Ao prefaciar a edição conjunta de 10 livros de poesia de Carlos Drummond de Andrade, Antonio Houaiss destaca que o poeta brasileiro “humildemente se põe na posição de que todos os saberes possíveis sobre poesia nunca esgotarão o novo”, ao mesmo tempo em que atenta para o fato de que “há subjacente na sua poesia uma contradição ostensiva e uma coerência latente entre o viver individual e o viver da espécie”. O que temos pela frente é o reflexo de uma obra que é toda uma existência, vorazmente coerente com todos os seus meandros, não ocultando falhas, decepções, hesitações, esgotando-se na diversidade.
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) situa-se como um dos maiores beneficiários do Modernismo no Brasil. Integrante do grupo que, em Minas Gerais, fundaria A Revista (1925) – publicação que, a exemplo das inúmeras não somente do Modernismo, mas de todo o período convulsivo das vanguardas, teria curtíssima duração, em seu caso apenas três números –, o poeta não convive diretamente com a explosão do movimento, vindo a deparar-se, sobretudo no instante em que edita o primeiro livro, Alguma poesia (1930), com seu momento mais desafiador, quando se acumulam os destroços da tradição e se impõe a necessidade de contribuição estética mais substanciosa à ruptura.
E aqui faz bem lembrar a correta avaliação de Antonio Houaiss ao dizer que coube a Drummond,
mais do que a ninguém dentre os modernistas – incluindo os próprios Mário de Andrade e Manuel Bandeira – a função de cristalizador do movimento, pois nele é que a poesia brasileira contemporânea atingiria a plenitude moderna, de que derivariam (no melhor sentido) os melhores poetas subseqüentes – moderna no sentido de antenação com a problemática do mundo moderno, na sua multifacetada e aparentemente caótica dispersão e concentração planetizadas.
Embora a Semana de Arte Moderna (São Paulo, 13 a 17 de fevereiro de 1922) seja o marco promulgador das ideias do Modernismo, este já se prepara – em um misto de inquietação e insatisfação, no dizer de Wilson Martins – somando, de pelo menos meia década antes, uma série de acontecimentos, internos e externos, de que são exemplos o insustentável anacronismo do Parnasianismo e o fervilhamento de ideias europeias, sobretudo aquelas oriundas de Marinetti e Apollinaire. O referido crítico observa ainda:
Mais do que uma simples escola literária ou, mesmo, um período da vida intelectual, o Modernismo foi, no meu entender, toda uma época da vida brasileira, inscrito num largo processo social e histórico, fonte e resultado de transformações que extravasaram largamente dos seus limites estéticos. À sociedade nova, aqui e alhures, correspondia, necessariamente, literatura nova – eis o que não se cansaram de repetir, desde o primeiro instante, todos os teóricos e artistas.
A obsessão por uma literatura nova, por inevitável e sempre benéfica que seja a busca de algo que subverta os parâmetros em voga, gerou um certo atropelo estético que, supostamente, deveria ser equacionado pelas gerações subsequentes. É natural que ocorra isto, pela própria convulsão que caracteriza o choque entre tradição e ruptura. No caso brasileiro, o dilema central é que praticamente não havia uma tradição, de maneira que a ruptura teria que desempenhar muito mais um papel de carta de fundação, e justamente em um território pautado por vícios oriundos do período colonial que se multiplicavam como um cancro. Recorda Ivan Junqueira:
O movimento modernista de 1922 tinha diante de si uma paisagem de fato desoladora: a do triunfo parnasiano, isto é, o triunfo da fôrma sobre a forma. E isso porque deitara suas raízes nas entranhas de um ideário estético inteiramente importado. E além de importado, empoeirado, gasto, cediço.
Tanto é verdade que no resto do continente americano já ocorrera a entrada do modernismo, considerando aqueles preceitos mínimos que podem ligar uma instância a outra. Na América Hispânica, por exemplo, quando surge o período das vanguardas que, cronologicamente corresponde ao Modernismo brasileiro, já é plenamente possível falar de ruptura em contraste com a tradição. O atraso nunca foi vencido de todo, de tal maneira que o adjetivo tardio persegue a história da literatura brasileira – e não somente da literatura, é bom que se diga – de maneiras as mais impróprias possíveis. Dentro deste espírito, quero reproduzir um pouco mais das palavras de Ivan Junqueira:
O furor iconoclástico do grupo de 22 era tamanho e tão difuso que seus integrantes chegaram a proclamar que não sabiam bem o que queriam, mas sabiam perfeitamente o que não queriam. É claro que, nessas circunstâncias, o movimento modernista incorreu numa série de rupturas que não se justificavam em absoluto, mas que afinal tiveram lá sua utilidade, pois, na pior das hipóteses, conseguiram tirar nossa literatura do marasmo e da subserviência em que até então se encontrava. A maior prova de que tais abusos não procediam é que os beneficiários do modernismo de 1922 não foram propriamente seus líderes, e sim aqueles que os apoiaram a distância ou, mais ainda, os que começaram a produzir alguns anos mais tarde.
Este que é considerado pela crítica como uma segunda fase do Modernismo brasileiro é o momento em que surge a obra de Carlos Drummond de Andrade, marcada pela polêmica já desde o princípio, com a publicação do poema “No meio do caminho” na Revista de Antropofagia (São Paulo, julho de 1928). Talvez por facilidade da crítica em tratar-lhe a obra esquematicamente ou por uma astúcia que implica em sua redução, Drummond se viu reduzido a um poeta de fases, sem que jamais tenha ficado bem explicado onde o lírico se deixa substituir pelo engajado, em que momento o esteticismo abre passo para algum eventual descuido com a linguagem ou então se decide a ser apenas compulsivamente erótico – aspectos ou variações que, considerados os que de fato se verificaram, jamais se deram em isolado. A distribuição de fases ganha um novo alento com a carta de defunção do poeta decretada por todos aqueles que consideram o auge de sua produção poética os 10 livros encerrados sob o título Reunião (1969). Excessiva benevolência da crítica, segundo se pode depreender da afirmação de Wilson Martins, ao afirmar que,
em 1945, já o poeta se havia completado em sua natureza profunda; a partir de então, há um aperfeiçoamento poético e um certo enriquecimento da inspiração, mas nada de realmente novo seria acrescentado à sua essência.
É imenso o risco de tal avaliação ser interpretada como terminal no que diz respeito às possibilidades de desdobramento de uma poética. Além do que a mesma se apega a dois aspectos que são plenamente aplicáveis à leitura crítica da obra dos mais notáveis representantes de quaisquer correntes artísticas em toda a história da humanidade: técnica e inspiração. Carlos Drummond de Andrade foi essencialmente um poeta de seu tempo. Não o determinou propriamente, nem se deixou vitimar por ele. Foi mais essencialmente o seu cronista e esteticamente distinguiu-se por haver incorporado de maneira magistral técnicas múltiplas, diversas entre si, pautado por oscilações naturais, de tal maneira que, no dizer de Houaiss, por mais variações que se observe, emerge uma obra que deve ser percebida em sua condição totalizante, uma obra que “vale essencialmente como um unipoema, ou melhor, como um universo, construído num poetar de várias décadas, poetar que deve ter sido, que foi condição sem a qual uma vida não teria sentido”. A ideia de fase sugere o entendimento da obra como sendo heterogênea, de maneira que não me parece relevante, portanto, abordar a obra de Drummond sob prismas redutores, como se estivéssemos a instalar quebra-molas no dorso da história.
A leitura do diário de Carlos Drummond de Andrade ajuda em muito a compreensão daquilo que José Maria Cançado identifica como um paradoxo e uma condição, ao dizer que “esse homem que parecia não pertencer a nada, dessemelhante absoluto, parecia também, por isso mesmo, condenado a participar de tudo”. As anotações sistemáticas em forma de um diário têm início em 1943, quando Drummond já havia publicado os quatro primeiros livros, e o acompanham até 1977. Constituem uma fonte básica de convívio com este personagem tão múltiplo, segundo o qual viria a dizer Cançado, no mesmo livro, ser “dez, vinte, oitenta sujeitos diferentes, cada um deles com delineamentos, delicadezas e formas próprias de conquista e troca amorosa”. Esta abundância ou complexidade existencial, que naturalmente ia mais à frente do aspecto amoroso evocado por seu biógrafo, em parte se identifica com o panorama algo intrincado da época que lhe tocou viver, considerando os conflitos naturais de um país em sua entrada na modernidade, os embaraços políticos e os atropelos da vida pessoal. O próprio poeta reflete em uma passagem do diário:
Há uma contradição insolúvel entre minhas ideias ou o que suponho minhas ideias, e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa.
Embora o ponto manifesto dessa contradição diga respeito ao engajamento do poeta na ação política daquele momento, localiza-se aí um aspecto fundamental da personalidade de Drummond, expresso na indagação: “como posso convencer a outros, se não me convenço a mim mesmo?” Temos um conflito que extrapola a delimitação política, dilema que fez com que o poeta se retorcesse a vida inteira na impetuosidade dos inúmeros confrontos com sua natureza. Não à toa, quando prepara uma antologia pessoal de sua poesia, dispõe os poemas não na usual ordem cronológica de publicação dos livros mas agrupados tematicamente, abrindo o livro sob a égide de “um eu todo retorcido”.
Fato é que Drummond se contorcia em perene conflito entre o próprio caráter e o temperamento dos fatos à sua volta. Em momento algum, no entanto, foi vítima de uma indecisão, pois de uma maneira ou de outra entregava-se por inteiro àquilo em que acreditava. Neste sentido, foi homem de uma integridade abismal, pouco compreendida ou aceita em um meio sempre afeito a moderações de toda ordem. Não era um homem alheio a seu tempo, como João Cabral de Melo Neto certa vez aludiu, indignado com o aparente desinteresse de Drummond “pelo que estava acontecendo em termos de poesia na Europa”. Evidente que desinteresse não quer dizer desinformação. Drummond não era oalheio à maneira de um Jorge Luis Borges, por exemplo. Sua natureza sempre colidente consigo mesma é que o conduziu por caminhos que não se limitavam a contornos literários, imprimindo em sua aventura um feitio tanto mais amplo quanto diverso e não menos controverso.
A crítica literária possui seus vícios, naturalmente, e um deles diz respeito ao padrão de comportamento por ela atribuído ao poeta. José Maria Cançado dá no alvo ao perceber que a poesia do autor de O sentimento do mundo vem “às rajadas daquele ponto negro, onde se encontra o próprio Drummond comendo sacrificial e iluminadoramente o próprio fígado”. Não se inclinava por uma sedução fácil das vanguardas, o que não quer dizer que as desconhecesse. João Cabral não percebia uma pequena distinção: Drummond e Manuel Bandeira – sua ressalva também envolvia este outro poeta – não tinham a preocupação de fundar uma voz própria, definir uma poética, pois se encontram entre aqueles raros casos de poetas que já nascem prontos. Olhavam à volta com outras preocupações, portanto. Apenas isto, porém distantes de quaisquer temores de cristalização estética e menos ainda de uma satisfação plena ante o que a experiência de vida ia descortinando a cada momento.
Na série de entrevistas radiofônicas realizada por Lya Cavalcanti, Drummond recorda o período de edição de A Revista – um dos principais momentos de repercussão do Modernismo fora do eixo São Paulo/Rio de Janeiro –, nos seguintes termos:
Fui, e não me custa dizê-lo, um misto de agitador e gaiato, com tempo disponível para fazer uma espécie de modernismo estridente, que irritava mais do que convencia, ou antes, não convencia coisa alguma.
Esta passagem ajuda a engatar três perspectivas dadas como distintas entre si: um Drummond alheio a seu tempo, outro que questionava os jeitos usuais de adaptação e um terceiro que rejeitava qualquer forma de subordinação. Tais delineamentos não atendiam à voracidade existencial de Drummond, basta pensar no que diria à mesma Lya Cavalcanti:
O que há de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela música de seus versos.
Também se pode recorrer à síntese do poeta, bastante sugestiva, que traça um de seus tradutores para o espanhol, o mexicano Francisco Cervantes, ao destacar que Carlos Drummond de Andrade
enfrenta la realidad, pasando por una sensación populista, muy de guerra mundial, para llegar al conocimiento de que uno pasa con las manos vacías por las estancias de la existencia y que, al hacer una reconsideración de ésta, descubre otra vez lo elemental, lo fundamental de los asuntos sencillos, para concluir que el habla llana encierra en ocasiones maneras más hermosos, de uso poético, que el refinamiento. La trayectoria de una obra así de sólida reviste una apariencia de juguetona sensatez, de supervivencia sin compromiso, pero sin ocultarse al mundo dentro de una pecera.
Seu humanismo era verdadeiramente possuído por esses engodos existenciais, de tal maneira que até mesmo o cinismo, a visão corrosiva, o humor não se encaixavam na poética senão como uma zona de tensão, tablado onde por vezes confundir era a melhor estratégia para alcançar alguma compreensão. Drummond não confundiu somente a si mesmo, mas a todos os seus críticos. E não o fazia, diga-se melhor, de forma artificiosa, mas antes, como afirma Fábio Lucas, retratando “a crise do sujeito no ritual da modernidade, seu isolamento e sua solidão”. E a representação desse conflito evidentemente se dá de modo múltiplo, seja do ponto de vista da linguagem – não à toa inúmeros poemas assumem a forma velada de uma crônica e vice-versa – ou desse caudal de vozes que muitos críticos confundem com mera superposição de fases. Diria que este é um dos notáveis ardis da poética de Drummond, porém uma astúcia que essencialmente reflete essa “consciência armada por severo senso de negatividade e inadequação do mundo”, traço fundamental do poeta que salienta um outro estudioso de sua obra, Davi Arrigucci Jr.
Ainda seguindo as pistas preciosas deste crítico, temos que mesmo o aspecto da desilusão – outra recorrência na abordagem da obra do autor deSentimento do mundo – não deve ser interpretado de maneira isolada, sobretudo porque ele também se reveste de oscilações que, por vezes, tocam o oposto. Arrigucci Jr. atentamente observa que “não se trata de ‘desilusão’, mas de um verdadeiro pensamento poético sobre nossa condição, o que não se deixa reduzir aos conceitos abstratos de uma filosofia existencial, mas é um sentimento refletido do mundo articulado em palavras, em imagens, em poemas”. E cabe insistir na inexistência de sobreposição de fases, pois mesmo a relação entre épico e lírico é antes o reflexo de contradições internas do que propriamente flutuações de linguagem. Este “misto de canto épico com acento lírico” que encontramos na poética de Drummond não se verifica de maneira estratificada, mas sim como uma íntima controvérsia que reflete justamente este eu retorcido – não apenas do poeta, claro está – já aqui evocado.
Evidente que a desilusão pessoal existiu e se manifestou em graus de intensidade distintos em momentos diversos, de maneira que negá-la seria desconhecer passagens fundamentais da biografia do poeta. Contudo, sua dimensão é mais profunda e importa sobretudo por esta lúcida abordagem de Geneton Moraes Neto:
Pouquíssimos criadores terão conseguido, em qualquer época, transformar em palavras de beleza tão intensa o sentimento de permanente “inadaptação ao mundo”, o espanto diante do absurdo da vida, a frustração cívica, a certeza de que tudo é um “sistema de erros”, um “vácuo atormentado”, “um teatro de injustiças e ferocidades”. Desse sentimento, desse espanto, dessa frustração, dessa certeza, Drummond extraiu uma poesia paradoxalmente solidária, perplexa, esperançosa.
Vale insistir, portanto: Carlos Drummond de Andrade foi certamente o poeta que, no Brasil, mais soube dialogar com a multiplicidade voraz da época que lhe tocou viver, diálogo nem sempre marcado por conquistas, inclusive porque a vitória a todo custo é uma das marcas da debilidade. Sua conquista maior é a da frequente e incansável irradiação da dúvida. Tratou ironicamente e até com violenta náusea a presunção de todos aqueles que sentiram-se com respostas a dar ao mundo, e o fez justamente revelando inquietudes e desilusões, identificando-se com o mundo à sua volta, errando sem sucumbir ao erro, indo e vindo em todos os matizes da sensibilidade humana, e sempre em altíssima expressão poética.
Talvez pareça controverso dizer que o poeta tenha vivido intensamente cada momento, pelo que nos pareceu sempre tão cético, discordante, desiludido. O fato é que nele a experimentação era tanto existencial quanto formal, o que requer diálogo intenso consigo mesmo e com o que lhe é – aparentemente – exterior. Não se pode descrer antes de haver crido. O estar intensamente em algo possui um caráter muito mais amplo do que geralmente percebemos. O próprio Drummond alude a isto em um poema ao dizer que “o esquecimento ainda é memória”. Por mais que o mundo se inicie pela afirmação da realidade, este somente se desdobra ante o questionamento da própria alegação. A intensidade da criação vem justamente de uma condição ulterior de harmonização dos contrastes, dos opostos. Fábio Lucas nos ajuda a situar melhor a questão:
Carlos Drummond de Andrade tornou-se mestre da figuração engenhosa, caprichadamente lúdica do universo, principalmente no campo formal. Na esfera íntima, conteudística, freqüentemente manifesta uma paixão dramática, que puxa para o aspecto irônico ou desencantado de avaliação da existência. Daí o seu texto pender para o jogo da criação pura (retratação de uma fantasia original, autônoma, pessoal) ou para o artifício da representação (modo de buscar uma similitude, direta ou indiretamente, entre o signo e o que ele representa).
A estratégia – se cabe o termo – era a do risco permanente, porém o pêndulo não era artificioso. Em um de seus “apontamentos literários”, o próprio Drummond ironiza: “Fazia sonetos tão lindos, mas tão lindos, que ninguém percebia que não eram sonetos”. Talvez se pudesse dizer dele mesmo que sua estratégia era tão envolvente que ninguém percebia que não era apenas uma estratégia. Drummond encarnava como poucos o dilema do esfacelamento do ser praticamente imposto pela voragem de um século em que a experimentação converteu-se em cobaia de si mesma, ou seja, havia um emaranhado incontrolável de exigências participativas que não somente cegou inúmeras esperanças como principalmente gerou individualismos controversos que desaguaram em regimes de exceção e um caudal inoperante de desencantamento. Sob este aspecto, Drummond foi o grande sobrevivente do século, e é até aceitável que tenha despertado inúmeros desafetos que apostaram em outros não-sobreviventes.
Carlos Drummond de Andrade era intensamente anti-dogmático. Mesmo se dissesse de si, como o fez aos 60 anos, que havia alcançado uma “serenidade ascética”, no minuto seguinte já cometia uma imprudência juvenil. Rejeitava até a si mesmo, para não confundir-se com um dogma de qualquer natureza. Deu grandes pistas neste sentido, mas a crítica só o conseguia perceber literariamente. De volta ao conflito entre os territórios épico e lírico, ele próprio provocava:
Não há tempo de epopeia, reclamando poetas aptos para interpretá-los. Há – ou não há – poetas épicos, capazes de extrair seu alimento do contemporâneo mais álgido, como do passado, ou do futuro.
Eis uma evacuação territorial do epos, em que o poeta é sempre um navegador de si mesmo e de seu tempo, esteja em busca do passado ou de volta ao futuro. E ele próprio acentuava o assunto:
Que fazer de nossos possíveis dons literários, entregues à nossa própria polícia e julgamento? O público não nos decifra: apóia ou despreza, simplesmente. A bolsa de valores intelectuais é emotiva e calculista, como todas as bolsas. Hoje temos talento; amanhã não. Éramos bons poetas na circunstância tal, mas, já agora estamos com o papo cheio de vento; somos demasiado herméticos; demasiado vulgares; nosso individualismo nos perde; ou nosso socialismo; chegamos a dois passos da Igreja; o que nos falta é o sentimento de Deus; nossa prosa é lírica, nossos versos são prosaicos.
É impressionante a lucidez de Drummond nesta passagem de um de seus apontamentos literários, onde aduz, referindo-se ao que deve esperar de si um jovem poeta:
A vocação tem de lutar contra o próximo, que tradicionalmente a ignora. Tem de achar-se a si mesma, na confusão dos modelos, estáticos ou insinuantes, que constituem o museu da literatura. E por todo o sempre continuará, solitário, a interrogar-se e a corrigir-se, não esperando que lhe venha conforto exterior.
Diante disto, impossível imaginar que este poeta tenha prestado tributo a alguma escola literária ou argumentação política. Viveu essencialmente um conflito ulterior, e a ele entregou-se com tamanha intensidade que, mesmo ocasionalmente desagradando a expectativas de todos os matizes, foi íntegro, honesto consigo mesmo, honrado, de uma maneira que pouco se encontra no mundo fugidio das letras.
Quando se comemorou o cinquentenário do poeta, Emílio Moura recordou os encontros nos anos 20, e tocou no aspecto sempre controverso das influências: “misturávamos Stendhal com Anatole, Pascal com Bergson, Antero com Rimbaud, Ibsen com Maeterlink”. Ao lado de Drummond, Emílio Moura viria a fundar, juntamente com Martins de Almeida e Gregoriano Cañedo, uma publicação intitulada A Revista, de decidida filiação ao Modernismo. Este grupo de escritores, que incluía ainda nomes como Pedro Nava, Abgar Renault, Gustavo Capanema, Alberto Campos, dentre outros, a exemplo do que passava no resto do país, tinha uma educação literária acentuadamente francesa, ocasionalmente mesclada a vozes inglesas e portuguesas, ou seja, sempre europeias. Era comum os jovens poetas de Belo Horizonte adquirirem exemplares das edições do Mercure de France, da N.R.F. e da Calman-Lévy. Para além do ambiente francês, cada um deles ia naturalmente buscando outras opções que lhes ajudassem a forjar uma melhor definição tanto ética quanto estética. No caso de Drummond, é curioso que tenha despertado interesse por dois portugueses, Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949) e António Ferro (1895-1956). Esta aproximação nunca foi devidamente explorada, mas certamente influiu na maneira como o intenso niilismo de Drummond se mesclava com o humor, certo cinismo e mesmo as posturas anticlericais. Fato é que um livro como Palavras cínicas (1916), de Albino Forjaz de Sampaio, provocou um grande impacto em Drummond, o mesmo ocorrendo com a presença de António Ferro em Belo Horizonte, quando este se apresentou, em 1923, no Teatro Municipal, tocando bumbo e disparando sua propaganda poética: “A minha época sou eu”. Os dois poetas cultivavam um gênero caro ao poeta brasileiro: o aforismo. Em Forjaz de Sampaio encontramos:
A águia que rói os fígados a Prometeu não é outra senão a Dor. Bendita seja a Dor que tiraniza e leva ao crime.
Tudo mentira, tudo ilusão. Quem sabe lá quanta podridão levedou para dar uma rosa, para abrir um malmequer, e para florir uma chaga? Que as chagas o que são senão rubras e esquisitas flores?
Abre o crânio e vê se distingues a alma de Dante da alma de Caim, a de Inocêncio III da do galego ali da esquina.
Por outro lado, vemos na personagem central da novela Leviana, de António Ferro passagens como:
De hoje em diante, passo a mandar-te folhas de papel em branco, com a minha assinatura no fim. Enche-as como entenderes. É que eu não sinto o que digo, mas sinto sempre o que tu me dizes.
[…]
Marco, todos os dias comigo, um rendez-vous ao espelho. Falto sempre. A minha imagem, ali à espera, e eu, muito longe, contigo, nos teus braços.
António Ferro inclusive foi participante da Semana de Arte Moderna e publicou, na revista modernista de São Paulo, Klaxon, o manifesto “Nós”, lançado em seu país no ano anterior, 1921. Considerado um dos pais do modernismo em Portugal, dirigiu a revista Orpheu, e foi intelectual ligado ao Estado Novo português, dirigindo o Secretariado de Propaganda Nacional do governo Salazar. Albino Forjaz de Sampaio também deu contribuição a uma política de espírito acentuadamente nacionalista criada por Ferro. De alguma maneira, os aspectos declaradamente transgressores que envolviam cada um deles exerceu algum crédito na formação do jovem poeta brasileiro. O humor em Drummond está ligado mais à ironia do que à comicidade, ironia que, por sua vez, se atém menos à zombaria do que a uma oposição aos valores sociais vigentes. Daí que seu ceticismo não possa jamais ser entendido como uma fase, como algo determinado por uma desilusão de momento. Ele próprio aclararia em uma entrevista:
Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada.
Evidente que naquela mescla de autores lidos nos anos 20 – Drummond se revelaria sempre um leitor voraz, mas também um apaixonado pelo cinema – os portugueses mencionados não foram mais prestigiados que os demais, embora seu biógrafo tenha destacado o impacto do diálogo de Drummond com os dois poetas. Ajuda a fortalecer o que defende um trecho da nota por ocasião da morte de Erik Satie, publicado em A Revista # 3, onde lemos:
Satie deixou uma técnica e uma expressão, o que é tão raro e perturbador. Foi um criador sem messianismo, porque irônico. Em muitas de suas obras sua personalidade estará oculta, porém nunca distante. E para compreendê-lo há que dar-lhe a volta toda. Chegou a uma simplicidade tal de forma que os inexperientes e superficiais o acusaram de empobrecimento.
Segue traçando um paralelo entre a liberdade e suas limitações, o que está estreitamente ligado à conquista do verso livre. Rigorosamente Drummond está conversando consigo mesmo, e Satie torna-se então um valioso cúmplice dessa reflexão. Talvez a crítica tenha deixado escapar estes dados, tanto pelo aspecto distrital, acadêmico, quanto por certa cegueira hierárquica baseada no artificial prestígio literário. A íntima ligação de Drummond com o cinema, por exemplo, poderia ter sido muito melhor explorada e inclusive agendada como realce nas entrevistas tão cobiçadas pela imprensa com o poeta. Igualmente seria possível traçar paralelos com autores traduzidos por Drummond, de que são exemplos Choderlos de Laclos, Honoré de Balzac, Marcel Proust, Federico García Lorca e Molière.
A maneira como Drummond fala de Erik Satie é impressionante, quase como se estivesse a antever o caminho que ele próprio deveria seguir, ou melhor, que de fato acabou trilhando. Mesmo a atenção que tinha pelo Modernismo, o atrativo da Semana de Arte Moderna, de 1922, era quando menos ambígua, ambiguidade reforçada pela correspondência com Mário de Andrade que, já em 1928, lhe dizia coisas como
…publico o Macunaíma que já está feito e não quero mais saber de brasileirismo de estandarte. Isso tudo conto só para você porque afinal das contas reconheço a utilidade do estandarte. Meu espírito é que é por demais livre pra acreditar no estandarte.
E Mário escrevera isto para Drummond justamente porque este lhe havia mostrado os originais de um livro que pretendia publicar cujo título era Minha terra tem palmeiras, referência direta à “Canção de exílio”, poema de Gonçalves Dias, de profundo apelo nacionalista. Na sequência desta carta diria ainda:
Me parece um pouco tardio pra você ir na onda. Tanto mais que o espírito individualistamente contemplativo e observador de você, bem livre, não combina com isto.
Drummond acabaria desistindo não somente do título, mas de todo o livro, e sua estreia na poesia viria somente dois anos depois, com Alguma poesia. Estreia em que já se vislumbra a condição heterodoxa de toda grande poesia e mesmo o relativo tributo que paga a certas características do Modernismo, dentre elas o poema-piada e a busca de uma brasilidade, uma leitura conjunta de sua obra, tempos depois, tornará possível entender que não seguia tão à risca as ortodoxias do movimento. A expressão jocosa logo se revelaria corrosiva em sua raiz, fruto mais de um desconforto, de uma dissonância, de uma acentuação de contradições do que propriamente de uma tirada espirituosa destinada a alegrar ou libertar o espírito. Por sua vez, a brasilidade em Drummond não foi construída, não se deu como resultado de um esforço, de um programa, tendo havido bem mais o que se possa chamar de revelação, de identificação, de descoberta mútua, em que não ficariam de fora – nem haveria motivo para tanto – os entendimentos com poéticas que expressavam outras vertentes. Mesmo a deliberação por uma temática urbana que fosse a expressão da modernidade se vê ali mesclada com a mesmice sem ressonância de uma cidadezinha qualquer, propiciando desde já leituras infinitas do cotidiano. O moderno não perde sua condição de decadente e utópico, a um só tempo. E Drummond éabsolutamente moderno exatamente por isto.
Há, evidentemente, uma conexão ininterrupta que relaciona toda a obra de Drummond – inclusive a prosa –, que a unifica acima de todas as perspectivas de fragmentá-la em fases, em face do que tão bem observou Antonio Houaiss, de que se trata de toda uma vida, “inclusive no que esta encerra de defraudações e vacilações, de ilusões e decepções, de atritos e de lubricidades”. O biográfico, portanto, não é penoso, um embaraço a ser evitado, mas antes elemento fundamental para a concretização – e não planificação, programação – de uma obra. E este conflito nunca evitado, esta aceitação de um mundo encharcado de oscilações, relevante mais pelos erros do que pelos acertos, onde naturalmente a complexidade de linguagens que o evidenciem não se distingue do comportamento – seja individual ou social –, dos abismos dialéticos da presença do ser no tempo; este conflito que o poeta não dissocia de seus dissabores ou alegrias, da voracidade de suas leituras ou da intensidade colidente de seu viver; este conflito perene e abrangente que encontramos em toda a obra de Drummond é o que o torna o mais complexo e cristalino dos poetas brasileiros. E refiro-me a complexo no sentido de que não me parece tenha sido satisfatoriamente compreendida essa condição cósmica de sua poética – termo aqui entendido como algo comum a todos os homens, uma representação do mundo que o revele por inteiro em cada uma de suas partículas, em cada um de nós.
Carlos Drummond de Andrade era um poeta entranhado em seu próprio tempo e que a todo momento punha em risco tal conexão, certo – ao menos disto – de que a poesia, qualquer que seja a forma em que se manifeste, não tem por fundo senão a própria existência humana. Antonio Houaiss estabelece como nenhum outro crítico esta relação, ao dizer do autor de Claro enigma:
É poeta do seu tempo no fato de que a matéria-prima do cotidiano se lhe aflora a todo instante, não havendo como distinguir, quase sempre, o que é deliberadamente circunstancial – felizmente salvo nas duas violas-de-bolso – do que é o contingente temporal, como pressão motivadora imediata de certos instantes do seu poetar; é poeta do seu tempo no fato de que eleva ao ou insere no seu poetar todas as entidades do seu real objetivo e subjetivo, desclassificando (mas usando deles) os assuntos, motivos, temas, tópicos antes admitidos em poética, e classificando os até então proscritos, construindo assim um poliedro poético de milhares de faces, algumas muito iluminadas por retornos no seu fazer criador, sempre a uma nova luz; é poeta do seu tempo no fato de que é intrinsecamente avesso, impotente, a dissociar assuntos, motivos, temas, tópicos entre si ou uns dos outros; porque sua poesia, não sendo fazer poético intencionalmente de objetos que venham a funcionar por si mesmos como coisas com virtualidades própria ou auto-compensadas, reflete sempre um estar-no-mundo que se faz rejeitar-o-mundo para implicitamente propor-um-novo-mundo, estar-no-mundo que, mesmo quando atado a uma particularidade do mundo, é sempre, concomitantemente, uma antenação com todos os momentos e aspectos do mundo; […]
Este meter-se na matéria do mundo é o que torna Drummond ao menos o mais intrigante dos poetas brasileiros. Evidente que quando uma obra é tão abarcadora, dali se pode extrair hóstias para todo credo. Em língua portuguesa é o que ocorre com Fernando Pessoa, e a referência aqui não vai além do fato de que aspectos controversos, de vida e obra, nos dois autores, acabaram por gerar uma vastíssima proliferação de peritos que se empenham em refazer tudo, à sua maneira, desfigurando o objeto da vistoria e o reapresentando, na comarca em que agem, como um modelo novo, sempre curiosamente restritivo. Talvez por esta razão tenha se tornado um lugar-comum abordar a poética de Carlos Drummond de Andrade como um compósito de diversas fases.
Embora tenha rejeitado a vida inteira o epíteto de maior poeta brasileiro, esta era a consideração geral acerca de sua obra, condição estimada desde muito cedo e que levou Otto Lara Rezende a declarar que “só Machado de Assis terá tido no Brasil do passado uma presença tão intensa quanto foi, nesse século, a de Carlos Drummond de Andrade”. Ainda mais valiosa a abordagem de Luciana Stegagno-Picchio ao referir-se a ele como
um dos maiores poetas do Brasil: sem a inturgescência de Castro Alves, quotidiano como [Manuel] Bandeira mas sem o seu desprendimento sorridente, pessimista mas participante, esquivo mas humaníssimo; e com uma habilidade verbal, com uma sabedoria e criatividade poética só encontráveis contemporaneamente em poetas como João Cabral ou Murilo Mendes.
É fato que o poeta tornou-se paradigmático em muitas instâncias, não deixando de fora as injúrias relativas ao seu pessimismo, ao comportamento reservado, o que resultou em inúmeras críticas claramente oportunistas, quase que da mesma ordem dos elogios de ocasião. Paralelo a tudo isto, decorrências naturais na vida de um criador da importância de Drummond, crescia um prestígio internacional, verificado nas traduções, já nos anos 60, para idiomas como o alemão, o sueco, o inglês e o tcheco. Uma década antes o poeta já era traduzido para o espanhol, em antologias – coletivas e individuais – que circulavam em países como Argentina, Espanha, Bolívia e Chile. O cubano Helio Orovio, ao organizar e traduzir uma antologia da poesia brasileira do século XX, destacou:
Carlos Drummond de Andrade crea una poesía personalísima, que lo sitúa entre los más altos cultivadores del verso de este siglo, a escala mundial. Desde la aparición, en 1930, de su libro Alguma poesia, ha ido dando un testimonio admirable de su ser en el tiempo y el espacio, con evidentes referencias autobiográficas, en estilo desenfadado, y con inigualable energía verbal.
De regresso a esta zona de tensão entre épico e lírico – Fábio Lucas observa que, “para quem lê toda a obra de Drummond, sente nela um misto de canto épico com acento lírico” –, me parece interessante evocar algumas vozes na poesia hispano-americana em que se verifique o mesmo aspecto, e neste caso é oportuna a lembrança de nomes como Humberto Díaz-Casanueva (Chile, 1907-1992), Pablo Antonio Cuadra (Nicarágua, 1912-2002), e César Dávila Andrade (Equador, 1918-1967), todos eles, assim como o brasileiro, vozes fundamentais no descortinar e desdobrar-se do grande momento histórico das vanguardas no século XX. A exemplo de muitos de seus pares, e em consequência da própria época, estes poetas absorveram amplamente as tendências com que se expressava a vanguarda – Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo etc. –, cada um particularizando tal absorção sem submeter-se ao programa de nenhuma delas. É possível apontar preferências, afinidades, variações entre o declarado e o oculto, porém nunca sujeitar-lhes a obra a nenhum dos movimentos ou escolas. Menos cauteloso que Drummond na manifestação de suas identificações, o chileno Humberto Díaz-Casanueva jamais esquivou-se da revelação do impacto que lhe provocou, por exemplo, o Surrealismo. Sobre este poeta diria Fernand Verhesen:
Toda la poesía de Díaz-Casanueva oscila entre un desmantelamiento trágico, un impulso irresistible hacia la Nada[…] y al mismo tiempo, una creación constante del Ser. El poema es continuamente ruptura, dislocación, caída vertiginosa, sondeo de los orígenes, y ascención súbita, discontinua pero afirmativa, de la realidade del Ser, del devenir.
Seria certamente valioso um paralelo entre estes dois poetas a partir da interferência do biográfico na obra de cada um, o embate entre um subjetivismo extenuante e a busca da otridad, de uma voz comum a todos que possa expressar o drama humano, cuja resultante dá a ambos aquilo que Ana María del Re constata em relação à poesia do chileno: “hay que admitir sin reservas la complejidad formal y semántica de esta escritura, como también su densidad, rigor y trascendencia”. Igual tensão destaca Guillermo Sucre, referindo-se apenas a Díaz-Casanueva, ao situar “un continuo debate entre el poeta de la duda y la desolación […] y el poeta de la fe” – ainda que no caso de Drummond a fé tenha se mostrado sempre de forma retorcida. O lamentável é que não se disponha até o presente de estudos comparativos que avaliem a voltagem dialética vertiginosa nos dois poetas.
Dentro de um mesmo ambiente de absorção das experiências e derivações das vanguardas, mencionei o nicaraguense Pablo Antonio Cuadra e o equatoriano César Dávila Andrade, dois poetas imensamente distintos entre si, considerando que o primeiro encontrou forças interiores para resistir a todas as adversidades, enquanto que o segundo suicidou-se aos 49 anos de idade. Importa aqui, destacadamente, a maneira como lidaram com o mito, dentro dessa percussão constante de espectros de ordem lírica e épica. Seguindo as pistas deixadas por Platão, emFedon o del alma, de que o poeta deve “inventar mitos”, ambos se embrenharam no imaginário indígena que era a base da cultura de seus países. Sem discordar deles ou de Platão, Drummond tratou de mergulhar não em uma mitologia indígena mas sim no abismo profundamente indigesto da relação do homem com seu tempo, avançando em tal abismo a ponto de desmitificá-lo.
Em entrevista que fiz a Pablo Antonio Cuadra ele se refere em dois momentos a Drummond, inicialmente quando lhe indaguei acerca das razões que levaram não somente a sua obra mas praticamente de toda uma geração na Nicarágua a escapar a la fiebre política, al cáncer de un patriotismo rancio, de un didactismo sutil e inexpresivo, quando então me responde o poeta:
Creo que el hecho de coincidir la necesidad de crear una literatura nacional con la irresistible atracción cosmopolita de las vanguardias nos permitió un equilibrio entre la tentación de la caverna y la lontananza. Añadiría otro gran peso en la balanza: a pesar de nuestros ataques, éramos herederos de Darío, de su lección antiprovinciana de universalidad. Y otra importante ayuda: la ironía, ese alejamiento del poeta del poema que permite el humor. No en balde nuestra generación tuvo un genial maestro que cantó por todos nosotros, Drummond de Andrade: ¡Carlitos Chaplin!
Ao final desta mesma entrevista, Pablo Antonio Cuadra destaca a importância da obra de Drummond e indaga: “¿cuántas ediciones de su obra hay en español?” Por sua vez, porém igualmente em uma entrevista, Drummond menciona conversa que teve com Chico Buarque de Holanda e o então embaixador da Nicarágua no Brasil, onde este diplomata questionava o teor de uma crônica do poeta brasileiro, acusando-o de desconhecimento do que se passava naquele país centro-americano. Diz então Drummond:
Ah, tenha paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou partidário dos Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode negar que a Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde tenho amigo, o poeta Pablo Antonio Cuadra.
Mencionei aqui três importantes poetas hispano-americanos cuja obra foi cercada e provocada pelas múltiplas manifestações da vanguarda, atentando para o fato de que neles – e não somente neles, cabe acentuar – se verifica uma tensão instigante entre o épico e o lírico. Evidente que há efusões românticas, simbolistas, o falso brilho de algumas utopias, pretextos de toda ordem aproximam e afastam poéticas expressivas deste mesmo ambiente de vanguardas. Creio que inesgotáveis as possibilidades de leituras comparadas entre inúmeras vozes fundamentais deste momento. A referência de Carlos Drummond de Andrade ao nicaraguense foi praticamente a única que ele fez a algum poeta hispano-americano. Houve um incidente desprezível protagonizado pelo chileno Pablo Neruda (1904-1973) e a tentativa de encontro buscada pelo mexicano Octavio Paz (1914-1998), ao qual Drummond se esquivou. Resistiu ainda às insistências de seu genro, argentino, em propiciar um encontro seu com Jorge Luis Borges (1899-1986), por ocasião de algumas viagens de Drummond a Buenos Aires.
Se por um lado o nicaraguense está certo em indagar quantas edições em espanhol existem da poesia de Drummond, por outro lado podemos nós, brasileiros, indagar quantas edições existem, em brasileiro, da obra dos três poetas aqui referidos: Humberto Díaz-Casanueva, César Dávila Andrade e Pablo Antonio Cuadra. Esta ausência de diálogo é o aspecto mais preocupante e que seguramente hoje dificulta – ou quase impossibilita – uma relação mais amiga entre Brasil e América Hispânica em um momento político-econômico em que seguramente o destino dessas nações seria outro caso esta familiaridade cultural estivesse bem-sedimentada.
São relativamente poucas as traduções de Carlos Drummond de Andrade para o idioma espanhol. Não mais do que 20 antologias foram publicadas nos 19 países de fala hispânica do continente, o que é irrisório diante de quatro livros seus traduzidos para o holandês ou cinco para o sueco. Reflete sobretudo o abismo cultural que separa os nossos países, aspecto que sempre constituiu uma grande festa para os sucessivos governos estadunidenses que tão bem souberam – e seguem fazendo – explorar tamanho desatino cultural. Há antologias de Drummond em países como México, Cuba, Argentina, Peru, Bolívia, Venezuela, praticamente todas esgotadas, considerando época e tiragem. Mesmo avaliando e tratando de corrigir falhas de atualização bibliográfica, é ínfima a presença de Drummond no mundo referencial da literatura na América Hispânica, sendo ainda mais precária a presença de poetas hispano-americanos em um âmbito brasileiro.
Um de seus tradutores, o poeta argentino Rodolfo Alonso, gentilmente cedeu um testemunho crítico da poética de Drummond para a presente edição:
Capaz de ser al mismo tiempo absolutamente renovador y legítimamente nacional, en el mejor sentido, el modernismo brasileño constituye una prueba evidente de la originalidad de las vanguardias latinoamericanas, tantas veces acusadas de ser mero reflejo de recursos europeos. Y, con ser originalísima, la obra de Carlos Drummond de Andrade se vuelve también significativa en ese contexto modernista, del cual constituye muy probablemente el paradigma. Popular sin demagogia, discreta sin pavoneos, distante pero cálida, precisa sin frialdad, incluso en sus comienzos abiertamente comprometida pero con tal intensidad de vida y de lenguaje que sus poemas de ese tipo continúan en vigencia y conmoviéndonos, el desarrollo de la poesía de Drummond constituyó para nosotros, y especialmente para mí, una experiencia enriquecedora. Donde lo estético y lo humano se daban como evidencia viva, lograda, cabal, y al mismo tiempo temblorosamente inerme, transida, contagiosa.
Si pudo ofrecernos, en Procura da poesia, una lúcida, ejemplar arte poética, de luminosa inteligencia y contagiosa sensibilidad, capaz de precavernos contra toda demagogia, y que cada día cobra más justificadas dimensiones (especialmente en estos tiempos de ácida banalización y consiguiente aridez del lenguaje, inclusive cotidiano, asolado por los medios audiovisuales globalizados), ¿no es llamativo que haya logrado hacerlo después de su tocanteConsideração do poema, humanísima abertura con la que abre, en los duros y crueles años que fueron de 1943 a 1945, en plena lucha mundial contra el fascismo, nada menos que un libro que quiso llamar A rosa do povo?
Es la misma temblorosa precisión con que, como el torero a la hora de la verdad, en un golpe de gracia, culmina allí mismo ese otro poema imborrable:Passagem do ano, como si quisiera dar una demostración definitiva a aquel lúcido aserto de Huidobro (“el adjetivo, cuando no da vida, mata”), con estas palabras indelebles: “A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-repticia.” No sólo calidad literaria, ni mucho menos habilidad retórica, como se ve, sino precisamente lenguaje encarnado, belleza-verdad hecha voz, inflexión y sentido. Porque, como él mismo dijo, no se trata apenas de escribir bien, de tener buenos sentimientos o buenas razones sino de “ser hombre en el poema”, apenas, nada menos. Después de todo, aunque con sobria dignidad él haya aludido “razones de conciencia”, ¿no habrá sido asimismo por razones estéticas que, en 1975, Drummond rechazó el bien dotado Premio de Literatura de Brasília que celebraba el aniversario de la dictadura militar?
Rodolfo Alonso foi um dos integrantes do grupo Poesía-Buenos Aires, cuja revista homônima circulou por 30 números, de 1950 a 1960. Carlos Drummond de Andrade não somente esteve ali presente por duas vezes como também viu publicada uma breve mostra de sua poesia na coleção “Poetas del Siglo XX”, na tradução de Ramiro de Casasbellas, e emprestou o título de um de seus livros, Sentimento do mundo, para uma outra coleção da mesma editora. Em uma das aparições na revista, inclui-se uma nota de Edgar Bayley – também como Alonso, um dos companheiros do grupo que contava ainda com a presença de Jorge Enrique Móbili, Nicolas Espiro, Wolf Roitman e a figura central de Raúl Gustavo Aguirre –, em que o poeta argentino observa:
Drummond de Andrade ha sido conciente del proceso a que ha estado sometida la palabra en los últimos tiempos. Pero esa conciencia no ha sido en él un mero modo de estar à la page o de mostrarse falsamente avanzado. Ha constituido, por lo contrario, una forma de honda honestidad consigo mismo y con los demás, un deseo de evitar cualquier trampa o fraude, de verificar por sí mismo la calidad del vino antes de darlo a beber a los otros. Su búsqueda en las formas más densas y contemporáneas del verso es, antes que una renuncia a sí mismo y a la comunicación, una voluntad personalísima de expresión creadora. Recordemos de paso una vez más que el esfuerzo del poeta por renovar las formas expresivas sólo es válido en la medida en que logra organizar la materia verbal para ponerla en función de su experiencia humana. Es el grado y la trascendencia de su temblor, y no esta o aquella fórmula retórica lo que hace, en suma, su calidad y, por ende, su novedad.
Carlos Drummond de Andrade manteve durante toda a vida um vínculo intensamente estreito com a imprensa, não somente considerando o largo período em que atuou como cronista e mesmo na direção de redação de alguns jornais, mas tendo igualmente em conta um aspecto salientado por Fábio Lucas, de que praticamente a totalidade de sua obra “passou primeiramente pelo teste do periódico, somente se consolidando em livro posteriormente”. Apesar disto, criou-se um mito de rejeição de Drummond a dar entrevistas, um mito em grande parte alimentado pela frustração de quantos buscaram em vão entrevistá-lo. Para muitos ostentar uma entrevista com o poeta assume o caráter de um prêmio, e há registro de um caso extremo, um livro em que se menciona a existência de uma entrevista com Drummond quando na verdade o que se apresenta é uma brevíssima conversa por telefone em que o poeta gentilmente se declara proibido pela médica de qualquer esforço intelectual e até sugere à pretendente que entreviste um outro poeta, indicando-lhe o nome de Dante Milano (1899-1991).
Na penúltima década do século passado surgiram então inúmeras entrevistas com o poeta, e não por outra razão que a exigida pela Editora Record contratualmente, de que o mais novo escritor integrado à casa tivesse participação ativa na difusão da própria obra. Durante um curtíssimo período que vai de 1984 a 1987 – ano da morte do poeta – Drummond se expôs como uma figura pública sem reservas, embora salientasse o desconforto diante de situação que defendia como desnecessária, uma vez que sempre emitira opinião – através da crônica, do artigo e essencialmente da poesia – sobre o que julgava relevante, imperativo. Foi de uma generosidade impecável, diante do pouco consistente ideário de perguntas que lhe era destinado.
Recuemos um pouco no tempo, uma vez mais recorrendo à série de entrevistas radiofônicas que Carlos Drummond de Andrade concedeu, em 1955, à jornalista Lya Cavalcanti, aqui destacando uma passagem em que o poeta nos diz:
O jornalismo é escola de formação e de aperfeiçoamento para o escritor, isto é, para o indivíduo que sinta a compulsão de ser escritor. Ele ensina a concisão, a escolha das palavras, dá a noção do tamanho do texto, que não pode ser nem muito curto nem muito espichado. Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. Não admite preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. O texto precisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer. Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não tivesse a obrigação jornalística.
Inevitável a concordância com ele, ao mesmo tempo em que não se pode deixar de lamentar que a literatura não exerça igual influência sobre o jornalismo. Dentre as variadas entrevistas – mas quase sempre a mesma, graça à natureza das perguntas – que concedeu Carlos Drummond de Andrade, cumpre destacar aquelas que souberam extrair a clareza necessária sobre certos assuntos, a contundência cabal do pensamento do poeta, o envolvimento sem restrições no tratamento de alguns aspectos polêmicos. A primeira delas que merece destaque foi concedida a Zuenir Ventura e logo de início o poeta trata de desfazer a falsa ideia de que seja uma pessoa inacessível, recorrendo à sua atuação jornalística:
Tenho uma coluna onde, quando quero emitir uma opinião, emito. Ou uma conversa lírica ou um devaneio. Sou cronista de segundo caderno, mas, em meio às amenidades, me permito reclamar contra o excesso de generais que comandam o Brasil com o título de presidente da República, assim como me permito satirizar o Congresso quando, em vez de trabalhar e de reivindicar suas próprias prerrogativas, se torna um instrumento dócil ao governo.
Esta é uma entrevista em que a exterioridade conta mais do que os meandros da criação poética, não restando ao entrevistado senão ceder a seus caprichos. O cenário nacional estava então inteiramente a reboque da crise política, a passagem de um prolongado regime de exceção para um novo percurso civil sendo de forma quando menos extravagante arregimentada pelas forças armadas. Em momento algum o entrevistado se recusou a dizer o que pensa, destacando:
Não perdi a capacidade de indignação, mas ela está misturada com o ceticismo de quem não vê perspectiva de melhora nesses próximos tempos. Há um entusiasmo da mocidade, há desejo de fazer alguma coisa, mas a mocidade foi tão sacrificada nesses anos de revolução, os melhores foram destruídos: ou ficaram aterrorizados para o resto da vida, ou morreram fisicamente ou desapareceram. Houve um hiato na formação social do Brasil, houve uma geração que não pôde dizer a sua realidade.
Caberá a Edmilson Caminha realizar uma contundente entrevista com Carlos Drummond de Andrade em que aspectos, tanto no biográfico quanto de matiz estético, são tratados de forma apurada. O entrevistado revê assuntos imperativos em sua formação intelectual, discute a popularidade que lhe é conferida, traça abordagem forçosamente intransigente das condicionantes da crítica e da poesia que se praticava no Brasil, esclarece alguns tópicos controversos e já anotados em diário etc. Drummond sabia muito bem identificar oportunismos de toda ordem. Ao fazer uma leitura dos desdobramentos poéticos não via senão uma repetição já sem força alguma de atrito da influência dos “tiques do vanguardismo”, tema para o qual chamou a atenção sempre que possível, o que lhe rendeu antipatias e frustradas tentativas de cooptação, e que encontramos anotado em diário desde 1957, quando ali já observa com restrição a simpatia de Manuel Bandeira pelo Concretismo:
Nunca vi tanto esforço de teoria para justificar essa nova forma de primitivismo, transformando pobreza imaginativa em rigor de criação. Consideram-se esgotadas as possibilidades da poesia, tal como esta foi realizada até agora, quando infinitos são os recursos da linguagem à disposição do verso, e um criador como Guimarães Rosa efetua, paralelamente, a reinvenção contínua do vocabulário português. Por que os poetas não tentam um esforço nesse rumo?
No diálogo com Edmilson Caminha, Drummond discorre acerca de influências de maneira clara e despida de qualquer pudor, a começar pela referência direta a Machado de Assis (1839-1908):
Acho que devo a minha formação a Machado. Até hoje: quanto mais o leio, mais fico impressionado. Resolvo mesmo não ler Machado de Assis, leio quando me dá uma tentação. Mal eu começo a ler Machado e fico com a tendência de escrever o que ele escreveu, de imitá-lo… Quantas vezes, na minha crônica – que é esvoaçante, escrita sem nenhuma preparação, porque aquilo tem de ser entregue duas horas depois –, me surpreendo com tiques de linguagem, com jogos verbais de Machado… Ao lado disso tive influências variadas: li Flaubert, Fialho de Almeida, António Nobre, Cesário Verde… Gostei muito de Eça de Queiroz, adoro Eça. Acho que, na língua portuguesa, são os dois que mais me agradam, Machado e Eça. Outra influência minha foi Anatole France. Anatole era considerado um deus naquela época; depois passou de moda e agora ouço dizer que está sendo redescoberto. Mas Mário de Andrade me proibiu de ler Anatole, dizia nas cartas: “Deixa de ler esse sujeito, é um sacana!”.
Se por um lado considerava-se um profissional da crônica, era bem distinta a relação que mantinha com a poesia, e reflete prazerosamente sobre ela, anos depois, em diálogo com Gilberto Mansur:
Para mim, ela foi necessária e ainda é necessária, porque é uma atividade da minha vida, praticada por mim, sem interferência de ninguém. Ela não obedece a nenhuma interferência: eu não sou um profissional da poesia, eu convivo com ela por uma necessidade de expressão, até mesmo para fins terapêuticos, digamos: conflitos psicológicos, problemas, inquietações, dúvidas que eu tive… Então, eu acho que, na minha vida, a poesia foi uma espécie de terapia, porque eu tive uma infância mais ou menos insegura e uma mocidade também inquieta, e a resposta que eu procurei achar para os meus problemas foi esta: manifestar-me em versos, com a liberdade que o Modernismo estava assegurando. Porque, quando eu comecei, o Modernismo já tinha se manifestado. Então, eu tive assim uma certa liberdade, uma certa ausência de disciplina, que permitia me manifestar em verso de uma maneira não formal, uma maneira que não era a oficial existente no Brasil. Com isso, então, eu senti que à medida em que eu ia escrevendo, eu me sentia, não digo com os problemas resolvidos, mas me sentia um pouco aliviado.
[…]
Devo dizer que eu não tinha, realmente, preocupação literária, no sentido estrito de fazer uma obra literária, de ser um poeta com livro publicado. Tanto assim que eu só publiquei o meu primeiro livro com 20 anos de idade, não tive pressa disso. Eu acho que há uma diferença entre o literato, o escritor propriamente dito, que planeja uma obra escrita, que trabalha para ela, que se documenta, que se informa, que pesquisa para realizar determinados trabalhos, e a figura do poeta que eu fiquei sento, uma pessoa que se manifesta em versos, mas sem um programa.
Drummond dará valiosa sequência ao tema, três anos depois, em diálogo com Luiz Fernando Emediato:
A minha obra literária foi determinada pela circunstância de eu ser mineiro. Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração, onde a dificuldade de comunicação era maior do que em outras zonas do Estado. Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por necessidade e por contingência.
[…]
Uma grande parte da cultura que a pessoa absorve para uma carreira literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de fundo. Na realidade, a gente obedece a um impulso interior, à capacidade de imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos nos prender àquilo que lemos ou aprendemos não escreveríamos nada. Todas as obras-primas já foram escritas. O contemporâneo não conta, a meu ver.
[…]
Eu sou inteiramente partidário da ideia da inspiração. Seja banal, antiquado, mas sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A pessoa adquire a técnica de se comunicar e tem facilidade, como eu tenho, de escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem das entranhas da gente, isto é inspiração.
[…]
Quando eu estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação física, um certo ardor. (pausa) Não, não exageremos; também não é um estado de transe, de levitação. Mas sinto uma espécie de emoção particular que me impele a escrever. E isso me surge até em horas imprevistas, diante de um espetáculo, de uma criança dormindo na rua, um cachorro mexendo o rabo, uma moça. Qualquer destas coisas pode provocar na gente um estado poético. Ao lado disso, há o lado crítico, depois.
Por último, observando cronologicamente aquelas entrevistas mais relevantes, há o longo diálogo com Geneton Moraes Neto, que viria, ao lado de outros documentos fundamentais, a constituir um livro de indiscutível contribuição do jornalista ao conhecimento da obra e sobretudo do cidadão Carlos Drummond de Andrade. A entrevista foi dada poucos dias antes de sua morte. Nela vêm à tona os mesmos temas, reafirmados, e o poeta inclusive rememora a gênese do poema “No meio do caminho”, que tanta polêmica havia causado à época:
Minha intenção era fazer apenas um poema monótono – sobretudo monótono – e com poucas palavras. Um poema repetitivo. Um poema chato mesmo. Uma brincadeira. Não tinha intenção nem de fazer uma coisa que agredisse o gosto literário nem também uma coisa que permitisse uma revolução estilística. Muito menos tinha uma intenção filosófica aludindo a dificuldade que a vida pode oferecer à pessoa. Nada disso! Apenas o seguinte: fazer um poema com poucas palavras repetidas e bastante chato, bastante árido, bastante pedregoso. Uma brincadeira! Eu tinha vinte e poucos anos e nenhuma pretensão de fazer nada que pudesse irritar os outros. Era uma brincadeira, como a gente costuma fazer quando moço.
O essencial neste poema é a confirmação – melhor seria dizer antevisão, considerando que foi um de seus primeiros poemas – de que o humor é um dos traços mais altos da poética de Carlos Drummond de Andrade. A maneira como ironia e humor se mesclam com niilismo e ceticismo aponta na direção de uma linguagem corrosiva e de um caráter conflitante. A reflexão do poeta acerca da realidade à sua volta era arrancada do próprio convívio, em grande parte relutante, com esta mesma realidade – imagem que se dilata tanto na monotonia de uma “pedra no meio do caminho” quanto os versos com que abre um dos últimos poemas:
Sofrer é outro nome
do ato de viver.
Não há literatura
Esta intensidade do viver, refletida no poema tanto no risco da linguagem – a maneira como se fundem verso livre e verso medido – quanto na infiltração do biográfico – um biográfico sem artifício, cabe destacar – leva Mário de Andrade a observar, quando da publicação de Alguma poesia (1930) que Drummond parecia estar
apenas a dois passos do sobrerrealismo, ou pelo menos daquele lirismo alucinante, livre da inteligência, em que palavras e frases vivem duma vida sem dicionário quase, por assim dizer ininteligível, mas profunda, do mais íntimo do nosso ser, penetrando por assim dizer o impenetrável, a subconsciência, ou a inconsciência duma vez.
A percepção de um “lirismo alucinante” é deflagradora, naquele momento, de toda uma poética de Carlos Drummond de Andrade, e revela a ambiguidade em que mergulha – ou pela qual se vê acossado – o poeta na modernidade. Não à toa, um outro poeta, Mário Chamie, quando da publicação de Claro enigma(1962), observa que Drummond
está fora da disputa entre o inteligível e o sensível. O seu mundo é a ambiguidade direta das coisas e dos acontecimentos. A sua linguagem desenvolve a lição desses acontecimentos e dessas coisas.
A consciência de uma ambiguidade contagiava o poeta de certa tragicidade, ao ponto do Mário de Andrade lhe escrever o apontando como “o mais trágico dos nossos poetas, o único que me dá com toda a sua violência, a sensação e o sentimento do trágico”. Evidente que o sentido de trágico não dá à poesia de Drummond uma conotação dramática, grandiosa ou funesta. É trágica na medida em que aborda um conflito, uma impossibilidade de relação entre ser e tempo, porém sem exaltação, despida tanto do espetacular quanto da confiança na redenção da espécie humana por algum sistema filosófico. Em uma conversa com Lygia Fernandes diz que “a vida é bastante caótica, bastante imprevisível para ser regida por um princípio filosófico, por mais alto e perfeito que seja”, e conclui:
Havia um humorista brasileiro, aliás, secundário, mas que durante um certo tempo alcançou sucesso no Brasil. chamava-se Mendes Fradique. Era o autor de uma História do Brasil pelo Método Confuso. Tenho a impressão que um mundo confuso pede um método confuso. Talvez as pessoas se entendam melhor aderindo todas à confusão.
O humor em Carlos Drummond de Andrade foi ficando mais negro, mais implacável, na medida em que se intensificava o diálogo com o mundo, em que se opunham experiências vitais, em que se decepcionava com aspectos que interferiam tanto no biográfico quanto na visão de mundo. Ao publicar Sentimento do mundo (1940), é novamente Mário de Andrade que lhe faz observação valiosa:
O poeta não mudou, é o mesmo, mas as vicissitudes de sua vida, novos contatos e contágios, novas experiências, lhe acrescentaram ao ser agressivo, revoltado, acuado em seu individualismo irredutível, uma grandeza nova, o sofrimento pelos homens, o sentimento do mundo.
Uma vez mais a presença da ambiguidade, onde mesmo a sátira ou a zombaria relutam em descrer completamente no homem. Esta ambiguidade não pode ser jamais entendida como um sofisma, considerando a blague típica do Modernismo. A obra de Drummond não se subordina em momento algum aos tópicos manifestos do Modernismo, antes se apropria de alguns desses traços, por sincera identificação, e lhes dá uma dimensão outra. Mário de Andrade foi seguramente seu melhor leitor, embora o tenha acompanhado por bem pouco – morreu no mesmo ano da publicação de A rosa do povo (1945) –, ao perceber que o dilema fundamental de Drummond é que não conseguia transcender a si mesmo. Esta impossibilidade é a raiz de uma das poéticas mais contundentes do século XX.
A obra de Carlos Drummond de Andrade foi estraçalhada em fases com a única tentativa de melhor retê-la, uma débil prerrogativa da crítica acadêmica em sua impossibilidade de compreender o mundo em sua totalidade. Apontava-se um poeta ideólogo, outro de aprimorada artesania, um com inclinação memorialística, o devotado a um Eros isolado do mundo etc. Tipificar assim uma poética é como mostrar-se inapto a dialogar com ela, com os meandros da escrita, incluindo os interlúdios e contradições que também a definem. Há uma parcela da crítica que compartilha esse desdobrar em fases do poeta que não atenta para o fato de que o biográfico evolui. No caso de Drummond, evolui trazendo consigo a voragem de uma época bastante conturbada e as restrições do poeta a inúmeros aspectos, dentre eles, na medida que o tempo avança, a rejeição à figuração que lhe queriam impor, o que deixa claro ao dizer que
a maioria das pessoas que me consideram o maior poeta brasileiro não leu o que escrevi! Ouviu falar. Como acham que fulano de tal é o maior craque do futebol, o outro fulano é o maior compositor, o outro é o maior pintor, eu fiquei sento o maior poeta por um julgamento que não é um julgamento literário: é uma opinião transmitida socialmente, mas sem nenhuma ponderação crítica. Nunca me julguei nem julgo, e digo mais: não sei qual é o maior poeta brasileiro de hoje nem de ontem. Para mim, não há maiores poetas. Há poetas. E cada poeta é diferente dos outros. Se não for diferente e se não transmitir uma forma particular e uma maneira especial de sentir, ver e manifestar poesia, ele não é poeta.
Talvez se pudesse pensar em um sistema de fases abertas no tocante à poesia de Drummond, o emprego de um conceito que não faz parte da crítica literária, mas sim da físico-química, onde pormenores de fronteira dão passagem a outras investigações, experiências etc. Mesmo assim, este seria um expediente científico, em violento contraste com um poeta que esteve acima das vicissitudes de ocasião. Mesmo considerando pormenores temáticos e estilísticos acrescentados a cada livro, não eram pontos excludentes que lhe antecediam mas antes uma ampliação, o que é bastante comum em qualquer grande criador. Uma vez mais frisar este aspecto é reflexo unicamente do um vício de estima da poesia de Carlos Drummond de Andrade no Brasil, repetido à exaustão.
Recordemos, por último, uma deliciosa ponderação de Drummond acerca do poema longo, de que foi um dos máximos cultores no Brasil:
Confesso a você que tenho um certo fraco pelos poemas longos. Dizem – e eu acredito – que o poema deve ser curto. A música deve ser curta, tudo deve ser curto em arte para nos causar um impacto – e ficar a ressonância desse impacto na sensibilidade. Por outro lado, o poema longo tem um aspecto tentador para um poeta: sustentar a nota lírica ou a nota dramática por muito tempo. Você sabe que as tensões são rápidas, as grandes emoções são profundas e velozes; depois, ficam o cansaço, a tristeza, a melancolia, aquele fogo da paixão desapareceu. O poema longo oferece todas essas dificuldades, a ponto de alguns dos meus poemas longos serem divididos em partes, em blocos, porque a continuidade deles importaria uma certa monotonia. Eu subdivido o poema.
Parece aceitável extrapolar e inferir que o poeta igualmente subdividiu a própria existência, inserindo o biográfico na mesma e intensa relação de ressonância que separa o poema curto do longo. Para ele, o grande desafio não foi propriamente viver ou escrever, mas sim sustentar a nota – fusão plena do lírico com o dramático – de um eu retorcido, um eu sinceramente comovido e que, no dizer de Paulo Rónai, “carregava consigo uma sentença de origem desconhecida, que o condenava ao mesmo tempo à estranheza e a viver entre os homens”.
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Currículo em http://agulhafloriano.wix.com/florianomartins. Contato: floriano.agulha@gmail.com. Página ilustrada com obras de Silvia Westphalen (Peru), artista convidada deste número de ARC.
Agulha Revista de Cultura
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda. CNPJ 02.081.443/0001-80
|
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário