1. CRÔNICA DE CONSUMO: A LÂMPADA QUEIMADA DA POESIA | Um dia de crônica não faz mal a ninguém, caminhar pelas ruas, flanar um pouco além da pura vertigem da imaginação, arriscando-se a viver uma outra experiência que não a sua, espécie de estadia não estando, sentindo com todo o espírito como seria o mundo se por ali e naquele momento não se estivesse nele. Claro que isto parte sempre de uma presunção, considerando pertinente minha estadia no mundo. Não há outra: o homem já vem de fábrica com essa débil arrogância. E o termo não é incorreto uma vez que tudo foi transformado em produto. Em um mundo habitado por consumidores, não há distinção mais entre compradores e vendedores, porque todos atuam, ou melhor, sofrem a atuação do mercado, enfim: o que nos diferencia é um dado meramente temporal: quando somos compradores e quando somos vendedores. De tal maneira que nossa personalidade está medida pela carga horária de atuação em uma e outra instância. Nem isso: já nos permitimos tal ambiguidade, ou seja, somos e não somos ao mesmo tempo. Isto quer dizer que abolimos este conceito primeiro da individualidade enquanto característica geradora de um ambiente múltiplo em termos de tendências, percepções, interpretações etc.
Pronto. Há que ver detalhes, nada mais. Por exemplo, saber se a amizade pode funcionar como um produto aspiracional. Viver com mais liberdade significa não crer em mais nada, não compartilhar opiniões, radicalizar o status de sua condição solitária no mundo. Apagar todos os rastros de conceitos como os de confiabilidade e discordância explícita. É isto o que está por trás da máscara de uma entrevista com David Shah, [1] o simpático inglês, consultor de tendências que, ao diagnosticar o fim da moda, nos leva a uma indagação: extinto o hábito, extingue-se a cultura em toda sua amplitude? Como então ser teólogo do nada em uma terra de nada? Quais os hábitos de David Shah? O que veste? Com quem se encontra? Em quem confia? Nesta entrevista ele faz uma apologia da “recontextualização”, algo não tão simples como mudar os móveis de posição em uma sala, mas, ao fim, essencialmente isto. As metáforas criam suas ambiguidades, e desgraçadamente anseiam por ambientar-se, e é justamente quando se mostram o que são: desambientadas.
Os poetas brasileiros parecem discípulos de David Shah. Ah, sim, esta seria uma primeira reação de um poeta brasileiro, porque eu também sou poeta e brasileiro. Mas a coisa não se resolve – a favor de ninguém – assim tão facilmente. Até porque o dilema não se restringe ao comportamento do poeta brasileiro. Há uma passagem na entrevista do inglês Shah em que ele assevera: “Hoje em dia, a maioria dos produtos se parece e tem basicamente a mesma qualidade, sejam japoneses, coreanos ou britânicos. Para diferenciá-los, é preciso atribuir a eles uma personalidade.” Esta, que é a ótica do consumo, em muito se assemelha a uma ótica não declarada do fazer poético no Brasil. Recordo afirmação que me fez Ademir Demarchi, em uma mesa no Instituto Goethe, [2] no sentido de que os poetas brasileiros haviam atingido uma técnica admirável. Sim, é verdade, dentro dos padrões atuantes, de circulação, aceitos pela crítica – hoje restrita ao âmbito da análise acadêmica –, todos escrevem certinho, com boa sintaxe, pausadamente etc. Careceria então aplicar o método Shah, ou seja, atribuir-lhes uma personalidade? Não precisamente, pois do que se trata, antes de tudo, é da aceitação de que essa poesia tornou-se produto, nada mais. Que é outra sua instância de atuação. A partir daí evocar as tendências do mercado livreiro etc. Não importa, aqui, também seguir a trilha da poesia brasileira em si, tanto quanto o comportamento de nossos intelectuais. Como reagimos diante de crises? Como as aceitamos? Como passamos por cima delas em um exercício de alheamento?
Toda vez que o título de uma matéria na imprensa acusa “Não há mais moda” isto nos leva a pensar em correlatos do tipo “Não há mais orgasmo”, “Não há mais poesia”, quantos mais. Todo dia a imprensa tem que dizer que algo não mais existe, para assim poder reanimá-lo no dia seguinte. Jornalistas não entendem mais de ilusionismo do que poetas, apenas dispõem infinitamente mais de espaço para o exercício de sua perversão. Uma afinidade entre jornalistas e advogados é que o assunto central nunca se restringe a conceitos como verdade e justiça e sim à sua decorrência: o ganho de causa. A manchete é o ganho de causa em se tratando de imprensa. Vivemos em um mundo completamente previsível, onde o telejornal, por exemplo, confirma ácida ambiguidade entre o que relata e o ânimo que nos desperta. Em alguns casos é quase como uma conclama: apesar do mundo que lhes apresentamos, tratem de ter esperança. Mas tudo isto porque temos que seguir vendendo. Eis aí onde David Shah está mais implacavelmente correto: “Você pode ter todas as ideias que quiser – é muito fácil ser criativo. O difícil é começar a produzir o que imaginou e colocar na rua para ver se vende.” Ou seja, tudo se resume a técnicas de venda, uma vez que presumivelmente a condicionante estética já tenha sido resolvida de forma conveniente.
A pergunta mais certeira então – porque tudo é uma questão de alvo – seria: o que estão vendendo os poetas brasileiros? Já em 1997 suspeitava Jair Ferreira dos Santos que “híbrida e superficial na sua natureza, a poesia pós-moderna (ou qualquer outra) caminha, tudo indica, para o irrelevante e o espectral enquanto criação na cultura e produto no mercado”, e lhe dá até um nobre papel, ao dizer que “talvez esteja reservado a ela cumprir o trânsito do cadáver da poesia como instituição para sua ressurreição como hobby, jogo tribal, adereço nas subculturas de gosto”, logo lembrando que “nesse novo status, vai assemelhar-se à filatelia, à numismática”. [3] Nesta mesma ocasião, um outro observador, Dante Lucchesi, comenta que “a sociedade pós-moderna, ao se tornar uma nebulosa de todas as linguagens possíveis, esvazia o poder de significação da linguagem na medida em que a reifica, instrumentalizando-a, tornando-a um mero acessório, do qual um artista, um estilista de moda ou um publicitário pode lançar mão sem qualquer comprometimento, e com fins absolutamente pragmáticos”. [4] Ora, mas com que enorme facilidade nos tornamos todos vítimas de um sistema qualquer! Acrescentemos, portanto, à nossa lista de afirmações caóticas o cataclísmico “Não há mais história”. E sempre me pareceu tão fascinante a sugestão de Barthes de ir de encontro a todas as ideias recebidas… Acaso não deveria o poeta estar no mundo justamente para tanto? Duas décadas antes dos brasileiros referidos, já alertava Elias Canetti que “ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo”, atento que se mostrava à “perversa banalidade” que tomaria posse de nossoestar no mundo. [5]
O dilema maior ainda estava por vir, considerando hoje que a reificação evocada por Lucchesi não mais incide apenas sobre a linguagem e sim sobre o poeta, que não soube a tempo negar a si mesmo, transgredir-se, desfazer-se do culto do eu com que acabou imaginando o único sentido de sua existência. Tornou-se ele a coisa em si, o “adereço nas subculturas de gosto”, o frequentador de festas, eventos etc., onde a poesia nada mais diz. Se acaso se assemelha tal empresa com o que move a filatelia ou a numismática, talvez seja apenas pelo aspecto de colecionista, no caso um colecionador de facetas, de gestos eloquentes a compensar a leitura de versos inócuos, por exemplo. Ou compilador de exercícios de simpatia na articulação estratégica da nova marca com a qual se ocupa: ele mesmo. Daí vale retornar ao Mr. Shah quando dispara que “marcas passam a ser como famílias, dão ao consumidor estabilidade, uma identidade”, enfim, “substituem a Igreja e a família real”. Portanto, a coleção do poeta reporta-se à qualidade acessória de sua mais-valia.
Evidente que já não cabe falar em pós-modernidade, exceto como “recontextualização”, e então temos que observar uma vez mais a ótica do Shah, quando atenta para a importância de “desfazer as barreiras entre as disciplinas como moda, iluminação, roupas esportivas, carros e começar a pensar tudo isso como uma coisa só”. Ora, mas foi exatamente contrária a opção tomada pelo poeta, que se isolou em um acortinado qualquer da linguagem sem ocupar-se de outras estruturas ou disciplinas. Não sei se aqui cabe a distinção que Roland Barthes compreendia entre contrário e inverso – “o contrário destrói, o inverso dialoga e nega” –, mas é interessante acompanhar seu raciocínio: “parece-me que só uma escrita invertida, apresentando ao mesmo tempo a linguagem reta e a sua contestação (digamos, para abreviar: a sua paródia), pode ser revolucionária”. [6] O fato é que o poeta condenou a lógica de mercado, por exemplo, mas não a inverteu. Apenas a repeliu, sem transgredi-la. O que fez com que retornasse veementemente sacramentada pela desarticulação argumentativa de seu ideal contestatário. Nem isto, pois não houve retorno. Deu passo tranquilo a seu curso irrefreável de consumismo, com o qual o poeta passou a se identificar.
Mas, onde o poeta aprende a ser gente? Na transmissão de conhecimentos, técnicas, fascinações, sonhos. Antepor-se ao pragmatismo tem sua dose de valor, considerando que nele a satisfação esgota-se em si mesma. Contudo, há algo no poeta e na linguagem que encarna, que é suscetível de aplicações práticas. O poeta tem que se dispor a trocar a lâmpada queimada da linguagem, por exemplo. E para tanto necessita compreender que ele não é nada se não compartilha mundos, e se não aplica seus conhecimentos no mundo que habita. Ainda podemos falar no termo revolucionário? Dependerá sempre do poeta. Antes de tudo, ele terá que aprender a contestar a si mesmo. Se a partir daí conseguirá renovar processos, enigmas, desejos, bom, já ninguém se arrisca a apregoar nada em tal território queimado por descaso de seus granjeiros.
Embora o poeta tenha se convertido em peça de consumo, a ele não se aplica a mesma avaliação geral de Shah, de que “o gosto pela ostentação está em baixa” e que “estamos voltando à ideia de inteligência como um luxo”. Por vezes o fulgor de espírito é apenas um efeito. A ostentação foi deslocada da linguagem para a figura do poeta, a ponto dos versos terem se resumido a mera lapidação formal, não cabendo aplicar-lhe sentido algum. O poeta sim, este faz sentido, brilha pelo luxo de sua sagacidade, e não propriamente por sua inteligência. Não está em harmonia com o mundo que o cerca, mas, antes se exibe como alguém acima de todos os olhares. É professoral, distante, ao mesmo tempo simpático, com aquele ar patético de grife estabelecida. O poeta é a glória em si, ainda que a glória não o reconheça. Alguém por dentro do nada e por fora de si mesmo. Ah se ao menos fosse alguém por dentro da dúvida! A poesia perdeu a conta do mito, pura e simplesmente porque o poeta uma bela manhã despertou preocupado apenas com o que vestir ou não vestir.
Daí que o negócio das tendências tenha encontrado tanto terreno para evoluir. Não que não existisse. O próprio negócio da criação sempre existiu. De alguma maneira um se contrapunha ao outro. A presença contestatória do artista dava segmento a essa trilha de tensão. Mas quando o “fator celebridade” entra em curso, não há dúvida que o negócio de apólices de seguro se sente reconfortado. O seio de uma atriz, o pé de um atleta, e… o poeta faria seguro de quê? Por vezes, é tão simples um cheque-mate. Já não dispunha do mito, do conhecimento mágico, da integridade, da mínima noção de humanismo, sua linguagem havia sido de todo incorporada por um fantasma, de maneira que a moça, sempre tão simpática, na recepção de propostas de apólices, lhe disse: o senhor não vale nada. O poeta sequer tinha a lembrança do último verso cometido. Como recurso ante a graciosidade da mocinha, ainda tentou: não posso segurar o produto aspiracional que eu sou?
Rimos de tudo isto, porém faltou a paródia. O mito considerado e incorporado, a discussão, o diálogo. Em circunstância alguma temer o ridículo em que se incorreu. A ideia de surpresa e excitação defendida por Shah tem aplicação apenas mercadológica. Ele avança em uma área desguarnecida pelo poeta. É um homem astuto, sagaz, que entende mais de poeta – não de poesia – do que qualquer um de nós. Aposta em nossa constante egoísta, um comodismo tanto de linguagem quanto existencial, e sua ideia de “recontextualização” não vai além de um projeto ambientado na manutenção de seu afazer: “colocar objetos e ideias que você conhece num outro ambiente, para criar surpresa e excitação”. Talvez o princípio da criação poética perambule por aí. Mas ainda estamos tratando de consumo. O que o poeta teria a dizer a este respeito?
No princípio da conversa eu andava por uma rua qualquer, lá no primeiro parágrafo, e foi interessante pensar que a concepção deste artigo nada teve a ver com um filme que vi há poucos dias, The Forgotten (2004), de Joseph Ruben, onde havia uma reflexão aparente, sobre a conexão emocional entre pais e filhos, mas que por trás da trama algo que me pareceu mais substancioso se erigia: todo conhecimento se anula em si se não pode ser compartilhado. Andei caminhando por aquela mesma rua, imaginando mil formas de estar nela. É o que tenho feito a cada verso, a cada passo de meu viver. Onde estão a “Igreja e a família real” que perdemos, no dizer de Shah? Nem disto sabemos dar conta. Para que diabos estão no mundo os poetas? Para escrever os versos mais belos esta noite? Ora, mas já não foram escritos? O poeta quer ainda mais beleza? Pois que trate de viver. Que trate de arrancar de si a beleza suprema de existir, contra todas as marcas de luxo e todo o discurso pueril dos consultores de comportamento. Tornem-se, portanto, imprevisíveis.
2. O FANTASMA QUE DANÇA | Afinal, Jelly Roll Morton foi mesmo o inventor do jazz ou apenas um notável pianista de blues? Ou acaso a pergunta está mal colocada e o certo seria indagar: Jelly Roll Morton foi um notável pianista de blues ou apenas o inventor do jazz? O jazz inventado por Jelly Roll Morton em New Orleans em 1904 difundiu-se por bordéis e outras casas noturnas até 1923, quando então grava o primeiro disco.
Um ano depois e do outro lado do Atlântico surge o primeiro manifesto do Surrealismo. Duas décadas adiante André Breton referir-se-ia à colagem inventada por Max Ernst como “uma proposta de organização visual absolutamente virgem”, sem deixar de dizer, ao mesmo tempo, que correspondia, em termos de poesia, ao que buscaram Lautréamont e Rimbaud. Max Ernst então seria mesmo o inventor da colagem ou apenas um notável pintor com tesouras e colas?
Ele próprio dizia que um outro notório surrealista, René Magritte, era autor de inúmeras colagens pintadas à mão. Jelly Roll Morton sabia que a cultura crioula era o diferencial no jazz que inventara. Assim como Max Ernst, sabia que não é a cola que define a colagem. Ele, que começara pintando, sempre confessara seu desejo de ir além da pintura.
A variedade de técnicas assimiladas ou descobertas por Max Ernst encontra alguma relação com a diversidade de estilos musicais que Jelly Roll Morton evocava ou encarnava em seu piano. Ambos sabiam que o instrumento não era propriamente o piano ou a cola. Como separar em Max Ernst ou Jelly Roll Morton o que é esfregação, gospel, ponta seca, ragtime, água-forte, blues, África, Caribe, visão, obsessão? Seria correto resumir tudo à colagem total ou escritura automática? Não há justiça ou correção no território da recepção artística. Uma intencional frase de efeito pode instaurar-se suprema e inquestionável e atravessar séculos. Os livros de história que alimentam as últimas quatro ou cinco gerações estão repletos de fatos que já não correspondem à realidade.
Ao introduzir esta palavra (realidade) o faço como quem sugere o endereço visceral do problema: jamais se tratou de uma condição singular: não há nada mais múltiplo e diverso e circunstancial do que a realidade. Jelly Roll Morton não inventou o jazz. Max Ernst não inventou a colagem. Talvez não tenham ido além de tentar equilibrar a relação entre composição e improvisação. Não queriam ser cúmplices de Deus nem do Diabo. A batida habanera de Jelly Roll Morton ao piano na primeira década do século XX era uma antevisão da mesma ordem do romance-colagem de Max Ernst. Nos dois casos não havia ruptura no que diz respeito a uma coerência narrativa, mas antes uma outra maneira de perceber as conexões (vamos lá) entre ser e tempo.
O fato de haver um recorte “parcialmente lógico” na colagem de Max Ernst talvez estimule uma contradição no que diz respeito à escritura automática. Até hoje o surrealismo padece os efeitos desse erro de leitura. A colagem de estilos em Jelly Roll Morton é suficiente para inventar o jazz? Até onde o jazz se definia unicamente como uma torrente incontrolável de improvisação?
As realidades que se amontoaram ao redor do jazz e da colagem, ao longo da primeira metade do século XX, conduziram a uma curiosa circunstância que, já nos anos 60, se apresenta como uma segunda vanguarda. Uma década intrigante e repleta de inventores. A música politonal de John Coltrane, os efeitos cenográficos evocados por Joseph Beuys, a erradicação da malha harmônica no free jazz de Ornette Coleman, somando-se aí a frustrada prefiguração de um anarquismo que perderia componentes no caldeirão alquímico onde se digladiavam a sociedade do espetáculo e o maio de 68, até então sem perceberem o quanto eram siameses.
Pobre Max Ernst. Pobre Jell Roll Morton. Seu notável apelo à necessidade de fusão permanente entre composição e improvisação foi uma vez mais esquecido em nome de uma obsessão ou outra: ora a composição, ora a improvisação. Então já não havia mais surrealismo. O surrealismo sempre foi surdo, e perdeu muito com isto. Mesmo que Joyce Mansour tenha dito que não é uma determinada técnica pictórica que pode ser entendida como surrealista e sim o pintor, ou seja, sua visão de vida, o surrealismo já então havia descartado alguns de seus mais importantes nomes ligados à pintura por relutância em aceitar que por trás de toda visão de vida há uma técnica em que ela se manifesta.
A subversão também é uma técnica. Assim como a dialética, a vertigem e a inconsequência. A realidade exige talento. Descarta o inventor de jazz e preserva o notável pianista de blues. Somos todos invenção da realidade ou apenas seus notáveis executores?
Assim é que nos anos 60 as técnicas se multiplicaram desordenadamente e não cabia mais falar em tensão narrativa. Convulsão política, conflitos raciais, anarquismo, rebeliões sindicais, encontravam-se no mesmo gramado que descontinuidade harmônica, exotismos melódicos, instalações, body art, prenúncios da multimídia, minimalismo etc. Atirava-se para todos os lados. E talvez o único alvo fosse o da regência do espetáculo. O estilo Broadway de selecionar dançarinos para suas temporadas. Seria tão simples assim?
René Magritte então lembrava que a técnica é indispensável para tornar a obra visível, mas que não alcança importância além do meio. Destacava ainda que é estúpido (assim se referia ao tema) o interesse demasiado pela técnica. René Magritte referia-se à pintura como o pensamento que vê. De alguma maneira sobrevivemos ao século XX e a subversão converteu-se em muitos casos em subserviência. Já não temos mais inventores de jazz ou mesmo notáveis pianistas de blues. A sociedade do espetáculo prenunciada nos anos 60 instaurou-se de tal maneira que abolimos a dualidade composição/improvisação, substituída por uma massa informe que opera no sentido de limitar a sensibilidade e não de aguçá-la. Resta saber se ainda há uma maneira de pintar hoje em dia, ou se acaso tudo se converteu em uma visão de produtores.
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Qual o verdadeiro tempo que habitamos com nossas criações?
Ronda-me o fantasma de Jelly Roll Morton e o faz sempre bailando com o de Max Ernst. Agenda tomada de recortes que são atalhos cuja guia ou senha é mais do que uma saída. A solução como decorrência e não como meta.
Assim é que a linguagem me assalta.
Sem a ideia fixa de uma permanente atualização. Intensamente dedicada ao parto normal. Sem fórceps ou cesariana, sem este sentido comercial que confunde as tarefas da medicina, desnortear de princípios que também a arte achou por bem adotar. Não há brutalidade maior que o alheamento. Atenção ao mundo, a si mesmo, a todas as coisas à nossa volta. Todos os sonhos são reais, como defendia Artaud.
Por onde caminha meu pensamento? Por mares de espíritos diferentes, por rios de sombras encantadas e também pelas poças de sangue que identificam certas opções que não aceitamos como tais. Metáforas de toda ordem que muitas vezes funcionam como estímulos intelectuais, mas que se tornam enfadonhas, mecanismos gastos, se não as insultamos para que abandonem essa condição teimosamente única, e se lancem além de si… além de toda metáfora.
Dizer ao corpo nu da mulher desejada estendido sobre a grama que seja mais do que simplesmente o corpo do desejo. Ou ao mobiliário traçado pelo olhar, por mais que se configure a realidade tangível, que vá além, e descubra uma maneira de tornar-se ao mesmo tempo palpável e imprevisível.
Claro que há um momento em que o autêntico e o falso dividem a mesma cama. Resta saber se então caberá ainda distingui-los? Não somos propriamente o Bem ou o Mal, mas antes de tudo a maneira como nos deixamos reger por ambos, como nos revelamos na irritante precisão com que tais forças se entrelaçam.
Não é a semelhança do homem com Deus que deve nos preocupar, mas sim consigo mesmo. De qual maneira conjugamos desejo e hipocrisia, por exemplo. A palavra pudor é um desacato, a grande aberração que acoberta nossa desumanidade. Consequentemente não há fraude maior do que a beleza. Se eu me referir à ilusão magnífica da liberdade talvez se aceite melhor o que digo. Mas não há diferença entre tais parâmetros.
O caso de Robert Mapplethorpe permanece paradigmático em nosso tempo. Seus nus oscilavam do sublime ao pornográfico, melhor dizendo, do feminino ao masculino. Toda a intensa relação entre volume, sombra, movimento sugerido, angulação etc., em nada foram observados quando diante do olhar o que se tinha era o sexo masculino, ereto ou pendente, desperto ou disperso. Nem mesmo as mulheres saíram em sua defesa.
Assim é que a beleza é um atributo da mulher e não do feminino. Um fetiche com área de atuação prevista em lei. Lei moral. Esta que torna secundária toda e qualquer outra modalidade de julgamento do outro. Não adianta inverter os valores e declarar algo “belo como um exército derrotado”, como o fez Joyce Mansour.
A rigor, sempre que procuramos tocar a beleza recebemos um choque de realidade que nos esclarece acerca de seus limites morais. Estava certo Breton ao dizer que a beleza não se encontra em um ponto morto e sim na própria vida. Claro. É o que há de mais intenso em nós. É a nossa grande verdade. O atributo mais precioso da perfeição. A perfeição do amor, a perfeição do crime, a perfeição da ilusão. Tudo o que fazemos de melhor na vida o fazemos em nome da beleza.
Então podemos entender agora o que disse Joyce Mansour e fazer-lhe coro dizendo: belo como o choque de aviões contra as torres gêmeas. Não posso? Também ali um exército foi derrotado.
Max Svanberg disse certa vez que “para conseguir a beleza nítida é preciso, creio, ser consciente, até o sofrimento, da presença terrível da morte”. Que beleza então almejamos: uma beleza de meias circunstâncias? Há um claro refinamento livresco na perfeição. Já não se trata da banalidade do mal e sim da ambiguidade do bem. Talvez a única beleza possível seja de ordem cosmética, e sua glória cínica: o culto à deformidade do ser para atender àquela que é a mais convulsiva de todas as máscaras da beleza: o mercado das emoções.
Não há relação mais intensa entre arte e beleza em nosso tempo. Tudo isto soa anacrônico porque a religião e a ciência, bem antes da arte, recorreram aos mesmos métodos. Mas como ainda teimamos em dar algum destaque à criação da beleza, como ainda insistimos na dimensão sublime do belo, cabe então recordar que nada sobrevive longe da presença terrível de seu revés. Negar ou ofuscar a expressão dessa relação íntima dos contrários é substabelecer representações da hipocrisia por toda a eternidade. É o que temos feito. E o temos feito à perfeição, de maneira que esta é nossa beleza.
O chileno Braulio Arenas, como praticamente todo e qualquer surrealista, de carteirinha ou não, aderiu aos efeitos pirotécnicos da analogia, e nele encontramos esta preciosidade: “Bela como uma rosa que resolve de uma vez por todas o labirinto”. Imagem que pode ser atualizada da seguinte maneira: bela como uma rosa de plástico que ilude labirintos. Seria como trocar um artifício por outro. Um esplendor da retórica. No fundo, a beleza que tanto ostentamos nos imagina como pudicos conformistas. A arte não faz a menor ideia da guerra santa que o horror empreende para livrar-se do cinema da beleza.
Eis a primeira revolução que se exige de um criador: identificar a mesa de edição dos efeitos especiais que o fazem sentir-se circunstancialmente belo. E detoná-la sem pudor.
A beleza será despudorada ou não será.
3. A TIGELA DOS PROVÉRBIOS | Em um filme do Wim Wenders, o personagem vivido pelo ator Sam Neill, solta um lampejo revelador em meio a uma conversa: “Só os milagres têm sentido”. Não à toa, o personagem é um escritor. Reluto em usar o termo, por desgastada conotação, venha da parte dos excessos de realismo ou das suspeitas de alienação. Tema atualmente piorado pelo antepasto da conveniência, dieta preferida de muitos. De qualquer forma é um termo como outro qualquer. Não limita à vítima ou à divindade. Tampouco lhe salva de qualquer escorrego ou pecado mais grave. E, para muitos, em sociedades que ainda hoje se dilaceram entre um romantismo piegas e a versão brega do utilitarismo, a indagação reincidente ostenta um inconfundível cheiro de naftalina: para que serve um escritor? Como se fizesse parte do script logo em seguida indagar pela serventia do político e do líder religioso. No fundo, a pergunta tem a sua graça, a de desmantelar um mecanismo de crença não na utilidade do escritor, mas sim em sua essencialidade, no que ele realmente pensa acerca do que é e do que faz. Descobrimos um santo para cobrir outro. Embora em nenhum dos casos haja santo algum. Fiquemos com os milagres, portanto, esqueçamos os santos.
O primeiro milagre é o da travessia. Há um provérbio iugoslavo que aconselha: Diga a verdade e saia correndo. Para aqueles que não gostam de perder a piada, até hoje não se sabe se este provérbio foi a causa real do desaparecimento da Iugoslávia. A travessia é mais do que a celebração dos deslocamentos. Graças a ela embaralhamos as formas, descobrimos outros dentro de nós, nascemos infinitas vezes. E criamos coragem para dizer longe de casa o que sob o teto doméstico nem pensar. Na Europa Murilo Mendes chegou a declarar-se surrealista, por exemplo. No Brasil sabia o risco mortal que isto significava. O chileno Vicente Huidobro encontrou na língua francesa uma forma de livrar-se da influência demasiada da cultura europeia em sua poesia. Ao escrever em francês rompeu o ovo da serpente, descobrindo ali sua força vital. O provinciano é aquele que só diz a verdade em casa? O que não rompe a casca do ovo? O assim chamado mundo lá fora acaba por subverter a própria imagem que fazemos de nós diante do espelho. Associamos à ruptura com o pai o princípio da constituição de um novo ser, uma nova personalidade. Não importa com quem rompemos. Mas quem se põe a pensar isto quando já quase ninguém sabe frigir ovos pela manhã?
O primeiro milagre persiste: o ponto de origem. Os chineses costumavam acreditar que longa viagem começa por um passo. Com isto, é possível que nem exista um segundo milagre ou que os milagres não se acumulem. Eles são como a grande casa da singularidade, no sentido de que a cada vida corresponde um único milagre. Vasculhando a biografia dos artistas que desempenharam papel fundamental na progressão do que poderíamos chamar de milagre da criação, a vida deles é tudo menos invejável. Quem desejaria estar ali, em seu lugar? Todos desejam a fama, a glória, o prestígio, a conta bancária bem amparada. A arte nos diverte ou substitui em nós uma verdade que se dita por nós nos obrigaria a sair correndo. A arte é a melhor desculpa que temos para que permaneçamos onde estamos.
É possível que o maior de todos os milagres seja o da descoberta do outro que temos dentro de nós. Aquele que é revelação e confirmação de nossa natureza. Não há significado secundário para ele. Pode ser o amor, a poesia ou a liberdade. Para uns é o amor com que sempre sonhou. Para outros é uma descoberta de doação. Ou esses jardins que saímos visitando por toda parte como se o verdadeiro símbolo da felicidade estivesse em permanente deslocamento. Os gregos costumavam dizer que um corvo não tira o olho de outro corvo. Uma metáfora que não se aplica ao homem. De tal maneira que o milagre é quando recebemos um olho. Talvez por haver tido uma vida sempre repleta de música, incluindo aí a amizade com músicos, sempre pensei nela como uma jam session. Foi o que mais me atraiu quando descobri os jogos surrealistas. O dilema é que logo descobri também que o milagre era bom, mas o santo não. Não é fácil conviver com poetas. A grande proeza dos poetas é a elasticidade de seu ego. Embora essa firmeza de caráter seja uma virtude humana, é curioso como ela se propaga entre poetas. Quando cruzei a soleira da primeira metade de século vivida fui visitado por dois milagres na poesia. Escrever poemas a quatro mãos sem que o poema em si seja esquartejado pela armadilha do ego. A brasileira Viviane de Santana Paulo vive em Berlim há muitos anos e não a conheço pessoalmente. O mexicano Manuel Íris eu o conheci em um pesado inverno de 15 graus negativos em Ohio. Nem o frio nem a distância deram conta do calor de uma identificação imediata. No caso de Manuel a intensidade foi tanta que na mistura de português e espanhol escrevemos um livro tomando por base o jazz e fomos pouco a pouco mesclando os dois idiomas descobrindo palavras comuns, em intensa alquimia verbal. Já com a Viviane seguimos degustando nossos abismos mais secretos, uma comunhão sagrada onde os ambientes individuais da escrita se fundem e inventam um outro ser. Dizem os tibetanos que há três coisas que jamais voltam: a flecha lançada, a palavra dita e a oportunidade perdida. Porém a memória sempre volta, e traz consigo o martírio do alvo não atingido, da surdez diante do compromisso da palavra dita e dos ardis que tornaram perdidas as oportunidades. Contudo, sempre sobra um pouco de destino no traje da existência.
Há um provérbio brasileiro que diz: A viagem é mais rápida quando se tem boa companhia. Como a viagem entre músicos. A viagem mítica, demasiado romântica, como muitos podem pensar, em uma carroça de atores. Quando deixamos o verbo escorrer pela espinha com essa mescla de vertigem e encantamento, o mistério da descoberta, é que preenchemos a vida com toda a força de nosso espírito. Mas quem poderia imaginar uma carroça de poetas? Podemos pensar em um encontro de mágicos, se acaso eles se divertiriam entre si um fazendo o outro desaparecer no fundo falso de seu truque. Mágicos dividem cabine nos acampamentos de um grande circo? O poeta deve preferir a viagem mais longa, sem boa companhia. Cada vez que penso nisto me sinto menos poeta. Ou talvez eu não esteja sabendo escolher bem os meus provérbios.
Eu vi um verbo correndo como se tentasse escapar de uma fábula. Daqui de onde eu o via sabia que não ia a parte alguma. Um tolo enche a própria vida de máximas. Já vi tolos que não sobreviviam sem reproduzir frases de Schopenhauer. Eu sou o tolo que me ponho aqui a cotejar provérbios. É um balaio sem fundo. Tem um que garante que a prática leva à perfeição, exceto na roleta russa. Ora, em circunstância alguma o golpe do acaso se deixa dominar. Joguemos dados com Deus a vida inteira e nunca blefaremos o suficiente para adiar o jogo. Porque a vida será sempre a mesa de apostas e não o guichê de pagamento das fichas. Já estamos nos distanciando da poesia? Viemos aqui para falar de poesia? Eu não sei. Eu sempre penso que quando falamos de qualquer coisa que seja indispensável em nossa vida nós estamos falando de poesia. O que é distinto de falar de um poema. A poesia é o que temos dentro e diante de nós. A travessia, a longa viagem, o milagre. Os poemas nascem de viagens, como qualquer instância da criação. O prumo precário que inventamos na linha do horizonte. O verbo dilatado. A sensação de estrangeiro em qualquer parte. O poeta é aquele que não desiste um só instante de adaptar-se à vida ou o outro que viu no artifício da estranheza um bom negócio? A verdade se queima nas mãos da existência. É uma fadiga da história quando ela aponta o poema como sendo mais importante que o homem. O poema é um valioso reflexo de seu estar no mundo. E quando calha de ser tolo ou indisfarçavelmente pragmático, impossível seguir acreditando que um dado tenha apenas seis faces.
Os provérbios são como pedras de sal postas na língua da história. Até hoje não entendo a razão que levou o espanhol Juan-Eduardo Cirlot a não incluir “provérbio” entre os verbetes de seu dicionário dos símbolos. A arte, a política, a religião, não deram um passo adiante sem o jogo astuto das máximas. A César o que é de César; A necessidade é mestra; Cada qual tem a idade que parece ter; Mais vale penhor que fiador; Ladrão endinheirado não morre enforcado; Quem só anda na linha o trem atropela – isto não tem fim. Em adesivos em carros encontramos uma que reza simplesmente: Deus é fiel. Nunca saberemos que deus nem a que ou quem propriamente ele é fiel. Sua astúcia inquestionável está na dubiedade. Para elas,quanto mais se vive, mais se vê. Para a poesia, quem define a extensão do olhar é a intensidade. Em conversa com a pintora húngara Susana Wald, ela me diz que lamenta que estejamos sempre a justificar o que fazemos, como se a vida nos impusesse outra coisa. A vida somos nós e não nos impomos algo distante de nós. Por que criar uma ideia tão negativa do que somos na vida? Quase sempre estamos curando alguma ferida. A arte, em seu melhor sentido, é um posto de emergência para as almas feridas. Não era para ser engraçadinha como quem vem aqui rir um pouco de tudo. Até seria, desde que cada um levasse a sério essa necessidade de rir um pouco de tudo. Mais um provérbio? Um plano de fuga, que tal? Um sonho. A vida está gravada em nós muito mais a partir do sinal de dor do que propriamente de alegria. O que não me agrada na condição tripartida de um velho amuleto é que à ciência corresponda a dúvida, à religião a crença e à arte o maravilhar-se. Este trevo de três folhas jamais me convenceu. Quando ponho a minha vida em uma tigela, eu o faço no sentido de que tanto ela seja provada por todos como que também eu me renove ao toque de cada lábio.
Aqui deveria haver um silêncio inquietante na forma de uma pergunta irrevelável: essa coisa não tem fim? É verdade. Em qualquer cultura os provérbios ensinam a não demorar muito em voo. É curioso porque aponta na direção de uma presunção de que estamos sempre muito próximos das grandes descobertas, ao mesmo tempo em que pode denunciar um cuidado para que o santo de casa não desista nunca do martírio ao qual devota sua vida.
NOTAS
2. Ciclo de palestras e debates: “Além do mercado: Literatura/As revistas literárias”. Instituto Goethe. São Paulo, SP. Outubro de 2001.
5. “O ofício do poeta” (discurso proferido em Munique, em 1976).
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor. Contato: arcflorianomartins@gmail.com. Página ilustrada com obras de Lucebert (Holanda), artista convidado da presente edição de ARC.
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