NINA MARIA | Reexistências para além da
arte e poesia
A arte existe porque a vida não basta, é de Ferreira Gullar esta incrível frase da qual uso para iniciar
essa crítica. Gullar aponta também que a função da arte é inventar a realidade.
A arte nos mostra aquilo que está nas entrelinhas e pouco visível. A arte nos toca
ao oferecer a coincidência – ou não – do acaso. A arte também é palavra, que emociona,
faz refletir, chorar, sorrir. Neste primeiro libreto de nossa
parceria com a Agulha Revista de Cultura
são quatro livros de autores contemporâneos brasileiros versando sobre inúmeros
assuntos, mas com um ponto em comum: celebrando a vida, a arte e a poesia. Jocivaldo
e Vitor Akin dos Anjos emocionam com a cumplicidade de pai e filho e o encontro
e descoberta de dois grandes poetas. Mariana Rozário se abre para a poesia ao enfrentar
sentimentos e pensamentos que todos nós vivenciamos diariamente. Gabriele Rosa,
acompanhada de um café e poesia, reflete sobre a vida e seus (des)encontros ao ver
os dias passando. E, por fim, mas não menos importante, Armando Martinelli observa
a vida e o mundo por meio de uma poesia concisa que emociona. Cinco poetas cantando
para além da vida, cantando a verdadeira arte, enfim, reexistindo através da poesia.
1. As
palavras e a poesia de Jocivaldo dos Anjos
Viver, ser e estar em constante estado de
poesia, como canta Chico César, é deixar sempre um espaço separado e dedicado ao
amor e aqueles que amamos. A poesia e o amor são dois estados que possuem esse jeito
singelo de unir pessoas e palavras, palavras e pessoas. É da união entre o amor
e a poesia que surge a obra Palavras de poesia, escritor por Jocivaldo e Vitor Akin
dos Anjos, pai e filho. Na obra Palavras de
Poesia tudo começa a partir de um sonho e da ideia de criar poesias a partir
de diálogos diários com Vitor. Uma ótima oportunidade para um poeta exercer sua
criatividade e técnica, uma tentativa também de aproximar do filho em tempos tão
urgentes, tanto para o pai, como para o filho. Aqui pai e filho são dois alquimistas transformando a palavra em poesia,
pois toda palavra é poesia.
Palavras de poesia apresenta cinquenta e três sonetos a partir
da perspectiva de dois homens negros, pertencente a gerações diferentes, mas acima
de tudo dois homens negros não vitimados pelo genocídio negro, como escreve a atriz
e escritora Cristiane Sobral. Aqui pai e filho conversam entre os versos livremente
sobre tudo, e a obra nasce profética como nos versos: Será um livro de beleza/Para brindar com singeleza/ O mundo com mais poesia.
É na observação do cotidiano, entre cânones e saberes populares, que nasce uma
poesia singela, originada da escrita masculina sensível e as duas noções de ser
e estar no mundo enquanto e para além de corpos negros.
Palavras de poesia também nos alerta para a urgência do dia-a-dia
que afasta famílias e amigos, e quando essa pressa chegar, saber parar e aproveitar
o presente: No dia que o tempo for difícil/
Depois eu cumpro meu ofício/ para fazer nosso presente, é sobre aproveitar o
aqui e o agora no melhor lugar do mundo, como canta Gilberto Gil. Num dialogo fascinante,
pai e filho conversam sobre consciência de classe através de ditados populares:
Massa de gente não é legal/Massa pra gente
é desejoso/ Massa de bolo é mais gostoso/Do que a massa do desigual.
Pai e filho, Joci e Mesti ensinam um ao
outro, mas aos leitores também em saber lidar com a perda, saber superar e (re)construir-se.
Falam de filósofos e heróis nacionais como Zumbi e Lucas da Feira. É um livro de
encontros e encantos a partir do amor e tudo que o cerca e se deixa afetar pelo
amor. Palavras de poesia é também o primeiro
livro de Vitor Akin, que possui TDAH, e participou de todas as etapas de produção
da obra. É um livro que nos ensina sobre ter paciência e cumplicidade com o amor,
a vida e os nossos.
2. Os
poemas para aquilo que todo mundo quer [falar], de Mariana Rozario
Imersos na correria do dia-a-dia almejamos
sempre algo. Um momento a sós com nossos próprios pensamentos e demônios ou acompanhados
do ser amado, amigos ou família. Um tempo para passear, assistir um filme ou série,
escutar música, saborear uma nova comida, experimentar uma nova roupa. Um tempo,
acima de tudo, para escrever e falar através da poesia é o que sentimos aos adentramos
na poética de Mariana Rozario em Poemas para
aquilo que todo mundo quer, seu livro de estreia, que nasce fecundo. Mariana
que é poeta, advogada, graduanda em Letras e mestranda em Relações Internacionais.
Ouçamos com atenção suas palavras.
A escrita de Rozario é significativa, são
quarenta e dois poemas que trazem representatividade feminina negra do inicio ao
fim. É a mulher negra falando sobre suas percepções sobre o mundo, o outro, os sentimentos,
a escrita, as relações. O eu-lírico de Rozario fala com verdade e abertamente sobre
aquilo que todo mundo quer falar seja a si mesmo, outrem ou até mesmo ao mundo.
É uma poética que busca a escrita como ferramenta para falar sobre temáticas intocáveis
e evitadas, a saber, a morte quando a autora, no poema de abertura da obra, nos
diz: e para vencer a morte, escreve poema,
escreve poema. Poemas para aquilo que
todo mundo quer apresenta a escrita como um meio para superar e lidar como assuntos
como o amor, a morte, o tempo, e a própria escrita. A autora em seus poemas consegue
correlacionar magicamente a escrita com o amor e o tempo, uma tríade que se funde
numa leitura prazerosa, intimista, suave, mas também violenta, ao fazer o leitor
constatar no final da leitura tantas coisas que se deseja – e é possível querer
e conseguir, às vezes.
Poemas para aquilo que todo mundo quer
é sobre enfrentar o limbo de sentimentos e encarar as ilusões para não cair no tédio
ou se afundar e causar tragédias por pura diversão. É também uma poética que mesmo
com o trágico, sente-se viva quando está amando e úmida, apesar do sofrimento que
é apaixonar-se pelo tempo e esperar constantemente seja sozinha ou sendo um temporal.
E, acima de tudo, é sobre se reconhecer na escrita, dançando melodias do amor e
tempo.
3. A
vida e a poesia medidos em dias e xícaras de café, de Gabriele Rosa
Há oito meses atrás a OMS declarou o fim
da pandemia da COVID-19, que durou três anos e trouxe uma completa e radical mudança
ao mundo. Perdemos pessoas queridas, criamos uma vacina, vivenciamos o negacionismo,
reaprendemos a viver. Três anos que se passaram e muita coisa aconteceu durante
e depois, e a pergunta que fica é: onde você estava e o que fez durante o confinamento?
Quais mortes reais e simbólicas você enfrentou? Dias medidos em xícara de café, terceiro livro de Gabriele Rosa, historiadora
e dramaturga, não é um livro sobre a pandemia, mas um reflexo entre a realidade
e a ficção sobre tudo que alguém confinado, com toda certeza, vivenciou.
A poética de Gabriele em Dias Medidos traz a observação como elemento
principal, é uma escrita criada a partir daquilo que se observar por meio do contato,
mas também é sobre ponderar e saber lidar com os pensamentos. É também um livro
sobre o tempo e como lidamos com ele. Assim como tudo passa, o tempo também. Sendo
dividido em quatro partes intituladas como: Melancólica, Sanguínea, Fleumática e
Colérica, nota-se os estágios da protagonista – e do café – durante esse confinamento,
que também pode ser simbólico, pois quem nunca se viu preso dentro de si ou em contato
com seu real eu?! Durante as quatro partes do livro, Rosa observa além do que se
vê, enxerga e encara o banal trazendo vivacidade e sutiliza ao abordar questões
universais enquanto se toma um café. Ela fala sobre sexo, desejo, violência, saudade,
sono, depressão, a realidade da mulher, o corpo.
A escrita de Gabriele é rápida, captura
o instante, os detalhes, como uma máquina fotográfica, é preciso atenção para lê-la.
Como cantou Gal Costa, é preciso estar atenta
e forte, não temos de temer a morte. Dias medidos em xícara de café se consolida
como um livro atemporal, pois mesmo sua leitura remetendo ao período de confinamento
sobre a pandemia e tudo que se sucedeu nesse tempo, é um livro que fala sobre os
aprisionamentos que vivenciamos externa e internamente, como observamos nós, o outro
e as situações que nos cercam enquanto tomamos uma boa xícara de café, pois os dias
são medidos assim … por xícaras sem que percebamos.
4. O
cão observando a vida e a poesia na fenda do muro, de Armando Martinelli
Com um título curioso o terceiro livro de
Armando Martinelli, assim como a obra de Gabriele Rosa, é também sobre a observação
através da poesia. Em Cabeça do Cão na Fenda do Muro, Armando observa e escreve,
escreve e observa seu próprio espaço e o mundo que o cerca. A obra dívida em três
capítulos, sendo eles: A cura salgada da infância, Cartografias das nuvens, Sinais
que a língua não alcança trazem poemas curtos, com a vaga lembrança de haicais,
como bem aponta Michaela Schmaedel no prefácio. A maneira concisa como Martinelli
escreve seus poemas sendo em sua grande maioria de três linhas – com algumas exceções
que se estendem – lembra-me uma frase de Saramago na obra Caim (2009) quando o português diz assim: […] as palavras têm os seus quês, os seus comos e os seus porquês. Penso
que Martinelli, em sua terceira obra, se associa a frase por ser muito mais que
um escritor, mas um verdadeiro observador das palavras e seus modos de uso.
Alguns versos nos poemas como olhos que caçam flechas e folhas; aprender a dançar no escuro; tempo de encaixotar
as vírgulas são curtos, concisos e diretos, feitos a partir da poética observadora
muito bem escrita, utilizando também da limitação do espaço para se desafiar e escrever
poemas que atingem como uma flecha ou um raio. E com essa poética minimalista, mas
avassaladora, Armando convida o leitor a descobrir e explorar os poemas, deixando
aberta a fenda entre o dito e o não dito.
Os poemas em Cabeça do Cão na Fenda do Muro é uma poética contemporânea, que aborda
o mundo como ele é e está, assim como tudo que o cerca e o novo. Armando fala de
cidades, carros, mar, inteligência artificial, bichos coexistindo, como mostra Schmaedel.
Armando mostra que é possível e deve-se escreve com e a partir da loucura. E, acima
de tudo, olhar o mundo pelos pequenos espaços que a vida – e o capitalismo – nos
deixa. Reverenciando sempre o visível e o invisível.
NINA MARIA (Brasil, 2000). Poeta. Editora e curadora da revista Ruído Manifesto. É autora dos livros A flor da Pele (2019), Ela – Poemas e Cartas de amor (2020), Há nove luas em mim (2020), e Eu vendaval Eu furacão (2021). Esta série de libretos que começamos agora a publicar integra um acordo de cumplicidade entre Agulha Revista de Cultura e Ruído Manifesto.
RUÍDO MANIFESTO | https://ruidomanifesto.org/
Contato: ruidomanifesto@gmail.com
Editores: Ângela Coradini, Matheus Guiménin Barreto, Wuldson Marcelo,
Rodivaldo Ribeiro, Felipe Martins, Nina Maria, Paty Wolff, Rafaella Eria
Borges, Anna Maria Moura, Meimei Bastos.
Sobre a revista: Uma encruzilhada virtual onde toda literatura e
arte grita e é livre.
Agulha Revista de Cultura
Número 248 | fevereiro de 2024
Artista convidado: Mireya Baglietto (Argentina, 1936)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário