quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Seamus Heaney, poesia e ética

 


Seamus Justin Heaney (Londonderry, 1939-Dublin, 2013) nasceu em Mossbaum, fazenda de vinte hectáreas localizada em Tamniaran, na Irlanda do Norte. O avô era produtor rural, o pai comerciante de gado e a mãe, era a silenciosa mãe de nove filhos que quando solteira trabalhara com a irmã no moinho de linho local. Em 1953, a família muda-se para a vizinha Bellaghy, a fortaleza nacionalista, lar dos grevistas de fome do IRA e do líder do grupo paramilitar INLA. Local onde os cartazes eleitorais do Sinn Féin defendendo a unidade irlandesa adornam os postes de luz.

Que a linhagem de Heaney ascendesse pelo lado paterno à Irlanda pastoril e pelo materno ao Ulster da revolução industrial acrescentou, de acordo com ele próprio, mais um elemento de tensão a uma formação marcada por divisões –católica e protestante, nacionalista e sindicalista, Sul e Norte, irlandesa e britânica, gaélica e inglesa–. Assim, o poema Terminus, de 1987, ilustra a unificação irlandesa

 

Era mais fácil carregar dois baldes do que um

e eu cresci no meio

 

Heaney estuda Língua e Literatura inglesa na Queen's University, em Belfast. A leitura de Lupercal, de Ted Hughes, o leva a interessar-se por poesia. Uma vez formado, estagia na escola secundária St Thomas, cujo diretor é o escritor Michael Laverty. McLaverty o introduz à poesia regional irlandesa, em especial a de Patrick Kavanagh. Nela, Heaney encontra a sensação de pertencimento, o sense of place, que nutriria as raízes da sua própria poesia.

Integra, com os poetas James Simmons, Michael Longley e, mais tarde, Paul Muldoom, o “Grupo de Belfast”, reunido em torno do crítico inglês Philip Hobsbaum.

Em agosto de 1965 Heaney esposa Marie Devlin, uma professora natural de Ardboe e em novembro a plaquette Eleven Poems é impressa para o Belfast Poetry Festival, organizado por Hobsbaum. Seus versos dos anos 60 trazem a paisagem campestre e paroquial, com suas várzeas terrosas e turfeiras ao redor do lago Beg onde Patrício, o santo padroeiro irlandês, jejuou.

 

ANAHORISH

 

My “place of clear water,”

the first hill in the world

where springs washed

into the shiny grass

 

and darkened cobbles

in the bed of the lane.

Anahorish, soft gradient

of consonant, vowel-meadow,

 

after-image of lamps

swung through the yards

on winter evenings.

With pails and barrows

 

those mound-dwellers

go waist-deep in mist

to break the light ice

at wells and dunghills.

 

ANAHORISH

 

Meu “lugar de água clara”

primeira colina do mundo

onde as fontes escorriam

pela relva brilhante

 

e enegreciam os seixos

no leito da alameda

Anahorish, gradiente suave

de consoante, vogal campestre

 

imagem atrás dos lampiões

balançando pelos quintais

nas noites de inverno

Com baldes e carros de mão

 

os moradores da colina

a neblina pela cintura

vão quebrar o gelo fino

de poços e esterqueiras

 


Os cenários da terra natal regridem a uma busca pelos mitos e histórias que contribuíram para moldar a identidade e a situação política na Irlanda do Norte. Sua voz emula em graus diversos o classicismo de Yeats e o cosmopolitismo urbano de Joyce, diluindo-os na musicalidade aliterativa do padre Hopkins e na cultura nativa de Kavanagh. A gravidade do seu tom –no sentido de atração– aumenta enquanto contrasta com o pesado silêncio das pessoas e cenas que descreve.

 

PERSONAL HELICON

 

for Michael Longley

 

As a child, they could not keep me from wells

And old pumps with buckets and windlasses.

I loved the dark drop, the trapped sky, the smells

Of waterweed, fungus and dank moss.

 

One, in a brickyard, with a rotted board top.

I savoured the rich crash when a bucket

Plummeted down at the end of a rope.

So deep you saw no reflection in it.

 

A shallow one under a dry stone ditch

Fructified like any aquarium.

When you dragged out long roots from the soft mulch

A white face hovered over the bottom.

 

Others had echoes, gave back your own call

With a clean new music in it. And one

Was scaresome, for there, out of ferns and tall

Foxgloves, a rat slapped across my reflection.

 

Now, to pry into roots, to finger slime,

To stare, big-eyed Narcissus, into some spring

Is beneath all adult dignity. I rhyme

To see myself, to set the darkness echoing

 

HÉLICON PESSOAL

 

para Michael Longley

 

Criança, ninguém me afastava dos poços

das velhas bombas, seus baldes e polias

Adorava o tombo escuro, o céu no fosso

o cheiro de alga, musgo molhado e fungo

 

No com tampa podre da olaria

eu desfrutava o baque quando o balde

caía a pino no fim da corda tão fundo

que o reflexo não se via

 

O outro, mais raso, na pedra seca do valo

germinava como um aquário

Quando arrancavas as longas raízes do barro

um rosto branco flutuando surgia

 

E os com eco, onde a voz ressoa

mais nova, com uma límpida melodia

E o temido, se entre os ramos de campainha

e samambaias um rato pisoteava o meu reflexo

 

Agora, vasculhar nas raízes, manusear o limo,

fixar um olho enorme de Narciso na fonte

supera qualquer dignidade adulta. Rimo

para me ver, para que a escuridão ecoe.

 


A leitura de Heaney provoca uma sensação ambivalente. Sua poesia respira o passado e renova a tradição ao tempo em que contamina o próprio legado. Pois, nada remotamente novo será criado a partir de um universo cuja originalidade é irredutível a qualquer tipo de incorporação. Quem se coloca ao alcance da sua influência corre o risco de virar um simulacro de autor ou uma caricatura de poeta. Senão, de que forma a geração seguinte absorveria a leitura de um poema como Morte de um Naturalista ou Colheita de Amoras? Há respostas em Paul Muldoom, mas não muitas.

Seu primeiro livro, intitulado Morte de um Naturalista, obtém reconhecimento imediato. Heaney passa a fazer audições para a bbc e a publicar artigos no The Listener e no New Statement.

 

DEATH OF A NATURALIST

 

All year the flax-dam festered in the heart

Of the townland; green and heavy headed

Flax had rotted there, weighted down by huge sods.

Daily it sweltered in the punishing sun.

Bubbles gargled delicately, bluebottles

Wove a strong gauze of sound around the smell.

There were dragonflies, spotted butterflies,

But best of all was the warm thick slobber

Of frogspawn that grew like clotted water In the shade of the banks.

Here, every spring I would fill jampotfuls of the jellied

Specks to range on window sills at home,

On shelves at school, and wait and watch until

The fattening dots burst, into nimble

Swimming tadpoles. Miss Walls would tell us how

The daddy frog was called a bullfrog

And how he croaked and how the mammy frog

Laid hundreds of little eggs and this was Frogspawn.

You could tell the weather by frogs too

For they were yellow in the sun and brown

In rain.

 

Then one hot day when fields were rank

With cowdung in the grass the angry frogs

Invaded the flax-dam; I ducked through hedges

To a coarse croaking that I had not heard

Before. The air was thick with a bass chorus.

Right down the dam gross bellied frogs were cocked

On sods; their loose necks pulsed like sails.

Some hopped: The slap and plop were obscene threats. Some sat

Poised like mud grenades, their blunt heads farting.

I sickened, turned, and ran. The great slime kings

Were gathered there for vengeance and I knew

That if I dipped my hand the spawn would clutch it.

 

MORTE DE UM NATURALISTA

 

O linho supurava dentro do fosso no coração da aldeia

o ano inteiro, verde e com a cabeça pesada

o linho apodrecia debaixo de enormes torrões

e a cada dia sufocava sob o castigo do sol

Bolhas gorgolavam delicadamente, varejeiras

teciam uma grossa gaze zunindo ao redor do bolor

E libélulas, borboletas estampadas também

Mas o melhor de tudo era essa baba quente e densa

das ovas de rã que crescia na sombra das margens

como água coagulada. Aqui, a cada nova primavera

eu encheria potes de marmelada com essa gelatina

embolotada para exibir na janela de casa

nas estantes do colégio e esperaria e cuidaria

até que os pontinhos engordassem estourando em ágeis

girinos nadadores. A professora nos explicava

que o sapo pai se chamava sapo-boi

e que ele coaxava e como a sapa mãe

punha centenas de pequenas ovas e essas eram

a baba de sapo. Era também possível prever o tempo pelos sapos

pois, ficavam amarelos ao sol e marrons

na chuva.

 

Então, um mormacento dia quando o pasto

no campo fedia a esterco de gado, sapos irados

invadiram o coradouro de linho; e eu me esgueirei pelas sebes

através de um coaxar bruto que nunca ouvira

antes. O ar mais denso por aquele coro grave.

No fosso, sobre os torrões, sapos barrigudos entufados;

os papos macios pulsando como pano de vela. Alguns

saltavam e o som dos mergulhos eram ameaças obscenas. Outros

pareciam granadas de barro, com suas calvas cabeças, peidando.

Me senti enjoado, dei a volta e fugi. Os enormes reis babões

estavam ali reunidos por vingança e eu soube

que se mergulhasse a mão a baba me agarraria.

 

Heaney afirmou ter aprendido que a sua experiência local em County Derry, considerada arcaica e irrelevante para o mundo moderno, merecia confiança. E que sua poesia dali poderia nutrir-se.

Dos seus conterrâneos retira o apoio necessário para expressar-se.

 

BLACKBERRY-PICKING

 

for Philip Hobsbaum

 

Late August, given heavy rain and sun

For a full week, the blackberries would ripen.

At first, just one, a glossy purple clot

Among others, red, green, hard as a knot.

You ate that first one and its flesh was sweet

Like thickened wine: summer’s blood was in it

Leaving stains upon the tongue and lust for Picking.

Then red ones inked up and that hunger

Sent us out with milk cans, pea tins, jam-pots

Where briars scratched and wet grass bleached our boots.

Round hayfields, cornfields and potato-drills

We trekked and picked until the cans were full,

Until the tinkling bottom had been covered

With green ones, and on top big dark blobs burned

Like a plate of eyes. Our hands were peppered

With thorn pricks, our palms sticky as Bluebeard’s.

 

We hoarded the fresh berries in the byre.

But when the bath was filled we found a fur,

A rat-grey fungus, glutting on our cache.

The juice was stinking too. Once off the bush

The fruit fermented, the sweet flesh would turn sour.

I always felt like crying. It wasn’t fair

That all the lovely canfuls smelt of rot.

Each year I hoped they’d keep, knew they would not.

 

COLHEITAS DE AMORAS

 

para Philip Hobsbaum

 

Final de agosto, uma semana de chuvarada

e sol, amadureciam as amoras

Surgia uma, a primeira: coágulo brilhante e púrpura

entre rubras, verdes, duras como um nó

A comias e a polpa era doce como vinho

espesso: havia nela o sangue do verão

 

manchando a língua, despertando a ânsia de colher

As rubras se tingiam mais e a gana era de correr

com tarros de leite, latas de ervilha, potes de marmelada

onde as amoreiras espinhavam e o pasto molhado branqueava nossas botas

Nos campos de feno e milho e pelos cultivos de batatas

recolhíamos os frutos até a borda dos tarros

até que o fundo tilintante estivesse coberto

de amoras verdes enquanto por cima ardiam grandes gotas escuras

como uma travessa com olhos. Nossas mãos machucadas

pelos espinhos, as palmas pegajosas como as do Barba Azul

 

Armazenávamos as amoras frescas no estábulo

Mas quando o tanque enchia, um aveludado

fungo gris cor de rato devorava nossa recolta

Também o suco fedia. Longe da amoreira

o fruto fermentava, a polpa doce azedava

Sentia as lágrimas vindo. Era injusto

que essas delícias cheirassem a podre

Cada ano esperava que durassem, sabia que não.

 


Porém, nem tudo foi incontroverso na meteórica ascensão do poeta de Bellaghy. Em 1971, a repressão militar ao movimento católico de direitos civis na Irlanda do Norte levou à ocupação de Derry e Belfast. Mais de 1600 pessoas são enviadas a campos de detenção sem julgamento. Em 30 de janeiro de 1972, soldados do regimento de paraquedistas britânico abriram fogo contra manifestantes desarmados em Bogside, no chamado “Domingo Sangrento”. Convocado a manifestar-se, Heaney reage com ambiguidade. Por um lado, reluta assumir a posição de porta-voz da própria causa, por outro, defende o direito do poeta ser uma figura privada e apolítica. Com uma filha recém-nascida, abandona Belfast e seu cargo na Queen's University para viver em uma pequena casa junto ao mar, ao sul de Dublin. Por sua diáspora doméstica foi duramente criticado. Na praia de Glanmore, dedica-se à tradução de Buile Suibhne, poema medieval irlandês sobre um rei celta que vaga desterrado na forma de um pássaro. Há na saga uma clara alusão à sua própria situação. Sweeney, o rei celta, fora amaldiçoado por um padre católico.

O que Heaney busca ao partir não é fugir das circunstâncias, mas encontrar um meio para responder a elas através da poesia. E essa é a razão pela qual North (Norte), de 1975, se torna um livro central na construção da sua identidade como poeta político e como figura pública. A descoberta arqueológica de corpos da Idade do Ferro em turfeiras da Dinamarca e da Irlanda o inspira a criar a série conhecida por bog poems (os poemas da turfa ou do pântano) onde associa as múmias das vítimas sacrificadas à deusa da fertilidade com as vítimas dos conflitos entre Reino Unido e Irlanda do Norte.

 

BOGLAND

 

for T. P. Flanagan

 

We have no prairies

To slice a big sun at evening

Everywhere the eye concedes to

Encrouching horizon,

 

Is wooed into the cyclops’ eye

Of a tarn. Our unfenced country

Is bog that keeps crusting

Between the sights of the sun.

 

They’ve taken the skeleton

Of the Great Irish Elk

Out of the peat, set it up

An astounding crate full of air.

 

Butter sunk under

More than a hundred years

Was recovered salty and white.

The ground itself is kind, black butter

 

Melting and opening underfoot,

Missing its last definition

By millions of years.

They’ll never dig coal here,

 

Only the waterlogged trunks

Of great firs, soft as pulp.

Our pioneers keep striking

Inwards and downwards,

 

Every layer they strip

Seems camped on before.

The bogholes might be Atlantic seepage.

The wet centre is bottomless.

 

PÂNTANO

 

para T. P. Flanagan

 

Não temos planícies

que ao poente cortem um sol imenso

Por toda parte o olhar cede

ao horizonte invasor

 

atraído pelo olho de ciclope

de um açude. Nosso campo aberto

é um pântano de crostas

entre as vistas do sol

 

Retiraram a ossada

do Grande Alce irlandês

fora da turfa, em um colossal

engradado cheio de ar

 

Manteiga enterrada

por mais de cem anos

foi resgatada, salgada e branca

O chão em si é bom, manteiga negra

 

Dissolto, se abre embaixo dos pés

perdendo sua definição final

por milhões de anos

Carvão algum se extrai daqui

 

apenas os troncos alagados

dos grandes abetos, macios como polpa

Nossos pioneiros pressionam

para dentro e para baixo,

 

Cada camada desenterrada

parece assentada na anterior.

Os sumidouros seriam infiltração atlântica

O centro molhado é sem fundo.

 

Sobre o contundente êxito desses poemas, o inglês Ciaran Carson avalia que

 

os poemas do pântano transformaram Heaney no laureado da violência – um criador de mitos, um antropólogo do assassinato ritual, do mundo de portais megalíticos e da charmosa e nobre barbárie.

 


Enquanto Carson o define apologista e mitologista da violência, Seamus Heaney encontra na poesia a resposta ao dilema ético que enfrentou. Resposta que continua a ser dada em Station Island (Estação Islândia), de 1984, onde leva a unidade religiosa e expressiva da esfera coletiva ao plano existencial.

Não que esse mergulho interior revele um novo recuo do seu ativismo a uma posição desengajada. A escolha é mais refinada. Sua inteligência e cautela faz com que retrate as mais violentas cenas de assassinatos, a evocação a linchamentos de conhecidos e bombardeios sem juízo de valor ou a busca de um sentido ou defesa nacionalista.

At Toomebridge, do livro Eletric Light, de 2002, é um exemplo do cuidado com que Seamus Heaney trata um enforcamento. O uso da tensão tribal para esboçar o universo emocional e dar voz aos envolvidos é intensificado pela encantadora tensão lírica.

 

AT TOOMEBRIDGE

 

Where the flat water

Came pouring over the weir out of Lough Neagh

As if it had reached an edge of the flat earth

And fallen shining to the continuous

Present of the Bann.

Where the checkpoint used to be.

Where the rebel boy was hanged in ‘98.

Where negative ions in the open air

Are poetry to me. As once before

The slime and silver of the fattened eel.

 

EM TOOMEBRIDGE

 

Onde a água lisa

transbordava a taipa do lago Neagh

como se tivesse chegado na margem da terra plana

e caísse brilhando no contínuo

presente de Bann.

Onde havia um o posto de controle

Onde em 98 foi enforcado o jovem rebelde

Onde os íons negativos ao ar aberto

são poesia para mim. Como aquela vez

o lodo e a prata da enguia cevada

 

Engana-se, porém, quem pensa que sua poesia é mais política pelo que diz do que pela forma como diz. Sua intervenção é feita esteticamente, através de regionalismos, dialetos e da sonoridade da fala periférica que resiste ao centro linguístico dominante. O idioma de Heaney, composto das vogais femininas da pronúncia irlandesa com as consoantes masculinas do inglês é um eficaz instrumento de subversão. São raros os exemplos de poesia política que desprezam a mensagem em favor do sentido estético e mesmo assim conseguem transmiti-la. O gesto requer uma autonomia e uma liberdade que não se encontram nas pautas determinadas pela propaganda ideológica e as prioridades partidárias. Requer solidão e coragem.

Sobram exemplos estéreis nas vozes reféns dos lugares de fala e nos autoproclamados representantes de minorias identitárias. Que o impulso político e o poético tenham a mesma origem com vetores opostos -aquele para fora, este para dentro- não se discute. Mesmo em Brecht, ou especialmente nele, o poema social nasce com impulso lírico e não desde uma imposição programática. Em Heaney não é diferente. Mesmo quando seu poema é só o que se propõe ser: um poema.

 

THE DISAPPEARING ISLAND

 

Once we presumed to found ourselves for good

Between the blue hills and those sandless shores

Where we spent our desperate night in prayer and vigil,

 

Once we had gathered driftwood, made a hearth

And hung our cauldron like a firmament,

The island broke beneath us like a wave.

 

The land sustaining us seemed to hold firm

Only when we embraved it in extremis.

All I believe that happened there was a vision.

 

A ILHA DESAPARECIDA

 

Nem bem presumimos ter-nos encontrado para sempre

entre as colinas azuis e aquelas praias sem areia

onde passamos nossa noite desesperada em prece e vigília

 

Nem bem juntamos madeira flutuante, fizemos fogo

e penduramos nosso caldeirão como um firmamento

A ilha desfez-se embaixo de nós como uma onda

 

A terra que nos mantinha parecia firme

Somente quando a exortamos in extremis

tudo o que creio ter acontecido ali foi uma visão

 

No seu auge, os livros de Seamus Heaney representaram dois terços das vendas entre os poetas vivos no Reino Unido. Apesar do sucesso, a recepção na Inglaterra nunca foi totalmente pacífica. Com certa acidez, mas com o brilho característico, Terry Eagleton analisa para o The Guardian o paradoxo -desde sua perspectiva londrina- de Heaney ser um poeta irlandês nacionalista traduzindo para o inglês o épico escrito em anglo-saxão, Beowulf.

 

O “intelecto dividido” na Irlanda não é de fato aquele que vê as culturas irlandesa e britânica como rigidamente adversárias. Ao contrário, é aquele que os vê intimamente entrelaçados. É o sindicalismo liberal, não o nacionalismo, que sustenta uma unidade das culturas irlandesa e britânica para racionalizar o domínio britânico de parte da ilha. O hibridismo cultural está aqui a serviço da divisão política. Heaney geralmente falha em perceber isso, atento como ele está em sua própria liberação espiritual. Mesmo assim, foi essa revelação que o fez ver Beowulf como parte de seu próprio “direito à voz”, e reconhecer como um adolescente tardio politicamente lesado que ele nasceu da sua linguagem da mesma forma que a linguagem de Beowulf renasceu através dele. Traduzir o poema é, portanto, a reversão final e triunfante de sua expropriação cultural. Assim como a mais “autêntica” das obras de arte também é profundamente estranha –não temos ideia de quem a escreveu, ou exatamente quando ou onde– então o próprio idioma de Heaney pode ser visto como “distorcido” para o inglês metropolitano e de algum modo mais próximo da medula da língua.

 

Apesar dos razoáveis argumentos de Eagleton, Seamus Heaney recusa a láurea de poeta do Reino Unido. O irlandês alega que seu ponto de partida cultural está fora do centro. Recusa-se também a ser incluído no The Penguin Book of Contemporary British Poetry. De 1976 até sua morte em 2013, vive em Sandymount, Dublin. Por diversas temporadas, lecionou em Harvard, Oxford e na América. Aclamado o maior poeta da Irlanda desde Yeats, foi reconhecido por suas obras de beleza lírica e profundidade ética.

Depois da queda no pátio de um restaurante em Dublin, o poeta é internado para exames clínicos de rotina e falece de repente na manhã seguinte. Está sepultado no Cemitério da Igreja de Santa Maria, em Bellaghy. A lápide traz o epitáfio

 

Walk on air against your better judgement

 




THOMAZ ALBORNOZ NEVES (Brasil, 1963). É advogado, cineasta, tradutor, ensaísta e poeta. Ao longo de quase quarenta anos, tornou-se um dos mais ativos tradutores de poesia contemporânea para o português. Viveu na Itália, França e Espanha durante seus anos de formação. Fixou-se então no Rio de Janeiro, no norte do Uruguai e finalmente em Livramento. Publicou vários livros, entre eles Renée (1987), Poemas (1990), Golfe (2012), À espera de um igual (2020), Oriente (2021) e 24 verbetes (2022).




MIREYA BAGLIETTO (Argentina, 1936). Artista, ceramista, pintora, escultora e investigadora, creadora del Arte Núbico. De formación casi autodidacta, es considerada una artista atípica dentro del escenario de las artes visuales de su país. Ha realizado numerosas exposiciones, muchas de ellas a nivel internacional y ha sido reconocida con diversos premios por su trayectoria, incluyendo el premio Konex como una de las cinco figuras más importantes de la historia del arte cerámico argentino y el Gran premio de Honor del Salón Nacional de Artes Visuales. Durante su etapa de ceramista (1958-1978) creó el Taller para Estudios Cerámicos que lleva su nombre, donde se formaron numerosos ceramistas argentinos. A partir de 1985, cuando el Arte Núbico quedó establecido como una tendencia, desarrolló una vasta tarea de docencia tanto en su propio estudio como en diversos centros y universidades argentinas, trabajando sobre el despertar de la sensibilidad creativa en relación con la materia y el espacio atemporal. 

 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 248 | fevereiro de 2024

Artista convidado: Mireya Baglietto (Argentina, 1936)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

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