARÇÃO | (Portugal, 1974). Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Escola Superior de Educação de Portalegre e mestrado de Jornalismo, Comunicação e Cultura na mesma entidade. Dedicando-se à análise da ficção científica nos seus diversos ramos, é autor de diversos textos em revistas e nas Folhas de Sala dos Cine Clubes de Guimarães e do Porto e, ainda, do tomo Relance sobre o humano na literatura de antecipação. Escreveu ainda o extenso ensaio “Charlie Chaplin e o mito de Charlot”. Orientou ciclos cinematográficos sobre Science-Fiction e sobre aspectos dos primeiros anos do cinema mudo. Trabalha no Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Portalegre.

 

 


FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 11

Número 210 | junho de 2022

Artista convidado: Fernando Freitas Fuão (Brasil, 1956)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022

 






                


 

∞ contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

 

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário