Põe-se uma
vaca a ruminar a estrela de Arcturus. Mas há um nevoeiro luminoso que ninguém toca,
há as fibras transparentes da morte, e o terrorismo angélico – enquanto os contemporâneos
comem do que nem podem e cagam-se nas cadeiras terrestres. O surrealismo faz parte
dessa merda. [3]
Desse modo, o vínculo entre as duas poéticas será traçado
por meio de semelhanças estéticas e, mais além, por meio de semelhanças na visão
de mundo que apresentam. Consideraremos também, convém enfatizar, as diferenças
implicadas nesta comparação. Não se trata, desse modo, de olhar para poesia de Herberto
Helder sob o prisma da poesia surrealista, mas, de forma diversa, pensar ambas do
ponto de vista das respectivas estruturações estéticas e temáticas, o que será feito
mediante a transposição de alguns eixos relevantes da linguagem da performance.
Sobre este aspecto, é conveniente fazer algumas ressalvas:
dado que a arte da performance é de domínio multidisciplinar (uma vez que engloba
os mais variados meios de realização, tendo como material a literatura, o cinema,
as artes plásticas, o teatro, a dança, a música, a fotografia) e, dado que implica
numa relação imediata com o público, isto é o tempo de sua execução coincide com
o tempo de sua exposição e recepção (características ausentes no registro escrito)
[4], a transposição desta linguagem para a linguagem verbal/poética implicará numa
eleição de determinados eixos (importa dizer: o corpo, o tempo, o espaço, o público/leitor,
a relação vida e arte – melhor especificados adiante).
Trata-se assim de buscar na linguagem performática diretrizes
de análise para os textos selecionados. Para tanto, tomamos emprestadas as reflexões
apresentadas por Rose Lee Goldberg em A arte da performance: do futurismo
ao presente, em que a autora propõe um apanhado histórico das diversas
manifestações performáticas, passando inclusive pelo dadaísmo e pelo surrealismo;
por Renato Cohen em Performance como linguagem, em que o
autor apresenta a complexidade envolvida na linguagem performática, que comporta
uma experiência de interação entre performer e espectador nas esferas espacial e
temporal, além chamar atenção para a já citada multidisciplinaridade (ou hibridez
dos gêneros); por Jorge Glusberg em A arte da performance.
Photomaton & Vox, de Herberto Helder, é um livro composto de fragmentos
que se assemelham ora ao gênero ensaístico, ora ao gênero poético, ora ao gênero
jornalístico, ora ao gênero prosaico, ora a um roteiro cinematográfico, se apresenta,
assim, como livro multidisciplinar. Para além disso, nele aparece de forma exaustiva
a temática espaço-temporal: características próprias à arte da performance ocorrem
em Photomaton & Vox unicamente por meio do recurso verbal,
isto é, pode-se afirmar a hibridez dos gêneros, embora o meio de sua realização
se limite ao registro escrito. Também Flash, poema dedicado
ao surrealista Cruzeiro Seixas, atualiza outro eixo muito comum na performance:
o corpo – no seu movimento, na sua existência – que, no caso do poema, se manifesta
como movimento e existência da escrita. Dessa maneira, Herberto Helder chama-nos
a atenção para o ato da escrita, que se confunde, então, com a própria existência
física: do escritor, do leitor (este convocado à cena em outros poemas do autor,
como veremos mais detalhadamente adiante), o que aqui denominaremos de ‘escrita
encarnada’. Nos doze textos que compõem a série Antropofagias, faz-se
notável essa premência do corpo mesclada com uma reflexão sobre a linguagem. Como
indicado no próprio título: a linguagem, a escrita, se converte no ato pelo qual
a carne humana é devorada. Logo adiante, abordaremos alguns dos textos desta série
de forma mais detalhada.
Dos surrealistas, como já advertimos há pouco, transitaremos
pelos diversos nomes atuantes no movimento, com alguma ênfase para os autores que,
segundo Natália Correia, comporiam a trilogia cupular [5]
do surrealismo português, a saber: Mário Cesariny, Artur do Cruzeiro Seixas e Antonio
Maria Lisboa.
Torna-se necessário, aqui, pormenorizar os eixos que,
como dissemos resumidamente acima, apresentam algum diálogo com a arte da performance.
Trata-se, retomando: 1) das figurações do corpo (que permitem pensar numa escrita
‘encarnada’), 2) da relação com o tempo e 3) com o espaço, 4) da reivindicação da
presença do leitor e 5) da relação vida e arte.
Quanto ao primeiro eixo, as figurações do
corpo, no caso de Herberto Helder, importa citar os “Texto 1” e “Texto 3”, de Antropofagias [6], que podem ser definidos como “metapoéticos”,
mais que metalinguísticos, já que a poesia se define como (re)criação da realidade,
o que fica ainda mais evidente no fato de, nos textos em questão, Helder não utilizar
comparações: o discurso não é como a insinuação [7]
de um gesto, como uma temperatura, mas é ele próprio “a insinuação de
um gesto uma temperatura”, isto é, o referente não está em relação direta com o
mundo quotidiano ou científico, não se restringe a ele, mas assume significação
plena na situação poética, depende dela e busca nela, mais que em qualquer outro
lugar, a referência que lhe atribui sentido e lhe confere realidade. O poeta, ao
escrever, não é como o bailarino a dançar; a dança não
é como a poesia: do modo como ele nos apresenta, trata-se
de uma única coisa, trata-se do movimento, da materialidade, do medo. Trata-se de
“imagem de respiração/ imagem de digestão/ imagem de dilatação/ imagem de movimentação”;
versos que nos remetem imediatamente para o trecho de Octavio Paz: “Pensar é respirar
(…) porque pensamento e vida não são universos separados e sim vasos comunicantes:
isto é aquilo” [8]. A poesia é apresentada, assim, como que dotada de organicidade.
Nesses termos acreditamos estar a poética de H. H. ao lado da poética surrealista,
que defendia, antes de tudo, essa união entre modo de pensar poesia e modo de viver
poesia e por isso insistimos no seu teor performático.
O “Texto 2”, também “metapoético”, é elucidativo desse
caráter performático presente nos anteriores. Helder expressa nos seguintes versos:
“indagam que ‘acção de surpresa e sacralidade’ (se há)/ o que houver ‘e vê-se pela
pressa’ é uma/ espécie de vivacidade ou uma turbulência íntima/ e ao mesmo tempo
cautela por serena destreza/ de ‘chamar’ de dentro do pavor e ‘unir’ por cima/ do
pavor/ agora estamos a fazer força para afastar o excesso/ de planos multiplicidades
antropofagias para os lados todos/ que andam/ ‘procuram um centro? ’sim ‘uma razão
de razões’/ uma zona suficiente leve fixa como que ‘interminabilidade’” [9], expressão
a um só tempo da atividade poética e de uma postura diante do mundo, uma busca de
sentido, por assim dizer. O diálogo promovido não deixa dúvidas: eles indagam, eles
procuram um centro, uma razão das razões, um único princípio, ao que Helder responde:
uma zona fixa, no entanto, dotada de interminabilidade, conclusão em aberto que aponta para a
metamorfose como uma espécie de princípio fundador, por um lado (vide a constância
com que aparece em sua poesia o ato criador como movimento cíclico e renovador),
e por outro, como teleologia, isto é, como destino e finalidade – se é que este
termo está adequado em relação à ideia de metamorfose, que supõe uma interminabilidade
e, portanto, uma ausência de fins.
O primeiro verso do poema já patenteia essa relação
orgânica entre humanidade e palavras: são fundidos por metal, e a imagem carregada
de fixidez é logo suavizada no verso seguinte, que sugere grande mobilidade (há hélices que andam). E, adiante, na penúltima estrofe,
as palavras impossíveis de escrever, só o são dado a nossa
insuficiência, limitação orgânica: carecemos de cordas de violino, de todo o sangue
do mundo, de todo o amplexo do ar do mundo. E, ainda, a organicidade das palavras
tem seu ponto alto na figura dos amantes, dos seus braços e na sugestão
do enlaçamento, do abraço que alcança alto. A palavra é corpo, e o ato da escrita,
performance.
Quanto ao segundo e ao terceiro
eixos, isto é, quanto ao tempo e ao espaço, procuramos enfatizar a maneira como
estes aparecem lexicalizados no poema assumindo diversas conotações contribuindo
assim, para a criação de um universo de escrita. A título de exemplo, cabe citar
um poema de Cruzeiro Seixas: “Animais como cadeiras/ devorando-se entre si/ assinam
o espaço livre./ Assim alcançam novos mares no seu sonho/ vencem barreiras/ muralhas
falésias cristais que levantaste no caminho/ e onde o próprio vento inexoravelmente/
sangra./ Mãos que gota a gota transportam colheres de prata/ através de trémulas
fronteiras/ para sempre/ se diluíram na palavra”. E um poema de Herberto Helder,
novamente, da série Antropofagias, “Texto 6”: “Não se esqueçam
de uma energia bruta e de uma certa/ maneira delicada de colocá-la no “espaço”/
ponham-na a andar a correr a saber/ sobre linhas curvas e linhas rectas “fulminantes”/
ponham-na sobre patins com o stique e a bola como/ “ponto de referência” ou como
“pretexto espaço-tempo”/ para aplicação da “dança”/ experimentem uma ou duas vezes
ou três reter determinada/ “imagem” e metam-na “para dentro” assim imóvel/ e fiquem
parados “aí” com a imagem parada talvez brilhando/ (…)/a bola põe-se a “caligrafar”
todo um sistema de planos/ intensos leves/ “metáfora” decerto minuto a minuto destruída
pela pergunta/ “que jogo é este para o entendimento dos olhos”?/ a resposta “alegria”
tudo esgota/ (…)/ de imagem em imagem se transfere o corpo/ sempre à beira de “ser”
e parando e continuando/ e ainda “apagando e recomeçando” como se continuamente/
bebesse de si e tivesse o ar pequeno para demonstrar/ a grandeza de si a si mesmo/
(…)/ destreza porque sim forma porque sim aplicação porque sim/ de tudo em tudo/
de nada em nada pelo gozo “básico” de “estar a ser”” [11].
Ora é evidente, em ambos os casos, além da recorrência
da metáfora corporal em designação à escrita, como apontamos no item anterior, a
relação intrínseca entre as noções de tempo/espaço como elementos fundadores do
universo poético. Em “Animais como cadeiras…”, temos, desde o início, um esforço
de situar-se no espaço (‘como cadeiras’), de forma a ultrapassar as delimitações
(‘vencem barreiras muralhas/ falésias cristais’), num ato criativo imediatamente
conferido à escrita (a referência às mãos – parte do corpo que atualiza a escrita
– cuja ação seria a de transportar – poderíamos dizer, transportar palavras no espaço;
além da referência à palavra que, novamente, dilui fronteiras espaciais). O tempo
está próximo de um contínuo ‘atemporal’, isto é, sem delimitação alguma. Em Cruzeiro
Seixas, a marca desta atemporalidade dá-se no predomínio do tempo presente (omnitemporal)
e da expressão final ‘para sempre’. Em Herberto Helder, o tempo aparece, num primeiro
momento, acelerado: ‘ponham-na a andar a correr’, a seguir, desacelerado: ‘experimentem
uma ou duas vezes ou três reter determinada/ “imagem” e metam-na “para dentro” assim
imóvel/ e fiquem parados “aí”’, em conjunção com um espaço interior e, finalmente,
como em Cruzeiro Seixas, um tempo contínuo, como se verifica na expressão ‘estar
a ser’, que simula essa duratividade. Essa continuidade no tempo deve ser lida,
entretanto, com velocidade irregular: ‘sempre à beira de “ser” e parando e continuando’.
O espaço, explicitado pelo poeta como o ‘Lugar’ do poema (para fazer referência
a outro poema seu) é, em dois movimentos: 1) o espaço exterior (e aqui também, como
em Cruzeiro Seixas, aparece a necessidade de situar-se no espaço, uma vez que o
poeta indica a experiência de andar e correr e patinar por linhas retas e curvas),
e 2) o espaço interior ( meter a imagem para dentro): é, por fim, o tempo e o espaço
da escritura, pois que nos fala em caligrafia do movimento e da metáfora. A hipótese
que lançamos portanto é que, assim como na arte da performance, o poema em interação
com o escrevente ou com o leitor, é experienciado mediante duas categorias temporais:
o tempo objetivo de sua criação (escrevente) ou leitura (leitor), e o tempo ficcional
da sua fruição. Bem como o tempo há também, dois espaços: o espaço objetivo da disposição
das palavras na página, e o espaço ficcional criado ou tematizado pelo poeta.
Segue-se o quarto eixo que representa a forma
pela qual o leitor é inserido no poema. Também para a performance a presença do
espectador é diversas vezes imprescindível, já que ao espectador caberia compor
o ato, juntamente com o performer. De acordo com Renato Cohen, a participação do
espectador é característica daquilo que ele nomeia, com base na psicanálise, como
a relação mítica:
Na relação
mítica, esse distanciamento não é claro – eu entro na obra, eu faço parte dela –
isto sendo válido tanto para o espectador que fica na situação de participante do
rito e não mero assistente (…) tanto para o atuante que ‘vive’ o papel e não ‘representa’.
[12]
Ora, o ‘atuante’, se transposto para a cena poética,
passa a ser, portanto, o escritor (sobre isso falaremos no item a seguir, cujo eixo
é a relação vida e arte), e o ‘espectador’, passa então a leitor.
Essa relação é o ponto central de “Para o leitor ler
de/ vagar”, poema de Herberto Helder: “Volto minha existência derredor para. O leitor.
As mãos/ espalmadas. As costas/ das. Mãos. Leitor: eu sou lento./ (…)/ ― Todo o
leitor é de safira, é/ de. Turquesa./ E a vida executada. Devagar./ Torna-se a infiltrada
cor da. Pedra/ do leitor./ Volto para essa pedra absoluta. Relativa/ à minha pedra./
Minha pedra pensada com a forma/ de. Uma lenta vida elementar./ Leitor acentuado,
redobrado leitor moroso./ Que entende o relato sem poros, o mês arroz dealbado sobre
a pedra/ em orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos/ sobre. Meus dedos pelo
ar. E toca e passa./ Pelas pálpebras paradas. Pelos/ cerrados lábios até às raízes./
E cai com seus dedos em meus dedos./ E espera devagar./ Leitor que espera uma flor
atravancada,/ balouçando baixa/ sobre. / (…)/ Leitor: volto/ para ti. Um livro que
vai morrer depressa./ Depressa antes. Que a onda venha, a onda/ alague: A noite
caída em cima de teus dedos./ De encontro à cor de encontro à. Paragem/ da cor.
Este livro apertado nas estrelas/ da boca, estrelas./ Aderentes fechadas. Por fora/
leves às vezes, presas./ Para eu batê-las durante o tempo./ Eterno, o tempo. De
uma onda maior que o nosso/ tempo. O tempo leitor de um. Autor./ Ou um livro e um
Deus com ondas de um mar/ mais pacientes. ―/ Ondas do que um leitor devagar”.
Em “Inquérito”, poema de Cruzeiro Seixas, ocorre um
procedimento semelhante: “1. Achado o seu mundo/ verifique/ engrenagem por engrenagem/
a diferença que vai desse para outro qualquer./ 2. Diga/ se é possível amar esse
espaço/ se é possível amar nesse espaço./ 3. Espere a passagem de um automóvel como
um mar/ abra uma a uma as mil gavetas que o compõem./ Verifique depois as poses
lascivas dos móveis dourados/ ou do pão duro/ abandonado como uma bomba/ à porta
do palácio./ Tente fugir./4. Olhe a palidez dos rostos côncavos./ Atraia mesmo assim
a multidão./ Saque da viola para violar/ e cante./ Diga-nos se ouve os gritos estridentes
das sereias/ que se aproximam./ Tente permanecer/ e cantar./ 5. Diga-nos o que é
uma coisa/ o que é uma pessoa/ o que é um gesto sonhado/ o que é um animal/ o que
é uma coisa qualquer que ainda não tem nome /e exista./ 6. Diga-nos o que é um poema/
que coisa é a mão do homem que o escreve/ como se chama o animal que então fala
nele/ como se chama o sítio onde/ o homem ou o poeta/ pousa os pés./ Diga-nos como
se chama aí o vento/ como se chama a porta/ o retrato a carta o relógio/ o livro
ou o leito./ Que outro nome se deverá dar/ aos manuscritos rasgados por si/ ou aos
livros queimados na praça pública./ Diga-nos depois de que lado está o mar”.
Também aqui a presença do leitor é reivindicada pelo
poeta pois, embora o leitor não seja nomeado (diferentemente do que ocorre no poema
de Herberto Helder), é a ele, em primeiríssima instância, que são direcionadas as
questões (o ato da leitura comprova-o…). Inversão semelhante parece ocorrer também
neste poema, uma vez que o leitor, convocado a todas as respostas, deve responder
inclusive às questões que seriam, stricto sensu, da alçada
do poeta: (“Diga-nos o que é…”, “Diga-nos como se chama…”, “Que outro nome se deverá
dar…”). Dessa maneira ocorre que o poeta assume, simultaneamente, o papel de leitor,
e o leitor, por sua vez é lançado para o universo do fazer poético, cabendo, também
a ele, a função de nomear.
A hipótese que lançamos, com base nessas rápidas interpretações,
diz respeito ao estatuto do fazer poético: anuladas, em alguma medida, as diferenças
entre poeta e leitor, a poesia passa a ter como matéria a própria existência (tópico
melhor desenvolvido a seguir).
No que diz respeito ao quinto eixo, ou seja, à relação
entre vida e arte, os surrealistas portugueses incorporaram o preceito bretoniano
de que o surrealismo não é escola literária ou, de modo mais geral, artística, mas
atitude moral e, em alguma medida, ontológica e metafísica, pois se apresenta enquanto
uma concepção do homem e uma visão do mundo. De acordo com Breton: “(…) há que se
admitir, afinal, que o surrealismo não teve outra intenção senão a de provocar,
do ponto de vista intelectual e moral, uma crise de consciência de espécie mais
geral e mais séria (…)” [13], e ainda: “A nós (…) compete procurar aperceber sempre
mais claramente o que se trama sem o homem saber, nas profundezas de seu espírito
(…)” [14]. O meio artístico de sua manifestação resulta, desse modo, da idéia de
que as artes e, neste caso específico, a poesia seriam as formas mais propícias
de burlar o império da lógica, no qual os mecanismos do pensamento humano, e por
consequência, o funcionamento da sociedade estariam “aprisionados”. Nas palavras
de Mário Cesariny:
(…) a Literatura
nunca nos ocupará demasiado; dizendo Literatura somos percebidos –, a nossa aceitação
de certos postulados do surrealismo, primeiro, e depois a prática consciente e apaixonada,
levaram-nos ao corte definitivo não só com o naturalismo e respectivo cortejo de
interpretacionistas, mas com toda a expressão unicamente interpretativa (estilizante)
do “real”. [15]
E também Mário Henrique Leiria e Henrique Risques Pereira:
“Quando, por mais de uma vez, dissemos que nada tínhamos a ver com a literatura
e respectivo cortejo de quinquilharias, é porque, de facto, nada tínhamos” [16].
Nessas duas citações fica evidente o papel da literatura entre os participantes
do grupo surrealista português: não se trata da elaboração de um movimento literário,
mas, diferentemente, de uma intervenção surrealista criadora de uma nova visão de
mundo e manifestação humana, em que a estética é apenas o resultado dessa deflagração
contra os parâmetros de pensamento usuais e a existência social no ocidente racionalista.
Também por esse motivo podemos afirmar o vínculo estreito entre poesia e vida e,
desse modo, poesia e vida do poeta, entre os surrealistas bastante exposto por meio
de entrevistas, manifestos e outras formas de divulgação. No entanto, não se faz
possível a redução à convencional associação entre vida e obra, uma vez que, para
os surrealistas a noção de vida está bem distante da noção de emotividade e história
pessoal, tal como a concebiam os românticos, mas refere-se de maneira incisiva a
uma constante experimentação e descoberta, jamais fixadas, promotoras de um estado
de deslumbramento semelhante àquele do universo infantil e da loucura (temas que
aparecem de forma incisiva na poesia surrealista portuguesa, bem como na poesia
de Herberto Helder).
No caso de Herberto Helder essa relação vida/arte ocorre
de forma bastante peculiar. Muito se diz da insistente recusa do poeta em aparecer
publicamente, da aversão que ele sempre nutriu em relação aos média. Até onde sabemos
há apenas seis entrevistas concedidas pelo poeta ao longo de sete décadas de escrita
(considerando que seu primeiro poema foi publicado em 1958 e o último em 2009) [17].
O que nos chama a atenção, entretanto, é a imagem do escritor: a figura do homem
que lida com as palavras, a criação de um universo a partir da reelaboração linguística
é tema constante de seus poemas. Nesse sentido, há uma aproximação que procede:
o artista/escritor sendo figurado no poema, é também aquele que escreve o poema,
é também Herberto Helder. Novamente, como no caso dos surrealistas, não se trata
de uma aproximação entre vida e obra, à maneira dos românticos, mas de uma aproximação
mediada pela escritura que é, a um só tempo, o ato por excelência do poeta, e o
tema de sua poesia. Considerando, como dissemos há pouco, que o trabalho com a palavra
se confunde com o trabalho de criação de um mundo – com tempo, espaço e corpo próprios
– pode-se pensar, assim, que este mundo seria o mundo habitado pelo poeta, sendo
Herberto Helder o poeta.
A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior,
uma maneira de se encarar a arte; a live art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma
de se ver arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula
o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado. A live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar
a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista. A ideia é resgatar
a característica ritual da arte, tirando-a de ‘espaços mortos’, como museus, galerias,
teatros, e colocando-a numa posição ‘viva’, modificadora. [18]
Essa concepção de arte é patente em alguns exercícios
e jogos praticados pelos surrealistas, que se resumem nas seguintes práticas: a
escrita automática – uma das formas mais conhecidas da escrita
automática é sua versão coletiva, intitulada cadáver esquisito, cujo
procedimento já foi explicitado anteriormente; a colagem (aleatória ou
combinada) de palavras ou imagens recortadas de textos diversos, procedimento que
deixa agir o acaso; o inventário que consiste na repetição
no início de cada frase ou verso de uma palavra ou expressão seguida de frases que
representam a desarticulação de uma dada realidade, como em “Actuação escrita”,
de Pedro Oom; e a manipulação de textos tradicionais que
consiste no estabelecimento de regras prévias de modificação de poemas e textos
da literatura (alterações de palavras, fonemas, idiomas, etc). Além do cadáver esquisito, todos os outros jogos têm a sua vertente
coletiva, o que confere à criação poética um estatuto diferente daquele da genialidade
autoral.
A aproximação que poderíamos fazer entre a poesia de
Herberto Helder e os jogos e exercícios surrealistas recai sobre uma ideia, insistentemente
trabalhada pelo poeta, de metamorfose: em “Teoria das cores”, texto situado em Os passos em volta (publicação brasileira de 2005), deparamo-nos
com a narrativa de um pintor desejoso de retratar com fidelidade um peixe num aquário,
e que, ao perceber a inusitada mudança de cor que o peixe começa por sofrer (efetuar?),
do vermelho para o preto, decide então pintá-lo de amarelo, por haver compreendido
esta outra espécie de fidelidade:
Ao meditar
sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor
supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma
lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
[19]
A metamorfose, entretanto, não figura apenas como um
tema recorrente em sua obra, mas revela uma adesão do próprio poeta, no seu fazer
poético, a esta lei – e aqui a ênfase na aproximação com os surrealistas –, uma
vez que este mesmo trecho do texto, datado de 1963 e publicado em Vocação animal, apresenta a seguinte versão:
Ao meditar
acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor
assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando
o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei
que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose.
[20]
Vê-se que o próprio texto sofreu uma metamorfose de
1963 a 2005. Em verdade, essas modificações textuais são bastante comuns em H.H.
Como bem aponta Maurício Salles, em Helder há grande clareza a respeito do inacabamento da linguagem [21], e ainda:
o elemento
de autoposição do escrito como trabalho em continuidade, próprio de uma não obra (poderia pontuar Blanchot), sempre a ser reunido, ainda
não encerrado, não fixado nas miragens da autoria e da cultura, uma vez que sua
totalização está sendo revista e repensada em função do conjunto e de suas conjunções
no tempo. [22]
Herberto Helder aplica assim, um procedimento semelhante
ao dos surrealistas, ao efetuar a manipulação de textos:
textos próprios ou alheios: como o próprio poeta faz questão de frisar a respeito
de suas traduções, poemas mudados para o português (Doze nós numa corda, Poemas ameríndios, Oulof). Em Oulof, Helder inicia
com uma epígrafe do poeta belga Henri Michaux que diz o seguinte: “Saisir: traduir.
Et tout est traduction
à tout niveau, em toute direction” [23]. Ora, a compreensão,
deste ponto de vista, é sinônimo do ato de traduzir e, estendendo a definição ao
lado de H.H., sinônimo do ato de mudar, modificar, metamorfosear: o movimento compreensivo
é, portanto, contínuo e incessante. Essa noção de movimento, convém notar, encontra
paralelo na arte da performance. De acordo com Rose Lee Goldberg, a pintura dos
futuristas pode ser justificada como um ato performático, uma vez que entre eles
predomina a seguinte concepção: “Para nós, o gesto não será um momento fixo de dinamismo universal: será definitivamente
a sensação dinâmica eternizada” [24].
NOTAS
Publicação original, na eRevista Performatus # 2, janeiro de 2013.
[1] CORREIA, Natália. O surrealismo
na poesia portuguesa. Lisboa: Frenesi, 2002, pág. 430.
[2] CUADRADO, Perfecto E. “Uma divagação final (mais)
abjectamente académica: notas sobre a poesia surrealista (portuguesa)” In: A única real tradição viva. (org.
Perfecto Cuadrado). Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, pág. 64.
[3] HELDER, Herberto. Photomaton
& Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pág. 64.
[4] “Apesar de sua característica anárquica e de, na
sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro
sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma performance; alguém pintando
esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. (COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:
Perspectiva, 2011, pág.28).
[5] Cf. CORREIA, Natália. O surrealismo
na poesia portuguesa. Lisboa: Frenesi, 2002, págs. 429, 430.
[6] Cf. HERLDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa Editora,
2006, págs.271-276.
[7] Insinuar: do lat. insinuare “meter no seio”- introduzir fazer penetrar no ânimo,
no coração; persuadir (…). (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa).
[8] PAZ, Octavio. “A imagem” in: Signos em rotação. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1996, pág.42.
[9] HELDER, Herberto. “Antropofagias” In: Ou o poema contínuo. São Paulo: A
Girafa Editora, 2006, págs. 271-276.
[10] CESARINY, Mário. In: A única
real tradição viva. (org. Perfecto Cuadrado). Lisboa: Assírio & Alvim,
1998, págs. 89, 90.
[11] HELDER, Herberto. “Antropofagias” In: Ou o poema contínuo. São Paulo: A
Girafa Editora, 2006, págs. 281-282.
[12] COHEN, Renato. Performance
como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011, pág. 122.
[13] BRETON, André. “Segundo manifesto do surrealismo”
In: BRETON, André. Manifestos do surrealismo.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pág. 97.
[14] Idem, pág. 135.
[15] CESARINY, Mário. “1. Sem título”. In: CESARINY,
Mário. A intervenção surrealista. Lisboa:
Assírio & Alvim, 1997, pág. 89.
[16] LEIRIA, Mário Henrique & PEREIRA, Henrique
Risques. “Mais um cadáver”. In: CESARINY, Mário. A intervenção surrealista.
Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 179.
[17] Cf. <http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/revistas/textosepretextos/vol1/bibliografia.pdf>.
[18] COHEN, Renato. Performance
como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 38. Vale frisar, que o próprio
autor chama atenção para essa prática no surrealismo: “Na literatura pode se mencionar
tanto experiências empíricas, como a proposta surrealista da escrita automática,
em que vale o jorro, o fluxo e não a construção formal, quanto experiências altamente
elaboradas, como as de James Joyce que em Ulisses, por exemplo, procura reproduzir
o fluxo vital da emoção e do pensamento (…)”, Idem, pág. 39.
[19] HELDER, Herberto. Os passos
em volta. São Paulo: Azougue Editorial, 2005, págs. 21, 22.
[20] HELDER, Herberto. Vocação
Animal, “Coleção Cadernos de Poesia”. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1971,
pág.12.
[21] Cf. VASONCELOS, Maurício Salles. Espiral terra – poéticas contemporâneas de
língua portuguesa. Tese de livre-docência. São Paulo: FFLCH-USP, 2010, pág.
199.
[22] Idem, pág. 11.
[23] HELDER, Herberto. Doze nós
numa corda – poemas mudados para o português. Lisboa: assírio & Alvim,
1997, pág. 7.
[24] GOLDBERG, Rose Lee. A arte
da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
pág. 4.
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ANA CRISTINA JOAQUIM (Brasil, 1984). Poeta e ensaísta, com estudos sobre Sade, Cruzeiro seixas, Herberto Helder e Mário Cesariny de Vasconcelos. Autora de Polifemo (2014) e Gama cromática (2015), o primeiro deles em parceria com Antonio Vicente Seraphim Pietroforte. Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (setor: Literatura Portuguesa) da Universidade Federal Fluminense. Foi pesquisadora bolsista de pós-doutorado (FAPESP) em Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, com período de estágio BEPE/ pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2019). Concluiu doutorado no programa de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (financiamento CAPES). Cumpriu estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa (2013-2014). É mestre em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2011), onde desenvolveu uma pesquisa relativa à questão da recepção da obra do Marquês de Sade de acordo com a polêmica noção de estabelecimento dos gêneros filosófico e literário/ficcional (financiamento CNPq). Possui graduação em Letras/Português pela Universidade de São Paulo (2009), licenciatura pela mesma Universidade (2011) e graduação em Filosofia pela Universidade Sao Judas Tadeu (2007).
LUIZ SÁ (Brasil, 1907-1979). Nosso artista convidado. Caricaturista brasileiro, criador dos personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona que, durante anos, apareceram na revista infantil O Tico-Tico. Foi também responsável pela criação de uma série de curtas de animação que ficou perdida por anos, As Aventuras de Virgulino. Seu desenho é caracterizado pelo uso quase exclusivo de linhas curvas, tendo quase todos os seus personagens os rostos bastante arredondados. Por volta de 1950 Luiz Sá muito contribuiu ilustrando panfletos educativos e relacionados com a saúde publicados pelo então Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro, como uma ilustração abaixo do texto “Quem come a galope, o intestino entope”. É um dos mais originais, significativos e emblemáticos artistas de toda a história do desenho de humor nacional, tendo sido o primeiro cartunista brasileiro com características de artista popular a conquistar visibilidade nacional. Desde os primeiros desenhos publicados ainda na imprensa cearense em 1927, passou pelos cartuns, ilustrações e histórias em quadrinhos produzidos para os mais diversos meios a partir de 1930.
Agulha Revista de Cultura
Número 219 | dezembro de 2022
Artista convidada: Luiz Sá (Brasil, 1907-1979)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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