quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

1989 | A POÉTICA DO PARADOXO | Entrevista concedida a Sérgio Campos

Originalmente publicada no SLMG – Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 07/10/1989

 

Registram nos últimos anos os principais suplementos literários do país, já agora em Portugal e praticamente em toda a América Latina, a presença constante e consistente de Floriano Martins, poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, enfim, na feliz expressão de Uílcon Pereira, uma “ilha de produção”. Nascido no Ceará, em 1957, após passagem por São Paulo, Floriano vive hoje em Fortaleza, onde curiosamente acabou encontrando sua melhor base logística, onde publica seus livros, irradia sua produção ensaística, traduz e edita seu próprio jornal literário, O Resto do Mundo, sempre com matéria inédita de nomes que fizeram a arte deste século, muitos até desconhecidos no País. [SC]

 

SC | Nossa história literária é marcada pelo fenômeno de contínua migração do artista norte/nordestino para os chamados grandes centros culturais. Em seu caso deu-se exatamente o contrário, pois se decidiu pelo isolamento no Ceará. O que o motivou? O eixo Rio/São Paulo está saturado?

 

FM | A condição básica do poeta é a do exílio. As mudanças, embora menos que o canto – onde o poeta melhor realiza suas viagens – também são essenciais. Nelas – levando em conta que quase sempre são forçadas – se fundem riqueza espiritual e sofrimento pessoal. Quando deixei São Paulo, vindo residir em Fortaleza (embora tenha nascido aqui, sinto-a cada vez mais distante de mim), o fiz movido, muito mais do que pela falência do mito migratório a que você se refere (mesmo concordando nisto que você chama de saturação), pela necessidade de uma nova mudança em minha vida. De uma maneira geral, residir em Fortaleza é o mesmo que em qualquer outra cidade brasileira (além de que vale notar que não sou exatamente o tipo de sujeito que mantém relações afetivas com esta ou aquela cidade – na verdade diria que sou um caramujo, ando sempre com a casa às costas), a diferença que a vida que levo aqui me permite maiores condições de dedicação à Literatura. Há também que acrescentar que tal residência proporcionou meu reencontro com o poeta-editor Lauro Maciel Jr., com quem tenho trabalhado, nos últimos três anos, na edição de livros e do jornal Resto do Mundo.

 

SC | Por seu exaustivo trabalho de pesquisa e revelação da poesia latino-americana, pensa que é possível afirmar que a poesia brasileira está defasada e estacionária em relação à de outros países, como o Peru o México e a Venezuela e outros menos conhecidos ainda? Em caso positivo, a que atribui tal fato?

 

FM | A diferença reside fundamentalmente no aspecto da leitura. Não nos esqueçamos: um escritor é fruto de suas leituras. De uma maneira geral o universo de leituras (principalmente relativo à poesia) do escritor brasileiro é limitado, restrito. Pior: viciado em suas limitações. Repleto de justificativas que vão da proliferante falta de edições à transferência, para o âmbito político, de certas circunstâncias de caráter unicamente estético.

Se pensarmos em alguns poetas brasileiros, tais como Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Manoel de Barros, Francisco Carvalho, Santiago Naud, Sebastião Uchoa Leite, Sérgio Lima, sem nos determos em delineamentos geracionais, veremos que tais poetas são tão fundamentais como José Lezama Lima, Pablo Antônio Cuadra, Octávio Paz, Vicente Gerbasi, Gonzalos Rojas, Enrique Molina, Javier Sologuren, José Emílio Pacheco, José Kozer, entre muitos outros. Contudo, não há fluxo entre a poesia brasileira e a dos países hispano-americanos. Os poetas, no geral, se desconheceram e se desconhecem entre si. A coisa se complica se pensarmos que sequer há trânsito livre entre a poesia que é feita unicamente nos limites territoriais deste imenso País. Apenas provoco a ira demente do leitor ao citar nomes do quais ele nunca ouviu falar (quando ouviu jamais leu um único verso).

Vejamos um raciocínio corrente: se nossas livrarias não dispõem das edições da poesia de Murilo Mendes ou Jorge de Lima; se não lemos dois exemplos fundamentais de nossa poesia: Dimensão das Coisas (Edições UFC, Fortaleza, 1962), de Francisco Carvalho e Pedra Azteca (Ediciones Mester, México, 1985), de José Santiago Naud; se desconhecemos a obra ensaística de Sérgio Lima (qualquer julgamento crítico com um mínimo de decência a situaria ao lado da de Paz, Barthes, Sontag), por que então deveríamos conhecer nomes como Vicente Gerbasi, Javier Sologuren, José Kozer, entre outros? Raciocínio invalidade pelo fato de que conhecemos (há edições, o que pressupõe haver leitores) Hans Magnus Enzensberger e Bertold Brecht, embora não conheçamos Holderlin, Trakl, Benn, Celan. Lembremos que não há edições brasileiras de poesia de franceses como André Breton, e Antonin Artaud; italianos como Eugênio Montale e Pier Paolo Pasolini; britânicos como George Macbeth, Ian Hamilton e A. Alvarez; romenos como Lucian Blaga, Lon Barbu e Virgil Teodorescu; espanhóis como Jorge Guillén, José Maria Valverde e Luís Feria; portugueses como Alexandre O’Neill e Mario Cesariny de Vasconcelos; húngaros como Attila József e Lajos Kassák; etc. E note que todos esses autores (e a lista poderia crescer facilmente) são de importância capital para a poesia de seus países. Com relação ao modernismo hispano-americano, para um outro exemplo, desconhecemos a obra de todos eles: Rubén Dario, Amado Nervo, José Juan Tablada, José Martí, Ramón López Velarde, José Asunción Silva, José Maria Eguren, Leopoldo Lugones… Tamanho descalabro, Sérgio, é praticamente irrecuperável. Caberia a nós, poetas, estarmos promovendo a entrada de toda esta poesia em nosso País. Contudo, temos que reconhecer que somos muito poucos os que verdadeiramente estão envolvidos nesta tarefa de proporções arqueológicas.

Os reflexos disto são o mimetismo reinante (em face de um modelo supostamente apresentado como o ideal, em função da falta de uma multiplicidade de leituras) e o consequente e constante retrocesso a estéticas vencidas.

Por último, e creio que respondendo à sua pergunta, citaria o nome dos peruanos César Moro, Javier Sologuren, Carlos Germán Belli e Mirko Lauer; dos mexicanos Marco Antônio Montes de Oca, Eduardo Lizalde, Gerardo Deniz e José Emílio Pacheco; dos venezuelanos Juan Liscano, Rafael Cadenas, Alfredo Silva Estrada e Eugênio Montejo; todos poetas absolutamente fundamentais, cuja poesia, se relacionada com a brasileira (embora insista nas exceções: Francisco Carvalho, Santiago Naud, Sérgio Lima), evidencia o caráter estacionário e defasado desta última.

Mas é preciso que se acrescente que o Brasil vem de muitas décadas em um franco processo de autodestruição, que abrange desde a precariedade de nosso sistema educacional até o fato de exportamos a quase totalidade daquilo que produzimos, passando pela atual desfuncionalidade de nossa recente Constituição e pelo tráfico de drogas e crianças. Elementar, portanto, que a Literatura também sofra tais danos, e que sua autoflagelação não tenha bases em um ceticismo radical, extremo. Creio que ironicamente o Brasil entrará na história (se é que um dia entrará) pelo extermínio da própria história, da noção de.

 

SC | O virtuosismo linguístico ou revelação irônica dos limites da linguagem (no dizer de Malcom Bradbury, falando de Joyce) justificaria uma poética cifrada pela incomunicabilidade? Ou pensa, como Eco, que nenhum escritor escreve para si próprio, mas para um leitor-modelo? Nesse caso, qual seria seu leitor arquetípico?

 

FM | Uma coisa não elimina a outra. Não acredito que se possa escrever com vistas a este ou aquele tipo de leitor (ainda mais se tratando de poesia, onde praticamente e cada dia mais escrevemos unicamente para poetas), e sim apenas escrever. A leitura (esse ritual canibalesco e que também implica revelação e comunhão) é uma consequência da escritura (no caso da poesia melhor diria uma eventualidade), e não seu fim. Escrever para um leitor-modelo (mesmo que esse leitor-modelo seja o próprio autor) é diagnosticar o fracasso da escritura poética. Não nos esqueçamos que a poesia não é somente um meio de expressão, mas também uma atividade do espírito. Conquista do maravilhoso, fonte de conhecimento, iluminação em estado puro, a poesia define-se afinal por uma verdadeira avidez pelo desconhecido, exaltação perene do assombro de viver. Por ser a mais intensa aventura do espírito humano, nela se definem amor e liberdade, fundem-se visível e invisível.

Quanto à revelação irônica dos limites da linguagem, esta não implica incomunicabilidade. A poesia se comunica através da emoção e não da decifração lógica de seus códigos verbais. Há tanta emoção na leitura de Mallarmé e Girondo quanto na de Celan e Borges. A incomunicabilidade de um poema está evidentemente pautada pela sua incapacidade de desperta emoção em quem o lê.

 

SC | Com George Steiner, Rimbaud, Lautréamont e Marllamé, ao tentarem realçar o caráter fluido e provisório da língua, na realidade não teriam contribuído decisivamente para o declínio de sua força vital? Não terá a mídia reduzido a linguagem verbal a cacos e estereótipos para uma futura arqueologia do consumo? Seu verso “arrasto comigo os destroços daquilo que sigo dizendo” tem algo a ver com esse fato?

 

FM | Acaso entre os monturos de nossa civilização já não nos deparamos com o arquejo arqueozoico da arqueologia do consumo? Certamente que aí nada será encontrado além de um ovo dentro de outro ovo. Assim como os poetas, não podemos ser incriminados por termos socavado entre escombros à procura de uma nova língua. Vejamos uma digressão. Após perseguir por incontáveis eras a figura de um velho cujo rosto atormentado se instalara em seus sonhos, Zig-Muth, o bárbaro clone, finalmente o encontra e de imediato desperta de sua obsessão milenar pelo disparo de uma arma contra seu peito. Unkas recolhe, anos depois, a estranha confissão do velho que exterminara Zig-Muth: “somente no passado poderemos ser felizes”. Nos tais cacos e estereótipos a que você se refere talvez ironicamente resida a única possibilidade futura de comunicação da espécie humana.

 

SC | Sua poética se caracteriza pelas cosmogonias, grandes espaços em que você projeta seres fáticos (o bandido Boca Mole), fictos (o enigmático Barbus) ou da ficção tornada histórica (Unkas), tornados translúcidos por feixes metafóricos ininterruptos. Você concorda com essa acepção? Você habita o universo desses seres e suas épicas malditas? Comanda-os ou é por eles comandado?

 

FM | O ato de criação para mim está ligado ao mais intenso delírio da lucidez. Instante em que as imagens encarnam. Os seres que você fala eclodem sempre em um estado que se poderia chamar de visionário, em que eles próprios vão se fazendo, em que sou uma espécie de suget de suas emanações, que se irradiam a partir de imagens pipocando nas ruas, recortes de revistas, músicas que ouço dia adentro, moinho de carnes do amor, sangria desvairada da memória, leituras, cinema, conversas, insinuações, brechas no corpo-mundo que me habita. Desta maneira vieram a mim Boca Mole (um bandido que identifica o crime como a arte mais bela), Barbus (sim, o enigmativo “vagabundo cósmico” inominável, “alma do mundo”, o ocultado ser do discurso), Unkas (catador de lixos da linguagem, caçador de signos decompostos, último de uma raça, paródia de si mesmo), outros mais. Contudo, meus versos (e somente neles tais seres existem) são o foco central de minhas experiências. Através deles – intensificação de mitologias pessoais – investigo as coisas que me cercam. Lembro-me aqui de Barthes, ao concluir tão lucidamente que a função fundamental do discurso (poético) é “conceber o inconcebível”.

 

SC | A partir de seus versos: “em tudo o que somos é a perda que se afirma”, “o tempo é a única ruína absoluta”, “a felicidade implica um duro / aprendizado no sentido de se perder / coisas – de se desfazer delas”, pode-se falar de sua poética como uma poética da perda?

 

FM | Melhor diria: poética movida pelo paradoxo de que perda é ganho. O paradoxo na visão de Kierkegaard: o salto extremo (mortal) de uma margem a outra. Fluir e refluir constantes. Como se a origem do texto (corpo, mundo) fosse delineada por sua perda. Busca, e não encontro, [de] sua pedra de toque. Novamente em Barthes: “O eu que se aproxima do texto é já em si mesmo uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (dos quais se perde a origem)…” Visão extrema do paradoxo: a poesia não pode ser lida pela primeira vez; somente admite releituras.

 

SC | Em certo ensaio, como nos conta, Sarduy se referiu à colmeia de metáforas de Góngora como a metáfora ao quadrado. Sendo ela a pedra angular de sua poesia, atribui-lhe natureza ôntica ou a utiliza como elemento psicológico de efeito encantatório?

 

FM | Notemos que em Góngora há um pleno domínio de significantes. Ali o som, a beleza e o esplendor formal apresentam-se como dominantes. Já em minha poesia o sentido tem o mesmo grau de importância que a forma, ambos se apresentam de maneira indissociável. No que diz respeito às metáforas, o que há com esses “feixes metafóricos ininterruptos” é um jogo de paisagens sequenciadas (de certa forma frustradas por ali não poderem ser simultâneas). Eu gostaria de dar a elas um nível tal de flexibilidade que pudessem ser lidas sem que esta ou aquela fosse pinçada por uma escala de valores. Todas aquelas peças que compõem a sinfonia-livro estão ali, sendo esta a única essencialidade delas. Lembro-me aqui de José Kozer, este imenso poeta cuja obra estou antologiando, ao dizer que não se sente escrevendo um livro de poemas e sim poemas, poemas, poemas. Quanto a mim, sinto-me exatamente ao contrário, sempre a escrever livros, o que confere portanto natureza ôntica a todos os meus versos.

 

SC | Partindo, apenas para ilustrar, dos exemplos de Valéry, Burroughs ou Sabato, e na condição de poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico e homem de ideias, pensa que seja essencial a um escritor um completo profissionalismo, ou basta-lhe o atributo do talento?

 

FM | Lembro que professar que dizer confessar, e não creio que a arte esteja ligada a isto. Arte não é confissão pública de um ofício. Em meu caso específico: sou essencialmente poeta; e todas as demais atividades intelectuais que desenvolvo faço-o a partir deste dado fundamental. Traduzo primordialmente porque a tradução permite uma leitura em profundidade, conduz a uma plena identificação com o texto alheio (inclusive abolindo tal fronteira), intimidade mais intensa que a provocada pela simples leitura; meus ensaios (neste caso nos referimos mais às entrevistas, daí que prefiro chamá-los apenas escritos, anotações) são frutos de que criação e reflexão são operações convergentes, estreitam a máxima cumplicidade, de tal forma que não consigo vê-las dissociadas; e com relação às minhas collages, diria que elas estão mais ligadas à condição de poeta que de artista plástico. Não creio seja essencial a um escritor um completo profissionalismo nem que lhe baste o atributo do talento. O verdadeiro artista define-se por um obstinado rigor, que deve lhe acompanhar a vida inteira, sempre disposto a negar-lhe o direito à linearidade e a descobrir novas vozes dentro de si. Tenho sido autodidata em todos os sentidos, aprendizado solitário mas sereno em seu bojo, serenamente rigoroso.

 

SC | Tomando apenas como referência os conceitos de tradução/transcrição, ou “transcriação”, qual é, como tradutor, seu modelo operacional? A poesia é traduzível?

 

FM | Tradução implica transferência, o que sujeita o texto-fonte (em meu caso: o poema), no trajeto de uma a outra fronteira verbal, a um recolhimento de certas impurezas. Na lapidação de suas citações interiores temos que recorrer ao que se costuma chamar de recriação; e re-criar implica falsificar. Na misteriosa passagem de Serpii vin sa bea cenusa ta bolnava para as serpentes vêm beber tua cinza enferma, há tanto expansão como perda. Por um lado o verso do romeno Virgil Teodorescu multiplica o alcance de sua influência; por outro, sente estilhaçar-se a plenitude de seu ser. Esta inabalável ambiguidade caracteriza a operação tradutória. Lembro aqui que o poeta mexicano Eduardo Lizalde inclui em seu mais recente livro (Tabernarios y Eróticos) uma seção de traduções de poemas de Dante, Blake, Benn, Joyce, entre outros, a que acertadamente intitula Baixa Traição.

Creio que não importa se a poesia é traduzível ou não, e sim que, ao traduzi-la, o prazer da linguagem reside exatamente em sua falsificação.

 

SC | Diz Beckett nas primeiras linhas de O Inominável “O que é preciso evitar, não sei porque, é o Espírito do Sistema” (grifo meu). Você adota uma estratégia peculiar para cumprir, ao mínimo necessário, a ritualística da sociedade burguesa? Que resultados obtém?

 

FM | Beckett também nos diz que “a busca do meio de fazer cessar as coisas, calar sua voz, é que permite ao discurso continuar”. Não posso deixar de lembrar que nossa crítica literária continua nos devendo um ensaio em que se estude as aproximações entre Beckett e Clarice Lispector. Após esta mínima digressão, creio que melhor responde à sua pergunta esta extensa citação do poeta colombiano Alvaro Mutis: “A poesia é um exercício para condenados. Os poetas transitam pela rua com o rosto e com os gestos dos demais transeuntes e só assim sobrevivem; porque se se vestissem com o traje de amianto e fósforo que lhes corresponde, as pessoas fugiriam a seu passo e o pavor reinaria ao seu redor como uma luminosa coroa justiceira. Os poetas entendem esta situação e aceitam a penosa carga deste mimetismo humilhante. Mas resta uma zona onde essa condição de vida assinalada pelos sete dedos da lucidez, da beleza, da ira, da intemporalidade, do sonho, da morte e do amor, é inocultável. Esta zona a constituem as palavras do poeta, sua visão e seu trato com os demais condenados”. Tenho tomado para mim estas palavras, desde o primeiro instante em que as li.

 

SC | Desde a adolescência me impressiona Truffaut ao dizes que um seu personagem, tendo levado um amigo ao aeroporto em noite de chuva, e sucumbido num desastre, morrera de GENTILEZA. Há semanas, lendo Hanna Arendt a propósito da fuga de Rosa Luxemburgo de Berlim, vejo que, entre outros, seu companheiro Jogiches negou-se a partir afirmando que “alguém tem que ficar para escrever todos os nossos epitáfios”. No mundo selvagem e perverso em que vivemos, o ser humano é uma espécie em extinção?

 

FM | O homem rompeu o mágico elo entre vida e morte. Estilhaçou os bagos da memória. Negociou sua alma como futuro. Usou a adaga de sua ignorância para cegar todos os espelhos. E agora vaga em pleno deserto urbano, assediado pela bárbara fantasmagoria de seus atos, atormentado pelos rombos em suas camadas de ternura, prazer e delírio. Em nome do progresso mais destruiu que ergueu. Guerras, abortos, confiscos, trapaças, atentados, têm sido seu manjar predileto por toda a eternidade. Contudo, o homem tem sido sempre uma espécie em extinção. Recupera-se aqui e ali. Entra em acordo com seus fantasmas. Oferta novos sacrifícios ao Deus-progresso. De maneira que não creio que esta seja nossa última descida aos infernos.

 

SC | De acordo com Baudelaire o poeta é o melhor dos críticos. Concorda em que a crítica de poesia deveria ser exercida unicamente por poetas?

 

FM | Entendo a crítica como acréscimo, jamais como supressão. Um exercício constante de averiguações em torno ao texto-fonte, exercício este que gera suplementos, ressonâncias, um caudal inesgotável de relações sugeridas/provocadas pela repetição. Porém, uma coisa é a crítica e outra o crítico. Já lhe disse que acho a crítica uma atividade indissociável da criação, de maneira que é sempre preferível que ela seja exercida pelo escritor, principalmente no caso da poesia, em que só o poeta, como bem nos lembra Eliot, sabe que há sempre algo “que deve permanecer sem resposta, por mais completo que seja nosso conhecimento do poeta”.

 

SC | O que poderia dizer-nos sobre sua notável epígrafe: “O século XX não dará no XXI”.

 

FM | Duas coisas: que me é cada vez mais impressionante como sempre vivemos à sombra do mito da renascença: paralisados por um estado de transição permanente; e que prefiro que os poemas falem por si mesmos, com sua voz própria.

 

 

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