I | Em meados do século XVIII, um militar e inventor britânico,
o tenente Henry Shrapnel projetou uma curiosa munição de artilharia cuja
essência destrutiva não estava situada em sua capacidade explosiva ou de
impacto, mas na sua capacidade de impulsionar fragmentos menores à velocidade e
alcance superior aos das balas de fuzil correntes (cf. HAMILTON, 1915). A
explosão desse tipo de munição de artilharia impulsionava fragmentos e
estilhaços que atingiam as tropas inimigas como uma chuva de navalhas em
chamas. Adotada pelo exército britânico em 1808, a munição de artilharia shrapnel (o batismo deriva do nome de
seu criador) teve uma longa vida útil em termos militares, sendo ainda
utilizada no início da Primeira Guerra Mundial. [1] Essa forma de artilharia foi aposentada quando os fuzis, arma
essencial da infantaria desde o século XVI, ganhou novo impulso pela revolução
tecnológica imposta pelo fuzil de modelo Minié,
surgido em 1861 como substituição do mosquete convencional (cujo alcance
confiável não passava dos cem metros), arma que garantia tiros mortais a um
alcance acima dos 500 metros. A nova tecnologia em fuzil aposentou o canhão
como arma anti-pessoal, deslocando sua posição e função: foi para trás da linha
de frente, tornar-se arma de pressão e apoio. O poder explosivo desse tipo de
arma passou a ser valorizado, ao mesmo tempo que as linhas de frente ganhavam a
feição de No Man’s Land, um
território fantasma, desértico e desolado como as imagens usuais do Hades, recortado por trincheiras
subterrâneas nas quais os soldados permaneciam entocados boa parte do tempo
(cf. GOLDONI, 2012). Mas a herança da artilharia shrapnel se manteria, de certa forma, na estrutura das insidiosas
minas terrestres, imaginadas para atingir soldados inimigos (ou qualquer outro
ser) que estivesse caminhando a pé, para mutilá-lo com o máximo de eficácia.
Não
é preciso muito esforço para perceber que um artefato mortal mas complexo, um
obus de dois tempos que amplifica a explosão do projétil pela multiplicação de
pedaços mutilantes projetados, acabaria ganhando certa atenção de autores
interessados nos efeitos apocalípticos da guerra moderna. Podemos citar dois
desses autores, em campos políticos completamente opostos, que trataram do shrapnel em período histórico
relativamente próximo, o da Primeira Guerra Mundial: H. G. Wells e Ernst
Jünger. Wells menciona o artefato em pelo menos dois momentos: no conto “The
Land Ironclads” (1903) e no romance Kipps
(1905), centrando sua criação em ambos os casos na ideia paradoxal – logo
amplamente encampada pelos futuristas italianos – que a ruidosa batalha
constituiria uma espécie de sinfonia, na qual o ruído destrutivo e
apocalíptico, que atiça o pavor do soldado, constitui uma espécie de nova e
feroz harmonia: “Alguma coisa, vinda do alto, muito parecida com o impacto de
um acidente de trens chegou aos ouvidos de todos e a artilharia shrapnel explodiu sobre nós como uma
tempestade de granizo.” (WELLS, 1952) [2]
Já Jünger, menos horrorizado – mas igualmente fascinado – pela maquinaria
apocalíptica da guerra contemporânea, representa a guerra e os guerreiros
contemporâneos dentro de uma perspectiva próxima ao mito heroico, obliterando o
horror em termos individuais (o rosto
e o corpo, eventualmente mutilados, dos soldados) para se debruçar no deleite
da visão do horror topográfico, de
cidades calcinadas que se transformam, nas fotos aéreas do período, em
representações abstratas nada distantes da pintura não figurativa de vanguarda
contemporânea da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro “anti-mundo” no qual a
figura humana se acha ausente (cf. OCAÑA, 2002). Nesse sentido quase
ornamental, a munição shrapnel surge
com frequência, despertando um universo de sensações sinestésicas e percepções
atrozes (ao corpo humano), mas esteticamente relevantes: “De tempos em tempos,
subia uma lufada de fumaça de um obus, impulsionada para o ar como que por uma
mão fantasma; ou a bola de um shrapnel
pairava sobre a terra de ninguém como um floco de neve gigante, desfazendo-se
lentamente.” (JÜNGER, 2004). [3]
Nessas visões iniciais, o shrapnel
surge como uma peça de um intrincado quebra-cabeça de maquinaria bélica,
destrutiva: os dois autores, exemplos paradigmáticos e influentes, buscavam
refletir a partir dos fatos da guerra, buscando ainda algo como um elemento de
reconhecimento, uma forma de entendimento (muitas vezes ideológica e política
tanto quanto estética).
Essa
busca, contudo, não implicava em mimetizar algo do funcionamento de tal
maquinaria destrutiva, no qual o shrapnel
ocupava uma estranha posição de destaque em termos estéticos e funcionais. Para
mimetizar o shrapnel e não apenas
desenhá-lo em uma paisagem, seria necessário absorver algo de seu
funcionamento: a atomização, o funcionamento em dois estágios, o impacto que
atinge de uma forma ou de outra o que esteja ao redor de seu raio de ação. Não
seria absurdo afirmar que, enquanto testava – dizem que às próprias expensas –
seu novo armamento, na segunda metade para o final do século XVIII,
desenvolvia-se ao mesmo tempo uma percepção narrativa da realidade com
elementos análogos. O processo de fragmentação e atomização da narrativa deu
passos importantes nesse mesmo período, ainda que exilado ao experimento
radical demais para o grande público, objeto extremo de experiência guardado
por seus autores para o momento em que o impacto direto de sua estratégia fosse
melhor aceito.
II | Uma aproximação entre o artefato bélico e tecnológico e
elementos da Cultura, como fizemos em um momento inicial, com certeza agradaria
J. G. Ballard, um autor profundamente interessado em tornar seus textos artefatos e artigos científicos,
demonstrando simultaneamente o esvaziamento dos discursos civilizacionais da
Ciência, da Técnica, da Cultura. Mas, colocando de lado efeitos retóricos, a
analogia entre um tipo peculiar de artilharia de fragmentação e a construção
narrativa que valoriza processos de atomização, serialização e separação não
pode ser considerada absurda. Na verdade, o que aproxima esses artefatos de destruição de novas invenções
em termos narrativos é justamente o período em que se desenvolveram: entre 1766
e 1772 Horace Walpole, inaugurador do gótico com sua novela The Castle of Otranto (1764), elaboraria
as enigmáticas narrativas de Hieroglyphic
Tales. [4] Embora os contos que
compõem o livro possuem certa, por assim dizer, uniformidade, a base absurda
das tramas diz respeito mais imediatamente a um princípio central nos processos
de fragmentação narrativa: o non sequitur,
a construção não linear que segue um procedimento sequencial que sugere a livre
associação de partes heteróclitas. Observemos a abertura do primeiro conto, “A
New Arabian Night Entertainment”:
No sopé da montanha Hirgonqúu está
situada desde tempos antigos o reino de Larbidel. Os geógrafos, que não estão
aptos a este tipo de comparação, dizem que este se assemelha a uma bola de
futebol a ponto de ser chutada. O que ocorreu, pois a montanha chutou o reino
para o mar e não mais se ouviu falar dele. (WALPOLE, 2004)
Os
nomes estranhos acentuam um clima de irrealidade, mas nada prepara o leitor
para a concretização de uma metáfora absurda anunciada, nem para um final tão
abrupto de uma trama que se delineia pelo clichê da apresentação lendária de um
reino. Contudo, as tramas diversas que constam do livro avançam na produção de
efeitos diversos advindos da fragmentação do tecido narrativo. Nesse sentido, o
último conto, batizado singelamente “A true Love Story”, é exemplar: espécie de
ilusão de ótica narrativa, truque de espelhos ou de lanterna mágica,
divertimentos que o abastado e bem relacionado Walpole provavelmente conheceu.
A trama novamente principia pelo engano da percepção esperada pelo leitor
através de uma associação metanarrativa: o conflito entre grupos políticos e
famílias nas complicadas relações entre as cidades italianas no período de
Dante. Em conjunto com o título, essa evocação traz à mente do leitor as
paradigmáticas tramas amorosas que empregam tal cenário: Romeo e Julieta, Dante
e Beatriz. Surge então o casal do conto – Orondates de Milão e Azora,
aparentemente uma escrava africana – possuidor de uma ressonância dos casais
associados (como os shakespearianos Romeu e Julieta), que parecem jovens,
apaixonados, ambos filhos adotados, separados por um complexo e infeliz jogo de
conveniências da sociedade. O jogo prossegue até o climático final da trama,
quando nos é informado que os dois jovens são na verdade dois cães de raças
diferentes, um galgo italiano (Orondates) e uma cocker spaniel preta
(Azora) (cf. WALPOLE, 2004). É bem verdade que o conjunto das Hieroglyphic Tales de Walpole teve uma
série de influências decisivas – críticos enumeram, entre outras, As mil e uma noites, Decamerão, Gargantua e Pantagruel, Tristam
Shandy e Rasselas, a história do
príncipe da Abissínia (cf. GIOIA, 2014). Também não está inteiramente distante
da verdade a afirmação de que os contos de Hieroglyphic
Tales, como o restante da produção literária de Walpole, não passou de uma
distração de um cortesão e colecionador de antiguidades, uma consequência
parcialmente casual dos gostos de um confesso diletante (cf. CUENCA, 2005). Mas
é inegável a originalidade se não da estratégia de construção narrativa de
Walpole, ao menos da forma como ele a aplica para a construção de universos
absurdos que, contudo, ainda se entrelaçavam com os contextos usuais das tramas
romanceadas por elos metalinguísticos e metanarrativos. Da mesma forma, o autor
percebeu como essa aplicação valorizava o efeito grotesco, irônico e satírico,
gerando um desconforto no leitor (ao qual resta a opção de exilar os deletérios
efeitos da narrativa atomizada ao campo do sonho/delírio).
Contudo,
Hieroglyphic Tales não representou
nenhuma revolução direta uma vez que foi publicada, de fato, muito tempo depois
de sua feitura e mesmo da morte do autor. Contudo, não era apenas Walpole quem
intuía os novos caminhos possíveis do fracionamento narrativo: igualmente
voltado à sátira, William Blake escreveria, entre 1784 e 1788, um romance
marcado pela percepção narrativa não-linear e absurda. O romance não foi
terminado – sequer possuía título – e, como a coletânea de contos de Walpole,
não seria publicado ou conhecido de forma integral antes do século XX, quando
ganhou o título Uma ilha na Lua,
“retirado da frase de abertura pelos primeiros editores, uma vez que William
Blake parece não lhe ter atribuído qualquer designação” (PORTELA, 1996). Blake
apresenta nessa narrativa sem título ou término um universo às avessas: o
círculo de amigos de Blake que se reunia periodicamente na casa de Anthony
Stephen Matthews para discutir tópicos filosóficos diversos, do progresso da
Educação aos novos caminhos da Ciência. Esses tópicos são todos ridicularizados
por Blake em sua fantasia, discutidos por personagens que são reconfigurações
de seus colegas de discussão, refletindo sobre os problemas de uma ilha
imaginária, um duplo da Inglaterra, proposta que surge logo na abertura da
narrativa:
Fica na Lua uma certa ilha junto a um
grande continente, ilha essa que parece ter uma certa afinidade com a
Inglaterra, &, o que é mais extraordinário, os seus habitantes têm uma tal
parecença, & a sua língua uma tal semelhança, que qualquer um pensaria
estar entre os seus conterrâneos. (BLAKE, 1996)
O
tom satírico aproxima a fábula de Blake dos contos enigmáticos de Walpole: [5] trata-se de construções satíricas,
cuja função seria a destruição de perspectivas da realidade utilizando
distorções e estilizações dessa mesma realidade (a Europa e a Inglaterra no
final do século XVIII). No caso de Blake, a própria Inglaterra ganha um duplo
lunar, que ganha corpo por processos de associação diretos, alegóricos e livres
– o que novamente aproxima Walpole de Blake. A associação torna-se um processo
chave na construção de uma narrativa fragmentária: a maneira como os fragmentos
se organizam faz com que a trama adquira uma tonalidade mais ou menos radical e
atomizada. Tais esforços pioneiros, contudo, acabaram esquecidos por décadas,
ignorados por seus criadores e situados de modo geral à margem dos processos
miméticos e de construção da narrativa e só seriam recuperados pelas vanguardas
no início do século XX.
III | As experiências de fragmentação narrativa entre as mais
radicais, como a de Walpole e a de Blake, terminaram abandonadas por seus
criadores como “excentricidade”, “curiosidade” ou teste de possibilidades. Tais
autores pressentiam que projetar a realidade em um espelho fragmentado era
potencialmente danoso para eles mesmos – como a artilharia fragmentária, que
uma vez detonada expande seus estilhaços para todos os lados possíveis,
atingindo todos que estejam a seu alcance. Tendo em vista essa nova imagem,
nossa aproximação da munição e certo formato narrativo torna-se menos forçado,
aproximando-se mais da noção de um objeto análogo, encontrado – como nas
complexas permutações estabelecidas no conhecido jogo adotado pelos
surrealistas: o objet trouvé. Ou
seja, segundo Dali (em texto publicado no periódico Le surrealisme au service de la révolution # 6): “Esses objetos, os
quais estão adaptados a funções mecânicas mínimas, são baseados em fantasmas e
representações capazes de serem provocadas pela realização de ações
inconscientes.” (DALI apud BROTCHIE;
GOODWIN, 1995). Através de processos de construção poética e narrativa
centrados no acaso e em desencadeamentos pulsionais, as vanguardas do início do
século XX retomaram a fragmentação da narrativa, desenvolvendo novas
possibilidades de relações livres entre os fragmentos, novas opções à ordenação
causal das partes e do todo. Curiosamente, esse processo – que não significou
retomada ou mesmo inauguração de novas tradições ex nihilo, mas apropriações, estilizações, trabalho lúdico – não
esteve limitado aos usuais centros de Cultura do Ocidente, eclodindo em autores
e grupos situados em localidades culturalmente “periféricas” que descobriam na
poética fragmentária novas possibilidades de criação. Esse foi o caso, por
exemplo, do escritor argentino Macedonio Fernández (1874-1952), um dos mestres
de Jorge Luis Borges, em narrativas inclassificáveis como Papeles de Recienvenido (1929), da qual reproduzimos um trecho, a
seguir:
Um momento, querido leitor: por ora, não
escrevo nada. Estou calado para meditar a respeito de um telegrama que leio em
‘La Prensa’ e que me assegura que não foi destruída por uma explosão a cidade
próspera e antiga de Muchagente Vielemenschen, apenas levemente avariada,
tampouco que se houvesse explosões de gigantescos arsenais que melhorassem as
casas da cidade, esta seria uma delas. Faz uns três dias que a cidade voou – à
tarde, a metade já havia reaparecido e com a outra metade ou duas metades a
mais que se encontravam intactas ontem, o resultado é que cem por cento das
quatro partes desfrutam da ordem estabelecida e possuem hoje mais metades que
antes. Os mortos pela explosão têm de novo aonde viver e acredito que até
existem mais casas: talvez uma para mim e outra para o correspondente dos
telegramas
(FERNÁNDEZ, 2014).
Os
fragmentos usados por Macedonio Fernández têm sua origem na cidade e em
elementos urbanos criados pela narrativa, trabalhados de forma matemática, num
jogo de subdivisões que leva ao absurdo.
De
forma semelhante, o grupo de surrealistas romenos, articulado por Dolfi Trost e
Gherasim Luca em torno da editora Les Éditions de l'Oubli, buscavam construções
narrativas que ressoavam em estranhos objetos/formas/representações e
vice-versa: “As nove ilustrações do texto, chamadas grafomanias entópticas,
resultam da ação recíproca do automatismo e do acaso. Pertencem aos processos
que, negando toda a construção artística, confundem a imagem final com a
operação necessária à sua própria produção.” (TROST, 1945). As vanguardas –
como movimento ou em propostas de autores individuais – descobriam, portanto, a
fragmentação como uma opção que ultrapassava a realização excêntrica ou a
função satírica. A atomização da realidade, embora ainda inquietante, já não
surgia como uma possibilidade tão destrutiva: na verdade, entendia-se que os
processos de criação artística empregados pelos grupos de vanguarda, ainda que
muitas vezes fracionadores, descobriam uma nova realidade (ou várias delas) e
buscavam novas sínteses, uma unidade mais complexa: “Nos acusam de fazer
‘cinematografia’, uma acusação que nos faz rir por ser vulgarmente imbecil. Nós
não subdividimos imagens visuais: buscamos uma configuração, ou melhor, uma
forma única que possa contrapor um novo conceito de continuidade ao velho
conceito de (sub)divisão.” (BOCCIONI apud
CHESSA, 2012). Esta é a percepção do pintor futurista Boccioni, que se
aplicava ao campo específico da criação visual e pictórica, o qual podia ser
facilmente ampliado ao universo da narrativa, que buscava o mesmo aspecto de
superação complexa tanto de formas unitárias do passado, vistas como
problemáticas, como o efeito superficial da fragmentação, que tanta perturbação
causou em autores como Walpole e Blake. Nesse sentido, os jogos surrealistas – objet trouvé, cadavre exquis, escrita automática, etc. – surgiam como
metodologias sistemáticas para a desmontagem da solidez aparente da realidade
cotidiana. [6]
O
processo de fragmentação da narrativa, espelhando uma realidade igualmente
quebrada em pedaços, persiste após a Segunda Guerra Mundial como uma retomada
e/ou reformulação de certas estratégias surrealistas. Nesse mesmo período, por
outro lado, passada a euforia subversiva que alimentava as vanguardas, via-se
com mais gravidade que o usual os processos de fragmentação no campo da
cultura: percebia-se, nestes, certo tom apocalíptico, não mais uma superação de
dicotomias, mas uma desintegração, mesmo mutilação da própria realidade e de
suas representações. [7] Quando o
escritor norte-americano, associado aos poetas Beats, William S. Burroughs e autores franceses como Alain
Robbe-Grillet retomaram as táticas surrealistas, com leituras novas, para
compor um processo de construção narrativa cíclico e fragmentário, navegavam
novamente por águas perigosas, escandalosas, obscenas.
IV | Uma das mais conhecidas afirmações do escritor William S.
Burroughs diz que a linguagem seria um vírus do espaço sideral, cuja ação nos
corpos seria devastadora, mutagênica e deformadora. Essa ação desagregadora da
linguagem não pode ser captada pelos recursos usuais de expressão da linguagem
e da narrativa, que estariam de certa forma dentro do “jogo” esperado da doença
(ou dos alienígenas, seus inoculadores). Melhor exprimir esse novo estatuto
linguístico através de um fluxo fragmentário de textos compostos por colagem:
“Wittgenstein disse: ‘Nenhuma preposição pode conter a si mesma como argumento’
= A única coisa não pré-gravada em um
universo pré-gravado é a própria pré-gravação o que quer dizer que qualquer gravação contém um fator
aleatório.” (BURROUGHS, 1994). Os fluxos da realidade revelam-se miragens, cuja
revelação exige a sucessão de choques
e a desarticulação do encadeamento lógico tradicional – mas a promessa e a
esperança de uma síntese, a superação possível acalentada pelas vanguardas,
perdeu-se no processo. Após a Segunda Guerra Mundial, o painel da narrativa
fragmentária retorna, de certa forma, ao contexto do final do século XVIII:
surge como um reflexo perigoso e destrutivo de uma realidade temível. A
metodologia surge como resposta, forma de articulação de sentido em um universo
que carece de sentido: “Toda a escrita é, de fato, cut up. Uma colagem de palavras ouvidas por alto. O que mais? O uso
de tesouras torna o processo explícito e sujeito a ampliação e variação.”
(BURROUGHS, 2014). A divisão dos elementos do mundo e das palavras que a eles
se referem surge, na poética de Burroughs, como uma forma de libertação
messiânica, política e artística do homem. Burroughs parece não perceber que a
técnica cut up apenas oblitera o jogo
do acaso, nem que nossos primeiros exemplos paradigmáticos (Walpole e Blake)
pareciam ter consciência de que esta (técnica cut up) estava associada a outras formas poéticas e narrativas do
passado. Burroughs oblitera essa herança,
optando pelas táticas de choque herdadas da modernidade ao colocar a colagem
como um processo evolutivo, um salto de um ponto menos complexo a outro,
qualitativamente superior.
Talvez
um dos melhores exemplos da aplicação metodológica de Burroughs seja sua novela
The Wild Boys: A Book of the Dead,
publicada inicialmente pela Grove Press em 1971. Nesta obra há uma nítida
alternância entre a metodologia cut up
e momentos narrativos e reflexivos de estrutura relativamente convencional.
Burroughs, à época, residia em Londres e desenvolveu alguns projetos multimídia
com artistas ingleses, ao mesmo tempo em que utilizava a fascinante imagerie das culturas pré-colombianas,
já que era assíduo visitante do Museu Britânico para extensas pesquisas. [8] O fascinante universo histórico e
ritualístico dos povos pré-colombianos, que fora poeticamente recuperado ainda
no século XIX pelo poeta brasileiro Sousândrade no épico O guesa (1871) ganhou uma nova valorização na obra de B. Traven,
pseudônimo de misterioso autor, provavelmente de origem alemã, cujas narrativas
se centram em aventuras de tipos saídos de romances noir nas áridas paisagens mexicanas, nas quais soçobram diante de
uma cultura complexa e milenar. Esse é o caso da narrativa “O visitante
noturno”, em que um protagonista, provavelmente norte-americano, descobre uma
biblioteca de raros livros e manuscritos sobre os povos (astecas e chimichecas)
de uma árida e inóspita região mexicana. Os códices, ricamente ilustrados,
acabam por levar tal protagonista a um estado alucinatório no qual se dá o
encontro com deuses e seres da mitologia local, que embebiam mesmo a paisagem
natural: “A mata era como um monstro enorme de cujas garras eu não seria capaz
de escapar.” (TRAVEN, 2008). Não por acaso as aventuras de Traven por esse
universo entre o sonho e o delírio teriam um farto desdobramento inclusive
cinematográfico graças à adaptação cinematográfica de John Huston para o
romance de Traven The Treasure of Sierra
Madre (O tesouro de Sierra Madre, 1948). Burroughs muito provavelmente
conhecia essas obras e seu autor, como é possível inferir a partir de um trecho
de The Wild Boys: “Xolotl, eu tive um
sonho e meu amigo Xolotl sorria sobre a garganta do vidente Xolotl minhas
pernas em cima dele e Xolotl se debatendo no céu.” (BURROUGHS, 2008). B. Traven
também exerceu influência em outro autor que adotou a poética da fragmentação
como arma para a construção de uma narrativa que se coloca como uma espécie de
ataque aos padrões estabelecidos: J. G. Ballard, em The Atrocity Exhibition também recuperaria aquele autor. Para
construir seu “personagem T”, sempre se modificando ao longo da trama, Ballard
se lembraria da bem-sucedida maneira como Traven conseguiu manter sua
identidade eludida:
A identidade central é Traven, um nome
escolhido conscientemente de B. Traven, um escritor que eu sempre admirei por
ser extremamente recluso – tão completamente que se colocava em contradição com
nossa própria época, na qual o conceito de privacidade é construído a partir de
materiais que circulam publicamente. Agora é praticamente impossível ser nós
mesmos exceto nos termos do mundo. (BALLARD, 2006).
Em
The Wild Boys, temos fragmentos
atrozes que se direcionam a um grupo de guerrilheiros dispersos por localidades
fora do eixo central da civilização do Ocidente, com a intenção de libertar tal
eixo da “máquina policial”:
Unidades de guerrilha formaram no México
e nas Américas Central e do Sul um exército de libertação para libertar os
Estados Unidos. No Norte da África e de Tanger a Tombuctu unidades semelhantes
preparam a libertação da Europa Ocidental e do Reino Unido. A despeito de
diferenças de metas e do pessoal engajado, a clandestinidade concorda em seus
objetivos básicos. Desejamos marchar sobre a máquina policial em todos os
lugares. (BURROUGHS,
2008).
Os
episódios se sucedem, alternando a luta dos wild
boys, descrições de eventos dos marginalizados no México e em outras regiões,
aventuras homossexuais e descrições na nova utopia selvagem projetada no
romance. Esse último item, definido com mais clareza nos capítulos finais da
trama retalhada, é fascinante – guerreiros perfeitos, os garotos selvagens
constituiriam uma sociedade erótica na qual as mulheres, [9] a velhice e a morte seriam completamente excluídas, preservando
nos corpos seminus dos guerreiros jovens as promessas de uma violenta
existência transformada. O último aspecto mencionado da utopia dos garotos
selvagens, a superação da morte, talvez seja dos mais fascinantes uma vez que
parece moldado pelas ficções de horror pulp.
Uma complicada mescla de ritual orgástico e tecnologia surge para a produção
daquilo que Burroughs chama zimbu, um
moribundo cuja alma é separada do corpo para tratamento de suas feridas. Quando
a alma volta ao corpo do zimbu, uma
festa orgástica marca o rito de iniciação do novo nascimento: “O pôr do Sol
banhava os esguios corpos de luminosidade vermelha enquanto os garotos se
preparavam para a desejada orgia.” (BURROUGHS, 2008). O próprio nome zimbu possui certa ressonância africana
em sua sonoridade, embora surja como um jogo de palavras com a expressão
“zumbi” (em inglês, “zombie”), o cadáver que caminha, morto-vivo que surge na
literatura popular como resultado de experiências científicas e/ou de alguma
maldição divina para perseguir e destruir a sociedade estabelecida pela
replicação de si mesmo e pela devoração dos vivos, seus inimigos –
transforma-se em arquétipo de renascimento espiritual. Assim, o plano
imaginário se funde ao plano da política real
e a estética pulp fornece elementos
para novas utopias selvagens, plenas de ironia e contradição.
A
atomização da narrativa na composição ao acaso de suas partes, entretanto,
retomada por Burroughs com fervor não seria a única técnica surrealista
influente após a Segunda Guerra Mundial: o fascínio pelo mundo do objeto e pela
repetição cíclica ritualizada ganhariam novo impulso com o movimento nouveau roman. Para autores como Alain
Robbe-Grillet ou Jean Ricardou, o universo se desdobra em repetições não
exatamente idênticas: uma miniatura de brinquedo pode ressurgir como uma
fortaleza cheia de soldados no Oriente; um manequim transforma-se em diversas
mulheres possíveis; um encontro fortuito transforma-se em assalto sexual; uma
cena de violência transforma-se em uma cena de violência ritual sadomasoquista
antes de voltar a ser uma cena de violência. Nesses processos sucessivos de
retomadas e reconfigurações, os personagens perdem elementos que os caracterizavam,
nomes, traços psicológicos e mesmo a forma de seus corpos surge e desaparece ao
sabor das sucessivas repetições, como uma materialização menos da ideia do
eterno retorno de Nietzsche e mais das múltiplas repetições do planeta Terra (e
do universo) imaginadas por Louis-Auguste Blanqui: “Assim, graças a seu
planeta, cada homem possui durante sua existência um número infinito de duplos
que vivem sua vida de forma absolutamente idêntica a ele mesmo.” (BLANQUI,
2000). A percepção de Blanqui ressurge no contexto da construção de um romance
que girava em torno de possibilidades de leitura, concretização e descrição de
elementos/objetos, cujos fantasmas que povoam o mundo tornam-se a referência
decisiva, pois o que se buscava era uma “escrita sem álibi, sem ressonância,
sem profundidade, mantendo-se na superfície, examinando sem ênfase, não
favorecendo nenhuma qualidade às custas de outra” (BARTHES, 1994). A narrativa
assim age diretamente sobre o objeto, mas não exercendo uma pressão excessiva,
que ultrapasse as instâncias descritivas. Cada reconfiguração, cada nova
evocação da coisa em Robbe-Grillet
significa a recriação de um pequeno universo detalhado. Como no caso do
agressivo uso da metodologia da colagem em Burroughs, a ritualização do ciclo
em Robbe-Grillet visa uma realidade na qual objetos, ambientes e pessoas
situam-se em relações intercambiáveis, tornando-se facilmente elementos
descartáveis, eventualmente decorativos, de um cenário. Mas isso não quer dizer
que um Robbe-Grillet pretendia expor, apenas,
a crítica à reificação, em chave marxista, pois o autor projeta ao leitor certo
deleite diante dessa objetivação
universal, dessa violência repetida em um corpo (feminino) tornado objeto,
retomando a antiga matriz erótica sadeana atualizada para o contexto após a
Segunda Guerra Mundial.
Como
no caso de Burroughs, autores do nouveau
roman, como Robbe-Grillet, entendiam sua criação em termos amplos, como uma
libertação ou uma quebra de paradigma: “Substituir essa ideia geradora de
cronologia contínua e dirigida para um fim [...] é uma tarefa tão urgente e tão
penosa como a de substituir os valores burgueses decadentes.” (ROBBE-GRILLET,
1974). Assim, na visão de Robbe-Grillet, uma visão mais engajada seria um projeto, como um esquema para a construção
de um edifício ou o material que antecipa o que se espera de uma pesquisa, de
um texto, de um romance. Em 1970, lançaria seu Projet pour une révolution à New York, aludindo já no título ao que
pretendia, tendo em vista a cidade mais importante do país que, envolvido em
uma longa e cruel guerra no Vietnã, tornava-se o alvo primordial de uma certa consciência crítica.
Mas a cidade de Nova Iorque que surge no romance não é, evidentemente, uma
reprodução mimética da cidade mais populosa dos EUA, mas uma evocação dela
através de índices pontuais: as escadarias de incêndio externas em ziguezague,
o metrô lotado de pessoas e anúncios, os subúrbios socialmente degradados, a
narrativa noir, as tramas de
espionagem, a violência aleatória de gangs
e indivíduos, a tensão racial, a distopia. [10] Trata-se de uma Nova Iorque de abstração, portanto; quanto à revolução, surge fantasmagórica em
alguns momentos do livro: “o crime perfeito (...) seria a defloração operada à
força em uma garota virgem, escolhida de preferência com pele leitosa e cabelos
muito louros, a vítima sendo em seguida imolada por eventração ou degolamento”
(ROBBE-GRILLET, 1974). Trata-se de um fetiche sexual ritualizado que o autor,
ironicamente, oferece como forma de
libertação. A revolução em Robbe-Grillet é a execução de um crime que segue
certas formalidades e teatralidade, como aqueles perpetrados pelos celerados de
Sade, mas sem o peso concreto da representação – afinal, os magistrados, padres
e burgueses que abusam de Justine, em
Sade, são personagens construídos com elementos que os distinguem uns dos
outros, o que aliás vale para a própria vítima, Justine, cujo otimismo e boa
consciência diante do Mal a associam à senda de personagens como Candide, de
Voltaire. Robbe-Grillet anula os procedimentos que tornariam vítima e carrasco,
observador e voyeur, categorias
distintivas realizando um processo que aproxima, da perspectiva do leitor, o
ato violento de seus objetos e de seu efeito erótico: “Contudo, não pode se
tratar de um interrogatório; a boca, com efeito, que conserva longo tempo a
mesma posição muito aberta, deve, sobretudo, achar-se distendida por uma
espécie de mordaça” (ROBBE-GRILLET, 1974). O universo circular de Robbe-Grillet
substitui a percepção histórica pelo tempo cíclico do ritual, o que talvez
explique a tentação permanente que o cinema exerceu para esse autor: os
fotogramas, isolados ou em movimento, possibilitam a captura perfeita, em um
pequeno e controlado microcosmo, de personagens, cenário e objetos em um todo
encenado como um jogo violento/erótico pronto a ser repetido quantas vezes o
observador/autor quiser.
V | Herdeiro das duas tendências, J. G. Ballard em The Atrocity Exhibition (1970) coloca-se
como uma espécie de ponto de convergência tanto da percepção agressiva de acaso
e montagem de Burroughs, quanto das repetições ritualizadas de Robbe-Grillet.
Ballard, por outro lado, realiza com o conjunto de “novelas condensadas” que constitui
tal livro um movimento curioso: autor associado a um gênero de literatura de
massa (a ficção científica) que ao transcender estilisticamente esse gênero
acaba por projetá-lo para novas possibilidades. Contudo, o projeto de narrativa
fragmentária ballardiana representa um momento de mudança nessa forma de
construção: o momento da dúvida. Situando The
Atrocity Exhibition em um ponto central de sua produção literária, Ballard
jamais retoma – diferentemente de Burroughs e Robbe-Grillet – a produção de novelas
tão radicalmente vanguardistas, embora tenha realizado sucessivas revisões do
texto original nas edições posteriores. No acervo da British Library há uma
demonstração clara dessa preocupação: trata-se da edição de The Atrocity Exhibition lançada pela
RE/Search em 1990 com correções manuscritas do próprio Ballard (manuscrito Add
Ms 88938/3/7/3). Devemos frisar, aqui, que a edição luxuosa, ilustrada, já
recebera um tratamento informativo por parte do autor na forma de numerosas
notas ao final de cada um dos capítulos. Assim, temos intervenções pontuais e
de linguagem valorizando a síntese e suprimindo elementos que o autor via como
prolixos. Mas, algumas vezes, o corte histórico, a necessidade de situar
novamente a narrativa aos leitores de uma geração mais nova e mesmo o abandono
de provocações norteiam as correções. Um exemplo claro disso ocorre na correção
do fragmento “Tallis became increasingly obsessed”, localizado no capítulo 14,
“Why I Want to Fuck Ronald Reagan”. Na correção feita por Ballard – depois
adotada nas novas edições do livro –
suprime o trecho final do primeiro parágrafo do fragmento, entre parênteses:
“(ef., anal-sadistic fantasies in deprived children induced by rectal
stimulation)”, como um complemento do trecho, todo desenvolvido em um jargão
irônico, vagamente psicanalítico, a respeito de fantasias sexuais relacionadas
a campos de concentração. [11]
Nota-se, nesse sentido, uma tentativa de situar os termos com mais clareza, de
neutralizar ambiguidades, de centralizar a mensagem
da narrativa dentro de uma chave interpretativa que evite a leitura que o
autor talvez considerasse dúbia. Mas tais intervenções, por outro lado,
demonstram certa insegurança do autor com a forma
trabalhada, como bem percebe Philip Tew: “Contudo, as intervenções em forma
de anotações minam a lógica estética original de Ballard, de uma imperfeita
desordem e de uma desintegração formal que agora exigem tais coordenadas de
localização e contextualizações detalhadas.” (TEW, 2012). Com todas essas
devidas explicações, The Atrocity
Exhibition pode integrar o fluxo de obras do autor, aninhar-se no fundo
biográfico e estabelecer relações claras com outras obras ballardianas tanto
para o scholar quanto para o fã
egresso da ficção científica.
Nesse
sentido, talvez seja importante voltarmos à imagem encontrada que utilizamos ao
longo deste texto: a munição shrapnel.
Existe toda uma vasta literatura a respeito de bombas e demais artefatos de
destruição que constituem quase uma semiologia dessas armas tenebrosas, mas
fascinantes, que despontaram como estrategicamente fundamentais na Primeira
Guerra Mundial. Nesse sentido, houve levantamento, análise e reflexão
(filosófica, poética, narrativa) a partir de boa parte dos aspectos desse
produto inevitável do avanço da técnica e das necessidades políticas da guerra
moderna. Assim, em obras como Nada de
novo no front (1929), de Erich Maria Remarque, há um longo trecho sobre os
diferentes ruídos produzidos por bombas e munição de artilharia antes de
atingir seus alvos. O próprio J. G. Ballard, em seu romance de ficção
autobiográfica Empire of the Sun
(1984), trabalha elementos como cockpits
de aviões destruídos e bombardeios norte-americanos a bases japonesas em termos
próximos ao mito fundador. [12]
Outro exemplo possível encontra-se no filme A
Espinha do Diabo (El espinazo del
diablo, 2001), de Guillermo del Toro, no qual uma bomba, lançada pelos
aviões da Legião Condor franquista, repousa parcialmente enterrada no solo em
que caiu, bem no meio do pátio de um orfanato situado em região fiel à
República espanhola. Trata-se de uma imagem poderosa: a enorme e fálica bomba,
decorada com fitas nas cores da luta anti-franquista, circundada por crianças
que escutam, por vezes (seria realidade ou alucinação?) o tiquetaquear do
mecanismo interno ao artefato, indicação de que o detonador poderia ainda estar
funcional, promessa de destruição constante de tudo e todos por ali. [13] A bomba surge, nos dois contextos
que elegemos como exemplares, como objeto de metamorfose, antecipação, mudança
angustiante: ela existe em um contexto dado (uma carga explosiva, carregada por
certa distância dentro de um invólucro metálico, detonada a partir de um
mecanismo inexorável e irreversível) apenas para se transformar em um elemento
quase imaterial, o fogo e o choque resultante de sua detonação. Nesse sentido,
o artefato shrapnel e seus herdeiros,
as munições de fragmentação, aparecem como perfeitas antíteses: são bombas falsas, pois embora destas conservem a
“aparência”, passam por um processo mais intrincado de transformação. Pois há a
fragmentação – a explosão, momento ejaculatório de volúpia destrutiva e de
transformação usual do artefato explosivo, é neutralizada pela necessidade da
divisão em pedaços menores, eficazes para abater o maior número de seres vivos
ao redor do epicentro da detonação. Algo da artilharia e da bomba sobrevive na
topografia destroçada do campo de batalha, nas crateras e edifícios calcinados,
uma mensagem codificada em índices da intensidade do bombardeio. O artefato shrapnel não obedece essa lógica: os
fragmentos por ele gerados são de tamanhos e formas múltiplas e é impossível
evocar algo de sua forma (peso, dimensão, capacidade destrutiva) apenas
contemplando o espetáculo dos corpos mutilados após seu uso. É como se esse
tipo de fragmento, resultado de uma explosão menor e calculada, não pudesse
mais ser recuperado pela totalidade anterior do invólucro metálico.
As
questões evocadas no parágrafo acima são importantes pois sinalizam com clareza
que a narrativa atomizada que vemos em The
Atrocity Exhibition é, de todas as apresentadas até aqui, aquela que mais
se aproxima desse estranho aparato de destruição que é a artilharia shrapnel exatamente pela opção por um
processo de fragmentação irrecuperável, que não se refaz como uma totalidade
possível, ainda que distorcida ou deslocada. [14] Nas narrativas de Burroughs e de Robbe-Grillet, com todo o uso
sistemático e experimental do fragmento e mesmo da colagem aleatória dentro do
processo de criação de uma trama ou de subtramas, há um todo discernível ao
final, uma possibilidade de recuperação de certa totalidade narrativa a partir
de seus elementos esparsos e dispersos. Existe, em Burroughs, certa evocação
constante da utopia/distopia política, representada pelo aspecto cíclico das
civilizações pré-colombianas retomadas como fantasia homossexual pelos “garotos
selvagens” em luta anti-imperialista. Robbe-Grillet, por sua vez, enfatiza a
perversão sadomasoquista em tramas de contínuas repetições, minimamente
diferentes umas das outras mas que ainda constituem um evento narrativamente
organizado.
The Atrocity Exhibition não possui nenhuma
dessas naturezas reestruturantes, pois não há um foco constante e uniformizante
para a diversidade das micronarrativas, como podemos ver na ilustração a
seguir:
Na
imagem, podemos ver como em certa continuidade abstrata e indeterminada surgem
esses pedaços de intensidade narrativa e poética que são os fragmentos de The Atrocity Exhibition. Contudo, essa
linha incerta e pontilhada não seria uma continuidade? Qual seria sua natureza?
Poderíamos determinar o pontilhado como sendo o tempo morto, ou apocalíptico, em que se situam as narrativas
fragmentadas, um tempo simultaneamente abstrato e concreto, uma vez que situado
na memória da mesma forma que nos textos “neutros” da Ciência e nas matérias
informativas, mas eventualmente carregadas de mentiras e manipulações que
obtemos das mídias. Trata-se do passado (as memórias de “Jim” de suas terríveis
experiências de guerra, com certeza, mas também a mescla desses horrores com
aqueles mais recentes, das guerras coloniais) mas também do presente, da Guerra
do Vietnã e das possibilidades destrutivas e/ou distópicas da Ciência. Há,
nessa condensação de pequenas tramas, listagens e comparações disparatadas (ao
modo inaugurado por autores como Lautréamont ainda no século XIX e eleito como
método preferencial dos surrealistas); fragmentos de ficção autobiográfica
(que, contudo, não foi lida dessa forma quando da primeira edição, no início
dos anos 1970, embora o foco autobiográfico dos fragmentos de The Atrocity Exhibition ganhassem relevo
a partir da publicação de Empire of The
Sun, nos anos 1980); pedaços de ficção em forma poética; há discursos
publicitários e/ou científicos subvertidos pela ironia, de modo semelhante ao
realizado por Swift no século XVIII; pensamentos, máximas e reflexões esparsas
sobre a Arte no século XX. Essa massa de partes e peças móveis constitui um
labirinto, no qual ainda se exerce, de forma moderada e planejada, elementos de
colagem burroughsiana (essencialmente na arbitrariedade alucinante das listas
criadas por Ballard) e da repetição cíclica do nouveau roman. Se há personagens recorrentes (Catherine Austin, Dr.
Nathan, etc.), que se repetem inclusive em termos funcionais e temáticos, isso
não quer dizer que é possível seguir algum fiapo de uniformidade a partir de
qualquer um dos personagens, inclusive do “personagem T”, cíclico e fundamental
em qualquer uma de suas encarnações. Existe mesmo o caso de um personagem como
Vaughan, o líder da seita de acidentes automobilísticos no romance posterior de
Ballard, Crash, que aparece pleno e
bem parecido ao seu formato final no capítulo 8 de The Atrocity Exhibition. Nesse sentido, há um radicalismo
fundamental no projeto fragmentário de Ballard pois chega-se próximo ao ponto
de negar qualquer tipo de estabilidade narrativa ao todo construído de forma
tão instável que mesmo o tempo histórico parece-lhe avesso, com a necessidade
de periódicas correções, reformulações e explicações que facilitem a
legibilidade. Talvez tenha sido esse radicalismo o motivo do seu gradativo
abandono em The Atrocity Exhibition
por seu autor. É necessário frisar, contudo, que a abertura de possibilidades
que o próprio Ballard assinala ocorrer a partir de The Unlimited Dream Company (1979) [15] surge em termos formais já com Crash (1973), romance imediatamente posterior a The Atrocity Exhibition, que adota um
formato mais linear e fluido, situando as quebras eventuais (na forma de flashbacks e retomadas de ações) dentro
do eixo sintagmático da trama, o que é simbolizado mesmo pela divisão dos
capítulos em numerais romanos e não nos títulos complexos que vemos em The Atrocity Exhibition.
A
verdade é que Ballard talvez percebesse certo desgaste na fórmula, além de uma
possível falta de compreensão de uma poética narrativa excessivamente
fragmentada, montada por processos de livre-associação, optando posteriormente
por serem expressas em formas narrativas que valorizam, de forma sistemática, a
causalidade, como o romance de formação e a autobiografia. Embora a construção
narrativa por fragmentação, que batizamos aqui de poética shrapnel, não tenha perdido sua força reaparecendo em novas
configurações como o romance neodecadendista In Delerium’s Circle (2012) de Stephen J. Clark – Clark, ilustrador
e pintor egresso do surrealismo, utiliza intensamente em sua narrativa
elementos como o object trouvé e
demais jogos surrealistas – a verdade é que muitas vezes exige comentários
exegéticos na forma de ensaios, manifestos, artigos, para que sua compreensão
seja possível. Hieróglifo contemporâneo, a narrativa retalhada exibe de forma
completa o Zeitgeist histórico –
trata-se de uma representação profundamente ligada aos eventos geralmente
atrozes que descreve e que, de certa forma, acaba exilada no passado junto a
esses eventos.
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NOTAS
1. Consultamos, no site archive.org, um manual detalhado dos
artefatos shrapnel publicado em 1915,
nos EUA.
2. Escrito alguns anos
depois de “The Land Ironclads”, a representação do shrapnel em Kipps é ainda
mais sinestésica, relacionada diretamente à busca de um harmonia para a
cacofonia da batalha e do bombardeio que a precedia: “Deu-se vazão a três
zurros ensurdecedores de forma a explodir a barragem de silêncio há muito
estabelecida. Assemelhava-se, principalmente, a tios-avôs de trompetes,
trombones gigantescos e freios de locomotivas. Soava como o pátio de manobras
de trens. Bem no comecinho, o efeito foi explodir a contraescarpa ou adiantar o
ataque direto ao som de um melódico shrapnel. Não havia mais ar, apenas ricochette.”(WELLS, 1922 – grifo do
autor na expressão em francês no original).
3. Um pouco antes,
Jünger descrevera o efeito do artefato no corpo de um seu camarada de front: “Homens da ambulância! Tivemos
nossa primeira baixa. Um estilhaço de shrapnel
atravessou de ponta a ponta a artéria carótida do atirador Stoker. Três pacotes
de algodão ficaram encharcados de sangue de um momento a outro. Em questão de
segundos, sangrou até a morte.” (JÜNGER, 2004).
4. A obra, contudo, só
seria publicada em 1785, em tiragem de apenas 7 exemplares, incluindo as
provas. Uma das poucas pessoas que entraram em contato essa primeira “edição”
de Hiroglyphic Tales feita ainda em
vida de Walpole, Madame du Deffand, comentou que a obra pertencia ao reino do
delírio e dos sonhos (cf. WALPOLE, 2011).
5. Não deixa de ser
curioso o fato dessas primeiras tentativas de criação de estruturas narrativas
fragmentárias, articuladas por associação livre, se aproximarem do conto de
fadas, sempre rico em associações complexas, não usuais, e sempre aberto ao
considerado non sequitur. Como
escreve Suzi Sperber: “Em vez de memorizarem, [os contadores de contos em
culturas orais] combinavam frases estereotipadas, fórmulas e segmentos de
narrativa, em ordens improvisadas de acordo com a reação de sua audiência.”
(SPERBER, 2009). Um bom exemplo desse processo, no suporte já codificado do
livro, é o conto do Barba Azul, conforme registrado pelos irmãos Grimm. Quando
a filha, casada com o cruel Barba Azul, clama pela ajuda de seus irmãos, grita
bem alto de uma janela do castelo: “irmãos, queridos irmãos, venham me acudir”.
A janela alta e o pedido de ajuda fundam tempo e espaço, permitindo que os
irmãos salvem a irmã de seu malvado marido (cf. GRIMM, 2012).
6. É necessário destacar
que essa metodologia surrealista estava fortemente baseado no Objeto (texto,
forma, matéria, etc.), o que a afasta, embora não de forma absoluta mas nos
termos de uma poética da fragmentação, do fluxo da consciência conforme
imaginado por autores como James Joyce. O fluxo joyceano especialmente em Finnegans Wake é menos uma busca de
superação da dicotomia continuidade/fragmentação e mais a construção de uma
continuidade sintética como um fluxo contínuo, açambarcador: “Finnegans Wake desdobra o mapa de uma
mente ampla como o universo.” (SCHÜLER, 1999). Um momento exemplar desse mapa
de infinitude ocorre logo no terceiro parágrafo, a queda: “The fall
(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonner-ronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!)
(....)” (JOYCE, 1999). Na onomatopeia, concentram-se fusões, palavras-valise,
condensações sinestésicas do conceito e da evocação de um grande estrondo em
diversos idiomas. Tal construção, portanto, valoriza uma continuidade complexa,
aglutinadora, contínua, cuja melhor imagem seria a do rio.
7. Para Adorno e
Horkheimer – escrevendo durante e após a Segunda Guerra Mundial –, a própria
linguagem estaria contaminada por elementos ideológicos alienantes, ainda
quando aparentemente em oposição a tais elementos: “Não há mis nenhuma
expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento, e
o que a linguagem desgastada não faz espontaneamente é suprido com precisão
pelos mecanismos sociais.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006). Essa conclusão levaria
os autores ao uso de processos de reflexão fragmentários, não unificadores e
não raro contraditórios, como o ensaio, o aforismo, mesmo a transcrição de
sonhos e devaneios da vigília. É curioso notar que, em um campo ideológico
oposto, a perspectiva, adotada por um Emil M. Cioran, era bem semelhante, com
igual opção metodológica: “A negação é o veneno espiritual que desintoxica o
universo, que lhe permite reencontrar-se diferentemente e alhures.” (CIORAN,
2011).
8. Com o artista gráfico
Malcolm McNeill, desenvolveria o projeto Ah
Pook is Here no início dos anos 1970, projeto no qual temas, imagens e
mesmo personagens que atravessam fantasmagoricamente Wild Boys ressurgem (Old Sarge, Xolotl, The Dib, etc.). Tratava-se
de um projeto que envolvia o desenvolvimento de uma narrativa gráfica de fato
inovadora, antecipando procedimentos radicais mesmo para as hoje usuais graphic novels, como relata McNeill:
“Comecei a criar quadros individualmente com a intenção de montá-los de uma vez
quando estivessem completos. Isso levou à ideia do livro como uma única imagem,
algo que estava em sintonia com os códices maias.” (McNEILL, 2012).
9. “Você pode pegar o
esperma do seu namorado e levá-lo para um mercado, contatar um intermediário
que vai arranjar inseminação assistida
de fêmeas inspecionadas. Nove meses depois o rebento macho será levado para uma
remota e pacífica comuna atrás das linhas e combate. Toda uma nova geração
crescia sem nunca ter visto o rosto de uma mulher ou ouvido a voz de uma
mulher.” (BURROUGHS, 2008). Haveria muito o que dizer a respeito da
perturbadora misoginia de Burroughs, ainda quando empregada para denúncia da
condição muitas vezes subumana do homossexual; mas basta termos em vista o
assustador projeto nazista de nome Lebensborn
(“fonte da vida”), o qual provavelmente Burroughs conhecia e que emprega em sua
trama para obter o efeito de Épater la
bourgeoisie: “Na Alemanha nazista, o Projeto Lebensborn foi um dos diversos
programas lançados por Heinrich Himmler, braço direito de Hitler e arquiteto do
holocausto, destinados a provar e consolidar a teoria nazista da ‘raça pura’ –
a raça ariana. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, soube-se que tal
programa consistia na criação de residências secretas para que homens e
mulheres ‘racialmente puros’ copulassem. As crianças nascidas no âmbito do
programa seriam criadas e educadas pelo Estado alemão, e destinadas a formar o
núcleo de uma ‘raça forte’, puramente ariana.” (Vítimas, 2014).
10. Ao representar uma
cidade – na verdade, algo entre um slum
e uma comunidade de vizinhos – do interior dos EUA através de marcações no chão
de um estúdio na Dinamarca, Lars Von Trier não apenas retomou a peça Our Town de Thornton Wilder, mas também
essa maneira de pensar o espaço de uma nação que é, com certa frequência, alvo
da crítica global pelas ações tomadas em termos de política externa.
11. É necessário
destacar que as edições anteriores mantiveram esses trechos, o mesmo valendo
para as traduções. Assim, o trecho suprimido aparece na tradução francesa,
aparecendo da seguinte forma “(Voir les fantasmes sado-anaux que provoquent des
stimuli rectaux chez les enfants en état de privation).” (BALLARD, 1976).
12. Podemos citar, a
guisa de exemplo, o trecho em que o jovem Jim Ballard penetra no cockpit de um avião abatido, caverna
metálica e uterina: “Jim pousou seu modelo de madeira no capô do motor, subiu
no para-brisa da cabine e desceu até o assento de metal. Sem o paraquedas, que
fornecia um conforto almofadado ao piloto, percebia, ao sentar-se no assoalho
do cockpit, encontrar-se em uma
caverna de metal enferrujado.” (BALLARD, 2006).
13. No livro Guillermo del Toro: Cabinet of Curiosities,
que reproduz trechos dos curiosos cadernos de anotação do diretor de cinema
mexicano Guillermo del Toro, há detalhadas descrições visuais dessa bomba (cf.
TORO, 2013), que ao longo do filme se transforma em objeto de culto feroz das
crianças que protagonizam a trama como o paraquedista morto no romance Lord of the Flies (1954) de William
Golding (adaptado para o cinema em 1963 por Peter Brook).
14. Fascinado por
aviões, armas e tecnologia desde a infância, Ballard não ignoraria a imagem
poderosa dos artefatos shrapnel em
sua ficção. No conto “Venus Smiles” (publicado inicialmente com o título
“Mobile”), um de seus primeiros (publicado em 1957) temos a seguinte imagem:
“Quando eles saíram, eu e Blankett andamos juntos pelo jardim. Parecia que um
artefato shrapnel explodira por ali.
Torrões enormes de solo estavam espalhados por todo o lado, e a grama que não
fora arrancada pela estátua estava pisoteada. Limalha de ferro jazia no gramado
como poeira, uma ondulação sutil de notas perdidas exposta aos crescentes raios
solares.” (BALLARD, 2009).
15. Um dos romances mais
subestimados de Ballard, The Unlimited
Dream Company (1979) apresenta uma interessante revisão da noção de
ambiguidade do fantástico, ao apresentar Blake, um piloto que se acidenta em
avião roubado e que pode ter se transformando em um messias dos subúrbios de
Londres (isso é indicado por uma de suas visões) ou pode ser que esteja ferido
e delirante, preso ao cockpit da
máquina parcialmente destruída.
Alcebiades Diniz Miguel (Brasil, 1975). Tradutor,
pesquisador, ensaísta, roteirista e contista. Seu mais recente projeto de
pesquisa envolveu a tradução do romance fragmentário The Atrocity Exhibition
de J. G. Ballard. Contato: alcebiades.diniz@gmail.com. Visite
também seu blog: http://bibliofagia.postach.io. Página ilustrada com
obras de Fabio Rincones (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.
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