Originalmente publicada no suplemento Sábado, do jornal O Povo. Fortaleza, 30/03/1996
Ele largou a escola aos 16 e nunca mais entrou em uma sala
de aula. Independente por vocação, jamais colocou os pés numa universidade:
estabeleceu para si próprio um rigoroso projeto de estudo, enquanto devorava
toda a literatura que podia encontrar pela frente. Autodidata, o ensaísta,
poeta e tradutor cearense Floriano Martins, 42 anos, tem hoje um generoso
currículo de publicações nos principais países de língua hispânica. Colaborador
sistemático de jornais e revistas literárias da Espanha e América Latina,
Floriano diz construir seu nome à margem das “igrejinhas intelectuais
cearenses”. Nesta entrevista ao Sábado,
ele justifica sua fama de polemista e enfrenta a unanimidade de meio mundo das
letras ao sol.
LN | Você sempre optou por uma
carreira literária à margem das principais igrejinhas literárias cearenses. O
que você lucrou, perdeu ou deixou de ganhar com este tipo de atitude?
FM | De uma maneira geral, não tenho
nada a reclamar do meu isolamento em relação ao chamado status quo da literatura cearense. Esse “isolamento” foi necessário
para a elaboração de dois projetos fundamentais: a definição de um projeto
poético e, sobretudo, de um projeto ensaístico, que demandam um tempo enorme de
trabalho e pesquisa. Além disso, minha natureza não é muito dada ao universo de
festejos a que está vinculado o poder literário. O que me soa estranho é que,
quando tento me posicionar a respeito de uma ou outra circunstância da
literatura cearense contemporânea, sou considerado “o magoado”, “o ressentido”,
“o resmungão”, “o provocador”. Mas eu mesmo busquei esse isolamento. Não me
sinto alijado de coisa nenhuma.
LN | Foi justamente esse isolamento
em relação ao meio literário local que o levou a buscar outros interlocutores,
a travar esse diálogo com a literatura hispano-americana, por exemplo?
FM | Se o objetivo fosse fugir daqui,
seria muito mais fácil pra mim buscar o diálogo com a literatura francesa,
inglesa ou norte-americana. Isso me facilitaria muito mais a vida. Mas fui
mexer justamente com o universo mais obscuro de todos, o da literatura
hispano-americana. Inquieta-me o fato de sermos absolutamente desconhecidos
entre nós mesmos, apesar de estarmos todos dentro do mesmo continente e termos
sido vítimas do mesmo processo histórico de colonização.
LN | Qual a importância da poesia
latino-americana no quadro da literatura universal contemporânea?
FM | Seja nos EUA ou Europa, não há
hoje exemplo de uma poesia tão renovada e reveladora quanto a
hispano-americana. Tanto temática quanto estilisticamente ali se produziu uma
multiplicidade de vozes que não encontra correspondência em nenhum outro
círculo poético. E o pouco que conhecemos caiu nas mãos de péssimos tradutores
ou teve uma leitura descontextualizada. Grave exemplo é o livro Pedra de Sol, do mexicano Octavio Paz,
um dos marcos da poesia hispano-americana, que foi criminosamente depredado por
um cidadão chamado Horácio Costa.
LN | Quando não são depredados são
simplesmente ignorados…
FM | É inadmissível que não se
encontre entre nós, por exemplo, a tradução da poesia de José Lezama Lima,
embora se comente muito sobre o barroco hispano-americano e até mesmo tenhamos
inventado um tal de “neobarroco”. Haroldo de Campos acredita ter escrito o que
chama de um “manifesto da estética neobarroca”. Ora, o barroco é a grande
singularidade estética da poesia hispano-americana, desde sua origem. Uma linha
que vem do barroco ao surrealismo – fortalecida pela supremacia da mestiçagem –
define esta poesia de maneira notável e transcendente. Não há “neobarroco”, a
não ser como limitação, como uma das formas de nossa obsessão escolástica. A
poesia dispensa o “neobarroco”. Tal delimitação pertence à vila dos acadêmicos
e à horda anêmica de subpoetas que tanto prolifera entre nós.
LN | Atualmente o escritor Bruno
Tolentino vem alimentando uma acirrada polêmica nas folhas dos principais
jornais e revistas brasileiras, ao tentar dessacralizar algumas unanimidades
intelectuais brasileiras. Você concorda com as teses de Tolentino?
FM | Tolentino não passa de uma
estratégia autopromocional. É preciso ser ingênuo para não perceber isso. Bruno
não tem absolutamente nada a apresentar em contrapartida ao que reclama. Seus
dois livros de poesia, sobretudo o segundo, são lastimáveis. Mas o que
interessa discutir neste episódio é o quanto Tolentino conseguiu perturbar o
cenário intelectual brasileiro. Nisso, ele e suas polêmicas são saudáveis e
trazem grande utilidade. Como quando, por exemplo, conseguiu provocar – ou
revelar – uma atitude extremamente baixa de quem até então era um monstro
sagrado, o senhor Augusto de Campos. Para responder às provocações de
Tolentino, Augusto gerou um abaixo-assinado ridículo, com assinaturas de
artistas e intelectuais a seu próprio favor. Isso, no máximo, só conseguiu
mostrar o estado de indigência em que o fundador do Concretismo se encontra. Ou
pouco mais que isso: revelou o estado da dependência intelectual brasileira em
relação a nomes intocáveis.
LN | Recentemente, aqui mesmo no
Sábado, você assinou uma resenha crítica pegando pesado na antologia Poesia
Cearense no século XX. Em entrevista na semana passada ao Vida & Arte, o escritor Assis Brasil (organizador da antologia)
rebateu de forma virulenta a resenha. Até que ponto seu artigo também não
poderia ser considerado apenas uma “estratégia autopromocional”? Você está
querendo ser o “Tolentino do Ceará”?
FM | Há uma delicada diferença.
(Pausa longa). Do ponto de vista jornalístico, os dois fatos até não parecem
diferentes. Mas são duas circunstâncias. Reclamei, de forma objetiva, da falta
de idoneidade crítica, no preparo de uma obra que, de uma maneira ou de outra,
define um perfil da literatura cearense. Já Tolentino é apenas uma personagem
de quermesse, de gincana. Isso ficou claro desde o início, quando ele afirmou
que traduzia melhor que Augusto de Campos. Ele não reclamou de alguém por ser
mal tradutor, mas disputou qualidade de tradução. Se deu mal: apresentou ao
público algo tão ruim como a tradução do Augusto.
LN | Como você classifica a reação de
Assis Brasil à sua resenha?
FM | A reação de Assis Brasil foi
infinitamente menor de que a de Augusto de Campos. No entanto, posso afirmar
que as duas têm o mesmo princípio. Os dois são pessoas acostumadas a viver no
Olimpo, cercadas de bajuladores, onde ninguém os questiona de nada. Ora, o mais
importante para se manter o padrão de uma cultura é justamente o
questionamento. Caso contrário, cultura vira cristalização. E isso não
interessa a ninguém.
LN | Você tem preparada uma antologia
de poetas latino-americanos, intitulada Mundo Mágico. Como antologista, que
critérios adotaria para não cair nos “equívocos” de que acusa Assis Brasil?
FM | Toda antologia corre riscos. No
fundo, livros desse tipo acabam caindo na tentação de se basear em critérios
estritamente pessoais. Veja só: 75% dos poemas que Assis Brasil colocou na
antologia são sonetos, sua preferência
LN | E quem entraria em sua lista de
bons poetas cearenses?
FM | A poesia cearense começa pra
valer com José Albano. Logo em seguida, há dois poetas que não podem ser
esquecidos: Edigar de Alencar e Sidney Neto, embora não tenham a mesma dimensão
que Albano. Mas creio ser indiscutível situar o Clã, na década de 40, como o
ápice de nossa história literária, mais especificamente na poesia. Posterior ou
simultaneamente a isso, nada mais, exceto as presenças isoladas de Gerardo
Mello Mourão, Francisco Carvalho e José Alcides Pinto.
LN | Estes teriam livre conduto?
FM | Sim, mas cada um tem lá seus
problemas. O carvalho repete-se muito, o que tem o peso de um grande desgaste
na leitura conjunta de sua obra. Quanto ao Alcides, sempre padeceu de uma
oscilação incrível. Mas acaso Drummond também não incorreu no desgaste da
repetição, ao ponto de diluir-se por completo em seus últimos livros? Outro
autor que também considero importante é Adriano Espínola, com seu Lote Clandestino. Um livro que se
insurge, com sua linguagem cosmopolita e uma notável ironia, contra a estética
do cangaço, contra essa obsessão cordelista, que impera em nossa poesia, cujo
maior prejuízo foi haver adotado Patativa do Assaré como uma expressão poética
nacional. A meu ver, o Adriano seria o único poeta de minha geração que se
deveria citar.
LN | Você não considera extremada a
afirmação de que não tenha surgido praticamente nada depois do Clã? Em seu
artigo você afirmava, por exemplo, que não sobrou nada da Geração Siriará…
FM | Insisto na mesmíssima pergunta
do artigo: o que deixou o tal Siriará, senão uma revista circunstancial em
torno de uma reunião da SBPC, uma peça de teatro também montada em torno da
mesma circunstância e, sobretudo, um manifesto que não se manifesta sobre nada?
O que o Siriará deixou de obra para que alguém possa fazer sua defesa?
Absolutamente nada. O Siriará foi outra circunstância autopromocional. Aquilo
interessava a todos. É o mesmo caso do grupo SIN. Alguém me responda: o que a
poesia de Horácio Dídimo ou de Roberto Pontes representa, pelo menos, no nível
mínimo dos poetas municipais?
LN | No final do ano passado, uma
antologia da poesia brasileira dos anos 60, organizado pelo cearense Pedro Lyra
e publicada no Rio de Janeiro, também rendeu alguma polêmica, pelo menos nas
páginas do Jornal do Brasil. Você
conhece o livro?
FM | Essa antologia do Pedro Lyra
peca na sua própria concepção, ao inventar uma geração que não existe. Certa
vez, para justificar a existência de um cidadão chamado Carlos Nejar, a
ensaísta Nelly Novaes Coelho referiu-se a uma suposta “Geração
LN | O que significa sua afirmação de
que não existiu a “Geração
FM | A falha do Pedro é considerar
que a poesia brasileira se tornou outra após o golpe de 64. Isso é uma piada. A
nossa indigência cultural é muito anterior a
LN | Você é um autodidata, que aos 16
anos abandonou a escola e nunca chegou à universidade… Você considera que por
isso exista alguma lacuna na sua formação?
FM | Pelo contrário. Ora, o grande
problema hoje é que a literatura foi tomada pela universidade. É isso que está
gerando uma série de equívocos do que de fato seja a evolução poética no
Brasil. Os acadêmicos estão criando uma leitura distorcida da realidade da
literatura no Brasil. A universidade é prejudicial à poesia.
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