segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MATHEUS MARQUES NUNES | A linguagem, o mito e a paródia na obra O Equivocrata, de Raul Fiker





Analisar a obra O Equivocrata (uma reta de vista), do filósofo, tradutor e ficcionista Raul Fiker, nos fez observar algumas das dificuldades abordadas por certas narrativas não convencionais, principalmente, numa sociedade em que o ato da escrita foi completamente banalizado, em busca da tradução dos conflitos e dos paradoxos existenciais. 
Aliás, essa foi uma impressão muito forte que tivemos durante toda a leitura da obra de Fiker e que nos remeteu às discussões sobre a linguagem vanguardista (sobretudo Dada e Surrealista). Dada, como queremos destacar, não somente plantou a semente da dúvida, desconfiando de todas as aparências, de todas as máscaras sérias e demasiadamente morais, como também, pelo niilismo contido em suas manifestações iconoclastas, admitiu que tudo, afinal, poderia ser uma enorme farsa oculta pela cortina de um verbalismo gerador de belas superfícies, mas, no fundo, privadas de qualquer conteúdo suficientemente legítimo para preencher a sensação de vacuidade existencial. Por isso, o espaço em branco desempenhou um papel constituinte na apresentação gráfica dos seus manifestos. Neles as palavras eram dispostas numa dinâmica própria, sem qualquer ligação com os modelos tradicionais do texto poético, em tamanho e tipos de letra diferentes.
Vamos considerar, como segunda situação característica na utilização dos recursos criados para a prática de destruição, o caso do adjetivo e do substantivo. O primeiro deveria, mais do que simplesmente qualificar ou determinar o substantivo, desvendar outras dimensões metafóricas que, pela força da lógica do mercado, permaneciam totalmente esquecidas. Já o substantivo, de acordo com a crítica Dada, deixou de ser o centro organizador da linguagem, tornando-se apenas um entre os vários componentes do discurso, adquirindo, dessa maneira, outra conotação e possibilidade rítmica, facilitando combinações imaginativas, propiciadoras de signos revoltosos e imagens de puro escárnio contra todas as proibições da gramática.
Salientamos ainda que os dadaístas encetaram, por conta dessa ânsia destrutiva, uma radical rejeição contra a sintaxe e o vocabulário usados, correntemente, nas produções artísticas, jornalísticas e acadêmicas. Encontramos uma discussão similar a tal debate no escopo do Equivocrata, que definiu a linguagem como “uma família de fantasmas, as obras de construção da memória – labirinto – camuflagem - armadilha dela mesma”.
Como é possível observar tanto no Manifesto Surrealista (1924), como no Segundo Manifesto do Surrealismo (1930), o surrealismo também repudiou as palavras esvaziadas do poder de multiplicar os sentidos.
Elas deveriam, segundo a sua perspectiva, ser eliminadas da construção poética e substituídas por símbolos despidos de todas as prerrogativas que esses elementos, presumivelmente sagrados, ostentavam de forma impune:

O problema da ação social, faço questão de voltar a ele e insistir, não é senão uma das formas de um problema mais geral que o surrealismo acha de seu dever levantar, e que é o da expressão humana sob todas as suas formas. Quem diz expressão diz, para começar, linguagem. Não é de admirar que o surrealismo se tenha situado inicialmente quase só no plano da linguagem, nem que, ao voltar de qualquer incursão, volte para aí como que pelo prazer de se comportar como em terra conquistada [...]. As hordas das palavras literalmente desenfreadas, às quais Dada e o surrealismo fizeram questão de abrir as portas, haja o que houver, não são das que se retiram tão inutilmente. Elas penetrarão sem pressa, seguramente, nas pequenas cidades idiotas da literatura que ainda se ensina [...]. (BRETON, 1985, pp. 126,127; grifo do autor).

Ainda acerca do problema da linguagem e da fragmentação das relações sociais também devemos considerar o encontro com o rato no jardim da biblioteca municipal (trabalhado por Raul Fiker no capítulo intitulado “Hábito”) como um momento crucial. As interpretações possíveis do seu olhar humano, no amor, no homem de terno branco espremendo o rato (ele aparecerá novamente no elevador de São Simeão Estilita), nas tentativas de reconstituir o rato, nos fracassos de tal empreitada e naquela vontade de compartilhar, ao menos alguns fragmentos que conseguimos apreender na precariedade das relações que vivemos, com aqueles que nos rodeiam, constituem um quadro sugestivo para interpretarmos nosso desolado e atual cenário. Um relato, por outro lado, sobre tudo aquilo que nos dá força para as nossas empreitadas existenciais, mas sempre com um “canteiro” de distância e no fim a solidão diante do rato e das nossas tarefas inconclusas.
Percebemos, ao detalharmos tal temática presente no Equivocrata, o interessante diálogo estabelecido por Fiker com outros autores, também essenciais, para a compreensão dos problemas da linguagem, de relevantes aspectos da cultura moderna e da própria construção do discurso do autor. Autores como Marcel Proust, Samuel Beckett (principalmente o Beckett do Molloy), Allen Ginsberg, entre os surrealistas Robert Desnos (La Liberté ou L’Amour) e o Henry Miller foram citados ou incorporados no processo de criação do escritor. Denotando tais influências teríamos, por exemplo, a figura de “Endpeleuto O’Vascanton”, (o ”antigo pseudônimo irlandês, autor do texto desaparecido ‘O Fênix de lábios de Gangster’ recentemente encarcerado num presídio brasileiro...”) quando ele coloca o ato de escrever como: “querer dar vida a cadáveres irremediavelmente apodrecidos utilizando-se da morte mesma” uma nítida homenagem ao Beckett e ao Joyce e à Irlanda com sua cerveja Guinness e seu domínio da própria língua.
O que nos impressionou muitíssimo durante a leitura foi, nesse sentido, a enorme erudição do autor ao relacionar sua discussão a várias referências políticas, artísticas, míticas e filosóficas. Além daqueles anteriormente citados como influências básicas da obra, podemos destacar referências, pontuais, paródicas ou ainda de maior abrangência, como Wilde, Zola, Rimbaud, Dante, Cromwell, Stalin, Robespierre, Drieu de la Rochelle, Vico, Lenine, Debussy, Ray Coniff, Marduk, Sisífo, Ginsberg entre outras figuras significativas.


Percebemos algumas citações do Van Vogt no decorrer do texto. A ficção científica, assim como outras referencias que não são necessariamente literárias (como o encontro de Immanuel Kant, Joe Pimrose e Edward Hopper ou ainda a citação da cantora Bessie Smith), foi utilizada como um elemento de paródia pelo autor.
Salienta-se, neste sentido, a importância da paródia e a sua relação com o mito como um dos fundamentos para empreendermos a leitura desta obra. Tudo isto, considerando que outro relevante trabalho de Raul Fiker sobre o tema é o seu Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento (2000).
A paródia no Equivocrata parece, assim, cumprir um duplo papel. Inicialmente revelando e, posteriormente, anulado a partir da própria revelação feita, o que reforça ainda mais a ideia exposta no título da obra.
Portanto, o título, Equivocrata, relaciona-se diretamente com tal questão. Conceito encontrado também em Martin Heidegger, que o define como uma das manifestações essenciais, junto com a curiosidade e a tagarelice, da existência impessoal cotidiana (ABBAGNANO, 2000, p.340), e que parece se relacionar perfeitamente com o poder e o equivoco descritos no Equivocrata: tudo parece ser compreendido, apreendido e expresso com pureza e, no entanto, não é; ou então não parece, mas é. O equivoco ofereceria, assim, o que a curiosidade está buscando e à tagarelice, a ilusão de que com ela tudo se resolve. Existe, desse modo, todo um culto do equívoco pelo equívoco, do mal-entendido e também a partir desta premissa uma interessante conotação política. Quanto a uma reta de vista seria um "ponom o seu modelo original, apresentava-se, dessa maneira, cindida, em total oposição, por exemplo, a unidade apresentada pelo mito e também à fragmentação realizada pelo discurso ideológico que desagrega a realidade sem, contudo, oferecer uma interpretação alternativa a ela.
Assimilar estilos diferentes, misturar os gêneros indiscriminadamente, apropriar-se de elementos do mito já degradado e também de características temáticas de outros contextos históricos, como podemos observar inclusive em alguns dos procedimentos adotados pelo autor em certos momentos do livro, sem a necessidade de se vincular a um estilo ou a uma temática restritiva, são elementos peculiares na construção de todo o texto paródico.
Quanto ao mito e a sua relação com a paródia, é interessante notarmos que a paródia, durante a Idade Média, com a utilização periódica dos mitos acabava mantendo-os, de certa forma, vivos, ou seja, a dessacralização realizada por ela funcionava, dialeticamente, como uma maneira de preservar o caráter sagrado do mito:

[...] A festa dos Loucos, por exemplo, celebrada na época do Natal, parodiava todos os ritos e artigos da Igreja. Era eleito, entre o clero inferior, um senhor dos foliões, nomeado papa ou bispo dos loucos e vestido com roupas do avesso para então celebrar os ritos de forma burlesca entre canções obscenas e atos orgiásticos numa procissão que, saindo da igreja, alcançava a rua com os participantes nus, bebendo, dançando e jogando estrume contra a multidão. Os autores das paródias e participantes das festas eram, contudo, pessoas que aceitavam e serviam o culto com toda a sinceridade – aliás, só numa época de fé se tornam possíveis festas e paródias como estas que, em outro contexto, não fariam sentido. Por que, então, podia o divino ser parodiado pelos crentes sem ser posto em perigo como o era pelos satanistas e – com os jesuítas – pelos ameríndios? (FIKER, 2000, p. 135).

Outro importante exemplo de um procedimento análogo à paródia atualizando o mito pode ser encontrado quando analisamos a obra Ulisses de James Joyce. Nela, são descritas as jornadas de um homem comum, o senhor Leopold Bloom, pelas ruas de uma cidade provinciana, Dublin, em um dia como outro qualquer, 16 de junho de 1904, no entanto, inúmeros episódios, como o do ciclope num bar ou das sereias prostitutas, acabam, na verdade, nos remetendo ao mito original das viagens do herói Odisseus. O seu conturbado retorno para o lar é a paródia da epopeia de Ulisses voltando para sua Penélope. Assim, nosso herói perambula pela cidade, atormentado pela fome e a procura de alimento até chegar à taberna Burton. Ali a glutonaria corre solta, o que faz pensar no canibalismo dos lestrígones, aos quais os marinheiros de Ulisses serviriam de refeição:
to de vista" mais abrangente, pois uma linha é uma sucessão de pontos.
A revelação do texto visado, normalmente acontece através da exacerbação dos elementos mais característicos, mas, tal desvelar também pode ocorrer pelo deslocamento daqueles componentes mais vulneráveis, ou seja, levando o texto ao seu extremo ou simplesmente retirando-o do seu contexto original chegaríamos ao mesmo resultado.
Sabemos que a origem do termo paródia vem do grego e significa canto paralelo, pois, refere-se ao comentário da ação clássica pelo coro. Cada trilogia trágica era, de fato, seguida pela apresentação de um drama satírico, o que pode explicar o procedimento cômico-burlesco e também o seu caráter de reversão. Ela apresenta, além disso, duas possibilidades que se delinearam desde Grécia e de Roma antigas. Trata-se, em primeiro lugar, da reprodução da passagem de um autor no contexto de um tema que lhe é impróprio, humilhante e cômico, ou, em segundo lugar, da reprodução do estilo e do pensamento de um autor, exacerbando-se seus traços mais característicos (FIKER, 2000, p. 96).
Fica claro que ela caracteriza-se, normalmente, por seu efeito anárquico, por suas ações de questionamento e de promoção da destruição de elementos consagrados pela cultura como notamos no Equivocrata. Muito embora a paródia possa também assumir, em determinadas ocasiões, um papel de legitimação, através, por exemplo, da introdução da diferença na semelhança como uma nova informação, preservando, desta maneira, a força do texto original, Desse modo, somente em circunstâncias especiais, que não podem ser consideradas como momentos corriqueiros, é que a paródia, de acordo com Raul Fiker, preserva ao invés de questionar o discurso dominante (FIKER, 2000, p.119).
A construção paródica ocorre, de fato, pela inscrição de certa continuidade e, simultaneamente, pela manutenção de um distanciamento crítico essencial para a sua operação de formação de novos significados críticos: “Pode, com efeito, funcionar como força conservadora ao reter e escarnecer, simultaneamente, de outras formas estéticas; mas também é capaz de poder transformar, ao criar novas sínteses, como defendiam os formalistas russos” (HUTCHEON, 1996, p.32). Esta conjugação de procedimentos que enfatizam tanto a repetição como a diferença crítica, aliás, ideia que já está presente, como destacado anteriormente, na etimologia do termo, oferece elementos para compreendermos possíveis desdobramentos no Equivocrata.
Outra reflexão importante elaborada na obra de Fiker, e que se relaciona com a abordagem paródica, refere-se à questão temporal. Pois, a paródia utilizaria, como um dos seus recursos mais recorrentes e eficazes nas intervenções promovidas para o deslocamento da realidade, do anacronismo histórico, salientando, com isso, o seu caráter de discurso duplo ou de constituir um canto paralelo. Ela, juntamente c


Empoleirados nos tamboretes altos do bar, chapéus pendidos para trás, às mesas pedindo mais pão grátis, bebegulhando, glutonando molambos de comida empastada, os olhos esbugalhando, espremendo os bigodes molhados. Um jovem homem pálido de cara sebosa esfregava o seu copo faca garfo e colher com o guardanapo. Nova bateria de micróbios. Um homem com um babadouro manchado de bebé à volta dele despejava sopa gorgulhante pela goela. Um homem cuspindo no prato: cartilagem semimastigada: sem dentes para mascamascamascar isso. Costelas coriáceas grelhadas. Tragando para liquidar logo a coisa. Olhos mortiços de empilecado. Abocanhou mais do que pode mastigar. Sou como isso? Ver a nós mesmos com os outros nos vêem. Homem esfaimado, homem irritado. Trabalho de mandíbulas. Oh, não! Um osso! Aquele último rei pagão da Irlanda, Cormac, no poema da escola esganengasgou-se em Sletty ao sul de Boyne. Que é que ele estava comendo é o que me pergunto. Algo gulicioso. São Patrício converteu-o ao cristianismo. Não pôde engoli-lo todo, entretanto. (JOYCE, c1982, p. 129).

Reforçarmos que, ainda no Ulisses de James Joyce, talvez o exemplo mais conhecido e também citado da paródia elaborada no século XX, existem diversos paralelos carregados de ironia estabelecidos nesta obra. Assim, percebemos que a Odisséia, mesmo quando Molly/Penélope não permanece casta no seu quarto insular esperando o retorno do marido, foi constantemente parodiada, contudo, não escarnecida, pois, fornece, afinal, toda uma série de episódios, como a do Patriota/Ciclope, que serão moldados por Joyce em cenas memoráveis, transformando a literatura em algo capaz de (re) ordenar o universo.
Devemos ficar atentos, no entanto, para não confundirmos, como afirmou Fiker, tal procedimento com uma paródia corrosiva que a complementa e não faz referência ao texto original (FIKER, 2000, p. 137). Ela visa diretamente o clichê em suas múltiplas aparições, como ocorre, reiteradamente, com os exacerbados discursos de caráter patrióticos proferidos ao sabor de várias cervejas, um tipo de formulação realmente comum, tanto nos discursos científicos, como no político.
Quanto ao inusitado encontro citado anteriormente, poderemos destacar a questão, tanto da solidão, quanto da imobilidade. Os personagens de Hopper estão imóveisnão poderíamos imaginá-los antes ou depois do momento em que os observamos. Assim como para Kant o tempo éum componente a priori da sensibilidadepara Hopper também não há tempo.

Immanuel Kant, já com um bigode de mosqueteiro e extremado em seu gesticular feminino, no centro da Prússia, sapateando delicadamente sobre um canteiro de gerânios, está sobremaneira atento aos informes relativos a recentes descobertas no campo da zoologia que lhe são minuciosamente transmitidas pelo "crooner" Joe Primrose num de seus melhores momentos. A cena se é que se trata de algo assim – atrai a curiosidade (discreta) dos habitantes da região, comumente preocupados com intrincadíssimos problemas fronteiriços a ponto de deixarem definitivamente de amarrar os cordões de seus sapatos. Durante a preciosa troca de informações, Kant e Primrose estão atentos em relação a Edward Hopper, que oculto por trás de uns arbustos prussianos observa-os cuidadosamente, pensando em imobilizá-los, constantemente ciente de sua condição de variável. (FIKER, 2001)

Vale destacar novamente aqui as experiências vividas nas prisões enfrentadas por Fiker durante várias ocasiões na década de 1970. Situação tenebrosa, assim como no conto do São Simeão Estilita que conclui a sua obra, ou seja, tratava-se, como esperamos demonstrar com o desenvolvimento do nosso estudo, de reflexões acerca do espaço e sua relação de troca e ruptura com o tempo.
Com as imagens, evocadas por este São Simeão Estilita preso no elevador, também esbarramos numa oposição fundamental para o pensamento moderno: o mito e o tempo linear da história. Além dele, o “corsário na banheira”, fundando mundos imaginários e refugiando-se na natureza do seu mundo/banheira e no transcendente, em certos momentos esquizofrênico/paranoico, parece defender a supremacia daquela era do ouro, quando a consciência humana ainda não estava dividida entre o desenvolvimento histórico e a antecedente harmonia cósmica. No entanto, tudo se mostra ainda mais desesperador diante da fragmentação imposta por nossa sociedade e pelas suas relações lógicas e minuciosamente pertinentes que não interessam nem aos ascensoristas parisienses em Maio de 1968 ou àquele sujeito que não teve estrutura para ficar louco do lado de fora do hospício (FIKER, 2001).
Gostaríamos, finalmente, de ressaltar um trecho, encontrado no “Assassinato pelo próprio cadáver”, que parece importante para reforçar a importância de tal discussão: “eu me escolho como mediador entre a linguagem e o processo real e me proponho a cosmificar a caos a partir dos caos e a humanizar a vida a partir da vida” (FIKER, 2001).
A fragmentação promovida pelo e enfrentada pelo intelectual, alienado e ameaçado por incontáveis forças reacionárias e totalitárias presentes ao longo do século XX, armadas com as mais avançadas técnicas, como na situação vivida por vários artistas nos brutais expurgos stalinistas e em tantas outras repressões mais sutis, atesta essa constante ruptura entre linguagem e realidade; assim, à unidade do tempo mítico sobreveio a cisão do homem civilizado.
Devemos perceber, portanto, que a razão representou como pensamento e comportamento conceitual não somente um profundo conhecimento do real. Entretanto, ela precisaria ser compreendida como uma forma de exercer o poder e a dominação, pois, ao submeter casos particulares sob o império de suas leis necessárias e universais, o pensamento racional-científico, na verdade, tornou-se capaz de controlá-los. A construção da realidade tecnológica envolveria, por um lado, a instauração de um contínuo desenvolvimento da racionalidade científica, mas, como destacou Herbert Marcuse (1969), tal processo também acabaria tendo graves implicações de caráter político:

Em outras palavras, a tecnologia se tornou o grande veículo de espoliação – espoliação em sua forma mais madura e eficaz. A posição social do indivíduo e sua relação com os demais não apenas parecem determinadas por qualidades e leis objetivas, mas também essas leis e qualidades parecem perder seu caráter misterioso e incontrolável; aparecem como manifestações calculáveis da racionalidade (científica). O mundo tende a tornar-se o material da administração total, que absorve até os administradores. A teia da dominação tornou-se a teia da própria Razão, e esta sociedade está fatalmente emaranhada nela. E os modos transcendentais de pensar parece transcenderem a própria Razão. (MARCUSE, 1969, p. 162).

É nesse sentido que pretendemos incluir a concepção de Mircea Eliade, em seu Mito do Eterno Retorno, sobre a oposição entre o tempo cósmico (ahistórico) e o tempo linear (histórico), como um importante referencial para análises pertinentes ao tempo e espaço encontradas nas páginas da obra de Fiker. Em sua crítica, Mircea estabeleceu, aliás, a ideia de um desgaste que possa haver no homem histórico, e que o redirecione ao tempo primitivo, por isso mesmo ele afirmou no final da sua discussão acerca do desespero e da fé que:

No horizonte dos arquétipos e repetição, o terror da história, quando apareceu, podia ser suportado. Desde a “invenção” da fé, no sentido judeu-cristão da palavra ( = para Deus tudo é possível), o homem que tinha deixado o horizonte dos arquétipos e da repetição não pode mais defender-se contra aquele terror, exceto por intermédio da ideia de Deus. Na verdade, é apenas pela pressuposição da existência de Deus que ele, por um lado, conquista a liberdade (que lhe proporciona autonomia num Universo governado por leis, ou, em outras palavras, a “inauguração” de um modo de ser que é nono e único no Universo) e, por outro lado, a certeza de que as tragédias históricas têm um significado trans-histórico, mesmo que esse significado nem sempre seja visível para a humanidade em sua condição presente. Qualquer outra situação do homem moderno leva, no fim, ao desespero. É um desespero provocado não por seu próprio existencialismo humano, ma por sua presença num Universo histórico, em que quase toda a humanidade vive tomada de um terror continuo (ainda que não tenha consciência dele). (ELIADE, 1992, p. 137; aspas do autor).

 Pensamos, portanto, na perspectiva de abarcar aspectos como o tempo (in illo tempore), o espaço, o sagrado e a própria ideia do tempo perdido do Marcel Proust. Além da questão fundamental da linguagem, conforme elaborado ao longo de vários momentos do Equivocrata, existem vários trechos no livro (como o episódio da banheira e do corsário) sobre a questão do tempo/espaço e também uma indicação no livro que nos remete novamente ao filósofo Mircea Eliade e ao seu mito do eterno retorno:

Segundo Eliade a vivência do tempo pelo homem religioso das sociedades arcaicas e primitivas implica numa concepção cíclica, com repetições infindáveis de rituais que tornam o tempo reversível fazendo com que os rituantes sejam reportados às origens dos cosmos tornando-se contemporâneos dos deuses e fortificando-se e renascendo com um tempo novo ainda e forte (FIKER, 2001).

Em seguida, Raul Fiker ressalta também como o tempo e os rituais dessacralizados transformaram-se em nossa sociedade em simples repetições vazias. Tais ciclos, esvaziados de seu conteúdo sagrado, tornam-se algo terrível e desesperador, como, por exemplo, observamos nas concepções cíclicas do tempo dos gregos e dos hindus que “preso no vácuo da repetição e do eterno retorno do sempre idêntico fica na dependência do kshana, ‘o momento favorável’” (FIKER, 2001), ou seja, um tipo de tempo sagrado que permitiria a "saída do tempo".
Tal crise da tradicional concepção histórica legado pelo Iluminismo, aparente nas próprias contradições da modernidade, mostra-se, assim, presente nas imagens evocadas por Fiker e no seu diálogo com a tradição, com o sagrado, com aquilo que é atemporal e que resiste ao dinamismo histórico.
Interessante que, no mesmo capítulo “Hábito”, encontramos a descrição da cidade e dos seres, em três grandes grupos, que vivem nela: o primeiro seriam os habitantes (“isto é, aqueles cuja característica fundamental é preencherem a Cidade com seus corpos”). Depois teríamos as personagens que se comportam exatamente como os habitantes, porém, “com um pouco mais de furor nas atividades acima descritas, e é talvez isto o que os diferencie, no plano da observação, dos habitantes” e, por último, as pessoas, ínfima categoria perante os dois primeiros grupos. As pessoas, segundo opiniões do vulgo, nunca são vistas, no entanto, “sabe-se que o meio mais eficiente e mais empregado para um habitante transformar-se numa personagem é dirigir suas forças – ou pelo menos tornar a todos cientes disto – no sentido de tornar-se uma pessoa, apesar de poucos – ou ninguém – saberem exatamente quais são as características deste terceiro e último grupo de cuja existência física chega-se a duvidar”.
Diante de tal catálogo lembramos que o surrealista argentino Aldo Pellegrini afirmou, em certa ocasião, que toda a poesia sempre dispõe de “uma porta hermeticamente fechada para os imbecis” (PELLEGRINI, 1999, p.27). O “imbecil”, neste caso, pode ser definido, sucintamente, pelo seu traço mais característico, ou seja, por sua aspiração; trata-se, na verdade, de uma pretensão sistemática, por todas as manifestações do poder. O único valor admitido como sendo realmente importante, no seu tacanho universo de mesquinharias, seria o exercício do poder. Qualquer forma de autoridade, sendo assim, torna-se, por mais insignificante que possa ser considerada, um objeto avidamente desejado e disputado por toda a camarilha de ansiosos pretendentes ao trono da “imbecilidade”.
Dessa maneira, o desejo de dominação pelos “imbecis” apresenta um tom falso e artificial. Os esquemas ocos, por isso mesmo, substituem todo e qualquer tipo de experiência real. Eles esvaziam o mundo, apoiados no domínio e na confiança exercida sobre as grandes massas, de qualquer sentido não comercial, deixando apenas fragmentos de memória e a precariedade do instante. Além disso, os “imbecis” e todos os aspirantes ao estatuto de neófito participante da camarilha consomem incessantemente, para preencherem o vazio existencial, uma enorme quantidade de mercadorias. São capazes, na tentativa de continuar alimentando a sua ignorância e o seu conforto luxuoso, de apreciar até mesmo algo parecido com a poesia: “Nessa poesia que eles usam, a palavra e a imagem convertem-se em elementos decorativos e, desse modo, seu poder de incandescência é destruído. Assim é criada a chamada ‘poesia oficial’, poesia de lantejoulas, a poesia que soa oca” (PELLEGRINI, 1999, p.27).
A poesia, ainda de acordo com Pellegrini, teria, por outro lado, uma porta “aberta de par em par para os inocentes”. O inocente que, segundo a definição do pensador argentino, negaria o exercício do poder, justamente, por ser o portador, diferentemente da camarilha sedenta do sangue dos inocentes, todas as possibilidades abertas por aqueles que buscam trilhar o caminho filosófico e poético da verdade. Inocentes, portanto, seriam todos aqueles que sentem a coerção exercida pela sociedade como se fosse uma dor lancinante e que, mesmo assim, se movem num mundo ainda repleto de valores culturais.
O desejo de afirmar o seu ser, de contestar opiniões, de transformar as crenças mais arraigadas, de mudar tradições, enfim, a incontida vontade de liberdade frente a todas as convenções, são os elementos que definem esta atitude poética não oficial. A poesia, para os inocentes seria, assim, uma afirmação de tudo aquilo que o ser humano possuiria de mais autêntico, despertando, por isso mesmo, a cobiça dos desejosos “imbecis” que promovem a sua ‘poesia oficial’ na tentativa de alcançar certa dose de prestígio, absolutamente necessária aos seus negócios, e também como forma de obter, através da arte feita mercadoria, a mais-valia. Esta poesia feita para os inocentes, além disso, não poderia, em nenhum momento, ser conivente com tal projeto de aniquilamento da esfera cultural. Sua luta, entretanto, deveria ser contra as ameaças de manipulação sofridas pelo homem moderno e que aumentam com o processo de afirmação da civilização ocidental. Ela teria de aproveitar, desta maneira, todos os momentos de crise vivenciados pelo sujeito. A incerteza seria, justamente, aquele momento privilegiado para que a poesia conseguisse impedir os indivíduos de serem transformados em simples elementos da grande multidão domesticada ao estado de violência.
Dessa maneira, a linguagem poética e paródica, combateria o “imbecil” buscando na palavra não a mera expressão, porém, o seu valor originário. Tentaria recriar, na sua luta contra os preconceitos e a ignorância, aquele momento em que a palavra não era somente um signo, entretanto, parte mesmo da realidade. Ele não apenas expressaria a vida ao buscar a retomada deste encantamento mágico do verbo. Devemos, no entanto, compreender a poesia como uma forma de participar, efetivamente, da existência, tornando o mundo, novamente, habitável para todos os homens e não só para a camarilha de “imbecis”.
Assim, a porta da poesia impediria a entrada dos “imbecis” e ofereceria, por outro lado, livre passagem para todos os inocentes. Não devemos esquecer, portanto, que a maior oposição à imbecilidade seria a inocência.

REFERÊNCIAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRETON, A. Manifestos do Surrealismo. Tradução de Luís Forbes. Prefácio de Cláudio Willer, São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
ELIADE, M. Mito do Eterno Retorno. Trad. José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.
FIKER, R. O Equivocrata (uma reta de vista). Agulha revista de cultura. Fortaleza/São Paulo, n 13/14, junho/julho de 2001.
FIKER, Raul. Mito e paródia: entre a narrativa e o argumento. Araraquara: FCL/laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Perez. Lisboa: Edições 70, 1996.
JOYCE, J. Ulisses. Tradução de Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Editora Record, c1982.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1969.
PELLEGRINI, A. "Chama-se poesia tudo aquilo que fecha a porta aos imbecis".  In: Surrealismo e o novo mundo. Organizador: Robert Ponge, Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1999.

Matheus Marques Nunes (Brasil, 1975). Sociólogo, professor universitário. Contato: matheusmnunes@ig.com.br. Página ilustrada por Nelson de Paula (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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