segunda-feira, 8 de junho de 2015

JOÃO GARÇÃO | O teatro surrealista em Portugal




I | Temos verificado que, frequentemente, o surrealismo é associado, de uma maneira geral, à representação pictórica de personagens biologicamente deformados, com as orelhas no traseiro ou os dentes nos sovacos. Ou então, quando nele se fala, comodamente e sem mais demoras é enunciada a definição oferecida por André Breton em 1924 no “Primeiro Manifesto do Surrealismo”: “Automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir, verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer vigilância exercida pela razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral”  (1). Sucede também referir-se que “o surrealismo foi um fenómeno literário predominantemente francês cujo apogeu se situou entre as duas guerras”  (2). Isto quando a presença da movimentação surrealista em Portugal e no estrangeiro não é, a nível interno, pura e simplesmente menosprezada ou ignorada, coisa muitíssimo frequente  (embora, naquele último caso, as críticas apresentem uma menor virulência quando se trata de referir, mesmo que ao de leve, os matreiramente apelidados de “históricos” do surrealismo a nível mundial). Por outro lado, mesmo quando existem propostas de “estabelecer, com a máxima objectividade possível”  (3) o que é efectivamente o surrealismo e qual o alcance da sua mensagem, as análises referentes a essa aventura apresentam-se confrangedoramente revestidas de uma grande frieza e de um certo esquematismo estético, provavelmente devido ao facto de – e esta é a razão menos mefistofélica que encontramos – os vários estudiosos se terem debruçado sobre o surrealismo elaborando um género de análise que, por lhe ser exterior, bem como às suas características, dele se apresenta distante  (4). Verifica-se também a existência de uma visão “oficial”, que pretende encarar o surrealismo ora como uma escola ora como uma estética bretoniana  (5).
Através de um mais ou menos longo contacto com o problema do surrealismo, mormente através das suas obras, demo-nos conta de que todas essas concepções eram incapazes de contribuir para a compreensão surrealista, antes promovendo a confusão, o desinteresse e o descrédito sobre o surrealismo.
Porque se torna imperativo, para uma melhor compreensão das suas obras teatrais, compreender por um lado o que é efectivamente esse movimento e, por outro, saber qual o contexto que as alimentou, parece-nos fundamental procedermos primeiramente à abordagem do primeiro ponto para posteriormente referenciarmos o trajecto percorrido pelo surrealismo no nosso país.
Constituindo o seu aparecimento um “fenómeno extraordinário”, como afirmou Michel Carrouges, numa sociedade construída à base de místicas, entre as quais as racionalistas, as técnicas e as trabalhistas, o surrealismo propõe a libertação total do homem, que se traduzirá pelo acesso ao conhecimento do homem real. O surrealismo é, para utilizar uma expressão de Nicolau Saião, “uma aposta na realidade inteira”. Tendo-se verificado, ao longo dos tempos, a manipulação pretensamente racionalista que tem amputado o homem da sua expressão total, o surrealismo pretende recuperar essa totalidade, reintroduzindo no real aquilo que é deixado à margem, através da quebra das correntes apostas ao pensamento pelo dito racionalismo.
Esta tentativa de “reconstruir totalidades” e de exploração sistemática das possibilidades esquecidas do homem é que levou a atenção dos surrealistas para a escrita automática e, “na medida em que o automatismo permite ao indivíduo descobrir em si possibilidades insuspeitas, essa descoberta, que é prova da sua própria liberdade, toma um valor arquetípico”  (6). Os princípios enunciados por Breton e seus companheiros são pontos de partida mais que pontos de chegada; são, digamos, “constatações de partida”. Aliás, já no jornal “Bulletin de la Vie Artistique” de 1 de Agosto de 1926, se dava conta disso mesmo: “Eles utilizam a escrita de uma maneira absolutamente voluntária e contraditória em relação ao sentimento que possuem desse automatismo”, acrescentando que “os seus actos pertencem a uma vasta empresa de recriação do Universo”. A escrita automática não se apresenta como o manancial do surrealismo: “Um reacionário imbecil, fazendo escrita automática, apenas faz reacionarismo ou imbecilidade. Não deve esquecer-se que os ‘mecanismos do hábito’ continuam de boa saúde…”  (7).
O que com “automatismo psíquico” esses surrealistas quiseram referir – numa época em que o seu vocabulário surgia no fragor e certa confusão dos começos – foi a liberdade mental e psíquica que a sociedade ocidental  (através dos pseudo-racionalismos, dos liames do fideísmo judaico-cristão e da repressão política) procura estorvar e condicionar. Contudo, o surrealismo não deve ser reduzido a uma concepção anti-racional pois ele “não gosta de perder a razão”. Acha é que a razão não deve estar submetida aos estreitos limites que os preconceitos do século lhe pretendem atribuir  (8). O mesmo desejo de totalidade conduziu também a actuação dos surrealistas para o sonho  (9), “onde tudo é possível, pela capacidade de transgredir os limites normais da acção humana” e para a loucura, que se enclausura, como tão bem se disse  (10). É nesta perspectiva que se deve entender, igualmente, a atenção do surrealismo ao maravilhoso e à sabedoria tradicional  (muito especialmente a Alquimia).
A escrita automática e o automatismo psíquico não se tratam, pois, de metodologias em si mas de um acrescentar de possibilidades até então desprezadas ou desconhecidas – um ampliar de possibilidades criadoras.
Compreende-se assim que haja uma ilimitada diversidade de mundos no surrealismo, não tendo o seu universo que se apresentar como “mundos dalinianos” ou “magritistas” ou outros vastos painéis oníricos. Certos pintores que por vezes referem a interlocutores “agora vou-lhe mostrar um quadro da minha fase surrealista” são ou brincalhões ou ignorantes manhosos, visto que o surrealismo não é uma questão de fases: “surrealista só é aquele que vive, escreve ou pratica o surrealismo”, no dizer de Nicolau Saião. Obviamente, só os surrealistas podem pintar quadros surrealistas, o mesmo se dizendo para qualquer outra disciplina por estes praticada. Os outros são apenas imitações mais ou menos grosseiras, em estilo “à maneira de”.
Na sua amplitude, o conceito “surrealista” apresenta-se então não como transcendente mas como imanente, na medida em que é expressão de características do “homem na sua totalidade” e não o fantasiar do quotidiano.
Não sendo uma proposta negativa e niilista mas libertadora, compreende-se que o surrealismo se tenha aproximado de todos os movimentos que, de alguma forma, tentavam emancipar o espírito, a linguagem ou a visão. Foi por esta razão – e apenas por esta – que os surrealistas se ligaram a determinados movimentos políticos, que imediatamente abandonaram ao verificarem que eram tão autoritários e verdadeiramente imobilistas, quando não reaccionários, como os movimentos políticos tradicionais  (11). É pelo mesmo motivo que vários dos futuros elementos do movimento surrealista francês abandonam o movimento Dada – que seria simbolicamente lançado às águas do Sena – por ter esgotado as suas virtualidades: “ (…)decepção, devido à monotonia dos métodos de ‘aturdimento’ e ‘cretinização’ empregados e à estéril repetição de provocações que se acham progressivamente despoletadas” (…).  (12).
Porque tende para a realização total do homem, dos seus desejos e das suas liberdades, pode-se considerar que a reivindicação surrealista é política em si mesma: a “revolução” preconizada pelos surrealistas tem em vista o fim dos totalitarismos, do capitalismo de Estado ou privado, do fascismo e do nazismo, do que as religiões têm de preconceituoso e fascizante  (13). Por outras palavras, o surrealismo não pretende o divórcio completo dos grupos sociais nem rebentar com o todo social, como por vezes é referido, mas apenas com o que este tem de pôdre. Neste sentido, o apelidar-se o surrealismo como movimento revolucionário decorre mais dum factor em certa medida exterior a si próprio, decorrente da própria podridão social, sendo os surrealistas “revolucionários sem revolução”. O surrealismo, simplesmente, é, propondo a imaginação, a liberdade, a generosidade, despertando a criatividade sem peias, numa sociedade onde não se seja dominado nem pela miséria nem pelo consumismo infrene. A talhe de foice, assinalemos a naturalidade com que os índios hopi  (bem como outras tribos, tal como estes praticando uma vida que é o mais aproximado do surrealismo que se conhece) receberam André Breton, durante o seu exílio americano; ou os dogons do Sudão em relação a Michel Leiris e Marcel Griaule. Aí, os surrealistas não contestavam aquelas sociedades, uma vez que elas existiam criativa, humana e poeticamente em moldes assaz surrealistas.
É indiscutível a fraternidade que liga surrealistas e libertários. O surrealismo, contudo, ultrapassa o anarquismo pelo acento tónico que põe em aspectos como o amor, a poesia, a imaginação e a alquimia interior do ser humano. Assim, por exemplo, no “Caso Viollete Nozières”, jovem que assassinou o padrasto que a reprimiu e violou sexualmente anos a fio servindo-se de chantagem e ameaças, os anarquistas tomaram o seu partido por ela ter abatido um notório reacionário  (o seu padrasto estava ligado a movimentos de extrema-direita). Os surrealistas, que a apoiaram desde o início, saíram à estacada repondo o tema no seu verdadeiro contexto: a busca da liberdade é sempre uma revolta individual; além disso, toda a defesa da jovem, no seu julgamento, permitiu aos assistentes verificarem a reivindicação vital de um ser humano de alta qualidade poética  (14). Essa busca, afirmaram os surrealistas, não visa satisfazer propósitos deste ou daquele movimento, por muito livre que se queira, mas sim a liberdade globalmente encarada. Com efeito, importa salientar este aspecto: sendo este o tempo em que, como afirmou Breton, “existe violência física e passividade mental, o surrealismo defende que a violência deve ser mental e não física”.
Esta “atitude perante o mundo, o desejo de restabelecer a continuidade do eu ao objecto  (…)” (15) é fundamental na actividade surrealista. A “entrega à escuta do mundo” radica na realidade de que um poeta, assumindo-se verdadeiramente como tal, tende por imperativo interior a associar a um comportamento lírico um querer viver atento. Como referiu António Maria Lisboa, o surrealismo não é uma nova maneira de bem dormir mas uma tentativa absoluta de estar bem acordado, com o sonho a funcionar no real. É nesta linha de pensamento que os surrealistas têm afirmado que o seu objectivo é extra-literário, pois por um lado a sua linguagem não se pretende impor como qualitativamente superior e, por outro, a exaltação da poesia e da arte é promovida não enquanto divisão de classes, sectores ou grupos mas sim enquanto acontecimento libertador das forças mais autênticas do homem (16). Ser poeta é pois, segundo os surrealistas, associar um quotidiano poético a um querer viver atento. O poeta é pois um bardo, mas um bardo sem sujeição a clãs ou senhores. O surrealismo apresenta-se assim como uma poética da linguagem ligada a uma leitura da vida, uma atitude perante o mundo expressa por um comportamento lírico, ou seja, a busca de uma coincidência entre a arte e a vida, uma arte imaginativa, desataviada, necessariamente crítica  (“a crítica é a razão da nossa permanência”, como disse António Maria Lisboa) e maravilhosa, a par de uma vida livre, digna, fraterna e total. As obras surrealistas não são um meio mas um fim em si, não são um alibi intelectual mas um sinal de permanência da criatividade. O surrealismo não é, pois, uma crença mas uma prática: não só propósitos mas actos, neste caso e palpavelmente quadros, poemas ou comportamentos no quotidiano.
Esta ética surrealista  (17) pressupõe a sua transfiguração nos mais variados aspectos, podendo ser surrealista tanto o desmascaramento específico de um político corrupto, impedindo-o de tripudiar sobre o povo, como a transposição espontânea de uma vida interior tempestuosa para a palavra escrita ou qualquer outro modo de expressão  (18).
O surrealismo, conforme concluímos, será assim, de uma maneira englobante, um sinónimo de realidade profunda e aumentada, a magnífica capacidade de ver o além no aquém, a imaginação além do Poder, tudo o que permite ao homem ultrapassar a “condição humana”. É patente no surrealismo o desejo de “transgredir as leis e ofender os deuses”, como referia Brassai no seu “Conversas com Picasso”, uma vez que para os surrealistas é ridícula e abusiva a genuflexão aos pretensos poderes do alto referidos pelas religiões reveladas e que, a seu ver, só têm ajudado a escravizar o homem. Finalmente, podemos verificar, como escrevia Maurice Blanchot: “Nem sistema nem escola, nem movimento de arte ou de literatura, mas pura prática da existência (…)”. Por esta razão, pareceu-nos fundamental incluir como anexo uma secção denominada “O surrealismo nas suas obras vivas”  (*), onde se demonstra que o surrealismo é, parafraseando Carlos Martins, “uma insurreição quotidiana contra os padrecas da cultura e da beleza obrigadas a mote”.

II | Se estamos de acordo com Luiz Francisco Rebelo quando este refere que a aventura surrealista teve “ (tenuíssimas) incidências no espectáculo teatral” em Portugal (1), discordamos completamente quando afirma que o movimento surrealista estaria já exausto nos finais da década de 50  (2). Parece-nos que podemos exemplificar esse diferente ponto de vista através do material que apresentamos em anexo. No entanto, considerações sobre essa e outras afirmações por parte de um crítico que tão grande contributo deu ao teatro nacional levar-nos-iam para um caminho diferente daquele que é nosso propósito trilhar, importando antes compreendermos o porquê de os surrealistas portugueses terem dado pouca atenção a esse género de expressão, como o autor de “Alguém terá de morrer” referenciou.
Como já verificámos no Cap.I, o surrealismo pretende fazer coincidir arte e vida, pelo que o palco maior dos surrealistas é a própria vida, devendo o teatro, segundo eles, estar incluído na actividade poética geral. Apesar de os surrealistas não virarem a sua atenção de uma forma bem específica para o teatro, isto não significa que haja uma completa distanciação entre eles e o universo teatral. Os surrealistas, por exemplo, sentem-se identificados com essas maravilhosas representações cénicas que utilizam marionetas e fantoches, plenas de imaginação, de sensibilidade e de maravilhoso. Procure ver-se, em Portugal, os “Bonecos de St.Aleixo” e compreender-se-á a razão desta afirmação. Também em França os surrealistas eram grandes frequentadores do teatro de fantoches do “Grand Guignol” e, em geral, sempre apreciaram as extraordinárias “performances” de cariz teatral de palhaços como Charlie Rivel  (de que a TV portuguesa apresentou há anos alguns filmes), sendo de assinalar ainda a filiação de textos como “Victor ou as crianças no poder” na pantomima tradicional.
A causa profunda daquele problema terá de ser procurada num âmbito diferente que não apenas a própria mentalidade surrealista, pois esta, porque englobante, repita-se, não desprezava – nem despreza – o teatro. Importa, por isso, analisarmos o contexto social, político, cultural e económico em que os surrealistas se movimentaram e movimentam, para lhe encontrarmos uma resposta. Sendo esse contexto por demais conhecido, apenas sobre ele relançaremos um olhar que apanhe o global da situação.
Verificamos então que, politicamente, nos seus inícios imperava em Portugal a ditadura salazarista, apoiada numa polícia política que reprimia e procurava destruir qualquer tipo de pensamento e acção contrários ao regime. Na melhor  (!) das hipóteses, buscava-se enquadrar o que vinha a público, de forma a esvaziar o mais possível o seu cariz contestatário. De acordo com o que conseguímos apurar, era manifestamente impossível aos surrealistas terem numa sala de espectáculos uma peça, que naturalmente seria subversiva em excesso.
A nível económico, constatamos que os meios de produção se encontravam – e em certa medida ainda se encontram – nas mãos de uma burguesia sôfrega de lucros  (ou visando alguma subsistência fácil), que era na altura tributária ou na dependência do sistema político, com isso lucrando ou garantindo um certo prestígio social que compartilhava com os meios religiosos e militares, fortemente locupletados devido ao apoio ao regime ditatorial. Sabe-se como o regime estorvava os meios teatrais heterodoxos. Como poderiam pois os surrealistas navegar num tal oceano de repressão, de temores, de impossibilidades?
Culturalmente, após a bomba de dinamite do “Orpheu” que momentaneamente abalara a vida cultural portuguesa, esta voltava a apaziguar-se, a sedimentar e a morrer. Diz Mário Cesariny: “Não tardará que os presencistas entrem na liça  (1927) para promulgar o primado da boa escrita, do bom cânone literário sobre todas as outras opções: políticas, morais, sociais, colectivas ou individuais. A boa escrita e, claro, revista pelos censores e, se possível, apolítica, não desagradava de todo ao doutor Salazar e ao senhor António Ferro, administrador cultural da época salazarista, agradava até bastante, ainda que obrigado ao remorso de observar que, politicamente, os “presencistas” eram oposição declarada ao regime corporativo.
E é assim que se dedicam a pôr em ordem  (em escrita legível, é claro) a desordem instaurada pela geração do Orpheu. Gaspar Simões afirma-o com orgulho: ‘seja qual fôr o impacto revolucionário da revista Orpheu, tal impacto só conquista em Portugal uma posição de relevo a partir da doutrina presencista’. Claro! Mas o doutrinamento presencista é um magistério antípoda da revolução de Orpheu  (sobretudo em Pessoa e em Raul Leal) que propõe nada mais nada menos do que a abolição da Era Cristã e da civilização greco-romana do Ocidente”  (3). Em finais dos anos 30, um novo murmúrio “que em breve se transforma em rio, ocupa, na mesma costa do ribeiro presencista, e decididamente contra este, o seu lugar na aldeia: são os neo-realistas (…)”  (4). No entanto, após 1945, o neo-realismo encontrava-se “incapacitado de resolver as suas mais íntimas contradições, e ainda por cima impossibilitado de, publicamente, discutir os problemas que se lhe apresentavam. A sua eficiência, como protesto, dilui-se, na medida em que o seu esquema se revela grosseiro, incapaz de apresentar as mais íntimas noções da própria afirmação poética”, na opinião de Alfredo Margarido  (5).
Buscando uma “acidez intervencionista” e procurando para o homem português “uma liberdade que as circunstâncias teimavam em negar-lhe”  (6), o embrião do primeiro grupo surrealista reúne-se em 1947 no “Café Hermínius”, de Lisboa. Dele faziam parte sobretudo alunos da Escola António Arroio: José Leonel Rodrigues, Pedro Oom, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Domingues, Fernando Azevedo, José Francisco, Artur do Cruzeiro Seixas, Júlio Pomar, João Moniz Pereira e Marcelino Vespeira. “É este núcleo que, discutindo não apenas os problemas plásticos mas também os problemas éticos que se propunham aos jovens artistas em Portugal, há-de vir a descobrir que só o surrealismo possuía a força virulenta para abalar uma sociedade que conseguia resistir à guerra sem outras perturbações que não fôssem um racionamento rígido, que dava lugar ao aparecimento de fortunas rápidas, graças à candonga e ao mercado negro  (a que se juntava o volfrâmio, as sucatas e até algumas vezes, o pagamento de futuros serviços aos ocupantes” (7).
Era este o panorama quando em 1947 aparece oficialmente o Grupo Surrealista de Lisboa  (o seu surgir na imprensa dá-se um ano depois, a propósito do centenário de Gomes Leal). Este não haveria de durar muito, desfazendo-se em Janeiro de 49, tendo-se inclusive verificado, em Maio desse ano, a “saída para a rua de um ‘enterro do surrealismo’ que, por falta de organização conducente, acabou na esquadra” (8). Não vamos traçar aqui a cronologia, mesmo que ao de leve, do existir surrealista no nosso país, visto que tal seria desviarmo-nos do assunto que nos propusemos tratar. Remetemos o leitor para o livro de Mário Cesariny “A intervenção surrealista” que contém a mais importante cronologia em acção até ao ano de 1960. A sua actualização não pôde ainda efectuar-se devido a diversas causas, umas exteriores outras interiores, podendo ter também a ver com a rarefação e o provincianismo característicos do meio editorial português.
Ao analisarmos o evoluir da aventura surrealista no contexto que expusemos, encontramos a nosso ver, aí, a chave que nos permite responder à questão enunciada no começo deste capítulo; é que embora essa aventura tenha empreendido uma caminhada, esta foi feita na maior parte das vezes debaixo da ameaça de lhe agrilhoarem os pés, frequentemente descalços; sob tentativas de chantagem ou defrontando obstáculos colocados no seu caminho pela mentalidade interesseira, retrógrada e provinciana das forças vivas  (como sói dizer-se) dum país cujo imaginário em boa parte foi e é fascizante, de tal forma que ainda hoje, ao que apurámos, ressalvando-se os casos históricos de Cesariny e Seixas, que de certo modo servem à “intelligentsia” dominante como exemplo de “bom surrealismo”, o que lhe permite desautorizar outras vozes mais violentas ou desenquadradas, os mais chegados surrealistas são usualmente marginalizados e até difamados quase impunemente. Para desgraça dos seus intervenientes, interessados em colocar essa bomba poética debaixo, por cima e aos lados da pseudo-realidade circundante e visando com isso a instauração de um imaginário considerado mais salubre, plásmico e fascinante, chegámos à conclusão no decorrer do nosso estudo que o afirmar surrealista é hoje muito mais difícil que outrora  (cf. Nicolau Saião) tanto mais que se tornou palpável uma difusa mentalidade nova-rica que considera natural e altamente aconselhável o cinismo, a hipocrisia e o amor declarado ao triunfo e ao vil metal, não sendo nada recomendada a verticalidade surrealista.
A resistência a essas barreiras, pela escolha e defesa de um quotidiano de qualidade, implicou desde detenções  (9) a espancamentos  (10), a problemas de saúde  (11), a mortes  (12), necessidades e perseguições  (13). Isto para não falar nos problemas de publicação e divulgação que têm atingido desde sempre as obras dos autores surrealistas.
No contexto de resistência em que os surrealistas se têm movimentado, a  poesia apresenta-se como o veículo mais imediato, pois o teatro necessita de grupos, tendo estado em Portugal, durante muito tempo, controlado por sectores políticos ou tendo um cariz de “boulevard”, ressalvadas as naturais e dignas excepções.
Se os surrealistas, concluímos, não tiveram maior ligação com o teatro, foi por este se ter apresentado geralmente comercializado, conduzido, espelho que era afinal da sociedade do tempo; não esqueçamos também, mais modernamente, que o teatro depende igualmente dos espectadores e que estes têm estado por um lado, em grande parte, sob a influência da mentalidade burguesa a quem a mensagem surrealista arrepia ou ofende nos seus preconceitos e tiques. Mesmo no pós-25 de Abril “só a censura do poder político cessara porque outros controlos (…)se mantiveram, através dapropriedade ou gestão dos espaços, gestão capitalista  de salas que impunham a sua exploração em termos comerciais” (14). Mesmo que os surrealistas se tivessem dedicado assiduamente a escrever textos teatrais, era mais que certo que essas peças não seriam levadas à cena. Temos conhecimento que a representação da peça de Cesariny “Um auto para Jerusalém”, sofreu entraves na sua representação, tendo ido para a frente após intervenção de autoridades militares favoráveis ao A., nos tempos do PREC (15). As poucas peças surrealistas que sabemos existirem, ou continuam inéditas como é o caso da de Nicolau Saião, que apresentamos no anexo por deferência do A. e que possivelmente não será dada a lume nos tempos mais chegados (**), ou apesar dos nossos esforços não as conseguímos encontrar  (caso de “Sucubina ou a teoria do Chapéu”, de Natália Correia e Manuel de Lima  (16), ou serão apenas, salvo excepções, textos dramáticos (17): diz Ortega y Gasset que “teatro é por essência, presença e potência, visão-espectáculo” e que “teatro é, mais do que um género literário, um género visual e espectacular” (18), afirmação que plenamente acompanhamos, o mesmo acontecendo, estamos em crer, com os autores surrealistas de textos dramáticos, que certamente com pesar observam a redução das suas obras ao campo literário, fora portanto  (por essência e por objectivo) do seu âmbito natural de intervenção.
É devido a tudo isto que discordamos da análise de Luiz Francisco Rebelo sobre o surrealismo e a forma algo depreciativa como o aliás informado e estimável crítico encara os protagonistas nas suas relações com o teatro, parecendo desconhecer quer o próprio projecto surrealista quer as condições de existência em que este foi tomando forma no nosso país. Apeteceria dizer, com William Faulkner a respeito dos negros norte-americanos: “Obrigam-nos a ser engraxadores e depois alegam que só servem para engraxar sapatos”.

III | Depois das diversas considerações que tecemos nos capítulos precedentes, encontramo-nos agora de posse dos instrumentos necessários para analisarmos com maior rigor as peças surrealistas de que dispomos.
Antes, porém, urge responder a uma questão fundamental, por permitir uma mais perfeita análise dessas peças; a saber – se os surrealistas, conscientes que estavam da sua marginalização e, logo, afastados directamente do acesso aos palcos, terão escrito essas obras objectivando uma possível representação ou, de outra forma, se essas peças serão sobretudo “objectos mentais”, visando efeitos primeiramente literários  (leia-se: de leitura).
Se, como referimos no capítulo anterior, o teatro – e logo os seus textos, parte que são dessa disciplina criativa – deveria estar, de acordo com os surrealistas, integrado num vasto e simultaneamente uno processo poético, podendo os textos ser encarados à luz duma “representação” no palco do imaginário e não numa sala, quer-nos parecer que os autores deles não viam o teatro como um passatempo anódino mas, antes, reconheciam-lhe possibilidades próprias de problematização do quotidiano e, logo, meio de expressão possível a que estavam inerentes, consubstanciadas, tomadas de posição. Referiu Ernesto Sampaio; “O teatro, que é talvez a mais perfeita realização simbólica da manifestação universal, é hoje a melhor imagem da degradação a que as formas profanas da “cultura” conduziram a humanidade. Porque o teatro perdeu a sua essência “misteriosa”, o sentido exotérico e esotérico que lhe permitia representar a simultaneidade sintética dos estados inumanos e humanos do Ser (…)” (1).
Refira-se, a propósito, que a adequação das particularidades próprias do teatro à mentalidade dos autores surrealistas não implicou, no nosso país, que a acção dramática perdesse, necessariamente, os seus caracteres distintivos, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em França  (2). Os autores nacionais, se bem que não comprometendo o desenrolar dos seus projectos jungindo-os a um caracter formal, parece terem-se subordinado bem mais que os seus colegas gauleses a determinados aspectos tidos como “teatrais” – o que não pressupõe, obrigatoriamente, que se não deva caracterizar essas peças como surrealistas, em vista do menor desprezo por tudo o que é tido como teatral. Aliás, isso por vezes até aparece com um caracter vincadamente irónico: na peça de N.Saião, aparecem no rol das personagens os habituais, quase diríamos canónicos, “homens e mulheres do povo”, que jamais, em tempo algum da peça, têm qualquer aparição quer vista quer ouvida…
Então: bem pelo contrário, pois ordenando-se o conteúdo “teatral” desses textos das mais variadas formas e consoante os objectivos e gostos dos seus autores, o conjunto apresenta quer ao nível da mensagem quer da articulação da intriga – mais ou menos “coerentes”, mais ou menos verosímeis – um propósito bem definido, que compreende o humor negro, a revolta, o maravilhoso, o poético ou o onírico. Apesar das evidentes distâncias entre os autores surrealistas e Bernardo Santareno, parece-nos importante escutarmos o que este refere a propósito do assunto vertente: ” (…) Se o dramaturgo pretende actuar através do teatro, quer dizer, se o seu objectivo não é só divertir contando uma história, nem sequer apenas provocar a catarse aristotélica e assim expurgar o espectador das suas paixões, mas também ensinar, fazer consciencializar o público do que é justo e injusto, bem e mal, etc., neste caso as personagens são, é claro, menos importantes do que o tema, do que a explanação das verdades e mentiras para as quais queremos acordar e dividir os espectadores” (3). Os surrealistas, neste ponto, distinguem-se porquanto onde Santareno põe “verdade” e “mentira” elas poriam “realidade” e “ilusão”, dando de barato que a vida societária não é “real” no sentido profundo do termo, uma vez que a realidade implica a ausência de neuroses e recalcamentos, prato forte da “realidade” societária em que se vive.
Não temos pois como segura uma relação de causa-efeito no que diz parte aos textos dramáticos surrealistas e uma eventual falta de potencialidades cénicas dos mesmos. Cada um deles, afinal, pressupõe uma harmonização própria com o encarregado do trabalho cénico, regulando-se desta forma uma margem de manobra que parte das características essenciais do texto e termina na capacidade, imaginação e competência do encenador. Por outras palavras: não nos parece correcto definir-se a priori as peças surrealistas como dificilmente encenáveis ou contando à partida com uma bem menor adesão do público que a habitualmente dada ao teatro “convencional”. Aliás, para quem souber ler, é fácil verificar que as peças surrealistas, mais ou menos “desconstruídas” fazem sentido. Ao passo que, parecendo que o fazem, nenhum sentido possuem as pessegadas de “boulevard”. Ademais, já tivemos oportunidade de verificar, junto de uma assistência livrescamente “inculta”, a adesão a peças, via TV, como por exemplo “Victor ou as crianças no poder”, de Vitrac; ou in loco à peça de Ionesco “O inquilino”, representada numa terra de província profunda.
Um aspecto do problema que se nos afigura importante realçar é o facto de terem sido muito poucos, em Portugal, os encenadores que ousaram pôr em cena algumas dessas peças – e é evidente que, a serem encenadas, não significa que granjeassem imediato sucesso – o que parece apontar, afora outras razões, para dificuldades de manobra com textos surrealistas, fruto que são de um processo criativo muito próprio, sem se cair em banalizações ou deturpações. Isto partindo do princípio que possuem suficiente qualidade conferida pela ética e pela estética, pela paixão política ou pela preocupação de intervenção social do observador, para serem recebidas pelo público frequentador das nossas salas. Contudo, como referiu Manuel de Lima, “num país em que se representam peças medíocres vindas de toda a parte, um original português, por muito insuficiente que seja, nunca será um intruso” (4).
Parece-nos pois necessário um certo cuidado para não sermos induzidos em raciocínios que poderão ser precipitados  (5).
Postos estes mais ou menos breves considerandos, examinemos agora as peças em questão, melhor dizendo, os seus textos, limitados que estamos a esta análise, pois alguns não foram encenados e outros, por seu turno, foram-no numa época em que não nos era possível a sua visualização. Vamos fazê-lo tendo em conta os seus autores, pois assim, a par das características das várias peças, ao expormo-los tornar-se-á mais fácil apreendermos as diferenças, ou as semelhanças e as variadas formas de sensibilidade face à dramaturgia que cada autor epigrafa.

MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS | O mais publicitado dos poetas surrealistas. Escreveu uma peça – “Um auto para Jerusalém”; também em jeito teatral  (diálogos) são as suas  (à altura agitadoras do meio provinciano) críticas protagonizadas pelos “Dr. Pluma e Dr. Pena”.
É o próprio autor que nos informa: “Este Auto foi escrito em 1946 por raiva à apresentação da colectânea ‘Bloco’ onde se inseria o texto que o motiva: ‘História Antiga e Conhecida’, de Luiz Pacheco.
Foi estreado no Teatro Municipal de S.Luiz, em Lisboa, em 11 de Março de 1975 numa encenação de João d’Ávila com o Grupo Sete.
O texto integral, publicado pela Editorial Minotauro em 1964, em edição também apreendida, foi revisto antes e também já depois da realização do Grupo Sete, devendo considerar-se definitiva a presente versão” (6).
“ (…) baseado numa conhecida cena bíblica em que Jesus  (com 12 anos) fala aos doutores, o enredo pretende colocar na boca de Jesus um discurso de igualdade e de luta contra a opressão, sendo os doutores  (os intelectuais) o seu público escolhido, numa tentativa de os responsabilizar como membros de uma sociedade obrigados a agir directamente na sua transformação” (7).
Embora bebendo a inspiração num conto de outro autor, este Auto ganha uma individualidade própria. Assumindo uma profunda crítica a sectores da sociedade portuguesa, o paralelismo entre esta e aquela onde se movimentam as personagens é fácil de delinear.
Os intelectuais  (Matatias, o Sábio Rezingão; Eleazar, o Intelectual Snob e Tobias, o Sensato) são protótipos de uma certa intelectualidade lusa: Eleazar detesta os ricos e está do lado dos pobres pois estes “são tão infelizes, coitadinhos!”; Matatias é “Doutor em Literatura, crítica e Religiões” e “empregado nos correios desta cidade”; Tobias está bastante arreliado pelo facto de Herodes, Rei dos Judeus, escrever e falar “horrivelmente o hebraico”. Estes três sábios empenham-se em “escrever um livro de que toda a Judeia, todo o povo eleito se orgulhará (…) cinco grandes volumes onde se explica, grafa e determina a mais linda maneira de falar (…)”.
O mérito desta “grande obra” é logo posto em causa pelo Orador, que funciona como coro – “assim uma coisa à grega” – e, simultaneamente, reflexo do próprio autor:

“ORADOR – Linda coisa é ver trabalhar! Mas há trabalho que presta e trabalho que não presta. Prestará para alguma coisa a trabalheira destes dois doutores?” (Tobias ainda não havia entrado em cena), (8).
A falta de profundidade na actuação social por parte dos sábios e mesmo a sua conivência com o Poder – veja-se a maneira como se relacionam com Salomé, filha do temido Herodes e com Cornélius Macissus, ambos analogicamente conotados com o regime salazarista  (quando entram em cena ouve-se o hino da Mocidade Portuguesa) – é uma denúncia constante em toda a peça.

Quanto ao jovem Jesus, este parece-nos ser não apenas o protótipo do proletariado mas, mais que isso, o protótipo de todos os indivíduos com aspirações de dignidade, de justiça social e de verticalidade:

“JESUS – “ (…)Eu vim de Nazaré, vi muitas terras  e muitos lugares antes de chegar a Jerusalém. E tirei slides e fotografias. (9). Por toda a parte é o mesmo: fome e doença, fome e tirania, fome e abjecção. É por isto que vim, é disto que é preciso falar…” (10). E continuando a sua prédica  aos doutores, Jesus afirma: “Ouvi-me irmãos doutores, isso não presta para nada. O povo de Israel não sabe ler, como há-de ler o vosso livro de ortografia? É preciso outra coisa. Para agora mesmo. Para já”. (11).

Os doutores, contudo, embrenhados na sua obra e apresentando-se como sabendo melhor que Jesus o que realmente se passa, não dão mostras de quererem contribuir para modificar a situação no mundo real, afirmando-se o seu interesse pela realidade como puramente académico:

“ELEAZAR – Que Herodes é um tirano, toda a gente sabe, olha a grande novidade! Mas o que temos nós com isso?
 MATATIAS – Somos sábios, somos doutores, somos intelectuais. Não somos homens da rua, não nos metam em sarilhos, não querermos saber de desgraças, não queremos nada com a polícia. Pensar, escrever, escrever muito, é o nosso trabalho, não peçam mais nada.
ELEAZAR – Sim, não sejam egoístas”. (12).

Perante este panorama, acaba por ser o Servo-Porteiro quem, apesar de todo o seu servilismo, imposto por condicionalismos económicos e sócio-culturais  (“sou um fruste, um tolo, um facilmente dispensável. Não sei ler nem escrever embora o meu autor me faça falar com certa elegância”) acaba por ter a coragem de abater o Homem da Gestapo – o mesmo seria dizer o agente da PIDE ou seja, a personificação da repressão. Parece-nos extremamente significativo o facto de o Homem da Gestapo cair “varado pelo chuço do Servo-Porteiro”. Trata-se, por um lado, do reafirmar de uma aproximação às pessoas simples do povo, em quem se conserva a sabedoria tradicional e a dignidade e bondade humanas, de uma forma desinteressada – algo muito característico dos surrealistas; e, por outro lado, da crença de que é nessas pessoas simples e anónimas que se cristaliza o desejo de combate às indignidades e às injustiças, sendo elas que operarão as mudanças. Já no início da peça o Servo-Porteiro demonstra essa vontade, quando se dirige ao Orador:  

“SERVO-PORTEIRO – Escuta, tu és quem tudo pode e manda neste palco enquanto durar a representação da nossa miséria. Peço-te um acto grande, um acto que altere o curso de certos acontecimentos.
ORADOR – tocando a sineta – Peço que tirem este homem daqui para fora!!
SERVO-PORTEIRO – Diz-lhes, ao menos, quem sou! Ou o que faço nesta terra. Não, o que faço não! O que às vezes parece que gostava de fazer…”  (13).

Discordamos de Maria de Fátima Marinho quando esta refere que “Um auto para Jerusalém” ainda não é surrealista pois “tem poucos elementos devedores da escola bretoniana” (14). Quanto a este assunto da “escola bretoniana” parece-nos termos ficado conversados no Capítulo I. No que se refere à afirmação de que “não se encontram nesta peça factores que, segundo Henry Behar, constituem o fundamento do teatro conseguido nessa perspectiva: o ‘hasard objectif’, a falta de lógica ou a primazia do sonho” (15), verificamos novamente a subordinação desta estudiosa a determinadas afirmações que, longe de possuírem a categoria de cânones que se lhes pretende atribuir, são antes fruto da análise a uma bem determinada realidade – neste caso, uma visão do autor citado sobre a produção de textos dramáticos realizados por alguns surrealistas num dado tempo e num certo lugar, sendo pois parciais e nunca definitivamente englobantes.
Esta peça parece-nos de considerar verdadeiramente surrealista. O facto de o autor se ter circunscrito a uma dada projecção da realidade não permite inserir a peça no espaço neo-realista (16). Essa realidade não só está profundamente alterada pela mistura das épocas e consequentes anacronismos, como apresenta personagens prototípicas. A elevada densidade poética contribui também para o acentuar dessa particularização do real. Importa ainda referir a sempre presença do humor negro, não para produzir efeitos estilísticos mas para a valorização das críticas através da sua acutilância e maior acuidade. Veja-se, a título de exemplo, a referência a Fernando Pessoa: depois de ouvir uns versos seus, Salomé pergunta quem é o autor:

“CORNÉLIUS MACISSUS – consultando um papelinho – Fernandus Pessoas, um judeu estrangeiro. Doutor em…em…nada.
SALOMÉ – Ah! Um poeta que não é letrado.
MATATIAS – Ainda não foi descoberto pela Judá Editora.
SALOMÉ – Então é muito novo…ou muito velho?
MATATIAS – Creio que ambas as coisas, Sereníssima. Mal ganha para comer…
ELEAZAR – Conhecimentos do Dr. Matatias… (para este último) Sempre o mesmo azelha! Impingir álgidos, anónimos e ignotos à Sereníssima!  (Imitação fanhosa) ‘Ainda não foi descoberto’…Vai ser um frenesim, quando lhe descobrirem o baú!” (17).

Além do mais, a grande mensagem que se retira da peça é profundamente surrealista: a importância de se resistir à demagogia, à injustiça e à mediocridade, denunciando a podridão  (o que por si só, sendo um acto de revolta, é revolucionário). Estes propósitos são enunciados pelo jovem Jesus:

“JESUS –  (…) Ide e dizei ao povo: à frente de Israel estão homens incapazes e idiotas. Desmascarai-os! Mostrai ao povo quem são esses que o escravizam, que o insultam, que o crucificam. Libertai-o do pão que lhe dão a comer, pão maldito porque é o pão da desonra. Ajudai-o a libertar-se pelas suas próprias mãos. (…) Nenhum povo é eleito quando escravo. E ao que não fôr capaz de libertar os espíritos de nada servirá apaziguar os estômagos (…)” (18).

Após o abate do Homem da Gestapo, Matatias foge e Tobias também abandona, aflito, a habitação. No entanto, Eleazar, constrangido, deixa a casa na companhia do Servo-Porteiro, aparentemente decididos a lutar. A mensagem é, pois, de esperança  (um alto valor surrealista; dizia Pedro Oom, num texto célebre: “ (…) não há razão para queimar a esperança!”).

MANUEL DE LIMA | Não fez parte de nenhum dos Grupos Surrealistas, mas a sua actividade de escritor denota adesão ao surrealismo. Isto é facilmente verificável em “Um Homem de Barbas”, o seu primeiro romance, ou naquela que é talvez a sua obra mais conhecida, “Malaquias ou a história de um Homem Barbaramente agredido”, prefaciada por António Maria Lisboa.
Além da peça escrita conjuntamente com Natália Correia a que já fizemos referência e que continua inédita, Manuel de Lima escreveu uma outra, “O clube dos antropófagos” (19).
Esta peça é a versão teatral da novela homónima escrita a pedido de Mário Cesariny para uma edição que nunca chegou a efectuar-se, sendo a peça publicada antes da novela, embora a ordem da escrita seja a inversa.
A transposição para a versão teatral nasceu do contacto do autor com “alguns actores das novas gerações que tinham chegado ao teatro animados pelo desejo de o renovar. A actividade era intensa, subterrânea e, por isso, fascinante  (…). A verdade é que estes movimentos, por mais revolucionários que sejam, nunca conseguem furtar-se aos convencionalismos atávicos. Há sempre aquela sujeição, de baixo para cima, aos argumentos da autoridade que impedem a ruptura com o que já está estabelecido. Repare-se como todos os movimentos de renovação do teatro procuram a protecção do que já está caduco  (…)”,  (20).
Dois membros desse grupo tiveram grande importância no evoluir da peça: Fernando Gusmão, que “teve decisiva influência moral que resultou na publicação da peça” além de que a sua opinião “contava, acima de tudo, como crítica sobre os resultados da adaptação de um texto narrativo” (21); e João Guedes, que tentou encená-la no Teatro Experimental do Porto, não sendo a peça, contudo, “integralmente aprovada pelas instâncias oficiais  (indispensáveis dentro das leis que regulamentam os espectáculos públicos), (…)” (22), pelo que o autor não autorizou a sua representação, amputada que seria das partes incómodas. Diz Manuel de Lima: “o teatro não tem fronteiras, diz-se. É de quem mais tiver direito ao seu acesso. Mas como o teatro está sempre em crise, como é que se sabe quem tem direito ao seu acesso? Como, por outro lado, vive à custa de subsídios, quem está apto a dizer que as peças em cena são precisamente aquelas que o público solicita? Uma coisa é certa: o teatro não tem fronteiras mas tem, pior do que isso, barreiras. Internas e externas!” (23).
Verificando-se algumas diferenças da novela para a peça, a base das duas é idêntica: a antropofagia, que o autor já havia enunciado no romance “Um homem de barbas”. No entanto, em “O clube dos antropófagos” o tema é levado ao extremo mediante o humor negro.
Após a sua chegada a Cuba, no Alentejo, Falcão - grande proprietário – começa a engordar a população, aparentemente sob a capa da filantropia; na verdade, para a comer com requintes gastronómicos, que o seu cozinheiro Kugulu se encarrega de executar ajudado por Bicho-de-Cozinha. Iniciado na antropofagia por três magnates americanos – Wolf, do petróleo; Shark, do carvão; Octopus, do aço, - Falcão deseja atingir a realização através da mais elaborada e perfeita iguaria, com o intuito de tornar seus discípulos os mestres. Esse manjar encontra-o ele concretizado nos miolos de Euclides, o inteligente filho de Formiga  (feitor de Falcão e seu humilíssimo criado) que tinha descoberto a Teoria da Expansão do Universo. Contudo, quando esse prato está a ser preparado, os três mestres chegam, apoderam-se dele e acabam por matar Falcão, devorando-o em seguida. Toda a peça está repleta de situações insólitas, que contribuem para acentuar a analogia estabelecida pelo autor com a sociedade em que vivemos, analogia essa que é faqcilmente perceptível. Esse insólito, no entanto, não pretende alterar o caracter profundamente teatral da obra, mais estando ao serviço de um objectivo de crítica profunda. É o caso, por exemplo, da cena de engorda do Maltês. Por se ter apercebido das intenções de Falcão, o pobre-diabo recusava-se a ser alimentado:

“FALCÃO –  (…) Irra, que é teimoso!  (pausa) Experimentemos outro sistema.  (Faz uma gracinha, passando os dedos pelos beiços) Brrh!Brrh!Brrh!... (O Maltês ri-se. Imediatamente Falcão enfia-lhe a colher cheia de papa na boca) Ah?! Deu resultado. (O Maltês engasga-se mas engole a papa. Alguns restos caem-lhe pelo queixo, mas Falcão, com a colher, empurra-os para dentro da boca) Anda Formiga, faz qualquer coisa para ele se rir. Porque esperas idiota?... Tu que és tão ridículo!
(Formiga começa a fazer trejeitos e piruetas. O Maltês desata a rir às gargalhadas. Falcão vai-lhe enchendo a boca de comida. Kugulu vem ajudar Formiga, fazendo-se de macaco. Bicho-de-Cozinha entra também em acção e põe-se a zurrar. Quando a cena atinge o paroxismo faz-se escuro subitamente.)”  (24).

O posicionamento do autor face à realidade social está continuamente expresso ao longo da peça, quer através dos diálogos quer das indicações cénicas que Manuel de Lima pretende promover. Damos exemplo de dois casos. O primeiro:

“1ª VOZ – Deixe-se de teorias, senhor engenheiro, e diga-nos de que lado está.  (A multidão exclama):
MULTIDÃO – Quem não é por nós é contra nós! (bis)
EUCLIDES – Alto! A ciência é a salvação suprema!
D.FORMIGA – A ciência está na mão dos poderosos. Nós ficamos sempre na mesma. Nós geramos os nossos filhos para servirem de repasto à voracidade dos poderosos. Abaixo as sanguessugas!”  (25).
E o segundo: “Os dois grupos começam a combater empregando várias formas de combate: boxe, judo, outros tiram tabuleiros de xadrez, baralhos de cartas e cornucópias de dados. Um operário exibe um rádio portátil que dá um relato de desafio de futebol, de mistura com publicidade. Um ilusionista faz uma série de sortes)” (26).

A peça de Manuel de Lima, pelo conjunto de reflexões que propõe e pelo tema que apresenta, parece-nos bastante actual. No entanto, ao contrário do que o seu autor desejaria  (27) continua à espera, ainda, que um encenador lhe deite a mão.

JORGE DE LIMA ALVES | Poeta e, actualmente, jornalista do “Expresso”, escreveu nos anos de 1973/74 “Cerimonial para um massacre”, que esteve à beira de ser levada à cena nos fins da década pelo “grupo teatral e cultural Mandrágora”, de Cascais, que aliás a editou.
Esta peça revela grandes diferenças em relação às outras obras consideradas. Aqui, a linha continuadora entre os vários actos e quadros parece ser o desejo de chocar o espectador (leitor) não se poupando o autor a esforços para o conseguir. Para acentuar mais, no espectador-leitor, o sentimento de incomodidade, verifica-se também uma profunda desarticulação da intriga e da análise psicológica das personagens, cujos actos primam pelo insólito e pelo inesperado. Todo o jogo cénico se desenvolve tendo em conta este objectivo. O primeiro quadro, que poderia servir de prólogo, dá o mote:

“O pano abre sobre um palco deserto e nu. Depois surge, de dentro das caixa do ponto, por exemplo, ou dos bastidores, ou de qualquer outro lado, um homem vestido de preto, rastejando. (…) De súbito, um longo grito rasga o silêncio, vindo dos quatro cantos da sala. E, de novo, se abate o silêncio, a ausência.
Agora, ouve-se um comboio, ou um avião, passar ao longe, alguns pássaros a cantar; um cão ladrando. Alguém, um côxo talvez, passa pelo palco, a correr.” (28)

Contudo e embora o autor recorra ao insólito, não é este que mais choca mas sim o apresentar de situações quotidianas tratadas de maneira a causar espanto e repulsa. Por exemplo, no terceiro quadro do primeiro acto:

“HEITOR – O que é que se passa, Ana?
ANA – Estou grávida, pai…grávida!
Ana tem um ar desesperado. O tom de Heitor exprimirá uma indiferença quase total.
HEITOR – Ai sim?
ANA – Estou grávida e tenho uma leucemia…Não achas engraçado?”  (29)

Para avivar ainda mais este sentimento de desgraça, o quadro anterior é todo ele calma e poesia, com diálogos que parecem os de histórias para crianças.
A despreocupação face à representação é também enorme. No nono quadro, que inicia o segundo acto, o autor refere que aquele “Está reservado aos actores e ao encenador para que façam dele  (e nele) o que quiserem, sem limitações nem directivas. Não é sequer necessário que o que aqui se passa tenha algo a ver com a peça, pelo contrário.” (30)
Fortemente influenciado pelo teatro de Antonin Artaud, também aqui há um incitamento ao comprometimento por parte dos espectadores:

“Todos os actores do espectáculo estão sentados no palco, a olhar insistentemente a sala, ou algum espectador em particular. Passam-se três ou quatro minutos no mais profundo silêncio.
ARTUR –  (dirigindo-se ao público) Então, vocês não dizem nada?
Obscuridade total”  (31)

Esse comprometimento proposto vai mais longe, através da representação directa de uma antevisão às reacções dos espectadores:

“Um quarto de casal: uma cama grande, uma porta, uma janela, um banco e um espelho. Entram Heitor  (que acende a luz) e Leonor. Ambos muito bem vestidos. Heitor dirige-se imediatamente à cama onde se deita com um suspiro.
(…)HEITOR –  (rindo) Quando penso na peça que fomos ver esta noite.
LEONOR –  (rindo também) É atroz!
HEITOR – Só pelo título devíamos ter logo desconfiado que era uma dessas coisas sem pés nem cabeça, completamente louca.
(…)LEONOR – Já não sabem o que hão-de inventar para espantar o público.
HEITOR – Épater le bourgeois.
(…)Nesse instante, entra Ana com a sua grande barriga. Traz na mão uma pistola. Com ela, dispara vários tiros sobre Heitor e Leonor, que caem mortos. (…)”  (32)

A acção da obra, em certas passagens, é extremamente violenta, tanto a nível do enredo como da expressão lexical.
Como disse Oscar Wilde, “os livros a que o mundo chama imorais são aqueles que lhe mostram a sua própria ignomínia”. Frase que pode perfeitamente servir para definir o objectivo desta peça dum, à altura, jovem escritor que, segundo temos conhecimento, durante diverso tempo passou bastantes dificuldades, devido ao seu feitio pouco acomodatício e contestatário.

MANUEL GRANGEIO CRESPO | Poeta e dramaturgo, é neste segundo campo que se revela extremamente original, não apenas pelas duas peças que escreveu  (“Os Implacáveis” e “O Gigante Verde”) mas também pela atenção que dispensou a determinados aspectos e correntes da actividade teatral  (veja-se, a título de exemplo, o feliz prefácio feito para a belíssima obra de Georges Schéadé “O Senhor Bob’le”).
Na sua primeira peça, “Os Implacáveis”, pretende-se representar a última noite que antecede a execução duns réus, que são, a propósito, as únicas personagens intervenientes.
Como referiu Urbano Tavares Rodrigues no prefácio escrito, verifica-se nesta peça uma grande influência de Artaud, “tão presente na estridência violenta dos altifalantes, o coro do mundo caótico, e nas próprias máscaras-refúgio, aumentativas ou diminutivas?!” (33). Também aqui se observa uma tentativa de comprometer o público na representação, expressa nas indicações cénicas dadas pelo autor:

“Dois homens e uma mulher levantam-se de entre a assistência e dirigem-se para a secção B. Atitude casual, um pouco distraída. Aconselhável que cumprimentem alguns espectadores pelo caminho.” (34)

Um aspecto que se encontra presente nos textos dramáticos dos surrealistas portugueses é o aproveitamento dos diálogos para que as personagens digam poemas (35). Grangeio Crespo, porém, vai mais longe, incluindo nos diálogos uma prosa extremamente lírica:

“LUCIANO –  (…) quando entravas nos meus olhos um cavalo cego punha-se a percorrer as campinas dos meus nervos…
AMÉLIA – Um cavalo cego que pisava o musgo fresco dos meus nervos…” (36);
“AMÉLIA –  (…) A dúvida é como um violino sem cordas…” (37); ou ainda
“LUCIANO –  (…)Os ponteiros cantam como bruxas desdentadas…” (38).

Mas não são apenas as personagens a ter este comportamento poético. Também o altifalante profere uma afirmação cheia de lirismo, ele que funciona como coro, ao jeito do Orador na peça de Mário Cesariny:

“O teu rosto é um peixe que nada na tua voz cada palavra esquecida é uma gota do teu nome” (39).

O lirismo e a poesia servem para aumentar e acentuar o caracter angustiante da peça, por funcionarem exactamente como contrários dessa sensação de tormento que se apresenta, aliás, quase como uma obsessão ao longo de todo o texto. Em “O gigante verde”, a sua outra peça, a influência dos textos de Artaud é ainda mais patente. A peça, publicada primeiramente em França e só depois em Portugal, aproxima-se bastante dos textos dos surrealistas franceses, estando o acento tónico posto na impossibilidade de constituição de um enredo coerentemente articulado, porque se objectiva o desvelamento do indivíduo e, nesse sentido, se afasta um universo ficcional que a representação tradicional parece sempre implicar. Por idêntico motivo se verifica igualmente a permanência de uma certa estrutura psicológica comum às várias personagens, que incide fundamentalmente na elaboração de frases, indistintamente proferidas, poetizando os diálogos e simultaneamente despindo-os daquela organização conforme aos hábitos teatrais. A expressão destas imagens poéticas é uma constante ao longo de todo o texto e a sua exposição parece ser um primeiro objectivo de realização da peça: ”Quando tiveres o teu violino hei-de arranjar umas meias de lã para mim” (40) ou “ (…)o candeeiro da esquina é uma mulher elegante com um girassol no cabelo” (41) são frases que pelo lirismo e maravilhoso que propõem ilustram o que acabamos de afirmar. A forma desataviada como é tratado o cerne da peça  (as ligações do Homem com o Gigante Verde, ou seja, a Natureza) propondo um clima de lirismo e poesia, está formalmente nos antípodas da obra de Jorge de Lima Alves que, também elaborada sem peias ou constrangimentos formais, evidencia por seu turno um desejo de erguer um clima de derisão e provocação.

VIRGÍLIO MARTINHO | Conhecido sobretudo como novelista, Virgílio Martinho interessou-se também pelo fenómeno teatral, tendo colaborado com o grupo de teatro do Clube Atlético de Campolide na encenação de alguns espectáculos  (primeiro “O avançado centro morreu ao amanhecer”, de Augusto Cuzzani e depois a versão actualizada de “A vida do grande D.Quixote de la Mancha e do gordo Sancho Pança”, de António José da Silva). Dessa experiência, ele próprio nos dá a sua opinião: “Nunca tinha trabalhado em teatro e ignorava completamente como é fascinante fazê-lo. Ignorava também as dificuldades de toda a ordem que é preciso vencer para se montar um espectáculo responsável (…) E asseguro-te que gostei. E que mergulhei nesse mistério com o corpo todo, percebendo o que era um palco, um público, um actor, um encenador, um contra-regra, enfim, um teatro por dentro e por fora. E parace-me que até nunca mais sairei dele. (…)”  (42). Foi esse grupo que também levou à cena a sua peça “Filopópolus”, dirigida por Joaquim Benite e que havia sido anteriormente publicada na colectânea “Grifo”, a seu tempo apreendida pela PIDE.
Dela diz Carlos Porto, com propriedade: “ (…) a peça de Virgílio Martinho é a proposta, literariamente notável, de um espectáculo cujas implicações de toda a ordem não anulam, muito pelo contrário, as suas exemplares potencialidades cénicas.
Duas máscaras: Filopópolus, o conspirador-ditador  (com um slogan fatal: o povo, polvo) e Mercedes, a viúva de soldado, porta-estandarte da revolução traída que acaba na forca como por vezes acontece àqueles que acreditam nas virtudes da participação. Entre estas personagens-limite, a fauna dos aproveitadores dos restos; dos bebedores do sangue e da esperança. Conspirando, espiando, louvaminhando, explorando, traindo, vampirizando. Tudo isto expresso numa imensa, saudável gargalhada, ou seja, num jogo muito sério (…)”  (43).
Toda a peça está ordenada em função de a crítica à corrupção do Poder ser expressa não apenas mediante a intriga própria  (que é insólita, irónica e propositadamente bastante ficcional) mas especialmente e com acutilância através das analogias estabelecidas no espectador com a realidade circundante da época. O caracter aparentemente inofensivo da peça, devido ao conjunto de características referido esbate-se completamente; é através da conjugação da forma em que se desenvolve a intriga com as analogias aludidas que a peça ganha a sua surpreendente originalidade e agudeza.
Interessante é também verificar que as personagens, embora assumam a qualidade de protótipos, permitindo dessa forma estabelecer relações de semelhança com a realidade circundante, possuem também existência por si mesmos, devido aos tiques e expressões muito pessoais que o autor lhe imprimiu, com o objectivo de aprofundar ainda mais a acuidade da obra e a sua finura. Vejamos alguns exemplos do que acabamos de afirmar.
Filopópolus, o conspirador, repara que um dos embuçados da reunião secreta é o Magistrado Mesquita:

“FILOPÓPOLUS – Mesquita, o magistrado, aqui!
 Movimento geral de pânico
 MESQUITA – Ouvi tudo. E ainda que na aparência afeiçoado a Vitorino, sou o cocuruto da justiça, cumpro a lei e dito as penas. Ora bem, jogo em ti, medianeiro traidor pela causa da paz e das viúvas dos tenentes.
FILOPÓPOLUS – Pela honra da traição que a causa dos traidores aumenta. Mesquita, a justiça não muda de cocuruto, é toda tua. Abraça-me com vigor.
(Abraçam-se, flash no palco)
CÂNDIDO, (o espião) – A fotografia é uma arte realista.
CONSTANTINO, (o banqueiro) – Nada melhor para a concórdia universal que o realismo.
 Aprovação em murmúrio dos embuçados”  (44)

A comparação com a realidade circundante chega a ser directamente sugerida aos espectadores. Depois de derrubar o General Vitorino, Filopópolus propõe-lhe uma aliança:

“GENERAL VITORINO –  (em tom resignado) Assim seja. Ganhaste, Filopópolus. Tomemos então os nossos respectivos comandos. Eu, do Exército, tu da Administração.
ANA DE ÁUSTRIA – Com a valorização crescente dos nossos capitais.
LUDOVICE –  (com unção) …dos templos…dos jardins…das ovelhas…
Saem todos em grande harmonia. Cândido fica no seu lugar.
CÂNDIDO –  (foco sobre ele, a cena escurece) Não vos admireis da versatilidade dos caracteres e dos acontecimentos. Vós também sois assim. Pensai bem…”  (45).

A maneira insólita e aparentemente infantil como várias passagens da obra se desenvolvem serve para conferir à intriga um caracter de irrealidade mas também uma certa doçura poética:

“ALICE DAS MARAVILHAS –  (…)  (Levanta-se precipitadamente e vai encostar o ouvido à porta) Nem mais uma palavra que o espião está à escuta!
FILOPÓPOLUS –  (com manifesto desprezo) Ora, ora, um espião espia, um conspirador conspira, mas a História é que conta!
ALICE DAS MARAVILHAS – Isso só depois é que se sabe!  (Orgulhosa)  Bem vês que a minha profissão é essencial e rende…não a posso perder com as tuas fantasias. Queres ver como é?  (Grita para a porta) Cândido, espiãozinho, estás aí?
CÂNDIDO –  (A sua voz atrás da porta) Estou sempre no meu posto, bela Alice das Maravilhas!  (Entreabre a porta e espreita)
ALICE DAS MARAVILHAS –  (Para Filopópolus) Agora fala em golpes de Estado a ver se és capaz!”  (46)
Contudo, esse clima extraordinário e com uma alta carga irónica é utilizado também com um objectivo bem sério, como disse Carlos Porto – o da crítica mordaz, nada tendo a ver com o gracejo ou a sentimentalidade:
“FILOPÓPOLUS – Alto lá, as cerimónias ainda não acabaram! Além disso são a trave mestra de todas as presidências e portanto indispensáveis para confirmar a grandeza e inteligência dos dirigentes. Pacifistas, continuemos.
CONSTANTINO – Nem mais, Filopópolus, continuemos, mas sem esquecer as contabilidades e os bancos, já que se falou em traves mestras. Que nesta presidência os ricos e os pobres possam investir pela certa, eis o segredo. Pois, como todos sabem, o dinheiro é como as árvores delicadas, precisa de água para crescer. Filopópolus, façamos barragens!”  (47)

Tudo isto, finalmente, enquadrado por uma visão que confere grande dinamismo às personagens em palco. Damos um exemplo:

“Metade dos ex-embuçados voltam a pôr os capuzes, alguns tornam a tirá-los, de forma a dar a hesitação do momento. Olham uns para os outros, trocam frases apressadas e ininteligíveis. A algazarra exterior mantém-se. Ludovice simula uma oração. Cândido está em pânico. Ana de Áustria ri à gargalhada e aponta Vitorino, que treme. (48)

Verificamos pois que esta peça, pela sátira política, pela fina ironia e, enfim, pelo universo simultaneamente poético e atroador que a enforma, se afasta decididamente do teatro naturalista e realista para se guindar a um plano específico que revela adesão ao surrealismo.

NICOLAU SAIÃO | Poeta, ensaísta e pintor, escreveu recentemente uma peça que se encontra inédita em tipografia, “Passagem de Nível”. Depositada na Sociedade Portuguesa de Autores, o autor efectuou uma tiragem reservada para oferecer a amigos e relações literárias. (Nota posterior – Em 1992 teve a sua edição tipográfica).
“Mistério em três actos com um prólogo e um epílogo”, a intriga desenvolvida parece ser também um pretexto para colocar em evidência uma grande carga lírica nos gestos, nos diálogos e no mundo em que se movimentam as personagens  (veja-se o sótão da casa de Adrian Cactus, repleto de objectos estranhos e maravilhosos, um mundo plenamente surrealista). Contudo, essa grande densidade poética da peça não anula a sua intriga, antes a envolve numa atmosfera fascinante: mesmo os momentos que, em princípio, deveriam revelar maior tensão, pela existência de choques entre as personagens  (como o primeiro encontro entre Pedro Colibri e Justiniano) revelam uma subalternização desses embates em benefício da introdução de um ambiente poético, verificando-se desse modo que os conflitos assumem um cariz algo lírico. Mas não nos deixemos enganar: subjacente, está uma violência que palpita como, sob a pele aparentemente saudável, um tumor maligno o faz.
As personagens, que funcionam algumas delas como expressões de certo tipo humano  (Justiniano, o capitalista desapiedado e manhoso; Adrian Cactus, o sonhador despegado do mundo material; o Cabo Miquelina, representação da prepotência obtusa e da estupidez policial…) estão também, por vezes, despidos dos seus caracteres habituais. É este o caso do Padre Joaquim Gráfico, bastante heterodoxo – um pouco ao jeito do Abade Joãozinho do livro de Boris Vian “Outono em Pequim”.
Esse ambiente lírico mas também místico, pelo menos em algumas passagens,  (místico à maneira surrealista, claro…) mistura personagens perfeitamente possíveis, ou melhor, habituais, com outras mais inverossímeis. É o caso dos três Gnomos  (Senhorinho, Papito e Teia d’Aranha) e do Cavaleiro Negro. Mas, se bem verificarmos, aperceber-nos-emos que muitas das atitudes das personagens, perfeitamente poéticas e desataviadas, se nos revelam “incoerentes”; ora assumem um ar circunspecto ora se lançam em tiradas decididamente talhadas no material ora do humor negro, ora do onirismo fingidamente quotidiano  (não existem, por exemplo, as teorias astrofísicas de Isaac Constantinople). E isto apenas porque os poetas são, parafraseando Raul Hausmann, “esses idealistas em valores de bolsa” que realizam algo de mais grandioso que uma qualquer apoteose do efémero. Na peça que analisamos, é evidente que se nota que o seu autor, dissimuladamente, deixa transparecer umas quantas mensagens sob o manto dos diálogos, da intriga, da acção geral. Apologia da sabedoria e do conhecimento, na peça de N.Saião é fácil entender o elogio do amor, da rebeldia, da alegria de viver; e a censura do autoritarismo, do fideísmo eclesiástico e dos constrangimentos sociais.
Como disse Rimbaud, “o poeta fala não só pelos homens mas também pelos animais”. E pelas coisas, acrescentaríamos nós, já que a verdadeira poesia deverá ser uma proposta englobando todos os reinos da natureza.
Se nos pedissem para encontrarmos uma frase definidora desta peça, escolheríamos esta de Louis Pauwels: ”Se me disserem que não existe nenhuma espécie de maravilhoso para encontrar neste mundo, recusar-me-ei obstinadamente a dar ouvidos. Eu continuarei com os meus fracos recursos e com toda a minha paixão a procura-lo”. (49). É esse maravilhoso que se expressa em toda a peça, após o “aviso” que constitui o Prólogo fornecido por Este e Aquele. E a pergunta, mesmo que ingénua, surge e aqui fica: porque é que há-de valer sempre mais ser comerciante do que ser poeta?

OS CASOS DE JORGE DE SENA E ANTÓNIO PEDRO | Não gostaríamos de finalizar este trabalho sem tecermos algumas considerações sobre dois poetas que se debruçaram sobre o problema do surrealismo e que chegaram mesmo a praticá-lo, posto que para se verificar depois um abandono, como foi o caso de António Pedro.
Este poeta e pintor, se bem que tenha aderido ao surrealismo no grupo de Londres, cidade onde na altura se encontrava, e sendo posteriormente co-fundador do G. Surrealista de Lisboa, tem como dramaturgo um trabalho profundamente afastado do teatro surrealista. Basta analisarmos as suas peças para que esse facto se saliente. (50). Também na sua feição de encenador tal aspecto é verificável. Ante as críticas que lhe dirigiram outros surrealistas, verifica-se o abandono, podendo interrogarmo-nos sobre como seria o surrealismo de António Pedro, qual o seu grau de sinceridade.
Essas críticas surgiram porque António Pedro se juntou à burguesia demo-liberal. No regime fascista, as encenações de António Pedro eram ofensivas desse mesmo regime devido ao extremo fechamento que este impunha. No entanto, num regime democrático, liberal-burguês, tais encenações seriam perfeitamente inócuas. Possuindo uma extrema boa qualidade, digamos, eram a face “bem vestida e bem apessoada” do querer oposicionista. Ora, o surrealismo tanto é subversivo do fascismo como do liberalismo burguês, do estalinismo ou de qualquer outro semelhante, encarando-os como diferentes formas de domínio, umas mais intolerantes que outras, do capitalismo privado ou de Estado.
António Pedro, a nível da dramaturgia e do mundo do teatro, possuía uma concepção provincianamente lusa à qual tentava adaptar algo que o ultrapassava – o surrealismo. Queria um surrealismo bem composto, respeitado pelos democratas de bem e, quem sabe, pelos adversários, em suma: um surrealismo à pequena medida dum pequeno e engraxado país, sempre em busca de respeitabilidade. Como António Maria Lisboa e Cesariny referiram num comunicado, tentava “meter o Rossio na Rua da Betesga”.
É fácil perceber e concluir que a sua actividade estava na linha do pensamento que tinha a ver com a luta intelectual anti-fascista da oposição burguesa democrática, sendo portanto legítima e digna, só que sem relação com o surrealismo. Como anti-totalitários que são, os surrealistas não o tentaram impedir de encenar e escrever o que e como bem quisesse. Exigiram-lhe sim que não se continuasse a intitular surrealista, para evitar confusões. Nessa altura, António Pedro assumiu uma atitude de sobranceria, vindo as posições a extremar-se como é do conhecimento geral.
Quanto a Jorge de Sena, desde cedo se interessou pelo surrealismo, fascinação que se iria reflectir na sua obra teatral, que possui inegáveis pontos que indicam as influências sofridas. (51). No entanto, Jorge de Sena – devido à sua formação académica, sempre enfronhado numa mentalidade “universitariante” e doutoral – não estava dentro das práticas surrealistas; parecia querer tornar o surrealismo algo de classicizante, asséptico, de fraque ou borla e capelo, em suma: um surrealismo compostinho, com os diplomas todos, tipicamente médio-burguês. Tal como Maria de Fátima Marinho o visionou no seu imenso livro. Para Jorge de Sena, o surrealismo deveria aspirar à respeitabilidade, a ser um “intelectual sério” e com uma boa carreira, no vestíbulo da glória, o que os surrealistas recusam, pois – e a frase é de Nicolau Saião – “preferem um copo de tinto e uma bela vadiagem para olhar as estrelas ou os amores do mundo ao invés de se engravatarem e sentarem compenetradamente a uma secretária à aurora ou ao crepúsculo”. Como disse Carlos Martins, “não se trata de aderir ao surrealismo por uma questão de simpatia especial por figuras de proa, aristocratas de côrte ou academia, sejam elas quais forem. Gosto de amigos desaparecidos e ainda vivos, do Breton, do António Maria Lisboa, do Pedro Oom, do Artaud, de milhões de estrelas que fizeram da Poesia o único caminho de liberdade deixado ao homem neste planeta ameaçado de destruição total. Estou-me bem nas tintas para uma certa notoriedade “surrealista” que tanto faz correr alguns pintores e poetas da Pena”. (52)
Toda a vida contemporânea está marcada pela dedada do surrealismo, pelo que não é possível acreditar na sua morte como tantas vezes tem sido anunciado, sabe-se lá com que intuitos, mas antes na sua passagem para formas de moral de acção, muitas vezes; as quais, sendo anónimas, se diluem na vida colectiva. O palco da vida continua a ser uma campina surrealista. Que, por vezes, encarna em obras palpáveis e com curso público.

FINALIZANDO | Tentei, com este trabalho, não apenas clarificar alguns assuntos e efectuar uma abordagem inicial a outros, mas também e apesar dos condicionalismos inerantes a uma tarefa desta natureza proporcionar-me momentos enriquecedores e aprazíveis em simultâneo com a feitura de uma proposta de leitura que também, para o Professor, se revelasse agradável. Estes dois últimos aspectos não deverão, no meu entender, ser objectivos menores de uma disciplina ou de um curso.
Se a arte do actor, no dizer irónico de Sir Ralph Richardson, “consiste em evitar a tosse do público”, a arte de qualquer indivíduo que pegue na caneta deverá consistir em tentar evitar o bocejo do leitor.
Espero tê-lo conseguido…

NOTAS E COMENTÁRIOS

CAPÍTULO I
(1) BRETON, André, Manifestos do Surrealismo, Lisboa, Moraes Editores, 2ª Ed., 1976, p.47
(2) MARINHO, Maria de Fátima, O Surrealismo em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, 198y7, p.11
(3) Cf. Maria de Fátima Marinho, op.cit.
(4) DUROZOI, Gérard e LECHERBONNIER, Bernard, O Surrealismo, Coimbra, Almedina, 1976, p.7: “Esta incompreensão não é devida sobretudo a certos hábitos de encarar a literatura e a arte em geral segundo critérios que o surrealismo fundamentalmente recusa?”
(5) FORTINI, Franco, O Movimento Surrealista, Lisboa, Presença, 1965, p. 10: “ (…) digamos já que se pode falar de surrealismo em sentido restrito, com referência à actividade de certas pessoas, reunidas em grupos, de formação bastante variada em torno do maior teórico do movimento, André Breton (…)”. Breton, em nosso entender e de acordo com o que pesquisámos, foi apenas um entre os surrealistas. Teórico? Foi ele quem afirmou “Je suis pas pour les adeptes”…
(6) Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, op.cit., p.136
(7) SAIÃO, Nicolau, in Subsídios para o entendimento surrealista, A IDEIA, Revista de Cultura e Pensamento Anarquista, III volume, nº 20-21, Lisboa, 1981
(8) Que o surrealismo não é anti-racional mas anti-pseudo recionalismo pode verificar-se da defesa que os surrealistas sempre fizeram de homens como Gaston Bachelard, Giordano Bruno, Roger Bacon ou Galileu Galilei, uma vez que os consideravam cientistas onde se casavam na perfeição a realidade, a poesia e a coragem intelectual. Para melhor elucidação ler os textos que Pierre Mabille  (não confundir com Pierre Navile!) dedicou às relações entre surrealismo e ciência: “Le miroir du merveilleux”, 1940
(9) “Conta-se que, quando ia dormir, Saint-Pol Roux mandava sempre pôr sobre a porta do quarto no seu solar de Camaret o seguinte letreiro: “O poeta trabalha”. Citado por André Breton in Textos de Afirmação e de combate do Movimento Surrealista Mundial, antologia organizada por Mário Cesariny, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1977, p.67
(10) Numa “Carta aos médicos chefes dos asilos de alienados”, Antonin Artaud reclamava a libertação dos “forçados da sensibilidade”, vítimas que eram da mensuração do espírito, como lhes chamou, denunciando que “os asilos, longe de serem asilos, são prisões pavorosas cujos detidos fornecem uma mão-de-obra cómoda e gratuita e onde a sevícia é a regra (…)”. Modernamente, leia-se para ilustrar o livro de Ken Kesey “Voando sobre um ninho de cucos”, ed. portug. em Coimbra.
(11) Este assunto fica suficientemente esclarecido no texto “Do tempo em que os surrealistas tinham razão” onde é aclarada a “impostura estalinista”  (ver André Breton, op.cit., ps. 279 e segs.), tal como “À la niche les glapisseurs de dieu” aclara a impostura fideísta  (CESARINY, Mário, A intervenção surrealista, Lisboa, Ulisseia, 1966, p.56).
(12) Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, op.cit., p.36
(13) Atente-se que religião vem de re-ligare, om que significa efectuar de novo a perdida junção entre o homem e o cosmos. Todavia, as religiões institucionalizadas e geridas pelas igrejas são, no entender dos surrealistas, “grandes empresas de desmiolação” a que subjaz o fanatismo, apoiadas nas obsessões sexuais, nos preconceitos e nas neuroses, apresentados como “moral” e tidos como exemplares e servidas por miríades de fanáticos  (nos casos mais extremos) ou de obcecados, como é o caso dos sacerdotes. Robert Desnos afirmava que “ninguém tem um espírito mais religioso que eu, na medida em que estou profundamente ligado ao universo cósmico”. Verifica-se, portanto, que os surrealistas aceitam a religião enquanto ligação do homem ao universo, mas a recusam absolutamente enquanto sujeição do ser humano a dogmas fideístas, sempre abusadores, ou à figura de qualquer deus a quem se deveria adoração não se percebe bem porquê.  (Cf. Nicolau Saião: Para que precisa “Deus”, um ser perfeito, da adoração de seres imperfeitos como dizem que nós somos? E porque tem “Deus” tanta necessidade que os seus sacerdotes lhe façam incansavelmente a publicidade? Isto para ficar só por aqui”.)
(14) Dão-se apenas dois exemplos: ao perguntarem-lhe porque costumava ir encontrar-se com o admirador X no Jardim do Luxemburgo  (tentava o juiz dá-la como lúbrica), respondeu desta forma magnífica: “Acalentava a esperança de encontrar um homem que me falasse com as palavras do sonho”; inquirida pelo mesmo juiz, que devido ao barulho levantado pelo julgamento se apurou ser um perfeito canalha, sobre se não tivera remorsos de ter abatido “o marido de sua Mãe” – que a violara 43 vezes – respondeu: “Apesar do mal que me fez, tenho talvez mais pena dele do que V.Exa. decerto tem dos mais de quarenta desgraçados que mandou para a guilhotina e nunca lhe fizeram mal”. Para melhor elucidação deste caso procure ver-se o probo filme de Claude Chabrol “Viollete Nozières”, com entre outros actores Isabelle Hupert e Stéphane Audran  (1978).
(15) Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, op.cit., p. 334
(16) Não se colocando nesta base e daí partindo para posteriores análises, os investigadores do fenómeno surrealista, quando se debruçam sobre as suas obras não as conseguem integrar no contexto próprio. Um exemplo: no seguinte poema de Cesariny “Creio em deus pá/ um dois três quá/ tod’ poderou’/ um dois dois três/ criador do céu e da té’/ seis sete oito  (…)” o A. mais do que “parodiar o Credo” ou apresentar “definições de ritmo e de rima que destroem qualquer análise séria  (sic)” ridiculariza o Credo e toda a beatice ataviada nele expressa e, por seu intermédio, as directrizes filosóficas e de actuação do fideísmo ocidental. Contudo, no seu ensaio sobre o surrealismo, Maria de Fátima Marinho  (talvez por receio de ofender o Patriarcado, na melhor das hipóteses) fica-se pela referência às duas particularidades primeiramente enunciadas – paródia do Credo e destruição do ritmo e rima tradicionais  (cf. Maria de Fátima Marinho, op.cit., p. 412). Como referiu René Crevel, a poesia verdadeira “nada tem a ver com os cantos mais ou menos felizmente rimados ou ritmados que lisonjeiam as coisas e os seres bem instalados e que os deixam nos seus lugares”.
(17) Trata-se efectivamente de uma Ética e não de uma Moral, pois como refere William Morrison “a moral é episódica e depende de leis sociais, frequentemente falsas e enganosas, enquanto a ética é uma atitude que parte da dignidade inscrita em cada um e inapagável”.
(18) Refira-se a este propósito, a título de exemplo, o caso de Manuel Mourato, carpinteiro em Portalegre e que, devido à fractura de um pé, que o impediu de trabalhar durante certo tempo, ocupou-o a pintar, espontaneamente, uma enorme obra usando para o efeito tintas utilizadas na sua profissão. Esta obra esteve patente na “Exposição Ícono-Bibliográfica ‘O Fantástico e o Maravilhoso’ no Teatro Ibérico  (Julho de l984) e na Sociedade Nacional de Belas Artes, com o título “A floresta encantada”. Manuel Mourato nunca tinha participado em qualquer exposição, fazia de vez em quando, no remanso da sua casa  (onde vive absolutamente só) uns desenhos “para se distrair” e não tem qualquer iniciação artística; devido a uma insuficiência auditiva e oral nunca fez mais que a segunda classe, posto que seja pessoa bastante sociável.  (Nota posterior Já falecido). 
(*) Constava da peça de NS, Passagem de Nível, de fotos de quadros de Manuel Mourato, de LUD e de colagens de Carlos Martins; bem como de extractos de obras de Cesariny, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria e Manuel de Castro.

CAPÍTULO II
(1) REBELO, Luiz Francisco, O teatro simbolista e modernista, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, “Biblioteca Breve”, 1979, p. 71
(2) Idem, p.72. Não confundir movimento, enquanto estrutura organizada, com projecto de vida e de actuação. Afirma Mário Cesariny: “Em Portugal nunca houve um movimento surrealista, nem sequer no ano de existência pública  (1948-49) do grupo surrealista de Lisboa que depois da edição de quatro cadernos, de um protesto público e de uma exposição de pintura se dissolve, dando lugar a outro que também não tardará muito a dissolver-se. Como seria possível subsistir ou subsistir-se na ditadura? (…) o que não quer dizer que não tenha aparecido na cena pública (…) Do surrealismo não resta nada, mas acontece que estão todos. Permanecem intactos os propósitos, fins e meios da intentona surrealista”.  (in Jornal de Letras, nº398, 20 de Fevereiro de 1990). Parecendo querer referir o movimento, L.F.Rebelo  na realidade confunde o problema. Não se deve encarar como “morto” ou “acabado” o surrealismo apenas por este não aparecer enquadrado por uma estrutura organizada ao nível de “grupo”. O surrealismo tem acontecido depois dos anos 50 e continua a acontecer – evoluindo naturalmente nos seus resultados em espécie – da mesma forma que se encontrava presente antes da formação do primeiro grupo em 1919 e da elaboração do projecto que afixavam. A este propósito, veja-se o livro de Durozoi e Lecherbonnier, entre outros, e a genealogia que os surrealistas consideram.
(3) in Jornal de Letras, nº 398 de 20 de Fevereiro de 1990, p.6
(4) Idem, ibidem
(5) in Jornal do Fundão de 12 de Maio de 1963, p.6
(6) Idem, p.7
(7) Idem, ibidem
(8) CESARINY, Mário, A intervenção surrealista, Lisboa, Ulisseia, 1966, p.59
(9) Por exemplo, Cesariny foi detido em Portugal algumas vezes, tendo durante muito tempo que se apresentar periodicamente na Polícia, para controle, ficando conhecido como “o Poeta que ia à Revista”. Em França, por comportamentos vitais considerados impróprios  (homossexualidade e rebeldia) este também preso, tendo sido libertado devido à intervenção de intelectuais.
(10) Caso de Pedro Oom em Alvaiázare. Tendo-se ali deslocado, foi abordado num café por um natural da terra que, tendo visto uma exposição em que este apresentava um quadro chamado “As meninas de Alvaiázare”, se sentiu tocado nos seus brios bairristas; palavra puxa palavra, em breve se passou dos comentários acintosos à acção material e violenta, logo corroborada por outros sujeitos suscitados ao confronto físico com o poeta e pintor. Não fôra a intervenção do barbeiro local, figura dada às lides culturais e respeitada na povoação e teria sido propiciado ao A. de “Histórias para crianças emancipadas” um correctivo maior que o que já recebera.
(11) Morte prematura de António Maria Lisboa em 11 de Novembro de 1953, depois de em 1951 haver sido internado num sanatório “com os pulmões irremediavelmente perdidos”; também Mário-Henrique Leiria morreu fruto, em grande medida, de carências alimentares  (“de fome”, como foi referido por um testemunho dum amigo, na altura, nos jornais).
(12) Caso de António Santiago Areal, que depois de vários problemas com autoridades & etc., apareceu assassinado em 1978, continuando desconhecidas as condições da sua morte.
(13) Caso de Carlos Martins e Ana dos Santos, que devido à sua actividade surrealista tiveram problemas que os forçaram a deixar o emprego e os fez sofrer marginalizações da parte das autoridades da região de Alcoutim, que habitam  (Nota posterior – Na época da feitura deste texto) não lhes tendo sido pago por exemplo um subsídio a que tinham direito, o que motivou uma carta de amigos ao Pres. da República – dado que segundo se diz vive-se em Democracia. Caso de N.Saião, que por distribuir textos surrealistas no Alentejo depois do 25 de Abril, sofreu tentativas de agressão por parte de estalinistas e fascistas, a que escapou por na altura andar sempre armado de pistola; tentaram, ainda, expulsá-lo da sua terra – curiosamente foi prevenido pelo comandante da polícia da época, um militar democrata sobre quem queriam fazer pressão.
(14) PORTO, Carlos e MENEZES, Salvato Teles de, Dez anos de teatro e cinema em Portugal, 1974-1984, Lisboa, Caminho, “Col. Nosso Mundo”, 1985, p.79
(15) Cf. N.Saião, a quem Cesariny o contou
(16) REBELO, L.Francisco, História do teatro português, Lisboa, Europa-América, Col. “Saber”, 1967, p.116
(17) Sobre este problema, ver BARATA, José Oliveira, Didáctica do Teatro, Coimbra, Almedina, 1979, pp.49 a 54
(18) Citado por Luiz Forjaz Trigueiros, Novas Perspectivas, Lisboa, União Gráfica, 1969, p.207
(**) Foi editado em tipografia c/ o apoio e subvenção integral da Comissão Regional de Turismo de S.Mamede, Governo Civil de Portalegre e Câmara Municipal portalegrense.

CAPÍTULO III
(1) Maria de Fátima Marinho, op.cit., p.267
(2) Cf. BEHAR, Henri, Sobre teatro Dada y Surrealista, Barcelona, Barral Editores, Col. “Breve biblioteca de Respuesta”, 1970
(3) in Situação da Arte, inquérito junto de artistas e intelectuais portugueses, Lisboa, Europa-América, Col. “Estudos e Documentos”, 1968, p.167
A questão pressupunha, de acordo com os seus autores  (Eduarda Dionísio, Almeida Faria e Luís Salgado de Matos), que “o teatro vive das personagens”.
(4) Manuel de Lima, “Interfácio – Uma peça como não se faz lá fora”, in O clube dos antropófagos, Lisboa, Ed.Estampa, 1973, p.129
(5) Cf. Opinião de Carlos Porto in “10 anos de teatro”, op.cit., p. 67 sobre a peça “Um auto para Jerusalém”, da autoria de Mário Cesariny
(6) CESARINY, Mario, Nobilíssima Visão, Lisboa, Guimarães Editores, Col.”Poesia e Verdade”, 1976, p.85
(7)  Maria de Fátima Marinho, op.cit., p.351
(8) Mário Cesariny, op.cit., p.96
(9) O autor recomenda uma projecção de slides, à falta de filme para a circunstância, que mostrarão depois de um letreiro genérico “diversas imagens de veículos automóveis, indo-se dos mais espampanantes e modernos aos mais irrisórios e anacrónicos. Retrocede-se ainda para o landó, para a liteira e, finalmente, para um homem que sobe por um monte com outro homem às cavalitas”, seguindo-se imagens tais como: bairros de lata “de preferência portugueses”, um comando da Legião Portuguesa, “uma cara bem escolhida de Salazar”, uma imagem da explosão da bomba atómica, uma mulher morta, slide do Casino Estoril, uma pose do Cardeal Cerejeira, “imagem de atrocidades sobre nativos na Guerra de África”, um camponês a possuir uma cabra, cena de intervenção cirúrgica…
Mário Cesariny, op.cit.,pp.109 e 110
(10) Idem, p.109
(11)  Idem, p.113
(12) Idem, p.111
(13) Idem, p.90
(14) Maria de Fátima Marinho, op.cit.,p.355
(15) Idem, ibidem
(16) Idem, p.362
(17) Mário Cesariny, op.cit., pp. 100 e 101
(18) Idem, pp.116 e 117
(19) LIMA, Manuel de, O clube dos antropófagos, Lisboa, Ed. Estampa, 1973
(20) Manuel de Lima in “Interfácio – Uma peça como não se faz lá fora”, op.cit., pp. 126 e 127
(21)  Idem, p.128
(22) Idem, p.129
(23) Idem, p.132
(24) Manuel de Lima, op.cit., p.184
(25) Idem, p.224
(26) Idem, ibidem
(27) Cf. Manuel de Lima, op.cit., p.133:” (…) “e evitava-se também dar-lhe o desgosto de um fracasso que não fica bem a um autor ‘maldito’. Ao passo que eu podia muito bem aguentar um falhanço. TOMARA EU!”
(28) ALVES, Jorge de Lima, Cerimonial para um massacre, Lisboa, Ed.PASQUIM  (Grupo Mandrágora), s/d, p.9
(29) Jorge de Lima Alves, op.cit., pp.17 e 18
(30) Idem, p.39
(31) Idem, p.36
(32) Idem, pp.42, 43 e 44
(33) CRESPO, Manuel Grangeio, Os implacáveis, Lisboa, Minotauro, 1961, pp. 12 e 13
(34) Idem, p.21
(35) Veja-se “Um auto para Jerusalém”, em que inclusivamente se introduzem personagens com esse intuito, ou ”Cerimonial para um massacre” em que uma das personagens, sob o pretexto de ler um livro, recita poemas e alguns trechos de Rimbaud
(36) Manuel Grangeio Crespo, op. cit., p.151
(37) Idem, p.159
(38) Idem, p. 160
(39)  Idem, p. 120
(40) CRESPO, Manuel Grangeio, O gigante verde, Lisboa, Ática, 1965, p. 96
(41) Manuel Grangeio Crespo, op.cit., p. 132
(42) In revista “Rádio e Televisão”, nº847, de 3 de Fev.1973
(43) MARTINHO, Virgílio, Filopópolus, Lisboa, Plátano Ed., Col. “Teatro vivo”, nº 2, 1973. Esta opinião de Carlos Porto, o director da colecção, está expressa na contracapa. Infelizmente e segundo julgamos saber, a Plátano Editora encontra-se actualmente praticamente reduzida à edição de livros escolares.
(44) Virgílio Martinho, op.cit., p.40 e 41
(45) Idem, pp.66 e 67
(46) Idem, pp. 10 e 11
(47) Idem, p.77
(48) Idem, p.50
(49) Citado por Alan de Benoist in Nova direita, nova cultura, Lisboa, Ed.Afrodite de Fernando Ribeiro de Melo, Dezembro de 1980
(50) Cf. PEDRO, António, Teatro Completo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Biblioteca Nacional, Col. “Biblioteca de autores portugueses”, 1981
(51) Cf. SENA, Jorge de, Amparo de mãe e mais 5 peças em 1 acto, Lisboa, Plátano Ed., Col. “Teatro vivo”, nº 5, 1974
(52) In Carta a Nicolau Saião, de 27 de Agosto 1989.



JOÃO GARÇÃO  (Portugal, 1968). Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem proferido conferências e publicado artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política e apresentado livros de autores portugueses. O presente ensaio - carinhosamente cedido por seu autor - terá brevemente edição em livro impresso, onde apresenta um prólogo de António Cándido Franco. Contacto: joaofvgarcao@gmail.com. Página ilustrada com obras de J. Karl Bogartte (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.




Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 11 | Junho de 2015
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