segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

ANTONIO CÂNDIDO FRANCO | João Pedro George, crítico e sacristão

 


João Pedro George reuniu agora num único volume as suas mais recentes notas críticas, algumas publicadas antes na imprensa de grande público como a revista Sábado e o jornal digital Observador. O livro tem um título engraçado e coloquial, Chatear o Camões, um subtítulo que deixa algumas dúvidas, “Inquérito à Vida Cultural Portuguesa”, foi editado por uma chancela que apresenta uma linha gráfica distinta e original, Maldoror, que tem dado títulos raros e valiosos, e conta com ilustrações de Miss Inês, algumas magníficas de precisão e de humor, como a da página 5, outras só banais. Diga-se de passagem que o nome artístico da ilustradora é do melhor que temos visto.

Não é a primeira vez que João Pedro George reúne notas críticas suas em livro. Isso aconteceu logo em 2006 com o livro Não é Fácil Dizer Bem, esse com um subtítulo apetecível, “Críticas, Obsessões e Outras Ficções”. Entre as notas desse ano e as agora reunidas e publicadas existe uma óbvia conexão de continuidade. O estilo – reconhecível – é ainda o mesmo. Uma diferença abissal separa porém as duas recolhas: a primeira tem umas meras 250 páginas, algumas delas ficção, enquanto o livro ora editado apresenta umas monumentais 640 páginas, todas de pura e dura crítica literária e cultural. Pode pois acontecer que a pretensão do subtítulo do livro seja mesmo para levar a sério.

Diga-se desde já que a crítica de João Pedro George é de molde a entusiasmar. Ele está longe de ser aquele crítico vulgar que vem para os jornais debitar umas banalidades sobre livros e autores, seja para ver o seu nome impresso em letra redonda seja para acrescentar uns cobres ao rendimento mensal. Desde há 20 anos a sua crítica é tudo menos corrente. Ele não tem cultos – nem os fabrica. Ao invés, o que lhe interessa é deitar abaixo ídolos, mesmo que se chamem António Lobo Antunes, Vasco Pulido Valente, Agustina Bessa-Luís, António Mega Ferreira, Eduardo Prado Coelho, Manuel Alegre, António Alçada Baptista, José Eduardo Agualusa, Rui Nunes, Inês Pedrosa, Maria Filomena Mónica. Uma crítica que não hesita em desmontar as fragilidades de tantas figurais consensuais – alguns são mesmo monstros sagrados, totens intocáveis da vida cultural e literária portuguesa – merece por inteiro aplauso. É uma crítica corajosa e necessária.

João Pedro George vai mesmo mais longe. Não lhe basta apontar as debilidades de escritores em quem ninguém se atreve a tocar nem com uma flor. Ele pretende destruir a própria seriedade da literatura enquanto tal. Daí esse livro Mamas e Badanas. Duas análises profundamente complexas da literatura portuguesa (2018), que é para ser lido em complemento dos seus exercí­cios críticos sobre obras, autores e estilos. De facto uma literatura que se leva demasiado a sério, como se dela dependesse a resolução de todos os graves problemas que atingem o planeta, como parece suceder com a literatura portuguesa, em que qualquer escriba se vê a si mesmo como um super-herói planetário, bem merece que lhe digam que o seu grande e inexcedível tema é a forma como trata e representa as “mamas” e o seu melhor e único espelho os linguados que surgem nas “orelhas” dos seus livros, qual deles o mais ridícu­lo e encomiasticamente falso.

A crítica de João Pedro George tem porém duas pequenas questões e uma grande dúvida. As duas pequenas questões são irrelevantes, ou quase, mas mesmo assim merecem ser ditas. Embora reconhecível, ou por isso mesmo, o estilo do autor de Chatear o Camões lembra demasiado o de Luiz Pacheco. Há mesmo momentos em que estamos a ler George e parece que passamos a ler Pacheco. Já me aconteceu confundir os dois, sem saber qual deles estou a ler. Das estratégias de impugnação ao vocabulário tudo é igual.


Não creio todavia que isso chegue a ser um problema. Muito mais novo do que Pacheco, George interessou-se pela sua figura, entrevistou-o, biografou-o, editou-lhe livros e tomou a sua crítica literária e cultural como exemplar. Naturalmente seguiu as suas pisadas e continuou o seu caminho, sem cuidar em arranjar um modo seu. Sendo o modelo quem é, aceita-se e até se louva a escolha. Isto não impede que fosse preferível um caminho mais autónomo e menos colado ao protótipo. A melhor forma de aprofundar e alargar um legado alheio não é confundir-se com ele, repetir-lhe os passos e o estilo, mas abrir com alguns dos seus instrumentos uma trincheira nova e inconfundível.

Isso fez Pacheco fez em relação a António Sérgio, seu modelo crítico. Embora tenha bebido muita da sua inspiração no autor de Ensaios, embora tenha até desviado a seu favor títulos sergianos, como aconteceu com esse “O caprichismo interventor do senhor Mário Cesariny”, um texto de imprensa de 1966 e recolhido depois em Pacheco versus Cesariny (1974), nunca em momento algum a crítica de identificação de Pacheco se confunde com a crítica pedagógica de Sérgio. São inconfundíveis. Ler um não é passar a ler o outro. Cada um tem um vocabulário seu, uma linha reconhecível de desenvolvimento do texto, uma lógica e um estilo próprios, dando assim lugar a duas frentes distintas, se bem que complementares, de combate crítico.

A segunda pequena questão, não constituindo também um problema, é um pouco mais delicada. Nem sempre George sabe escolher os seus alvos. Este problema é nele já antigo. No mesmo ano em que dava a lume Não é Fácil Dizer Bem, publicava ele outro livro, Couves e Alforrecas. Os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto, todo dedicado a impugnar a escrita desta escritora. Dedicar um livro inteiro a analisar dum ponto de vista iconoclasta os romances de Margarida Rebelo Pinto é uma perda de tempo e um deslize que um franco-atirador não pode cometer. A escrita de Margarida Rebelo Pinto é já por si frágil. Não é necessário qualquer esforço crítico para a abanar. Toda aquela bravura de se apresentar em 2006 no palco da crítica a descascar com voz grossa os romances e as crónicas da autora de Sei Lá é jactância, não é valentia. Bater nos fracos é sinal de fraqueza.

O mesmo se diz agora para algumas notas inseridas no seu novo livro. Veja-se por exemplo o caso de Matilde Campilho, a quem dedica dois textos, o segundo deles, uma cerrada leitura dos livros desta fotogénica escritora luso-carioca, com um título que dói ver assim desperdiçado: “A poética de Matilde Campilho”. Pergunta-se: para quê tanta vozearia com um produto poético tão banal e descartável?

Outras vezes a crítica de George mostra-se perdulária não na escolha das figuras, que se tornam representativas, mas nos motivos que lhes aponta, que se tornam irrelevantes. Veja-se o caso de Alberto Manguel. George dedica-lhe dezenas de páginas, para lhe apontar como principal pecado capital a repetição de si mesmo. Acusar um escritor de se repetir a si – não a outros – é mais uma facilidade que não cabe num franco-a­ti­ra­dor com ética. Menos ainda vai encher páginas e páginas para o pro­var. É trabalho desnecessário e despropositado. Um crítico de gabarito não se ocupa de pecadilhos. Quando se diverte com eles, deixa de lado o que mais importa, focando a nossa atenção em coisas menoríssimas.


O mesmo acontece com as muitas páginas que consagra a João Paulo Cotrim como editor em que o grande e único defeito que lhe encontra é re­ceber apoios ou fazer parcerias para a edição dos livros da sua chancela. Pergunta-se: é preciso gastar tanto papel para descobrir um tal facto, que ainda por cima consta da ficha técnica, das contracapas dos livros e até de plataformas digitais? Uma gritaria assim faz uma vez mais figura de falsa valentia. É um entretém pueril e dispensável.

Também o texto consagrado à Antígona e a Luís de Oliveira não passa de bravata vistosa. Não é com facilidades daquelas – um embrulho judicial em torno dos direitos autorais do conhecido romance de George Orwell, 1984 – que se faz o estudo e o retrato de um editor como Luís de Oliveira. Pretender o contrário, forçar a nota, generalizar como George faz no texto que lhe dedica, concluindo que Oliveira “é um escrupuloso defensor da concorrência implacável, da fórmula autoritária e do statu quo” e que a Antígona “nunca questionou o sistema, esteve sempre instalado nele”, é atirar muita poeira aos nossos olhos. Goste-se ou não da Antígona, simpatize-se ou antipatize-se com o editor dela, ninguém em consciência pode aceitar tal disparate. Pergunta-se: uma fanfarronada assim boçal para enganar quem e nos desviar de quê?

Felizmente que George sabe compensar estes equívocos, que por vezes são fraudes, involuntárias queremos crer, como no caso da Antígona, e sempre, mas sempre, perdas inúteis de tempo e de papel. Neste novo livro os seus textos sobre António Lobo Antunes, Vasco Pulido Valente, Miguel Sousa Tavares, José To­len­tino Men­donça, António Guerreiro, Eduardo Lourenço (porventura o texto mais consistente do livro) põem a nu as partes falsas e estaladiças da obra de gente muito badalada e nada escrutinada. São textos corajosos, que dizem aquilo que precisa ser dito e todos calam – por conveniência, por desinteresse, por ignorância. Também os seus textos sobre Rita Rato, José Rodrigo dos Santos e João Miguel Tavares tocam questões incómodas e silenciadas que necessitam de ser denunciadas.

Finalmente, a terceira questão, que essa é um verdadeiro berbicacho. Antes da biografia que publicou sobre Luiz Pacheco, Puta que os Pariu. A biogra­fia de Luiz Pacheco (2011), George publicou uma outra (assim diz na lista das suas obras) chamada Vocês Sabem do que Eu Estou a Falar. Biografia de Octávio Machado (2008). Quem é Octávio Machado? Um treinador de futebol e um director desportivo, que integrou a equipa de Jorge Jesus na passagem deste pelo Sporting. Estranho, é o mínimo que se pode dizer.

Logo depois da biografia consagrada a Pa­checo, George publicou sob o nome de Pedro Avelar uma História de Goa. De Afonso de Albuquerque a Vassalo e Silva (2012). Sendo o autor quem é, e embora publique aqui sob outro nome, desconfiámos que se pudesse tratar duma desbunda bem humorada sobre o tema. Fomos ver. Trata-se de livro seríssimo – na linha dos mais descarnados cronicões de antanho. Estranho, é o mínimo que se pode continuar a dizer.

Três anos depois a bibliografia de George apresenta o seguinte título: Marquesa de Paiva. O destino extraordinário de uma aventureira de amor. Foi neste livro, ou por causa dele, que ficámos a saber que João Pedro da Silva Marques de Avelar George, que assina João Pedro George, mas também Pedro Avelar, é sobrinho-neto do primeiro visconde de Avelar e do primeiro conde de Avelar, títulos nobiliárquicos criados pelo senhor rei D. Carlos, e faz questão de o dizer. Muito estranho, é o mínimo que se pode continuar a exclamar.


Por fim, George publicou Mota Pinto. A biografia (2016). Pelo sim, pelo não, ainda tivemos esperança de que aqui a caçoada fosse o padrão do livro. É verdade que uma história a brincar da Índia portuguesa, no género daquela que os dadaístas escreveram sobre o tempo deles, daria um livro raro e sem preço. Como quer que seja, a biografia duma figura como Mota Pinto dava ainda uma muito apreciável festa. Quando o livro nos veio às mãos tivemos uma das maiores desilusões da vida. Trata-se da biografia mais aborrecida e careta que é possível sonhar para o híper-ministro do Bloco Central.

Diga-se desde já que não vem qualquer mal ao mundo que se escreva uma biografia séria dum primeiro-ministro – como de resto, duma qualquer marquesa ou dum qualquer treinador de futebol. Também não é crime que Ge­orge faça questão de se dizer sobrinho-neto de visconde e de conde. Embora o mundo fosse com certeza melhor se não houvesse viscondes, condes, ministros da defesa, ministros do comércio e do turismo, primeiros-ministros, comendadores, cavaleiros, grandes-oficiais, chanceleres, ordens de instru­ção, ordens militares, ordens reais, ordens de mérito, ordens e condecorações honoríficas, tudo isso existe.

Bom é porém que se demarquem os territórios. Quem está danado por “chatear o Camões”, quem afirma em grossa voz que “não é fácil dizer bem”, não pode depois fazer aplicada e escolarmente a biografia de Mota Pinto como se não fosse nada com ele. Poder até pode – e George prova-o que sim. Corre é o risco de ninguém levar a sério a sua crítica destemida, que se desclassifica assim numa pequena e epigonal habilidade de sacristia para captar atenções e ganhar espaço.

É essa a grande diferença entre ele e Luiz Pacheco. O vocabulário e as estratégias podem até ser iguais nos dois, mas a crítica de Pacheco, alicerçada na sua vida, era a sério. Castigava e doía. A sua actividade crítica era um ofício de gabarito, vivido com verdade e com perigo – e a verdade é sempre perigosa. A de George desqualifica-se pela irresponsabilidade, pelo mercenarismo, pela jactância, pela boçalidade, pela aldrabice. É um artefacto inofensivo, um truque já visto e batido, que faz umas cócegas e dá muita vontade de rir.

 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO (Portugal, 1956) | Ensaísta e editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.

 

 


ROBERT EDMOND JONES (Estados Unidos, 1887-1954). Cenógrafo, iluminador e figurinista, conhecido por incorporar a nova encenação ao drama americano, este notável criador buscou sempre integrar elementos cênicos à narrativa, em vez de mantê-los separados e indiferentes da ação da peça. Seu estilo visual, muitas vezes referido como realismo simplificado, combinava o uso ousado e vívido de cores e iluminação simples, mas dramática. Seus projetos inovadores para a American Opera Company de Vladimir Rosing em 1927 e 1928 foram elogiados pela crítica. Jones também trouxe seu estilo expressionista para muitas produções realizadas pelo Theatre Guild, com designs inovadores para The Philadelphia Story (1937), Othello (1943) e The Iceman Cometh (1946). O maior sucesso comercial de Jones foi com The Green Pastures (1930), que, se incluirmos seu renascimento em 1951, teve um total de 1.642 apresentações. Seu livro The Dramatic Imagination é considerado a obra definitiva sobre a cenografia moderna da primeira metade do século XX. Robert Edmond Jones é o artista convidado da presente edição da Agulha Revista de Cultura.


 


 

Agulha Revista de Cultura

Número 247 | janeiro de 2024

Artista convidado: Robert Edmond Jones (Estados Unidos, 1887-1954)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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