quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

1996 | A FAVOR DO CONTRA | Entrevista concedida a Lira Neto

Originalmente publicada no suplemento Sábado, do jornal O Povo. Fortaleza, 30/03/1996

 

Ele largou a escola aos 16 e nunca mais entrou em uma sala de aula. Independente por vocação, jamais colocou os pés numa universidade: estabeleceu para si próprio um rigoroso projeto de estudo, enquanto devorava toda a literatura que podia encontrar pela frente. Autodidata, o ensaísta, poeta e tradutor cearense Floriano Martins, 42 anos, tem hoje um generoso currículo de publicações nos principais países de língua hispânica. Colaborador sistemático de jornais e revistas literárias da Espanha e América Latina, Floriano diz construir seu nome à margem das “igrejinhas intelectuais cearenses”. Nesta entrevista ao Sábado, ele justifica sua fama de polemista e enfrenta a unanimidade de meio mundo das letras ao sol.

 

LN | Você sempre optou por uma carreira literária à margem das principais igrejinhas literárias cearenses. O que você lucrou, perdeu ou deixou de ganhar com este tipo de atitude?

 

FM | De uma maneira geral, não tenho nada a reclamar do meu isolamento em relação ao chamado status quo da literatura cearense. Esse “isolamento” foi necessário para a elaboração de dois projetos fundamentais: a definição de um projeto poético e, sobretudo, de um projeto ensaístico, que demandam um tempo enorme de trabalho e pesquisa. Além disso, minha natureza não é muito dada ao universo de festejos a que está vinculado o poder literário. O que me soa estranho é que, quando tento me posicionar a respeito de uma ou outra circunstância da literatura cearense contemporânea, sou considerado “o magoado”, “o ressentido”, “o resmungão”, “o provocador”. Mas eu mesmo busquei esse isolamento. Não me sinto alijado de coisa nenhuma.

 

LN | Foi justamente esse isolamento em relação ao meio literário local que o levou a buscar outros interlocutores, a travar esse diálogo com a literatura hispano-americana, por exemplo?

 

FM | Se o objetivo fosse fugir daqui, seria muito mais fácil pra mim buscar o diálogo com a literatura francesa, inglesa ou norte-americana. Isso me facilitaria muito mais a vida. Mas fui mexer justamente com o universo mais obscuro de todos, o da literatura hispano-americana. Inquieta-me o fato de sermos absolutamente desconhecidos entre nós mesmos, apesar de estarmos todos dentro do mesmo continente e termos sido vítimas do mesmo processo histórico de colonização.

 

LN | Qual a importância da poesia latino-americana no quadro da literatura universal contemporânea?

 

FM | Seja nos EUA ou Europa, não há hoje exemplo de uma poesia tão renovada e reveladora quanto a hispano-americana. Tanto temática quanto estilisticamente ali se produziu uma multiplicidade de vozes que não encontra correspondência em nenhum outro círculo poético. E o pouco que conhecemos caiu nas mãos de péssimos tradutores ou teve uma leitura descontextualizada. Grave exemplo é o livro Pedra de Sol, do mexicano Octavio Paz, um dos marcos da poesia hispano-americana, que foi criminosamente depredado por um cidadão chamado Horácio Costa.

 

LN | Quando não são depredados são simplesmente ignorados…

 

FM | É inadmissível que não se encontre entre nós, por exemplo, a tradução da poesia de José Lezama Lima, embora se comente muito sobre o barroco hispano-americano e até mesmo tenhamos inventado um tal de “neobarroco”. Haroldo de Campos acredita ter escrito o que chama de um “manifesto da estética neobarroca”. Ora, o barroco é a grande singularidade estética da poesia hispano-americana, desde sua origem. Uma linha que vem do barroco ao surrealismo – fortalecida pela supremacia da mestiçagem – define esta poesia de maneira notável e transcendente. Não há “neobarroco”, a não ser como limitação, como uma das formas de nossa obsessão escolástica. A poesia dispensa o “neobarroco”. Tal delimitação pertence à vila dos acadêmicos e à horda anêmica de subpoetas que tanto prolifera entre nós.

 

LN | Atualmente o escritor Bruno Tolentino vem alimentando uma acirrada polêmica nas folhas dos principais jornais e revistas brasileiras, ao tentar dessacralizar algumas unanimidades intelectuais brasileiras. Você concorda com as teses de Tolentino?

 

FM | Tolentino não passa de uma estratégia autopromocional. É preciso ser ingênuo para não perceber isso. Bruno não tem absolutamente nada a apresentar em contrapartida ao que reclama. Seus dois livros de poesia, sobretudo o segundo, são lastimáveis. Mas o que interessa discutir neste episódio é o quanto Tolentino conseguiu perturbar o cenário intelectual brasileiro. Nisso, ele e suas polêmicas são saudáveis e trazem grande utilidade. Como quando, por exemplo, conseguiu provocar – ou revelar – uma atitude extremamente baixa de quem até então era um monstro sagrado, o senhor Augusto de Campos. Para responder às provocações de Tolentino, Augusto gerou um abaixo-assinado ridículo, com assinaturas de artistas e intelectuais a seu próprio favor. Isso, no máximo, só conseguiu mostrar o estado de indigência em que o fundador do Concretismo se encontra. Ou pouco mais que isso: revelou o estado da dependência intelectual brasileira em relação a nomes intocáveis.

 

LN | Recentemente, aqui mesmo no Sábado, você assinou uma resenha crítica pegando pesado na antologia Poesia Cearense no século XX. Em entrevista na semana passada ao Vida & Arte, o escritor Assis Brasil (organizador da antologia) rebateu de forma virulenta a resenha. Até que ponto seu artigo também não poderia ser considerado apenas uma “estratégia autopromocional”? Você está querendo ser o “Tolentino do Ceará”?

 

FM | Há uma delicada diferença. (Pausa longa). Do ponto de vista jornalístico, os dois fatos até não parecem diferentes. Mas são duas circunstâncias. Reclamei, de forma objetiva, da falta de idoneidade crítica, no preparo de uma obra que, de uma maneira ou de outra, define um perfil da literatura cearense. Já Tolentino é apenas uma personagem de quermesse, de gincana. Isso ficou claro desde o início, quando ele afirmou que traduzia melhor que Augusto de Campos. Ele não reclamou de alguém por ser mal tradutor, mas disputou qualidade de tradução. Se deu mal: apresentou ao público algo tão ruim como a tradução do Augusto.

 

LN | Como você classifica a reação de Assis Brasil à sua resenha?

 

FM | A reação de Assis Brasil foi infinitamente menor de que a de Augusto de Campos. No entanto, posso afirmar que as duas têm o mesmo princípio. Os dois são pessoas acostumadas a viver no Olimpo, cercadas de bajuladores, onde ninguém os questiona de nada. Ora, o mais importante para se manter o padrão de uma cultura é justamente o questionamento. Caso contrário, cultura vira cristalização. E isso não interessa a ninguém.

 

LN | Você tem preparada uma antologia de poetas latino-americanos, intitulada Mundo Mágico. Como antologista, que critérios adotaria para não cair nos “equívocos” de que acusa Assis Brasil?

 

FM | Toda antologia corre riscos. No fundo, livros desse tipo acabam caindo na tentação de se basear em critérios estritamente pessoais. Veja só: 75% dos poemas que Assis Brasil colocou na antologia são sonetos, sua preferência em poesia. Só a título de exemplo: ele representou minha obra com dois sonetos. E posso ser tudo na vida, menos sonetista. Outra falha visível: o desconhecimento de seu objeto de pesquisa. Colocou por exemplo José Albano como parnasiano, tudo o que Albano não foi. Albano foi, na verdade, nosso único grande momento simbolista. Entenda: não reclamo dos equívocos naturais e comuns á maior parte dos antologistas. O que reclamo é do fato de Assis Brasil não ter definido criteriosamente o que estava avaliando. É como se ele não soubesse realmente do que estava falando.

 

LN | E quem entraria em sua lista de bons poetas cearenses?

 

FM | A poesia cearense começa pra valer com José Albano. Logo em seguida, há dois poetas que não podem ser esquecidos: Edigar de Alencar e Sidney Neto, embora não tenham a mesma dimensão que Albano. Mas creio ser indiscutível situar o Clã, na década de 40, como o ápice de nossa história literária, mais especificamente na poesia. Posterior ou simultaneamente a isso, nada mais, exceto as presenças isoladas de Gerardo Mello Mourão, Francisco Carvalho e José Alcides Pinto.

 

LN | Estes teriam livre conduto?

 

FM | Sim, mas cada um tem lá seus problemas. O carvalho repete-se muito, o que tem o peso de um grande desgaste na leitura conjunta de sua obra. Quanto ao Alcides, sempre padeceu de uma oscilação incrível. Mas acaso Drummond também não incorreu no desgaste da repetição, ao ponto de diluir-se por completo em seus últimos livros? Outro autor que também considero importante é Adriano Espínola, com seu Lote Clandestino. Um livro que se insurge, com sua linguagem cosmopolita e uma notável ironia, contra a estética do cangaço, contra essa obsessão cordelista, que impera em nossa poesia, cujo maior prejuízo foi haver adotado Patativa do Assaré como uma expressão poética nacional. A meu ver, o Adriano seria o único poeta de minha geração que se deveria citar.

 

LN | Você não considera extremada a afirmação de que não tenha surgido praticamente nada depois do Clã? Em seu artigo você afirmava, por exemplo, que não sobrou nada da Geração Siriará…

 

FM | Insisto na mesmíssima pergunta do artigo: o que deixou o tal Siriará, senão uma revista circunstancial em torno de uma reunião da SBPC, uma peça de teatro também montada em torno da mesma circunstância e, sobretudo, um manifesto que não se manifesta sobre nada? O que o Siriará deixou de obra para que alguém possa fazer sua defesa? Absolutamente nada. O Siriará foi outra circunstância autopromocional. Aquilo interessava a todos. É o mesmo caso do grupo SIN. Alguém me responda: o que a poesia de Horácio Dídimo ou de Roberto Pontes representa, pelo menos, no nível mínimo dos poetas municipais?

 

LN | No final do ano passado, uma antologia da poesia brasileira dos anos 60, organizado pelo cearense Pedro Lyra e publicada no Rio de Janeiro, também rendeu alguma polêmica, pelo menos nas páginas do Jornal do Brasil. Você conhece o livro?

 

FM | Essa antologia do Pedro Lyra peca na sua própria concepção, ao inventar uma geração que não existe. Certa vez, para justificar a existência de um cidadão chamado Carlos Nejar, a ensaísta Nelly Novaes Coelho referiu-se a uma suposta “Geração 60”. Essa coisa ganhou corpo e um bando de gente que não tinha onde se meter na história da literatura brasileira acabou tratando de arranjar seu lugarzinho nela. No grande prédio chamado Brasil – e sabe-se lá quem é o síndico disso – exige-se carteirinha e crachá de acesso para todo mundo. Inventam-se departamentos do nada, como essa tal “Geração 60”, que é o crachá que o Pedro Lyra arranjou para entrar na literatura brasileira. Ele inventou um andar inteiro no prédio para poder entrar.

 

LN | O que significa sua afirmação de que não existiu a “Geração 60”?

 

FM | A falha do Pedro é considerar que a poesia brasileira se tornou outra após o golpe de 64. Isso é uma piada. A nossa indigência cultural é muito anterior a 64. A gente vive querendo gancho para alguma coisa e o golpe foi o gancho que arranjamos para justificar a inação crônica da cultura brasileira. Recentemente, na revista da Academia Brasileira de Letras, Domingos Carvalho Silva faz referência ao fato de que não existe geração literária sem a presença de manifestos e inimigos literários. Assim, a geração de 45 seria o último marco geracional da literatura brasileira, por mais que alguém possa se insurgir estilisticamente contra ela. Carvalho Silva está certo. O que Poe por terra a tese de nosso Pedro Lyra. Uma tese acadêmica, que por sinal – é bom que se diga – só não foi reprovada na banca da UFRJ por uma simples questão de afeto. Ele passou raspando, com a menos nota permitida para aprovação.

 

LN | Você é um autodidata, que aos 16 anos abandonou a escola e nunca chegou à universidade… Você considera que por isso exista alguma lacuna na sua formação?

 

FM | Pelo contrário. Ora, o grande problema hoje é que a literatura foi tomada pela universidade. É isso que está gerando uma série de equívocos do que de fato seja a evolução poética no Brasil. Os acadêmicos estão criando uma leitura distorcida da realidade da literatura no Brasil. A universidade é prejudicial à poesia.

 

 

 

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