segunda-feira, 24 de novembro de 2014

NANDO SOUZA | O legado da arte na obra de Gilberto Gomes





Gilberto Gomes, nascido em 1955 na Aparecida, São Paulo, e residente hoje de Guaratinguetá, acabou de ter um dos seus maiores reconhecimentos internacionais com a Medalha Olímpica recebida nas Olimpíadas de Londres de 2012 por conta do quadro "Spirit Olympic" do mesmo ano. Sua extensa obra é notória por passar pelos mais relevantes e importantes movimentos estéticos do século XIX e XX, sem esquecer de representar o homem do novo século e seus acontecimentos. Um especialista em desenhos de catedrais e monumentos históricos a bico de pena, também pinta sem grandes dificuldades quadros que se adequam ao figurativismo, abstracionismo e expressionismo. Sua formação é lapidada no final dos anos 60 e por toda a década de 70 por diversos artistas, sobretudo pelo pintor e escultor Teixeira Machado, de quem nutre muita admiração e faz questão de citar sempre. Além disso, teve uma certa carreira com a música, como deixou registrado nessa entrevista informal.Na obra de Gilberto Gomes, a diversidade de temas e técnicas garante um verdadeiro deslumbramento que percorre toda o legado da arte do século XX, e não raro ecoa para séculos ainda mais remotos, sem deixar de ter olhos para o futuro. Nesse diálogo, conversamos sobre sua carreira, arte e inspiração. [NS]

NS | Gilberto, você se lembra do nome do pequeno quadro que me presenteou? São três pequenos rostos, a cor dominante é o azul, deve fazer parte da sua série expressionista.

GG | “Máscaras” e é da série Expressionismo Azul!

NS | Adoro ela!

GG | Legal... gosto de seus poemas. Vá escrevendo e lance algo futuramente.

NS | Qual foi a última coisa que você pintou ou desenhou? Como ela surgiu?

GG | Eu poderia dizer que as obras mais recentes são os desenhos à bico de pena retratando Cachoeira, Bahia e Paraty, Rio. Em termos de pintura, a obra Spirit Olympic (premiada nas Olimpíadas de Londres) e as duas telas sobre o Futebol Brasileiro, ambas da Fase Expressionismo Azul. Surgiram da inspiração e longa meditação - coisa que sempre faço antes de pegar nas tintas.

NS | Essa inspiração sem dúvida deve ser a mesma que uso para escrever um poema e que todo artista se vê envolvido antes da criação, mas a meditação parece ser uma particularidade sua. Você está se referindo à reflexão interior?

GG | Exatamente, quando medito procuro resgatar do mais recôndito esconderijo da Alma, aquilo que sei que vai poder ajudar na elaboração da obra de arte! E para passar tudo isso para a tela basta um piscar de olhos!

NS | Então em vez de ser um fluxo de pensamentos ou uma introversão mental, seria um exercício mais espiritual.
GG | Claro, é a forma de nos relaxarmos para encontrar substâncias para enriquecer a obra e também buscar a essência daquilo que queremos! Ah, essa viagem ao recôndito é a referência que Picasso sugeria com o nome de inspiração. Buscar no fundo da Alma aquilo que vai dar à obra um peso especial!

NS | Quais são aqueles artistas que lhe são favoritos e aqueles que mais tem lhe intrigado ao longo dos tempos?

GG | Sempre apreciei os brasileiros Portinari, Antonio Parreiras, Di Cavalcante, mas aprecio também Monet, Dali, Picasso, Miguelangelo, Ticiano, Leonardo, Diego Rivera... Há de se pensar também que cada um deles nos intriga numa certa época, entende? 

NS | Existe uma grande diferença entre suas ilustrações e desenhos e os seus quadros mais expressionistas, certo? Há uma riqueza de detalhes e eu até ousaria dizer de perfeccionismo nas suas representações de catedrais e igrejas, principalmente naquelas da Bahia, respeitando uma estrutura bem definida, enquanto seus quadros expressionistas são mais libertários e quase cosmológicos. Às vezes fico pensando se isso não se deve ao fato de que no primeiro exemplo você parte de um "modelo" exterior, ou seja, as construções, enquanto que no segundo o material será mais abstrato, e talvez seja até mesmo os momentos em que você justamente faz essa viagem ao recôndito de si, como estamos falando...

GG | Perfeita sua reflexão....as coisas que existem, tipo construções arquitetônicas, devem ser elaboradas a rigor, pois são documentais, tal quando pintamos o retrato de alguém - que deve ser parecido, ao passo que as obras expressionistas caem na meditação e adquirem uma subjetividade maior! Portanto, são mais criativas que as documentais.

NS| E, da mesma forma, as técnicas também são diferentes, certo? Qual dos dois tipos você demorou mais tempo para se adequar?

GG | Praticamente as obras documentai são mais difíceis, pois requerem maior técnica e demoram mais! As outras aparecem num passe quase de mágica - isto devido ao conhecimento e a formação acadêmica. Já dizia o mestre Rescála, que quem aprende a pintar pelo acadêmico, pega rápido todas as outras correntes que surgem!

NS | Já que você tocou no nome de um dos seus mestres, poderia recordar um pouco de como foram seus primeiros anos e passos na arte.

GG | Comecei aos 13 anos no ateliê do Teixeira Machado e fiquei lá por 5 anos... Entre idas e vindas, estudei na APBA, São Paulo, depois no Rio de Janeiro e mais tarde na Bahia, frequentando os ateliês de Rescála, Carlos Bastos, Hansen e Carybé, sem contar os cursos de História da Arte na UEFS, com o Professor Ivo Vellame.

NS | Você me contou certa vez de suas experiências posteriores mais professionais, quando já estava mais maduro, e abriu seu próprio ateliê e também investiu na aprendizagem. Eu lembro que eu havia perguntado como você administrava o problema de ganhar a vida com arte. Conte um pouco disso também.

GG | Fazer arte vem da alma e ganhar dinheiro com ela é coisa do corpo. Por isso temos que ter inspiração e transpiração.  Pinto tudo, trabalho com encomendas, sou retratista, restaurador, faço consultoria de avaliação de obras de arte e dou aulas. E me sinto feliz e bem sucedido, pois se olhar para trás, verei muita gente que não conseguiu o que consegui com a minha arte. Tudo isso porque moramos e vivemos num país que é governado por cavalgaduras que não investem em seus artistas, nem em cultura e educação. Bom, em se tratando da minha trajetória profissional e artística,nos anos de 1970 a 1974, eu era Contrabaixista de Bandas aqui em minha cidade e atuávamos em várias cidades brasileiras. Cheguei a acompanhar vários cantores da MPB, dentre eles Mark Davis (Fábio Junior), Agnaldo Timóteo, Jair Rodrigues, Ângelo Máximo, Evaldo Braga, além de abrir shows das Bandas Pholhas e Os Incríveis. Ainda em 1974, toquei na Banda de Fauze Andare, onde ganhamos o Primeiro Lugar no Festival da MPB de Piracicaba – de âmbito Nacional. Mais tarde em Pouso Alegre – MG, também o Primeiro lugar – nível Estadual! Entre os anos de 1975 a 1977, era Professor do PRODESCA, em Cachoeira, Bahia, onde ministrava cursos de Desenho e Pintura, subsidiados pelo MEC, Funarte e Universidade Federal da Bahia. Ainda em Cachoeira, juntamente com um amigo, o poeta Ubiratan Chamusca (cunhado de Herberto Salles), montamos uma Granja, onde criávamos frangos de corte, além disso, ainda revendia café torrado. Tudo sempre paralelo a Arte, como uma forma de adquirir uma sobrevivência digna. Em 1977, em Feira de Santana, Bahia, fui desenhista da ETICOLA, considerada a maior gráfica de etiquetas e embalagens do Norte e Nordeste. Dessa época em diante montei um Atelier Escola, onde desenvolvia cursos de desenho, pintura, gravura e história da arte e que exerço até hoje, como uma forma também de obter rendas. Nos anos de 1980 a 1984, fui professor da Oficina de Artes da UEFS | Universidade Estadual de Feira de Santana. Como pôde ver, sempre tive que trabalhar, às vezes em outros segmentos.

NS | Gilberto, apesar de eu ser um zero à esquerda em se tratando de artes gráficas, temos paixões e aptidões parecidas, e sem dúvida, como ficou claro, a música é uma delas. Agora, como é o seu caso com o cinema?

GG | Eu tinha um curta metragem feito em Super 8 pelo Costa Pinto, com a participação de Glauber Rocha.... e no Rio conheço meu amigo Eduardo Coutinho.

NS | Onde está o filme em Super 8?

GG | Sumiu, infelizmente...

NS | Pena...

GG | Eu fui presidente do Foto Cine Clube da Bahia e lá conheci as "feras" da Bahia.... Adoro cinema, meu caro. Quero ver depois seu trabalho!

NS | Voltando aos nossos assuntos artísticos... O que vou dizer agora é uma dos assuntos que mais me tem perturbado ultimamente. Gostaria de saber da sua opinião. Eu sei muito bem o que você pensa a respeito de alguns pintores e sei que, sendo o bom pintor que você é, se identifica com Leonardo da Vinci. Mas o que pensa de Rafael? Estes dias, estive comparando alguns quadros deste gênio que admiro bastante e os quadros de outro talento da Renascença, o veneziano Carpaccio. A época era de centrar o Universo no homem que, finalmente, depois de séculos de "obscurantismo" medieval, se viu dono de si. Muito bem. Enquanto Rafael praticamente fazia "cartazes" desse Zeitgeist, como pode-se ver claramente no quadro Madona Sistina, Carpaccio se utilizava de meios muito mais pictóricos para representar essas inquietações que assaltavam o homem daquele tempo. Você não acredita que a arte precisa se dispor de seus próprios meios e expressões e que não necessariamente ela deve expressar ou ser mera intermediária de algum conceito ou ideologia prévia do artista? Digo isso também lembrando dos seus quadros mais sugestivos, como o A Conquista do Homem diante do Universo (1990), que gosto bastante porque não despejam conceitos ou informações explícitas no espectador. Parece que você se preocupou muito mais de se utilizar de recursos pictóricos. Creio que são nesses momentos em que a arte está mais glorificada.


GG | A Renascença (Renascimento da Arte) veio e foi criada para acabar de vez com o obscurantismo, falta de personalidade e conhecimentos técnicos da Arte, ou melhor, os artistas não conheciam quase nada, pintavam pura e simplesmente por intuição e não tinham noções de claro e escuro, volume, anatomia, perspectiva, etc....Tudo isso mudou com o Renascimento da Arte e despertou pintores magníficos na época e na minha opinião os dois maiores gênios foram Rafael Sanzio e Miguel Ângelo! Salvam-se porém, mais alguns outros, mas sabemos que existem muitos que não conseguiram absorver os conhecimentos e permaneceram na mediocridade. A arte, no entanto, sempre evolui.

NS | De Miguelangelo voce admira mais as pinturas ou as esculturas?

GG | As esculturas, claro, pois como pintor ele ainda poderia aprender e evoluir muito mais, conforme ele mesmo um dia citou que “uma vida só não basta para aprender a arte". E sabemos que quando o Papa Julião II o chamou para pintar a Capela de Sistina, ele mesmo respondeu ao Papa que não o faria pois não era pintor. Então Julião o ameaçou e ele para não sofrer consequências desagradáveis o fez...

NS | E não pintou tão mal assim, certo?!

GG | Claro que não, é genial, mas sabemos que se ele tivesse se dedicado na pintura o que dedicou às esculturas, seria um super pintor. Mas, de qualquer forma, dominava anatomia e tinha sua identidade, coisa que admiro nos artistas!

NS | Sei que você também já se aventurou na arte da escultura. Como você definiria a principal diferença entre o processo de criação entre pintura/desenho e escultura?

GG | O desenho é a base de tudo: é a partir dele que o artista se inicia no processo de criação. A pintura é mais difícil que a escultura, pois ela possui apenas um plano, enquanto que a escultura é holográfica, o que facilita, pois se tem vários cantos para trabalhar. Enfim, para se criar pintura ou escultura é preciso desenhar!

 NS | E voltando ao tema do papel da arte... Oscar Wilde dizia: arte pela arte, sem pretenções sociológicas ou de qualquer tipo, mas de uma forma ou de outra, a arte muitas vezes impulsiona o homem e o alimenta, como também pode inquietá-lo e incentivá-lo a alguma atitude, por mais que ela esteja calcada somente na beleza, não é mesmo? Uma obra de arte não é somente o resultado, o produto, do artista, mas também o princípio daquilo que pode surgir e repercutir no seu público.

GG | George Stiner dizia que o "homem é o produto do meio". Eu digo que a arte é produto do coração e da alma do artista, portanto conseguimos através dela mostrar nas obras aquilo que sentimos, se estamos tristes, alegres ou até apaixonados! Não existe arte feia e ela pode se espelhar em algo materialmente feio e se tornar bela - dizia Goya: "a beleza do feio"... Arte é pensamento, alma e coração!

NS | Gilberto, para encerrar: arte também pode ser sonho? Eu ando imerso em algumas obras de Jung. É inevitável não perguntar se você já desenhou alguma mandala e se seus sonhos não te influenciam como pintor. Além disso, pode parecer uma pergunta inútil, mas as cores costumam ser significativas nos seus sonhos ou elas são simplesmente normais?

GG | Jung é para mim um dos que me inspiram pela sua cabeça genial. Inclusive conheci Nise da Silveira, que foi sua aluna. A arte é baseada no sonho, mas não seria um sonho: é real. Quanto às cores, existem aquelas que nos despertam tanto para o fascínio quanto para a amargura! Mandalas nunca fiz e não gosto muito.

Nando Souza (Brasil, 1993). Reside em São Paulo, onde tem filmado curtas metragens e estudado saxofone. Colabora, desde 2011, para o E-Dicionário de Termos Literários (http://www.edtl.com.pt/) e escreve sobre cinema no Portal Cinezen Cultural (http://cinezencultural.com.br/site/). Entrevista realizada em julho de 2013, especialmente para esta edição. Contato: nando@inconnu.com.br. Página ilustrada com obras de Gilberto Gomes (Brasil).



Agulha Revista de Cultura
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