No artigo intitulado “As resistências à psicanálise”, Sigmund Freud apresenta que nossa mente, ante o que é novo, tende a recuar, devido a um fator de desprazer proveniente do contato com as novidades. A fonte desse fator de desprazer é a exigência feita à mente por uma percepção recente e das outras, mais comuns, distinta: “o dispêndio psíquico que ela exige, a incerteza alçada até à ansiosa expectativa que ela traz consigo”. Assim, o fato desta prática teorizada, a psicanálise, representar uma inovação no que concerne ao saber sobre o humano já traria em si determinada razão para que a ela se resistisse: seu cunho inovador. Além disso, após tecer alguns comentários sobre as ciências e seus avanços, Freud traz um breve histórico de seu próprio desenvolvimento técnico e teórico, por exemplo, no que concerne à utilização do método catártico e a decorrente invenção da psicanálise mesma, para falar das resistências que a esta apresentou, dentre outros, o âmbito da medicina.
Em compensação, poder-se-ia supor que a nova teoria teria muito mais probabilidade de encontrar a boa acolhida dos filósofos, de vez que estes estavam habituados a situar conceitos abstratos (ou, como diriam as línguas malévolas, palavras nebulosas) no primeiro plano de suas explicações do universo, e seria impossível que objetassem à extensão da esfera da psicologia, para a qual a psicanálise havia preparado o caminho.
Todavia, para grande parte do campo filosófico, o funcionamento mental coincide com a ambiência consciente, apresentando outros fatores que, mesmo parecendo escapar do domínio consciente, estariam ligados a determinantes orgânicos ou a processos paralelos. De modo que falar, na esteira da psicanálise, que o que é mental é em si mesmo inconsciente, para muitos filósofos, torna-se uma contradição em termos. “Sucede, então, que a psicanálise nada deriva, senão desvantagens, de sua posição intermediária entre a medicina e a filosofia”. Os médicos a teriam no lugar de um sistema especulativo e se recusariam a vê-la como oriunda de verificações e experiências atinentes a aspectos perceptíveis. Já os filósofos, avaliando-a segundo os padrões de seus sistemas “artificialmente construídos”, apontariam que ela se edifica sobre premissas impossíveis, trazendo crítica concernente a seus conceitos mais gerais – “(que só agora estão em processo de evolução) carecem de clareza e precisão”.
Porém, a questão não se afixa somente à esfera intelectual. As explosões de indignação, derrisão e escárnio, desprezando a lógica e o bom gosto, caracterizariam métodos de oposição. “Uma reação desse tipo sugere que outras resistências além de puramente intelectuais foram excitadas, e despertadas poderosas forças emocionais”. Aliás, segundo Freud, muitos aspectos na psicanálise seriam propícios para produzir esse tipo de reação nos homens, de efeito sobre as paixões, e não somente no que tange aos cientistas. Principalmente pela via daquele lugar muito importante na vida mental humana que é apreendido, em termos freudianos, como os instintos sexuais. Pois “a teoria psicanalítica sustentou que os sintomas das neuroses constituem satisfações substitutivas deformadas de forças instintuais sexuais, das quais a satisfação direta foi frustrada por resistências internas”. Depois, ao se estender para além do campo clínico, a análise, aplicando-se igualmente à vida mental estabelecida como “normal”, veio a demonstrar que os componentes sexuais, passíveis de serem desviados de seus objetos iniciais e desse modo guiados para ocorrências diferentes, efetivam contribuições de alta relevância às realizações culturais dos homens e, por conseguinte, para a sociedade. Mas tais perspectivas não eram absolutamente originais. “A significação incomparável da vida sexual havia sido proclamada pelo filósofo Schopenhauer em uma passagem intensamente marcante”. Em todo caso, vale ressaltar que o conceito de sexualidade, para a psicanálise, não é totalmente idêntico à impulsão no senso da união dos dois sexos ou de produzir sensação prazerosa nos órgãos genitais – tal conceito mais se aproxima do Eros, a tudo incluir e preservar, apresentado, por exemplo, no Banquete de Platão.
Ora, a civilização repousa sobre dois pilares: um é o controle das forças naturais, outro; a restrição de nossos instintos. Segundo Freud, o trono do governante pousa “sobre escravos agrilhoados. Entre os componentes instintuais que são assim colocados a seu serviço, os instintos sexuais, no sentido mais estrito da palavra, são conspícuos por sua força e selvageria”. Se eles se libertassem, o trono seria derrubado e violentamente destituído o governante. A sociedade disso estaria ciente e não permitiria o vir a lume de tal matéria. Aliás, ela nem é suficientemente ordenada ou opulenta para que o indivíduo seja compensado em decorrência de sua renúncia instintual. Ao último, resta decidir como pode obter, como fruto de seu sacrifício, alguma compensação, suficiente para torná-lo apto a preservar seu equilíbrio mental.
A psicanálise desvelou as fragilidades dessa sistemática e recomendou sua alteração. “Propôs uma redução no rigor com que os instintos são reprimidos, e que correspondentemente se desse mais desempenho à veracidade”. Um montante maior de satisfação deveria ser facultado a alguns impulsos instintuais em cuja repressão a sociedade teria se excedido. No tocante a outros, o método inócuo de suprimi-los pela repressão deveria ser suplantado por algum procedimento, em palavras freudianas, “melhor e mais seguro”.
Em resultado dessas críticas a psicanálise é encarada como ‘inamistosa à cultura’ e foi colocada sob um anátema como ‘perigo social’. Essa resistência não pode durar para sempre. Nenhuma instituição humana pode, a longo prazo, escapar à influência da crítica legítima, contudo a atitude dos homens para com a psicanálise ainda é dominada por esse temor, que dá livre curso às suas paixões e diminui seu poder de argumento lógico.
Desse modo, as mais intensas resistências à psicanálise não se mostram no plano intelectual. Elas aportam de fontes emocionais. Daí, seu cunho apaixonado – sua escassez de lógica. A questão obedeceria a uma sucinta formulação: “os homens na massa se comportavam para com a psicanálise exatamente do mesmo modo que os neuróticos em particular, em tratamento perante seus distúrbios”. Todavia, por meio de paciente labor, segundo Freud, é possível convencer esses últimos de que tudo ocorreu como sustentado pelo psicanalista. Aliás, é-nos ressaltado que “nós próprios não o inventamos”, pelo contrário, suas considerações advêm de um estudo clínico prolongado. Já a posição de estudar os homens no âmbito da massa era ao mesmo tempo assustadora e reconfortante. Assustadora pela magnitude da tarefa. Reconfortante porque, ao cabo de tudo, realizava-se o que a psicanálise apontava como importante e válido.
A maioria das supracitadas resistências se deve ao fato de que relevantes afetos humanos são atingidos pela temática da teoria analítica. A concepção darwiniana acerca da descendência obteve destino similar, conforme derrubou a barreira altivamente erguida entre homens e animais. Isso já havia sido mencionado por Freud, por exemplo, no artigo “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, no que ele demonstra a perspectiva sobre a relação do ego consciente com um inconsciente irresistível como construtora de um golpe austero ante o amor-próprio humano. Descreveu-o como sendo o golpe psicológicoao narcisismo dos homens, e o comparou com o golpe biológico desfechado pela teoria da descendência, também ressaltando o golpe cosmológico, mais antigo, à espécie humana dirigido mediante a descoberta de Copérnico. “Dificuldades puramente externas também contribuíram para fortalecer a resistência à psicanálise. Não é fácil obter um juízo independente sobre questões envolvidas com a análise sem a termos experimentado ou praticado em outrem”. Aliás, pouco se pode realizar sem a vivência e a desta decorrente, tornada possível, aquisição de técnica específica e decididamente delicada. Pois é importante destacar que a técnica só pode ser adquirida por quem a ela já se submeteu.
Finalmente, com toda a reserva, pode-se levantar a questão de não ter sido possível que a personalidade do presente autor como um judeu, que jamais procurou disfarçar o fato de ser judeu, concorresse em provocar a antipatia de seu meio ambiente para com a psicanálise. Um argumento dessa espécie amiúde não se enuncia em voz alta; infelizmente, tornamo-nos tão desconfiados que não podemos deixar de pensar que esse fator pode não ter estado inteiramente sem defeito. Talvez sequer seja inteiramente um item do acaso que o primeiro advogado da psicanálise fosse um judeu. Professar crença nessa nova teoria teria exigido determinado grau de aptidão a aceitar uma situação de oposição solitária – situação com a qual ninguém está mais familiarizado do que um judeu.
Para Freud e, ao que tudo indica, também para seus opositores, seu contexto étnico não constitui assunto banal.
Na esteira da reflexão apresentada, em apêndice ao artigo mencionado, o tradutor inglês das obras de Freud, o psicanalista James Strachey, apresenta que o inventor da psicanálise, em suas últimas elaborações, para se defender das críticas ao se apoiar no estofo de uma autoridade intelectual e filosófica, promove muitas alusões à importância concedida por Arthur Schopenhauer ao valor e força da sexualidade. Ele se referia a uma comovente passagem do filósofo alemão, de palavras, como qualificava, impressivas e intensas. Strachey reproduz o possível trecho que Freud teria em mente, ressaltando que o mesmo constituiria matéria de interesse. O excerto exposto fala do desejo sexual como diferente de qualquer outro, concluindo com a paixão sexual vista como a mais perfeita manifestação da vontade de viver – e todos os outros desejos do homem nisso confluiriam. Portanto, torna-se plausível falar de uma influência de Schopenhauer sobre Freud de maneira muito explícita, no tocante à teoria da sexualidade e a primazia do desejo sexual como constituinte basilar do desenvolvimento e condição do homem. No entanto, este trabalho ambiciona aumentar o foco da reflexão sobre tal relação de pensadores ao comparar a metafísica de Schopenhauer com a metapsicologia do inventor da psicanálise, mais especificamente, ao apresentar e mostrar afinidades entre o conceito de vontade, do filósofo alemão, e a acepção freudiana de inconsciente. Isso será feito ao se levar em conta a primeira e segunda tópicas do analista em tela para possibilitar questionamentos e reflexões sobre a magnitude da influência estabelecida em sua obra pela leitura de Schopenhauer.
Com esse intuito, estabeleceremos, primeiramente, a apresentação do conceito filosófico. Depois, falaremos da primeira e segunda tópicas no conjunto da obra de Freud para, assim, visualizar comparações entre a concepção do aparelho mental e, por conseguinte, de inconsciente com a visão cosmológica schopenhauriana.
SCHOPENHAUER | Em sua obra máxima, O mundo como vontade e como representação, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, mediante a seção intitulada “Livro segundo: do mundo como vontade – Primeira consideração: a objetivação da vontade”, começa a nos apresentar sua metafísica, após ter efetivado uma incursão epistemológica na seção precedente, Livro primeiro, ao considerar a representação apenas enquanto tal, de acordo com sua forma unânime. Naquilo que diz respeito à “representação abstrata, o conceito, este também foi conhecido segundo seu conteúdo, na medida em que possui substância e significação exclusivamente em referência à representação intuitiva, sem a qual seria destituído de valor e consistência”. Então, pelo “Livro segundo...”, voltando-nos totalmente à representação intuitiva, segundo Schopenhauer, tornar-se-ia plausível conhecer seu teor, suas mais exatas determinações e as figuras que nos faz vislumbrar.
Esse filósofo sustenta que sujeito e objeto se amalgamam, que todo objeto pressupõe, em todo caso, um sujeito e, assim, permanece como representação. E isso se refere à configuração mais geral da última – a cisão entre sujeito e objeto. Ademais, o princípio de razão “é apenas forma da representação, isto é, a ligação regular de uma representação com outra, em vez de a ligação de toda a série (finita ou sem fim) das representações com algo que não mais seria representação, portanto não mais podendo ser representado”. Destarte, após comentar como vários campos da ciência trabalham com as relações entre as representações, no âmbito delas, ou seja, conforme preenchem o tempo e o espaço, Schopenhauer traz que aquilo a impelir sua investigação é a não satisfação sobre saber-se dessas conexões – cuja expressão geral sempre é o princípio de razão. Mais do que isso, almeja-se conhecer a significação subjacente a tais processos. Pergunta-se se o mundo não seria algo outro que o complemente – e qual seria a natureza disso? Qual o conteúdo último (a essência cosmológica) que ainda não teria sido devidamente encontrado sob todos os fenômenos, sob o véu ilusivo das relações causais que são meras consequências do princípio de razão? Certamente, aquilo que se investiga é algo, em consonância com seu cerne, totalmente à parte da representação, tendo, nessa via, de desfalcar-se integralmente às suas formas e leis. Por conseguinte, não é plausível atingi-lo partindo-se da própria representação, conforme o fio condutor das leis que simplesmente vinculam objetos, ou seja, representações entre si, que constituem as figuras do princípio de razão. Na letra de Schopenhauer,
vemos, pois, que DE FORA jamais se chega à essência das coisas. Por mais que se investigue, obtêm-se tão-somente imagens e nomes. Assemelhamo-nos a alguém girando em torno de um castelo, debalde procurando sua entrada, e que de vez em quando desenha as fachadas. No entanto, este foi caminho seguido por todos os filósofos que me antecederam.
Mas, em tal caso, onde procurar o que a tudo subjaz? Nosso corpo se enraíza neste mundo, “encontra-se nele como INDIVÍDUO, isto é, seu conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro como representação, é no todo intermediado por um corpo, cujas afecções, como se mostrou, são para o entendimento o ponto de partida da intuição do mundo”. Esse corpo é para o sujeito cognoscente determinado fenômeno como qualquer outro, objeto entre objetos. Mas não somente. Ele é dado de duas maneiras em absoluto distintas: como representação na intuição relativa ao entendimento, qual objeto entre objetos e submetido às leis dos mesmos. E no âmbito daquilo imediatamente apreendido por cada um e apontado pelo termo “vontade”. Antes, a palavra do enigma é concedida ao sujeito do conhecimento que emerge como indivíduo. “Tal palavra se chama VONTADE. Esta, e tão-somente esta, fornece-lhe a chave para seu próprio fenômeno, manifesta-lhe a significação, mostra-lhe a engrenagem interior de seu ser, de seu agir, de seus movimentos”. Ação do corpo e ato da vontade não se diferenciam, mesmo aparecendo no terreno da causalidade, nem mesmo se acham na relação de causa e efeito, são uma e mesma coisa, imediatamente e no plano da intuição. Ou seja: a ação do corpo constitui o ato da vontade objetivado, que vem a aparecer na intuição. Nesse sentido, todo o corpo não passa de vontade objetivada – por essa via tornando-se representação. Corpo; “objetidade” da vontade. Igualmente, é passível de se estabelecer: a vontade é o conhecimento a priori relativo ao corpo, e este se torna o conhecimento a posteriori da mesma. Por conseguinte, avança-se na reflexão percebendo que
apenas a execução estampa a decisão, que até então não passa de propósito cambiável, existente apenas in abstracto na razão. Só na reflexão o querer e o agir se diferenciam; na efetividade são uma única e mesma coisa. Todo ato verdadeiro, autêntico, imediato da vontade é também simultânea e imediatamente ato fenomênico do corpo (...) No entanto, é totalmente incorreto denominar a dor e o prazer representações, o que de modo algum são, mas afecções imediatas da vontade em seu fenômeno, o corpo, vale dizer, um querer ou não-querer impositivo e instantâneo sofrido por ele.
O conhecimento de minha vontade não se separa do meu conhecimento corporal. Logo, o corpo é via para o conhecimento daquela – não é possível a representar sem representá-lo. Como objeto, conforme conheço minha vontade propriamente dita, apreendo-a enquanto corpo. Trata-se do conhecimento mais imediato. O filósofo brasileiro Roberto Machado (2006), no volume O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche, ressalta que o ponto de partida schopenhauriano para formular sua sistematização é que não é de fora o movimento a se realizar para atingir a essência das coisas, a coisa-em-si, mas de dentro, do interior do homem. Fala-se mesmo de uma ambivalência de Schopenhauer em relação à tese kantiana, no sentido de que a representação não seria ultrapassável nas vias do conhecimento objetivo; permanecer-se-á ao lado externo, sem acesso ao íntimo: o que as coisas são em si e para si. Pois não somos somente o sujeito que conhece, mas também nos vinculamos à categoria das coisas a serem conhecidas. Abarcamos a coisa-em-si. Porém, o conhecimento subjetivo, a experiência interna, não formula um saber acerca do próprio sujeito. Apoiando-se na noção de que a consciência de nós mesmos traz um elemento cognoscente e outro a ser conhecido, e de que, portanto, o sujeito cognoscente não seria conhecível enquanto adquire e elabora saber, mas somente se fosse o objeto conhecido de outro sujeito cognoscente, “Schopenhauer conclui que o elemento conhecido na consciência de nós mesmos é a vontade, os impulsos e as modificações da vontade”. De modo que o objeto, a matéria do tomar consciência internamente seria a vontade – isso fazendo a experiência interna se relacionar diretamente a um conhecimento sobre o querer. “O ser do fenômeno é sentido, experimentado, vivido. Se a vontade é conhecida é porque eu a sinto em mim, é porque tenho uma compreensão íntima, uma experiência interna, uma consciência dela em mim”. Assim, para o filósofo, na descrita circunstância, seria estabelecida uma verdade filosófica:
A expressão da mesma pode ser dita de diversas maneiras: meu corpo e minha vontade são uma coisa só; ou, o que como representação intuitiva denomino meu corpo, por outro lado denomino minha vontade, visto que estou consciente dele de maneira completamente diferente, não comparável com nenhuma outra; ou, meu corpo é a objetidade da minha vontade; ou, abstraindo-se o fato de que meu corpo é minha representação, ele é apenas minha vontade etc.
Já os outros objetos são diferentes, não abrangendo simultaneamente vontade e representação, são meras representações, “meros fantasmas”.
Mas, como operaria essa vontade? Como descrevê-la? Ora, toda a essência de meu querer não é elucidável por razões, motivos – estes determinam apenas sua fenomenização em algum lugar temporal. Trata-se da ocasião mediante a qual a vontade se desvela. Se a essência de meu querer não é explicável por razões – elas determinam exclusivamente sua exteriorização em certo ponto temporal, são somente a ocasião na qual, como veremos mais detalhadamente, a própria essência cosmológica permeia os fenômenos. Ao passo que, no entanto, se alguém se propõe a tentar abstrair seu caráter e perguntar o porquê geral de querer isso e não aquilo, nenhuma resposta definitiva é possível. Enfim, apenas o fenômeno da vontade está submetido ao princípio de razão – não ela própria, que é para ser denominada sem-fundamento.
“Em confirmação de tudo isso, recorde-se que toda ação sobre o corpo afeta simultânea e imediatamente a vontade e, nesse sentido, chama-se dor ou prazer, ou, em graus menores, sensação agradável ou desagradável”. Contrariamente, todo movimento forte dela, destarte todo afeto e paixão, abala o corpo e perturba seu fluxo funcional. Em termos gerais, cada consideração etiológica só pode oferecer a posição necessariamente estabelecida em tempo e espaço de certo fenômeno, ou seja, seu necessário despontar em acordo com uma regra fixa. Mas, nessa via, a essência íntima do fenômeno se mantém infundada, sendo pressuposta pelas explanações etiológicas e, daí, só indicada por alguma expressão como “força”, “lei natural” ou, enquanto ações, “caráter”, “vontade”, aqui na acepção do senso comum, de mera demanda. Aquela essência íntima infundada, a vontade schopenhauriana, torna-se visível pelo seu manifestar-se como mundo dos fenômenos. Em decorrência, o processo no qual e pelo qual subsiste o corpo não constitui outra coisa a não ser fenômeno da vontade, objetidade dela. Aí se calca a perfeita conformação do corpo humano e do animal à vontade humana e animal: numa alçada teleológica, “desse ponto de vista, as partes do corpo têm de corresponder perfeitamente às principais solicitações pelas quais a vontade se manifesta, têm de ser a sua expressão visível”.
Para aquele que por meio de todas as considerações também veio a ser in abstracto evidente e correto que aquilo que cada um apresenta in concretoimediatamente como sentimento, isto é, a essência em si do fenômeno mesmo – apresentando-se na qualidade de representação, seja nas ações ou no substrato delas, o corpo, é a vontade que se encontra no mais imediato de sua consciência. “Porém, como tal, sem aparecer completamente na forma de representação, na qual objeto e sujeito se contrapõem, mas dando sinal de si de modo imediato, em que sujeito e objeto não se diferenciam nitidamente”. A vontade não aparece em seu todo, mas apresenta-se ao indivíduo à custa de atos isolados. Para Schopenhauer, quem alcançou essa convicção, alcançará, com ele, certa chave para a compreensão da mais profunda essência de toda a natureza, pois a transmitirá a todos os fenômenos que não lhe são dados, portanto, não são como seu corpo próprio – em cognoscibilidade mediata e imediata, mas só lhe aparecem de forma mediata, desse modo, apenas parcialmente, enquanto representação. Assim, será possível vislumbrar que a vontade não é essência íntima somente dos fenômenos similares ao homem que realiza a compreensão, como outros homens e animais; avante a esse estado, a reflexão prosseguida levará ao reconhecimento de que, igualmente, a força que palpita e vegeta na planta, a força que configura o cristal,
que gira a agulha magnética para o pólo norte, que irrompe do choque de dois materiais heterogêneos, que aparece nas afinidades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim (...) tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece do modo mais nítido, chama-se VONTADE.
Essa coisa-em-si (e utilizamos tal termo técnico na medida em que Schopenhauer mantém a expressão kantiana como “fórmula definitiva”) possui como o mais perfeito de seus fenômenos (mais nítido, desenvolvido, diretamente elucidado pelo conhecimento) precisamente a vontade que se expressa no homem. De todos os fenômenos, ao ser essência. “Ora, o conhecimento do idêntico em fenômenos diferentes, e do diferente em fenômenos semelhantes, é justamente, como Platão amiúde observa, a condição da filosofia”. Mas, mesmo em se tratando de realizar um exercício filosófico, utilizando-se da faculdade racional – somente o fenômeno mais nítido da vontade, Schopenhauer não atinge a verdade de seu sistema pelo exclusivo uso de conceitos e teias argumentativas, situando-se no exercício da lógica e das estruturações retóricas próprias da edificação da filosofia, apoia-se num plano para além disso, concedendo lugar àquilo que, por si mesmo, revela-se de imediato: o termo “vontade” de maneira alguma aponta para qualquer desconhecida grandeza, atingível mediante alguma cadeia silogística, mas remete a algo conhecido por inteiro – imediatamente – e conhecido de modo que a compreendemos melhor do que qualquer outra coisa. Ele pensa cada força na natureza, inclusive no âmbito humano, como vontade. Contudo, vale ressaltar que, em termos de uma conceituação mais rigorosa, o conceito de força é abstraído do campo em que regem causa e efeito, coligando-se à representação intuitiva, e diz respeito ao “ser-causa” da causa: “ponto este além do qual nada é etiologicamente mais explicável e no qual se encontra o pressuposto necessário de toda explanação etiológica”. O conceito de vontade, de forma distinta, é o único que não se origina do fenômeno. Não advém da mera representação intuitiva. Surge da interioridade, da imediata consciência do indivíduo mesmo, onde este se conhece o mais diretamente, tangendo sua própria essência, despindo-se de todas as formas, inclusive as de sujeito e objeto, já que, nesse âmbito, quem conhece afina-se com o que é conhecido. Se subsumirmos o conceito de vontade ao de força, “renunciamos ao único conhecimento imediato que temos da essência íntima do mundo: fazemos tal conhecimento se dissipar num conceito abstraído do fenômeno, com o qual nunca poderemos ir além deste último”. A vontade qual coisa-em-si é em absoluto diversa de seu fenômeno, totalmente à parte das formas dele – mas ela as penetra conforme se manifesta.
Servindo-se da escolástica, Schopenhauer abarca tempo e espaço na expressão principium individuationis. “Tempo e espaço são os únicos pelos quais aquilo que é uno e igual conforme a essência e o conceito aparece como principium individuationis” – fonte de várias reflexões sofisticadas e querelas entre os escolásticos. Já a vontade é una, mas não no sentido de singularidade de determinado objeto, cuja unidade apenas se dá em oposição à pluralidade plausível, muito menos é una qual conceito, cuja unidade nasce apenas mediante a abstração da pluralidade. Não se insere na pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem. Logo, tempo e espaço são determinada extremidade, alastrando-se no que concerne ao plano meramente físico, enquanto a vontade se constitui una enquanto aquilo que se encontra apartado do tempo e do espaço, externo ao principium individuationis, diga-se, da possibilidade da pluralidade.
No tocante ao fenômeno humano, aos atos do homem, vemos que eles não são livres. O homem, sóa posteriori, pela experiência, percebe, para seu espanto, não ser livre, mas dominado pela necessidade. “Percebe que, apesar de todos os propósitos e reflexões, não muda sua conduta, e desde o início até o fim de sua vida tem de conduzir o mesmo caráter por ele próprio execrado e, por assim dizer, desempenhar até o fim o papel que lhe coube”. Exatamente a essência que em nós segue seus fins sob a luz do conhecimento, na mais sutil fenomenização, esforça-se de modo cego, silencioso, unilateral, invariável. Sob todo o cosmos, ela é mesma e una. Assim como “os primeiros raios da aurora e os intensos raios do meio-dia têm o mesmo nome de luz do sol, assim também cada um dos aqui mencionados casos têm de levar o nome de VONTADE, que designa o ser em si de cada coisa no mundo, sendo o único núcleo dos fenômenos”.
Dos mais tênues aos mais nítidos acontecimentos, pode-se considerar a relação existente entre a coisa-em-si e a sua manifestação, noutros termos, trata-se de compreender o mundo como vontade e o mundo como representação – a partir de Kant; tempo, espaço e causalidade: modos de intuição do sujeito ou qualidades do objeto como objeto; para Kant, fenômeno, isto é, representação. Desse modo, se os objetos despontam em tais formas, não devem ser fantasmas inócuos. Mas, se possuem significação, então teriam de ser manifestação de algo que já não é, como eles próprios, representação, objeto meramente relativo e diante de certo sujeito. Fala-se de algo que se dá independentemente de alguma condição essencial e de formas contrapostas a si. Esse algo deixa de ser representação, ocupa o status de coisa-em-si, [...] “aquilo que no fenômeno NÃO é condicionado por tempo, espaço e causalidade, nem é remissível a eles, muito menos explanável a partir deles, é justamente aquilo pelo qual o que aparece, a coisa-em-si, dá sinal de si imediatamente”. O filósofo brasileiro Deyve Redyson, em seu livro Dossiê Schopenhauer, propõe que apesar de toda ordenação, característica do campo da consciência, de toda regularidade, que parece fazer do âmbito da representação o lugar da verdade, tudo seria um sonho sem substância se não se engendrasse algo fundamental, metafisicamente subjazendo: o plano da vontade. Afinal, como comenta Redyson, o mundo para Schopenhauer é, sobretudo, a vontade.
Mas como perceber a realidade atrás das aparências, que existe fora do espaço e do tempo? Segundo Schopenhauer, é por intermédio do corpo que se tem acesso a essa realidade mais íntima. É por intermédio do corpo que o homem tem a consciência interna de que ele é vontade, um “em si”.
Porém, não se trata do corpo visto de fora, no espaço e tempo, não na condição de objetivação da vontade (representação), mas no que tangencia o que é imediatamente vivenciado em nossa esfera afetiva. Isso se dá na alternância entre dores e prazeres, inacessibilidades e satisfações, decepções e desejos; aí, a vontade é captável como essência e princípio do mundo, inclusive de nós mesmos, “como querer sem dono, transindividual, cego e sem razão, em sua tenebrosa e abismal perpetuação”.
É força que age na natureza e desejo que mobiliza o homem. Porém, antes de se objetivar em inumeráveis fenômenos, de se expressar pelas vias da pluralidade dos indivíduos, ela se objetiva mediante formas eternas, invariáveis, fora do tempo e espaço. Schopenhauer, então, fala das ideias platônicas – arquétipos das coisas que nos circundam, são as primevas manifestações do querer, realidades medianas entre a unicidade da vontade e a multiplicação individual. A ideia platônica, para o filósofo alemão, já constitui objeto: é representação e, assim, difere da coisa-em-si, mas extraindo-se dela. A ideia ainda não entrou nas propriedades do principium individuationis, contudo, pode ser objeto para um sujeito, pois obtém forma, apresentando então a condição primeira e mais universal para ser considerada representação. Ao aproximar “o enunciado kantiano ao platônico, Schopenhauer mostra que, graças ao tempo, espaço, causalidade e dispositivos do intelecto humano, ‘o ser único de qualquer espécie’, ‘a essência genérica dos objetos naturais’, se apresenta como multiplicidade de seres da mesma espécie”. Em sucessão infinita, incessante nascer e perecer. Para tentar saciar seu desejo de vida, a essência cosmológica se dissemina em tantas parcelas que constituiriam a ambiência fenomênica, todavia, mesmo no menor e mais remoto desses fragmentos, conservaria sua unidade. Em seu movimento insaciável, morde a própria carne: “o mundo vegetal serve de alimento para o mundo animal, este, de presa e alimento para outro animal, e, assim, a vontade de vida não cessa de devorar a si mesma”. O homem vê tudo que existe como algo que possa ou deva servi-lo, contribuindo, desse modo, para pôr mais engrenagens no que constitui a luta de todos contra todos. Ademais, a vida social é habitada por egoísmos rivais, com a satisfação de determinado indivíduo a causar o sofrimento de outro. Conclui-se que o egoísmo abarca uma atitude natural de um ente diante de outro. Nesse caso, como saber o que valem moralmente os homens? Basta ter em conta seu destino de sofrimento e dor inesgotável.
A noção inaugural do pessimismo filosófico é atribuída ao filósofo em foco, devido à sua obra que trabalha uma metafísica do pessimismo ao compreender que o mundo é representação ilusória da realidade identificada com a descrita vontade. “O pessimismo schopenhauriano tem duas teses: 1) para cada indivíduo teria sido melhor não existir, 2) o mundo como todo é o pior dos mundos possíveis”. A mera presença do mal no mundo o tornaria algo cuja inexistência é preferível à expressão. Ele interpreta a fé cristã mesma como uma necessidade, não sendo favorável ao otimismo, afinal, nos evangelhos as concepções sobre o mundo e o mal são constantemente usadas como sinônimos, qual acontece com o amor e a decorrência de morrer por ele. Nessa esteira, o mundo só poderia ser suportado ao ser transmudado em fenômeno estético.
Nas palavras do escritor Rüdiger Safranski, em sua obra Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, foi este o primeiro a conceder à estética um valor filosófico assim tão culminante, tal como nenhum outro filósofo antes dele lhe conferira. “Uma filosofia que não pretende explicar o mundo, mas somente informar a respeito dele, entender o que o mundo realmente é e o que significa, segundo o próprio Schopenhauer, somente se pode originar da experiência estética do mundo”. Em decorrência do seguinte:
...somente a arte consegue arrancar da corrente dos acontecimentos mundanos (Weltlauf) o objeto contemplado e mantê-lo isolado diante de si; e esta “coisa isolada” (Einzelne), que antes não era senão uma parte transitória e evanescente da corrente, se converte agora em uma representante do todo, um equivalente daquilo que, no espaço e no tempo, é uma “multidão sem fim” (endlich Viele): somente a arte consegue fixar este objeto singular e nele deter a roda do tempo; as relações desaparecem para ele, seu objeto é somente o essencial, apenas a ideia (das Wesentliche, die Idee) – podemos portanto caracterizar a arte como sendo “a maneira de encarar as coisas independentemente do princípio da razão” (die Betrachtungsart der Dingeunabhängig vom Satze dês Grundes), em contraposição ao tipo de raciocínio que segue atrás de razões e consequências e que constitui o caminho natural da experiência e da ciência.
Em todo caso, a proposta do filósofo é a de que o homem não se livre dos pungentes apelos da vontade que nele opera e o impele somente nos momentos de contemplação estética. Influenciado pelo Budismo e pelo Hinduísmo, no que ambos trazem, por exemplo, sobre as possibilidades decorrentes da entrega ao exercício da meditação, acredita que o melhor que o ser humano pode empreender, diante da absurdidade do desejo e do pior dos mundos possíveis, é buscar suprimir a vontade, extraviar-se do âmbito do querer. Contudo, ele não sugere que “seja possível produzir a negação da vontade simplesmente por meio de uma atitude deliberada, não tem a menor intenção de mediar magicamente (hervorzaubern) tal negação mediante a aplicação de conceitos”. Antes, trata-se de torná-la inteligível no plano conceitual da metafísica da vontade. Nesse plano, é um acontecimento da última sua negação. Até porque a imanência radical dessa metafísica torna impossível a ingerência de poderes superiores sobrenaturais. Ao pretender ser o único herdeiro legítimo do pensar kantiano, considerando nulas as posturas de Fichte, Schelling e Hegel, Schopenhauer é, segundo Roberto Machado, antes mesmo de Nietzsche, o primeiro a achacar a metafísica pela primazia que ela concede à Razão. Isso Machado afirma encontrar em certos comentadores. “Considerando Schopenhauer o último idealista alemão, Alexis Philonenko ressalta que ele se distingue dos outros idealistas na medida em que rompe com a teologia e com a imortalidade da alma”. Assim, se a vontade a tudo constitui, não poderá ser negada a não ser por si mesma. Para um metafísico da vontade, sua negação somente é pensável sem qualquer influência adicional, por exemplo, de Deus, Espírito, ou como Sua expressão. Antes, é apreendida como uma autossupressão.
Nos Fragmentos sobre a história da filosofia, o próprio Schopenhauer ainda avulta que a relação dos filósofos com a teologia apresenta algumas nuances importantes para a esfera das considerações conceituais: o panteísmo, por exemplo, adotado por vários pensadores relevantes, como no caso de Baruch de Espinoza, é uma noção que se anula. Uma condição para o conceito de deus é o estabelecimento de seu correlato essencial – um mundo dele diferente. “Por outro lado, se o mundo em si tiver de assumir seu papel, permanecerá precisamente um mundo absoluto, sem Deus. Por essa razão, o panteísmo é apenas um eufemismo para ateísmo”. Mesmo assim, a hipótese de uma causa à parte do mundo, dele distinta, não chega a configurar de fato um teísmo. “Esse requer não apenas uma causa do mundo diferente do mundo, mas uma causa inteligente, ou seja, cognoscente e volitiva e, portanto, pessoal e individual. Somente uma causa assim é designada com o nome de Deus”. Algo impessoal não é uma divindade, mas um falso conceito; contradictio in adjecto. De qualquer forma, poderíamos, na trilha kantiana, chamar o teísmo de certo postulado prático, contudo de maneira destacada da por ele inferida. Pois se trata não de um produto do conhecimento; mas da vontade mesma. “Se fosse originalmente TEORÉTICO, como todas as suas provas poderiam ser tão insustentáveis?” Até mesmo todo aquele que busca recompensa por sua ação, neste ou num mundo porvir, é um egoísta: se vier a lhe escapar a recompensa mirada, pouco vai lhe importar se isso ocorre pela absurdidade que prevalece neste mundo ou pelo vácuo ilusivo que o mundo futuro lhe arquitetou. “Por essa razão, na verdade, a teologia moral de Kant também sepulta a moral”.
Aliás, num plano de discussão sobre a moral, ou seja, em terreno da ética, a afirmação de autonomia, de liberdade de um ente significaria que o mesmo possui existência; mas onde figuraria sua essência? Noutras palavras, apenas existiria ao invés de ser alguma coisa e, desse modo, nada é; porém, existe – o que faz com que simultaneamente seja e não seja. Contudo, nos Fragmentos..., encontra-se que tudo que existe é algo, obtém essência, determinada natureza, algum caráter, atuando de acordo com este. Há de atuar; o que, logicamente, significa agir dentro de contexto e frente a motivos, quando ascenderem as ocasiões exteriores passíveis de serem suscitadoras das manifestações peculiares a tal caráter. “Assim, obtém a existência, a existentia, do mesmo lugar de onde consegue o algo, a constituição, a essentia, pois ambos podem até ser diferentes no conceito, mas não são separáveis na realidade”. O que possui essência: uma natureza, um caráter, uma compleição – só pode incidir de acordo com a mesma: nunca d’outra maneira. Só o tempo, a imagem mais próxima e a configuração de toda ação serão estabelecidos a cada vez pelos motivos que vêm a se apresentar. “O fato de o criador ter feito o homem livre implica uma impossibilidade, a saber, a de que ele lhe conferiu uma existentias em essentia e, portanto, deu-lhe a EXISTÊNCIA apenas inabstracto, deixando-o ser O QUE quisesse ser”.
Além disso, todos os filósofos anteriores são criticados pela pena schopenhauriana, ao postularem o verdadeiro ser do homem no conhecimento consciente, no intento de apresentar o homem como distinto do reino animal. A novidade trazida se refere a situar a essência humana, dos animais e de todo o cosmos na vontade.
Safranski, ao debater epistemologicamente a obra de Schopenhauer, sustenta que a questão não é competir com as ciências explicativas da natureza: “Por isso, eu mesmo denominei o procedimento de Schopenhauer para compreender o mundo de dentro para fora, a partir da vontade vivenciada internamente de ‘hermenêutica da existência’ (Daseinhermeneutik)”. A aproximação da realidade, como feita pelo filósofo, ia em busca de algum significado, ao invés de estar no encalço de alguma explicação. Tal procedimento face à realidade resulta que a leitura do livro da vida desvelará que o mundo não nos leva a nada a não ser ele próprio. Aliás, aquele que se depara com o significado realiza isso dentro de si mesmo: “eis a imanência perfeita e acabada”.
Sobre tal circunstância intelectiva, nos Fragmentos..., observamos que, na obra em questão, nos meandros do sistema schopenhauriano, o mesmo poderia ser descrito qual um dogmatismo imanente, inclusive nas palavras do próprio filósofo, já que, se as teses são dogmáticas, não pretendem ultrapassar o mundo dado da experiência – opostamente: devem esclarecer o que ele é, decompondo-o até seus derradeiros componentes.
FREUD | Voltando à questão freudiana, e mais uma vez no que tange à polêmica sobre as resistências à psicanálise, encontramos, na correspondência de Freud com Carl Gustav Jung, por exemplo, numa carta datada de 1906, um debate que une esse assunto e questões sobre terminologia. Na missiva, Freud ressalta que não é possível explicar nada a um público hostil, por conseguinte, mantinha certas coisas que podem ser ditas a respeito dos limites da terapia e seu mecanismo apenas para si mesmo ou delas falava numa maneira inteligível apenas ao iniciado. Ele relembra a Jung que as “curas” que realizavam eram ocasionadas mediante a fixação da libido a prevalecer no inconsciente – transferência – e que tal transferência é mais facilmente obtida na histeria. A transferência fornece o impulso necessário para que se compreenda e se traduza a linguagem do inconsciente; onde ela se ausenta, segundo Freud, o paciente não faz o esforço ou não escuta quando submetemos nossa tradução para ele. Essencialmente, Freud ressalta, a cura é efetuada pelo amor. E, na verdade, a transferência fornece a mais convincente, a prova inexpugnável de que as neuroses são determinadas pela vida amorosa do indivíduo. Assim, ao longo da citada correspondência, os dois autores se mantêm, dentre outros assuntos, discutindo termos técnicos como transferência, inconsciente, libido; e Jung propõe, para que a psicanálise não viesse a sofrer tanta oposição, que Freud suavizasse esses termos basilares de sua doutrina ao substituí-los por novas talvez plausíveis opções. Um estabelecimento de Freud, de 1907, é categórico quanto a manter-se os termos: ele aprecia os motivos do colega para tentar adoçar a maçã azeda, mas não acredita que o empreendimento seria bem sucedido. Até se chamasse o inconsciente de “psicóide”, ainda seria o inconsciente, e se não chamasse a força impulsionadora, na concepção ampliada de sexualidade, de “libido”, ela ainda seria a libido. Em cada inferência na busca de alterações, voltar-se-ia ao que realmente se está falando, mas de onde se tenta retirar a atenção. Não se pode evitar as resistências, por que não enfrentá-las desde o início? Na posição freudiana, o ataque é a melhor forma de defesa. Talvez Jung estivesse subestimando a intensidade dessas resistências se esperasse desarmá-las com pequenas concessões. O único caminho residiria em propor abertamente a importância concedida à pulsão sexual.
Nesse caminho, de manter a clareza e o rigor dos termos de sua doutrina sem promover concessões que no fundo e ao cabo tendem a se mostrar inúteis, Freud, em 1915, produziu os textos conhecidos como artigos sobre metapsicologia. Neles, encontra-se um especialmente relevante para os já descritos propósitos de nosso trabalho, simplesmente intitulado “O inconsciente”. Mas, antes de mergulharmos nas incidências conceituais desse texto, cabe nos atermos às contribuições do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, tecidas mediante sua conferência de 1922, publicada postumamente, voltada a um breve histórico e definição da metapsicologia freudiana. No âmbito da definição desta, vamos que se refere
à disciplina que liga os processos psíquicos a sistemas psíquicos topicamente determinados, os quais possuem uma organização e um funcionamento específicos; são as diferentes interconexões possíveis desses sistemas que explicam os diferentes modos de descarga (normal e patológica) das excitações. Esses sistemas são acionados por forças psíquicas, derivadas de transformações de forças pulsionais que funcionam por outro lado no organismo; a distribuição dessas forças varia segundo os modos de descarga da excitação. Os mecanismos psíquicos estão, portanto, carregados com certa quantidade de energia, cujo modo de manifestação varia com o sistema que ela ocupa mas que, de modo geral, pode-se imaginar como uma quantidade constante, ou seja, obedecendo à lei da constância da energia enunciada pela física. Só depois de ter avaliado o estado de investimento dos diferentes sistemas topicamente localizados, a dinâmica das forças em conflito (dinâmica, direção e relações quantitativas dessas forças), é que podemos falar de uma explicação metapsicológica do processo no sentido de Freud.
No entanto, segundo Ferenczi, nunca é demais advertir contra dois erros que as teses metapsicológicas poderiam levar a cometer. A metapsicologia de Freud não se compromete com fornecer esclarecimentos a respeito da anatomia, da fisiologia ou da física do órgão (ou aparelho) psíquico. Somente produz suportes especulativos que advêm, deliberadamente ou não, quando se analisa os processos psíquicos. “O outro erro consistiria em supor que o edifício metapsicológico é uma construção arbitrária, um sistema fechado desde o princípio”. É o contrário: cada avanço, cada constatação se apoia numa pletora de observações de detalhe. Talvez nunca sobreveio tanta prudência “no estabelecimento de uma teoria científica. E foi somente a posteriori que o desenvolvimento da psicanálise foi descrito como um avanço progressivo e concêntrico na direção da metapsicologia”.
Por meio de seu avanço meticuloso e paulatino, vemos que a metapsicologia, em Freud, se divide em duas tópicas. Pois, entre 1920 e 1923, ele desenvolveu sua reformulação teórica que instaurou a chamada segunda tópica, cujas instâncias são o eu, o supereu e o isso. Juntamente com os vocábulos pré-consciente e consciente, “o inconsciente perdeu então sua qualidade de substantivo, transformando-se numa maneira de qualificar as três instâncias da segunda tópica: o isso, o eu e o supereu”.
Até os mencionados artigos sobre metapsicologia, de 1915, o inconsciente era concebido como instaurado mediante o recalque, sendo seu conteúdo, portanto, assimilado ao recalcado. Segundo Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, excetuando-se este aspecto extra-individual: o núcleo do inconsciente, fundamento da fantasia originária, vinculado à hipótese filogenética. Então, algumas noções começam a mudar: tudo o que é recalcado tem, necessariamente, que permanecer inconsciente. Porém, o recalcado não abarca tudo o que é inconsciente. Deste, aquele configura parte.
No que se relaciona à proposta de nosso trabalho, é interessante ressaltar a seguinte observação de Strachey, na sua introdução ao texto freudiano: “deve-se esclarecer de imediato que o interesse de Freud por essa suposição jamais foi de natureza filosófica – embora, sem dúvida, problemas filosóficos se encontrassem inevitavelmente próximos. Seu interesse era prático”. Assim, ele não estabeleceu determinada entidade metafísica. “O que ele fez no Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos foi, por assim dizer, revestir a entidade metafísica de carne e sangue”. Pela primeira vez foi desvelado o inconsciente: propostas sobre como funciona e como difere de outras partes da mente e suas relações com as mesmas. Destarte, em “O inconsciente”, tais descobertas são retomadas, ampliadas e aprofundadas. Porém, “a posição em seu todo só foi posta em perspectiva quando, em The Ego and the Id, Freud introduziu um novo quadro estrutural da mente”.
Na primeira seção de “O inconsciente”, vemos que “tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova”. Estes não somente abarcam parapraxias e sonhos, mas tudo aquilo que é descrito qual sintoma psíquico ou obsessão nos doentes. Aliás, nossa experiência diária mais pessoal é passível de nos familiarizar com ideias que aportam em nossa mente sem sabermos o porquê ou de onde vêm, e com conclusões intelectuais que apreendemos sem saber como. Assim, deve-se adotar a posição segundo a qual o fato de estabelecer tudo quanto acontece na mente como fruto da consciência significa fazer uma reivindicação precária. Ademais, em sustentação quanto à existência de um estado psíquico inconsciente, em um momento qualquer, o conteúdo da consciência é irrisório, de maneira que a maior parte do que se chama conhecimento consciente deve permanecer, por extensos períodos, em estado latente, ou seja, psiquicamente inconsciente. Mas não se trata de falar de propriedades intelectuais que não assomam por todo o tempo à consciência. A questão é que identificar esta com o mental é inadequado, tal postura rompe as continuidades psíquicas, coloca-nos nas dificuldades irresolvíveis do paralelismo psicofísico, está suscetível à censura de, sem um motivo razoável, “superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos”. Mas como diferençar tal sistema do inconsciente? Ou melhor: como precisar as peculiaridades deste?
“A distinção que estabelecemos entre os dois sistemas psíquicos ganha novo significado quando observamos que os processos em um dos sistemas, o Ics., apresentam características que não tornamos a encontrar no sistema imediatamente acima dele”. Ou seja, no sistema Pcs. - cs. O núcleo do primeiro diz respeito a representantes instintuais que procuram descarregar a própria catexia – consiste, desse modo, em impulsos carregados de desejo. Esses impulsos coexistem sem mutuamente se influenciarem e não apresentam contradição mútua. Um dos impulsos não cancela o outro, ao se tornarem simultaneamente ativos se combinam para formar uma figuração intermediária, certo meio-termo. Então, não há lugar para negação ou dúvida, tal aspecto é introduzido pela censura no sistema Pcs. – cs. No Ics., o que existe são conteúdos catexizados com maior ou menor força. Neste, assim, não opera a racionalidade. É abarcado o veio do absurdo. E as intensidades catexiais são bem mais mobilizáveis. “Pelo processo de deslocamento uma ideia pode ceder a outra toda a sua quota de catexia; pelo processo de condensação pode apropriar-se de toda a catexia de várias outras ideias”. De modo que Freud vem a propor que esses dois processos constituem marcas próprias do chamado processo psíquico primário, ao passo que a racionalidade, a distinção acerca de tempo e espaço, a perspectiva causal e a tendência à separação de ideias, no sentido conceitual, são marcas do processo psíquico secundário – dominante no sistema Pcs. - cs.
Os processos do sistema Ics. são intemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs.
Do mesmo modo os processos Ics. dispensam pouca atenção à realidade. Estão sujeitos ao princípio do prazer; seu destino depende apenas do grau de sua força e do atendimento às exigências da regulação prazer-desprazer.
Resumindo: a isenção de contradição mútua, o processo primário (mobilidade das catexias), a intemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica – tais são as características que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics.
Esses processos inconscientes se tornam por nós parcialmente cognoscíveis sob, por exemplo, as condições de sonho e neurose; segundo Freud, quando os processos do sistema Pcs. - cs., “mais elevado”, são trazidos de volta a uma fase antecedente, a um estágio mais baixo, mediante a regressão. Quanto às vicissitudes relativas ao plano energético, em termos de catexia, investimento de energia psíquica:
Os processos do sistema Pcs. exibem – não importando se são conscientes ou somente capazes de se tornarem conscientes – uma inibição de tendência de idéias catexizadas à descarga. Quando um processo passa de uma idéia para outra, a primeira idéia conserva uma parte de sua catexia e apenas uma pequena parcela é submetida a deslocamento. Os deslocamentos e as condensações, tais como ocorrem no processo primário, são excluídos ou bastante restringidos. Essa circunstância levou Breuer a presumir a existência de dois estados diferentes de energia catexial na vida mental: um em que a energia se acha tonicamente 'vinculada' e outro no qual é livremente móvel e pressiona no sentido da descarga. Em minha opinião, essa distinção representa a compreensão interna (insight) mais profunda que alcançamos até agora a respeito da natureza da energia nervosa, e não vejo como podemos evitar fazê-la. Uma apresentação metapsicológica exigiria com a máxima urgência um exame ulterior desse ponto, embora, talvez, isso fosse ainda um empreendimento muito ousado.
Quanto a informações sobre a mencionada segunda tópica, elaborada especialmente a partir da década de 1920, um texto de especial auxílio é o “Esboço de psicanálise”, escrito por Freud em 1938, no qual apresenta os resultados de suas pesquisas teórico-clínicas de forma abrangida e clara, fornecendo uma espécie de “curso de atualização”. Neste, para nosso trabalho, a parte mais rica e relevante é a nomeada como Qualidades psíquicas. Vejamos certo panorama.
Não seria necessário caracterizar o que é chamado “consciente”. Trata-se do mesmo que a consciência segundo muitos filósofos ou o senso comum. Tudo o mais que pode ser caracterizado como psíquico, para a psicanálise, é “o inconsciente”. Então, perfaz-se determinada divisão importante nesse inconsciente. Alguns processos se tornam conscientes sem dificuldades, depois deixam de sê-lo, mas podem retornar, podendo ser lembrados ou reproduzidos. Isto nos lembra da extrema fugacidade da consciência. O consciente assim o é só por um momento. Aquilo que for inconsciente e “que se comporte desta maneira, que pode assim facilmente trocar o estado inconsciente pelo consciente, é, portanto, preferivelmente descrito como ‘capaz de tornar-se consciente’ ou como pré-consciente”. Existem demais processos psíquicos e material psíquico que não apresentam acesso tão simples ao consciente: têm de ser reconhecidos, inferidos, traduzidos para a forma consciente pelas vias da interpretação psicanalítica – tal material obtém o nome de “inconsciente”. Assim, os processos psíquicos adquirem três qualidades: são conscientes, pré-conscientes ou inconscientes. Essa divisão não é absoluta e permanente; o que é pré-consciente se torna consciente, sem grandes esforços ou assistência, o inconsciente o faz através de consideráveis esforços e, no processo, adquire-se constantemente a impressão de estar-se lidando com resistências muito intensas. “A quantidade de esforços que temos de dispender, pela qual avaliamos a resistência contra a conscientização do material, varia de magnitude segundo os casos individuais”. Para falar de um exemplo interessante, o que ocorre num tratamento analítico, nessa esteira, também pode se dar espontaneamente: determinado material que usualmente é inconsciente pode se transmutar em pré-consciente e, por conseguinte, consciente – isso aporta em geral nos estados psicóticos. Infere-se que a normalidade dependeria de fato da manutenção de certas resistências internas. Um afrouxamento das resistências em tal sentido, com um impulsionamento adiante da matéria inconsciente, ocorre com frequência no estado de sono, provocando assim condição para a elaboração onírica. Ao contrário, o material pré-consciente pode tornar-se por algum intervalo inacessível, bloqueado pelas resistências, como algo esquecido, não abrangível pela memória. Ainda, um pensamento pré-consciente pode ser reimpelido à condição inconsciente, como parece se exercer no caso dos chistes. Transformação similar de retorno de processos ou material pré-consciente ao estado inconsciente possui relevante papel na causação dos distúrbios neuróticos. “É de se esperar, entretanto, que chegaremos a uma compreensão mais clara desta própria teoria se determinarmos as relações existentes entre as qualidades psíquicas e as regiões ou agências do aparelho psíquico que postulamos...”.
No isso (ou, segundo a tradução inglesa de James Strachey, Id), a única qualidade predominadora é a de ser inconsciente. Portanto, isso e inconsciente se encontram tão intimamente amalgamados quanto pré-consciente e eu (na referida tradução, Ego). No primeiro caso, a ligação é ainda mais considerável. Ao reconhecermos o desenvolvimento do indivíduo, de seu aparelho psíquico, é visível uma divisão essencial no isso. Inicialmente, tudo era isso. O eu provém dele pela influência ininterrupta do mundo exterior. Ao longo do desenvolvimento, alguns conteúdos do isso passaram para o estado pré-consciente e foram incorporados ao eu. Demais conteúdos continuam no isso – inalterados – qual seu núcleo arduamente acessível. Nesse desenvolvimento, contudo, o incipiente eu devolveu à condição inconsciente parte do material antes incorporada. Abandonou-a e agiu da mesma maneira quanto a algumas impressões mais recentes que poderia haver assimilado. Sendo que as mesmas, tendo sido rechaçadas, apenas poderiam deixar vestígio no isso. Fala-se desta última parcela do isso como o reprimido (ou recalcado). Vem a ser plausível apontar duas categorias da matéria do isso. “Elas coincidem aproximadamente com a distinção entre o que se achava originalmente presente, inato, e o que foi adquirido ao longo do desenvolvimento do ego”.
Ao estabelecer-se a disposição topográfica do aparelho psíquico em um eu e um isso em que as distinções de qualidade entre pré-consciente e inconsciente ocorrem, e ao desvelar-se que esta qualidade deve antes ser considerada somente como apontamento da diferença e não como a essência, qual seria então a verdadeira natureza do estado no isso mediante a qualidade de ser inconsciente e no eu de ser pré-consciente?
Disso, porém, nada sabemos. E a profunda obscuridade do pano de fundo de nossa ignorância é escassamente iluminada por alguns lampejos de percepção interna (insight). Aqui aproximamo-nos do segredo ainda velado da natureza do psíquico. Presumimos, como as outras ciências naturais nos levam a esperar, que na vida mental esteja em ação alguma espécie de energia, mas não temos nada em que nos basear que nos capacite a aproximarmo-nos de um conhecimento dela através de analogias com outras formas de energia. Parecemos reconhecer que a energia nervosa ou psíquica ocorre de duas formas, uma livremente móvel, e outra, em comparação, presa; falamos de catexias e hipercatexias do material psíquico, e até mesmo aventuramo-nos a supor que uma hipercatexia ocasiona uma espécie de síntese de processos diferentes – uma síntese no curso da qual a energia livre é transformada em energia presa. Mais longe que isto, ainda não avançamos. De qualquer modo, atemo-nos firmemente à opinião de que a distinção entre o estado consciente e o pré-consciente reside em relações dinâmicas desse tipo, que explicariam como é que, espontaneamente ou com nossa assistência, um pode se transformar no outro.
Em todo caso, os processos que têm qualidade inconsciente obedecem a diferentes leis daqueles atuantes no eu pré-consciente. Freud denomina essas leis, em seu conjunto, de “processo primário, em contraste com o processo secundário, que dirige o curso das ocorrências no pré-consciente, no ego. No cômputo geral, portanto, o estudo das qualidades psíquicas provou, afinal de contas, não ser infrutífero”.
COSMOS E APARELHO MENTAL: VONTADE E INCONSCIENTE | Ao invés de ver algo impetuoso, irracional, atemporal e aespacial (no senso de infinito) incidindo no cosmos, Freud o vê no aparelho mental humano, cuja teorização ele mesmo instituiu – primeiro como substantivo nesse aparelho, posteriormente como qualidade psíquica. O inconsciente, assim como a vontade schopenhauriana, só é perceptível, concebível, devido a suas várias formas de manifestação. No caso da vontade, essa manifestação abarca todo o mundo fenomênico. O inconsciente se manifesta no homem e pelo homem, mediante formações específicas (parapraxias, sonhos, sintomas...) e que, em todo caso, configuram fenômenos que nos permitem inferir sua existência e conteúdo. A vontade também é inferida por meio de suas manifestações objetivas, que se tornam pautadas pelo principium individuationis.
Se as apresentadas características, em Freud, dizem respeito à parte mais recôndita do aparelho mental, características similares remetem àquilo que subjaz ao cosmos fenomênico para Schopenhauer, pois, a vontade, sendo metafísica, é intemporal, busca a satisfação mesmo que isso leve a todas as contradições, já que ela morde a própria carne na busca de satisfazer-se, não tendo em conta, portanto, o mote de preservar as singularidades – não é guiada pelo princípio de razão ou contradição. Como o inconsciente, manifesta-se por fenômenos que permitem inferi-la, mas não conhecê-la, dizê-la totalmente. Aquele também é infinito, sempre a deixar um rastro de não-dito.
Primeiramente, Freud vê o inconsciente como fundado pelo recalque. Depois, o isso, coincidindo totalmente com a qualidade de inconsciente, simplesmente provém, aporta com o indivíduo, podendo ser visto como infundado. A vontade, em termos de substrato metafísico sob o cosmos, é infundada. O isso o é em termos de aparelho mental.
Se a vontade não se satisfaz, sempre exigindo mais, o inconsciente, como ambiência do desejo, conforme dito, é infinito, assim como a pressão exercida pelo desejo, que nunca encontra seu objeto definitivo – que proporcionaria a completude. Sempre se trata de lidar com a insatisfação, com a falta, fendendo a Substância cosmológica ou a estrutura da mente.
REFERÊNCIAS
FREUD, S., JUNG, C. G. The Freud-Jung letters. Trad. Ralph Manheim, R. F. C. Hull. Princeton: Princeton University Press, 1994.
FREUD, S. As resistências à psicanálise. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 239-250.
MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
REDYSON, D. Dossiê Schopenhauer. São Paulo: Universo dos Livros, 2009.
ROUDINESCO, E., PLON, M. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia. Trad. William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, A. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
Edson Manzan Corsi (Brasil, 1982). Psicanalista, mestre em Estudos Literários pela UFG, especialista em Filosofia Política e graduado em Psicologia pela PUC-GO. Professor pelo departamento de extensão da PUC-GO, com o curso Psicanálise e Literatura e exerce a clínica psicanalítica. Contato: edsonmanzan@gmail.com. Página ilustrada com obras de Lucebert (Holanda), artista convidado desta edição de ARC.
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