I | Temos verificado que, frequentemente, o
surrealismo é associado, de uma maneira geral, à representação pictórica de
personagens biologicamente deformados, com as orelhas no traseiro ou os dentes
nos sovacos. Ou então, quando nele se fala, comodamente e sem mais demoras é
enunciada a definição oferecida por André Breton em 1924 no “Primeiro Manifesto
do Surrealismo”: “Automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir,
verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real
do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer vigilância
exercida pela razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral” (1).
Sucede também referir-se que “o surrealismo foi um fenómeno literário
predominantemente francês cujo apogeu se situou entre as duas guerras” (2).
Isto quando a presença da movimentação surrealista em Portugal e no estrangeiro
não é, a nível interno, pura e simplesmente menosprezada ou ignorada, coisa
muitíssimo frequente (embora, naquele
último caso, as críticas apresentem uma menor virulência quando se trata de
referir, mesmo que ao de leve, os matreiramente apelidados de “históricos” do
surrealismo a nível mundial). Por outro lado, mesmo quando existem propostas de
“estabelecer, com a máxima objectividade possível” (3)
o que é efectivamente o surrealismo e qual o alcance da sua mensagem, as
análises referentes a essa aventura apresentam-se confrangedoramente revestidas
de uma grande frieza e de um certo esquematismo estético, provavelmente devido
ao facto de – e esta é a razão menos mefistofélica que encontramos – os vários
estudiosos se terem debruçado sobre o surrealismo elaborando um género de
análise que, por lhe ser exterior, bem como às suas características, dele se
apresenta distante (4). Verifica-se também a existência de uma visão “oficial”, que
pretende encarar o surrealismo ora como uma escola ora como uma estética
bretoniana (5).
Através de um
mais ou menos longo contacto com o problema do surrealismo, mormente através
das suas obras, demo-nos conta de que todas essas concepções eram incapazes de
contribuir para a compreensão surrealista, antes promovendo a confusão, o
desinteresse e o descrédito sobre o surrealismo.
Porque se
torna imperativo, para uma melhor compreensão das suas obras teatrais, compreender
por um lado o que é efectivamente
esse movimento e, por outro, saber qual o contexto que as alimentou, parece-nos
fundamental procedermos primeiramente à abordagem do primeiro ponto para
posteriormente referenciarmos o trajecto percorrido pelo surrealismo no nosso
país.
Constituindo o
seu aparecimento um “fenómeno extraordinário”, como afirmou Michel Carrouges,
numa sociedade construída à base de místicas, entre as quais as racionalistas,
as técnicas e as trabalhistas, o surrealismo propõe a libertação total do
homem, que se traduzirá pelo acesso ao conhecimento do homem real. O
surrealismo é, para utilizar uma expressão de Nicolau Saião, “uma aposta na
realidade inteira”. Tendo-se verificado, ao longo dos tempos, a manipulação
pretensamente racionalista que tem amputado o homem da sua expressão total, o
surrealismo pretende recuperar essa totalidade, reintroduzindo no real aquilo
que é deixado à margem, através da quebra das correntes apostas ao pensamento
pelo dito racionalismo.
Esta tentativa
de “reconstruir totalidades” e de exploração sistemática das possibilidades
esquecidas do homem é que levou a atenção dos surrealistas para a escrita
automática e, “na medida em que o automatismo permite ao indivíduo descobrir em
si possibilidades insuspeitas, essa descoberta, que é prova da sua própria
liberdade, toma um valor arquetípico” (6). Os princípios enunciados por Breton
e seus companheiros são pontos de partida mais que pontos de chegada; são,
digamos, “constatações de partida”. Aliás, já no jornal “Bulletin de la Vie
Artistique” de 1 de Agosto de 1926, se dava conta disso mesmo: “Eles utilizam a
escrita de uma maneira absolutamente voluntária e contraditória em relação ao
sentimento que possuem desse automatismo”, acrescentando que “os seus actos pertencem
a uma vasta empresa de recriação do Universo”. A escrita automática não se
apresenta como o manancial do surrealismo: “Um reacionário imbecil, fazendo
escrita automática, apenas faz reacionarismo ou imbecilidade. Não deve
esquecer-se que os ‘mecanismos do hábito’ continuam de boa saúde…” (7).
O que com
“automatismo psíquico” esses surrealistas quiseram referir – numa época em que
o seu vocabulário surgia no fragor e certa confusão dos começos – foi a
liberdade mental e psíquica que a sociedade ocidental (através dos pseudo-racionalismos, dos liames
do fideísmo judaico-cristão e da repressão política) procura estorvar e
condicionar. Contudo, o surrealismo não deve ser reduzido a uma concepção
anti-racional pois ele “não gosta de perder a razão”. Acha é que a razão não
deve estar submetida aos estreitos limites que os preconceitos do século lhe
pretendem atribuir (8). O mesmo desejo de totalidade conduziu também a actuação dos
surrealistas para o sonho (9), “onde tudo é possível, pela
capacidade de transgredir os limites normais da acção humana” e para a loucura,
que se enclausura, como tão bem se disse (10).
É nesta perspectiva que se deve entender, igualmente, a atenção do surrealismo
ao maravilhoso e à sabedoria tradicional (muito especialmente a Alquimia).
A escrita
automática e o automatismo psíquico não se tratam, pois, de metodologias em si
mas de um acrescentar de possibilidades até então desprezadas ou desconhecidas
– um ampliar de possibilidades criadoras.
Compreende-se
assim que haja uma ilimitada diversidade de mundos no surrealismo, não tendo o
seu universo que se apresentar como “mundos dalinianos” ou “magritistas” ou
outros vastos painéis oníricos. Certos pintores que por vezes referem a
interlocutores “agora vou-lhe mostrar um quadro da minha fase surrealista” são
ou brincalhões ou ignorantes manhosos, visto que o surrealismo não é uma
questão de fases: “surrealista só é
aquele que vive, escreve ou pratica o surrealismo”, no dizer de Nicolau Saião.
Obviamente, só os surrealistas podem pintar quadros surrealistas, o mesmo se
dizendo para qualquer outra disciplina por estes praticada. Os outros são
apenas imitações mais ou menos grosseiras, em estilo “à maneira de”.
Na sua
amplitude, o conceito “surrealista” apresenta-se então não como transcendente
mas como imanente, na medida em que é expressão de características do “homem na
sua totalidade” e não o fantasiar do quotidiano.
Não sendo uma
proposta negativa e niilista mas libertadora, compreende-se que o surrealismo
se tenha aproximado de todos os movimentos que, de alguma forma, tentavam
emancipar o espírito, a linguagem ou a visão. Foi por esta razão – e apenas por
esta – que os surrealistas se ligaram a determinados movimentos políticos, que
imediatamente abandonaram ao verificarem que eram tão autoritários e
verdadeiramente imobilistas, quando não reaccionários, como os movimentos
políticos tradicionais (11). É pelo mesmo motivo que vários dos
futuros elementos do movimento surrealista francês abandonam o movimento Dada –
que seria simbolicamente lançado às águas do Sena – por ter esgotado as suas
virtualidades: “ (…)decepção, devido à monotonia dos métodos de ‘aturdimento’ e
‘cretinização’ empregados e à estéril repetição de provocações que se acham
progressivamente despoletadas” (…). (12).
Porque tende
para a realização total do homem, dos seus desejos e das suas liberdades,
pode-se considerar que a reivindicação surrealista é política em si mesma: a
“revolução” preconizada pelos surrealistas tem em vista o fim dos
totalitarismos, do capitalismo de Estado ou privado, do fascismo e do nazismo,
do que as religiões têm de preconceituoso e fascizante (13).
Por outras palavras, o surrealismo não pretende o divórcio completo dos grupos
sociais nem rebentar com o todo social, como por vezes é referido, mas apenas
com o que este tem de pôdre. Neste sentido, o apelidar-se o surrealismo como
movimento revolucionário decorre mais dum factor em certa medida exterior a si
próprio, decorrente da própria podridão social, sendo os surrealistas “revolucionários
sem revolução”. O surrealismo, simplesmente, é, propondo a imaginação, a liberdade, a generosidade, despertando
a criatividade sem peias, numa sociedade onde não se seja dominado nem pela
miséria nem pelo consumismo infrene. A talhe de foice, assinalemos a
naturalidade com que os índios hopi (bem
como outras tribos, tal como estes praticando uma vida que é o mais aproximado
do surrealismo que se conhece) receberam André Breton, durante o seu exílio
americano; ou os dogons do Sudão em relação a Michel Leiris e Marcel Griaule.
Aí, os surrealistas não contestavam aquelas sociedades, uma vez que elas
existiam criativa, humana e poeticamente em moldes assaz surrealistas.
É indiscutível
a fraternidade que liga surrealistas e libertários. O surrealismo, contudo,
ultrapassa o anarquismo pelo acento tónico que põe em aspectos como o amor, a
poesia, a imaginação e a alquimia interior do ser humano. Assim, por exemplo,
no “Caso Viollete Nozières”, jovem que assassinou o padrasto que a reprimiu e
violou sexualmente anos a fio servindo-se de chantagem e ameaças, os
anarquistas tomaram o seu partido por ela ter abatido um notório reacionário (o seu padrasto estava ligado a movimentos de
extrema-direita). Os surrealistas, que a apoiaram desde o início, saíram à estacada
repondo o tema no seu verdadeiro contexto: a busca da liberdade é sempre uma
revolta individual; além disso, toda a defesa da jovem, no seu julgamento,
permitiu aos assistentes verificarem a reivindicação vital de um ser humano de
alta qualidade poética (14). Essa busca, afirmaram os
surrealistas, não visa satisfazer propósitos deste ou daquele movimento, por
muito livre que se queira, mas sim a liberdade globalmente encarada. Com
efeito, importa salientar este aspecto: sendo este o tempo em que, como afirmou
Breton, “existe violência física e passividade mental, o surrealismo defende
que a violência deve ser mental e não física”.
Esta “atitude
perante o mundo, o desejo de restabelecer a continuidade do eu ao objecto (…)” (15) é fundamental na actividade
surrealista. A “entrega à escuta do mundo” radica na realidade de que um poeta,
assumindo-se verdadeiramente como tal, tende por imperativo interior a associar
a um comportamento lírico um querer viver atento. Como referiu António Maria
Lisboa, o surrealismo não é uma nova maneira de bem dormir mas uma tentativa
absoluta de estar bem acordado, com o sonho a funcionar no real. É nesta linha
de pensamento que os surrealistas têm afirmado que o seu objectivo é
extra-literário, pois por um lado a sua linguagem não se pretende impor como
qualitativamente superior e, por outro, a exaltação da poesia e da arte é
promovida não enquanto divisão de classes, sectores ou grupos mas sim enquanto
acontecimento libertador das forças mais autênticas do homem (16). Ser poeta é pois, segundo os
surrealistas, associar um quotidiano poético a um querer viver atento. O poeta
é pois um bardo, mas um bardo sem sujeição a clãs ou senhores. O surrealismo
apresenta-se assim como uma poética da
linguagem ligada a uma leitura da vida, uma atitude perante o mundo
expressa por um comportamento lírico, ou seja, a busca de uma coincidência
entre a arte e a vida, uma arte imaginativa, desataviada, necessariamente
crítica (“a crítica é a razão da nossa
permanência”, como disse António Maria Lisboa) e maravilhosa, a par de uma vida
livre, digna, fraterna e total. As obras surrealistas não são um meio mas um
fim em si, não são um alibi intelectual mas um sinal de permanência da
criatividade. O surrealismo não é, pois, uma crença mas uma prática: não só
propósitos mas actos, neste caso e palpavelmente quadros, poemas ou
comportamentos no quotidiano.
Esta ética
surrealista (17) pressupõe a sua transfiguração nos mais variados aspectos,
podendo ser surrealista tanto o desmascaramento específico de um político
corrupto, impedindo-o de tripudiar sobre o povo, como a transposição espontânea
de uma vida interior tempestuosa para a palavra escrita ou qualquer outro modo
de expressão (18).
O surrealismo,
conforme concluímos, será assim, de uma maneira englobante, um sinónimo de
realidade profunda e aumentada, a magnífica capacidade de ver o além no aquém,
a imaginação além do Poder, tudo o que permite ao homem ultrapassar a “condição
humana”. É patente no surrealismo o desejo de “transgredir as leis e ofender os
deuses”, como referia Brassai no seu “Conversas com Picasso”, uma vez que para
os surrealistas é ridícula e abusiva a genuflexão aos pretensos poderes do alto
referidos pelas religiões reveladas e que, a seu ver, só têm ajudado a
escravizar o homem. Finalmente, podemos verificar, como escrevia Maurice
Blanchot: “Nem sistema nem escola, nem movimento de arte ou de literatura, mas
pura prática da existência (…)”. Por esta razão, pareceu-nos fundamental
incluir como anexo uma secção denominada “O surrealismo nas suas obras vivas” (*),
onde se demonstra que o surrealismo é, parafraseando Carlos Martins, “uma
insurreição quotidiana contra os padrecas da cultura e da beleza obrigadas a
mote”.
II | Se estamos de acordo com Luiz Francisco Rebelo
quando este refere que a aventura surrealista teve “ (tenuíssimas) incidências
no espectáculo teatral” em Portugal (1),
discordamos completamente quando afirma que o movimento surrealista estaria já
exausto nos finais da década de 50 (2). Parece-nos que podemos exemplificar
esse diferente ponto de vista através do material que apresentamos em anexo. No
entanto, considerações sobre essa e outras afirmações por parte de um crítico
que tão grande contributo deu ao teatro nacional levar-nos-iam para um caminho
diferente daquele que é nosso propósito trilhar, importando antes
compreendermos o porquê de os surrealistas portugueses terem dado pouca atenção
a esse género de expressão, como o autor de “Alguém terá de morrer”
referenciou.
Como já
verificámos no Cap.I, o surrealismo pretende fazer coincidir arte e vida, pelo
que o palco maior dos surrealistas é a própria vida, devendo o teatro, segundo
eles, estar incluído na actividade poética geral. Apesar de os surrealistas não
virarem a sua atenção de uma forma bem específica para o teatro, isto não
significa que haja uma completa distanciação entre eles e o universo teatral.
Os surrealistas, por exemplo, sentem-se identificados com essas maravilhosas
representações cénicas que utilizam marionetas e fantoches, plenas de
imaginação, de sensibilidade e de maravilhoso. Procure ver-se, em Portugal, os
“Bonecos de St.Aleixo” e compreender-se-á a razão desta afirmação. Também em
França os surrealistas eram grandes frequentadores do teatro de fantoches do
“Grand Guignol” e, em geral, sempre apreciaram as extraordinárias
“performances” de cariz teatral de palhaços como Charlie Rivel (de que a TV portuguesa apresentou há anos
alguns filmes), sendo de assinalar ainda a filiação de textos como “Victor ou
as crianças no poder” na pantomima tradicional.
A causa
profunda daquele problema terá de ser procurada num âmbito diferente que não
apenas a própria mentalidade surrealista, pois esta, porque englobante,
repita-se, não desprezava – nem despreza – o teatro. Importa, por isso, analisarmos
o contexto social, político, cultural e económico em que os surrealistas se
movimentaram e movimentam, para lhe encontrarmos uma resposta. Sendo esse
contexto por demais conhecido, apenas sobre ele relançaremos um olhar que
apanhe o global da situação.
Verificamos
então que, politicamente, nos seus inícios imperava em Portugal a ditadura
salazarista, apoiada numa polícia política que reprimia e procurava destruir
qualquer tipo de pensamento e acção contrários ao regime. Na melhor (!) das hipóteses, buscava-se enquadrar o que
vinha a público, de forma a esvaziar o mais possível o seu cariz contestatário.
De acordo com o que conseguímos apurar, era manifestamente impossível aos
surrealistas terem numa sala de espectáculos uma peça, que naturalmente seria
subversiva em excesso.
A nível
económico, constatamos que os meios de produção se encontravam – e em certa
medida ainda se encontram – nas mãos de uma burguesia sôfrega de lucros (ou visando alguma subsistência fácil), que
era na altura tributária ou na dependência do sistema político, com isso
lucrando ou garantindo um certo prestígio social que compartilhava com os meios
religiosos e militares, fortemente locupletados devido ao apoio ao regime
ditatorial. Sabe-se como o regime estorvava os meios teatrais heterodoxos. Como
poderiam pois os surrealistas navegar num tal oceano de repressão, de temores,
de impossibilidades?
Culturalmente,
após a bomba de dinamite do “Orpheu” que momentaneamente abalara a vida
cultural portuguesa, esta voltava a apaziguar-se, a sedimentar e a morrer. Diz
Mário Cesariny: “Não tardará que os presencistas entrem na liça (1927) para promulgar o primado da boa
escrita, do bom cânone literário sobre todas as outras opções: políticas,
morais, sociais, colectivas ou individuais. A boa escrita e, claro, revista
pelos censores e, se possível, apolítica, não desagradava de todo ao doutor
Salazar e ao senhor António Ferro, administrador cultural da época salazarista,
agradava até bastante, ainda que obrigado ao remorso de observar que,
politicamente, os “presencistas” eram oposição declarada ao regime corporativo.
E é assim que
se dedicam a pôr em ordem (em escrita
legível, é claro) a desordem instaurada pela geração do Orpheu. Gaspar Simões
afirma-o com orgulho: ‘seja qual fôr o impacto revolucionário da revista
Orpheu, tal impacto só conquista em Portugal uma posição de relevo a partir da
doutrina presencista’. Claro! Mas o doutrinamento presencista é um magistério
antípoda da revolução de Orpheu (sobretudo
em Pessoa e em Raul Leal) que propõe nada mais nada menos do que a abolição da
Era Cristã e da civilização greco-romana do Ocidente” (3).
Em finais dos anos 30, um novo murmúrio “que em breve se transforma em rio,
ocupa, na mesma costa do ribeiro presencista, e decididamente contra este, o
seu lugar na aldeia: são os neo-realistas (…)” (4).
No entanto, após 1945, o neo-realismo encontrava-se “incapacitado de resolver
as suas mais íntimas contradições, e ainda por cima impossibilitado de,
publicamente, discutir os problemas que se lhe apresentavam. A sua eficiência,
como protesto, dilui-se, na medida em que o seu esquema se revela grosseiro,
incapaz de apresentar as mais íntimas noções da própria afirmação poética”, na
opinião de Alfredo Margarido (5).
Buscando uma
“acidez intervencionista” e procurando para o homem português “uma liberdade
que as circunstâncias teimavam em negar-lhe” (6),
o embrião do primeiro grupo surrealista reúne-se em 1947 no “Café Hermínius”,
de Lisboa. Dele faziam parte sobretudo alunos da Escola António Arroio: José
Leonel Rodrigues, Pedro Oom, Mário Cesariny de Vasconcelos, António Domingues,
Fernando Azevedo, José Francisco, Artur do Cruzeiro Seixas, Júlio Pomar, João
Moniz Pereira e Marcelino Vespeira. “É este núcleo que, discutindo não apenas
os problemas plásticos mas também os problemas éticos que se propunham aos
jovens artistas em Portugal, há-de vir a descobrir que só o surrealismo possuía
a força virulenta para abalar uma sociedade que conseguia resistir à guerra sem
outras perturbações que não fôssem um racionamento rígido, que dava lugar ao
aparecimento de fortunas rápidas, graças à candonga e ao mercado negro (a que se juntava o volfrâmio, as sucatas e
até algumas vezes, o pagamento de futuros serviços aos ocupantes” (7).
Era este o
panorama quando em 1947 aparece oficialmente o Grupo Surrealista de Lisboa (o seu surgir na imprensa dá-se um ano depois,
a propósito do centenário de Gomes Leal). Este não haveria de durar muito,
desfazendo-se em Janeiro de 49, tendo-se inclusive verificado, em Maio desse
ano, a “saída para a rua de um ‘enterro do surrealismo’ que, por falta de
organização conducente, acabou na esquadra” (8). Não vamos traçar aqui a cronologia, mesmo que ao de leve, do
existir surrealista no nosso país, visto que tal seria desviarmo-nos do assunto
que nos propusemos tratar. Remetemos o leitor para o livro de Mário Cesariny “A
intervenção surrealista” que contém a mais importante cronologia em acção até
ao ano de 1960. A sua actualização não pôde ainda efectuar-se devido a diversas
causas, umas exteriores outras interiores, podendo ter também a ver com a
rarefação e o provincianismo característicos do meio editorial português.
Ao analisarmos
o evoluir da aventura surrealista no contexto que expusemos, encontramos a
nosso ver, aí, a chave que nos permite responder à questão enunciada no começo
deste capítulo; é que embora essa aventura tenha empreendido uma caminhada,
esta foi feita na maior parte das vezes debaixo da ameaça de lhe agrilhoarem os
pés, frequentemente descalços; sob tentativas de chantagem ou defrontando
obstáculos colocados no seu caminho pela mentalidade interesseira, retrógrada e
provinciana das forças vivas (como sói
dizer-se) dum país cujo imaginário em boa parte foi e é fascizante, de tal forma
que ainda hoje, ao que apurámos, ressalvando-se os casos históricos de Cesariny
e Seixas, que de certo modo servem à “intelligentsia” dominante como exemplo de
“bom surrealismo”, o que lhe permite desautorizar outras vozes mais violentas
ou desenquadradas, os mais chegados surrealistas são usualmente marginalizados
e até difamados quase impunemente. Para desgraça dos seus intervenientes,
interessados em colocar essa bomba poética debaixo, por cima e aos lados da
pseudo-realidade circundante e visando com isso a instauração de um imaginário
considerado mais salubre, plásmico e fascinante, chegámos à conclusão no
decorrer do nosso estudo que o afirmar surrealista é hoje muito mais difícil
que outrora (cf. Nicolau Saião) tanto
mais que se tornou palpável uma difusa mentalidade nova-rica que considera
natural e altamente aconselhável o cinismo, a hipocrisia e o amor declarado ao
triunfo e ao vil metal, não sendo nada recomendada a verticalidade surrealista.
A resistência
a essas barreiras, pela escolha e defesa de um quotidiano de qualidade,
implicou desde detenções (9) a espancamentos (10),
a problemas de saúde (11), a mortes (12),
necessidades e perseguições (13). Isto para não falar nos problemas
de publicação e divulgação que têm atingido desde sempre as obras dos autores
surrealistas.
No contexto de
resistência em que os surrealistas se têm movimentado, a poesia apresenta-se como o veículo mais
imediato, pois o teatro necessita de grupos, tendo estado em Portugal, durante
muito tempo, controlado por sectores políticos ou tendo um cariz de
“boulevard”, ressalvadas as naturais e dignas excepções.
Se os
surrealistas, concluímos, não tiveram maior ligação com o teatro, foi por este
se ter apresentado geralmente comercializado, conduzido, espelho que era afinal
da sociedade do tempo; não esqueçamos também, mais modernamente, que o teatro
depende igualmente dos espectadores e que estes têm estado por um lado, em
grande parte, sob a influência da mentalidade burguesa a quem a mensagem
surrealista arrepia ou ofende nos seus preconceitos e tiques. Mesmo no pós-25
de Abril “só a censura do poder político cessara porque outros controlos (…)se
mantiveram, através dapropriedade ou gestão dos espaços, gestão
capitalista de salas que impunham a sua
exploração em termos comerciais” (14).
Mesmo que os surrealistas se tivessem dedicado assiduamente a escrever textos
teatrais, era mais que certo que essas peças não seriam levadas à cena. Temos
conhecimento que a representação da peça de Cesariny “Um auto para Jerusalém”,
sofreu entraves na sua representação, tendo ido para a frente após intervenção
de autoridades militares favoráveis ao A., nos tempos do PREC (15). As poucas peças surrealistas que
sabemos existirem, ou continuam inéditas como é o caso da de Nicolau Saião, que
apresentamos no anexo por deferência do A. e que possivelmente não será dada a
lume nos tempos mais chegados (**),
ou apesar dos nossos esforços não as conseguímos encontrar (caso de “Sucubina ou a teoria do Chapéu”, de
Natália Correia e Manuel de Lima (16), ou serão apenas, salvo excepções,
textos dramáticos (17): diz Ortega y
Gasset que “teatro é por essência, presença e potência, visão-espectáculo” e
que “teatro é, mais do que um género literário, um género visual e
espectacular” (18), afirmação que
plenamente acompanhamos, o mesmo acontecendo, estamos em crer, com os autores
surrealistas de textos dramáticos, que certamente com pesar observam a redução
das suas obras ao campo literário, fora portanto (por essência e por objectivo) do seu âmbito
natural de intervenção.
É devido a
tudo isto que discordamos da análise de Luiz Francisco Rebelo sobre o
surrealismo e a forma algo depreciativa como o aliás informado e estimável
crítico encara os protagonistas nas suas relações com o teatro, parecendo
desconhecer quer o próprio projecto surrealista quer as condições de existência
em que este foi tomando forma no nosso país. Apeteceria dizer, com William
Faulkner a respeito dos negros norte-americanos: “Obrigam-nos a ser
engraxadores e depois alegam que só servem para engraxar sapatos”.
III | Depois das diversas considerações que tecemos
nos capítulos precedentes, encontramo-nos agora de posse dos instrumentos
necessários para analisarmos com maior rigor as peças surrealistas de que
dispomos.
Antes, porém, urge responder a
uma questão fundamental, por permitir uma mais perfeita análise dessas peças; a
saber – se os surrealistas, conscientes que estavam da sua marginalização e,
logo, afastados directamente do acesso aos palcos, terão escrito essas obras
objectivando uma possível representação ou, de outra forma, se essas peças
serão sobretudo “objectos mentais”, visando efeitos primeiramente literários (leia-se: de leitura).
Se, como
referimos no capítulo anterior, o teatro – e logo os seus textos, parte que são
dessa disciplina criativa – deveria estar, de acordo com os surrealistas,
integrado num vasto e simultaneamente uno processo poético, podendo os textos
ser encarados à luz duma “representação” no palco do imaginário e não numa
sala, quer-nos parecer que os autores deles não viam o teatro como um
passatempo anódino mas, antes, reconheciam-lhe possibilidades próprias de
problematização do quotidiano e, logo, meio de expressão possível a que estavam
inerentes, consubstanciadas, tomadas de posição. Referiu Ernesto Sampaio; “O
teatro, que é talvez a mais perfeita realização simbólica da manifestação
universal, é hoje a melhor imagem da degradação a que as formas profanas da
“cultura” conduziram a humanidade. Porque o teatro perdeu a sua essência “misteriosa”, o sentido exotérico e
esotérico que lhe permitia representar a simultaneidade sintética dos estados
inumanos e humanos do Ser (…)” (1).
Refira-se, a
propósito, que a adequação das particularidades próprias do teatro à
mentalidade dos autores surrealistas não implicou, no nosso país, que a acção
dramática perdesse, necessariamente, os seus caracteres distintivos, ao
contrário do que aconteceu, por exemplo, em França (2).
Os autores nacionais, se bem que não comprometendo o desenrolar dos seus
projectos jungindo-os a um caracter formal, parece terem-se subordinado bem
mais que os seus colegas gauleses a determinados aspectos tidos como “teatrais”
– o que não pressupõe, obrigatoriamente, que se não deva caracterizar essas
peças como surrealistas, em vista do menor desprezo por tudo o que é tido como
teatral. Aliás, isso por vezes até aparece com um caracter vincadamente
irónico: na peça de N.Saião, aparecem no rol das personagens os habituais,
quase diríamos canónicos, “homens e mulheres do povo”, que jamais, em tempo
algum da peça, têm qualquer aparição quer vista quer ouvida…
Então: bem
pelo contrário, pois ordenando-se o conteúdo “teatral” desses textos das mais
variadas formas e consoante os objectivos e gostos dos seus autores, o conjunto
apresenta quer ao nível da mensagem quer da articulação da intriga – mais ou
menos “coerentes”, mais ou menos verosímeis – um propósito bem definido, que
compreende o humor negro, a revolta, o maravilhoso, o poético ou o onírico.
Apesar das evidentes distâncias entre os autores surrealistas e Bernardo
Santareno, parece-nos importante escutarmos o que este refere a propósito do
assunto vertente: ” (…) Se o dramaturgo pretende actuar através do teatro, quer dizer, se o seu objectivo não é só
divertir contando uma história, nem sequer apenas provocar a catarse
aristotélica e assim expurgar o espectador das suas paixões, mas também
ensinar, fazer consciencializar o público do que é justo e injusto, bem e mal,
etc., neste caso as personagens são, é claro, menos importantes do que o tema,
do que a explanação das verdades e mentiras para as quais queremos acordar e
dividir os espectadores” (3). Os
surrealistas, neste ponto, distinguem-se porquanto onde Santareno põe “verdade”
e “mentira” elas poriam “realidade” e “ilusão”, dando de barato que a vida
societária não é “real” no sentido profundo do termo, uma vez que a realidade implica a ausência de neuroses
e recalcamentos, prato forte da “realidade” societária em que se vive.
Não temos pois
como segura uma relação de causa-efeito no que diz parte aos textos dramáticos
surrealistas e uma eventual falta de potencialidades cénicas dos mesmos. Cada
um deles, afinal, pressupõe uma harmonização própria com o encarregado do
trabalho cénico, regulando-se desta forma uma margem de manobra que parte das
características essenciais do texto e termina na capacidade, imaginação e
competência do encenador. Por outras palavras: não nos parece correcto
definir-se a priori as peças
surrealistas como dificilmente encenáveis ou contando à partida com uma bem
menor adesão do público que a habitualmente dada ao teatro “convencional”.
Aliás, para quem souber ler, é fácil
verificar que as peças surrealistas, mais ou menos “desconstruídas” fazem sentido. Ao passo que, parecendo
que o fazem, nenhum sentido possuem as pessegadas de “boulevard”. Ademais, já
tivemos oportunidade de verificar, junto de uma assistência livrescamente
“inculta”, a adesão a peças, via TV, como por exemplo “Victor ou as crianças no
poder”, de Vitrac; ou in loco à peça
de Ionesco “O inquilino”, representada numa terra de província profunda.
Um aspecto do
problema que se nos afigura importante realçar é o facto de terem sido muito
poucos, em Portugal, os encenadores que ousaram pôr em cena algumas dessas
peças – e é evidente que, a serem encenadas, não significa que granjeassem
imediato sucesso – o que parece apontar, afora outras razões, para dificuldades
de manobra com textos surrealistas, fruto que são de um processo criativo muito
próprio, sem se cair em banalizações ou deturpações. Isto partindo do princípio
que possuem suficiente qualidade conferida pela ética e pela estética, pela
paixão política ou pela preocupação de intervenção social do observador, para
serem recebidas pelo público frequentador das nossas salas. Contudo, como
referiu Manuel de Lima, “num país em que se representam peças medíocres vindas
de toda a parte, um original português, por muito insuficiente que seja, nunca
será um intruso” (4).
Parece-nos
pois necessário um certo cuidado para não sermos induzidos em raciocínios que
poderão ser precipitados (5).
Postos estes
mais ou menos breves considerandos, examinemos agora as peças em questão,
melhor dizendo, os seus textos, limitados que estamos a esta análise, pois
alguns não foram encenados e outros, por seu turno, foram-no numa época em que
não nos era possível a sua visualização. Vamos fazê-lo tendo em conta os seus
autores, pois assim, a par das características das várias peças, ao expormo-los
tornar-se-á mais fácil apreendermos as diferenças, ou as semelhanças e as
variadas formas de sensibilidade face à dramaturgia que cada autor epigrafa.
MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS | O mais
publicitado dos poetas surrealistas. Escreveu uma peça – “Um auto para
Jerusalém”; também em jeito teatral (diálogos)
são as suas (à altura agitadoras do meio
provinciano) críticas protagonizadas pelos “Dr. Pluma e Dr. Pena”.
É o próprio
autor que nos informa: “Este Auto foi escrito em 1946 por raiva à apresentação
da colectânea ‘Bloco’ onde se inseria o texto que o motiva: ‘História Antiga e
Conhecida’, de Luiz Pacheco.
Foi estreado
no Teatro Municipal de S.Luiz, em Lisboa, em 11 de Março de 1975 numa encenação
de João d’Ávila com o Grupo Sete.
O texto
integral, publicado pela Editorial Minotauro em 1964, em edição também apreendida,
foi revisto antes e também já depois da realização do Grupo Sete, devendo
considerar-se definitiva a presente versão” (6).
“ (…) baseado
numa conhecida cena bíblica em que Jesus (com 12 anos) fala aos doutores, o enredo
pretende colocar na boca de Jesus um discurso de igualdade e de luta contra a
opressão, sendo os doutores (os
intelectuais) o seu público escolhido, numa tentativa de os responsabilizar
como membros de uma sociedade obrigados a agir directamente na sua
transformação” (7).
Embora bebendo
a inspiração num conto de outro autor, este Auto ganha uma individualidade
própria. Assumindo uma profunda crítica a sectores da sociedade portuguesa, o
paralelismo entre esta e aquela onde se movimentam as personagens é fácil de
delinear.
Os
intelectuais (Matatias, o Sábio
Rezingão; Eleazar, o Intelectual Snob e Tobias, o Sensato) são protótipos de
uma certa intelectualidade lusa: Eleazar detesta os ricos e está do lado dos
pobres pois estes “são tão infelizes, coitadinhos!”; Matatias é “Doutor em
Literatura, crítica e Religiões” e “empregado nos correios desta cidade”;
Tobias está bastante arreliado pelo facto de Herodes, Rei dos Judeus, escrever
e falar “horrivelmente o hebraico”. Estes três sábios empenham-se em “escrever
um livro de que toda a Judeia, todo o povo eleito se orgulhará (…) cinco
grandes volumes onde se explica, grafa e determina a mais linda maneira de
falar (…)”.
O mérito desta
“grande obra” é logo posto em causa pelo Orador, que funciona como coro –
“assim uma coisa à grega” – e, simultaneamente, reflexo do próprio autor:
“ORADOR – Linda coisa é ver trabalhar! Mas há trabalho que presta e
trabalho que não presta. Prestará para alguma coisa a trabalheira destes dois
doutores?” (Tobias ainda não havia entrado em cena), (8).
A falta de profundidade na actuação social por parte dos sábios e mesmo
a sua conivência com o Poder – veja-se a maneira como se relacionam com Salomé,
filha do temido Herodes e com Cornélius Macissus, ambos analogicamente
conotados com o regime salazarista (quando
entram em cena ouve-se o hino da Mocidade Portuguesa) – é uma denúncia
constante em toda a peça.
Quanto ao
jovem Jesus, este parece-nos ser não apenas o protótipo do proletariado mas, mais
que isso, o protótipo de todos os indivíduos com aspirações de dignidade, de
justiça social e de verticalidade:
“JESUS – “ (…)Eu vim de Nazaré, vi muitas terras e muitos lugares antes de chegar a Jerusalém.
E tirei slides e fotografias. (9).
Por toda a parte é o mesmo: fome e doença, fome e tirania, fome e abjecção. É
por isto que vim, é disto que é preciso falar…” (10). E continuando a sua prédica
aos doutores, Jesus afirma: “Ouvi-me irmãos doutores, isso não presta
para nada. O povo de Israel não sabe ler, como há-de ler o vosso livro de
ortografia? É preciso outra coisa. Para agora mesmo. Para já”. (11).
Os doutores,
contudo, embrenhados na sua obra e apresentando-se como sabendo melhor que
Jesus o que realmente se passa, não dão mostras de quererem contribuir para
modificar a situação no mundo real, afirmando-se o seu interesse pela realidade
como puramente académico:
“ELEAZAR – Que Herodes é um tirano, toda a gente sabe, olha a grande
novidade! Mas o que temos nós com isso?
MATATIAS – Somos sábios, somos
doutores, somos intelectuais. Não somos homens da rua, não nos metam em
sarilhos, não querermos saber de desgraças, não queremos nada com a polícia.
Pensar, escrever, escrever muito, é o nosso trabalho, não peçam mais nada.
ELEAZAR – Sim, não sejam egoístas”. (12).
Perante este
panorama, acaba por ser o Servo-Porteiro quem, apesar de todo o seu servilismo,
imposto por condicionalismos económicos e sócio-culturais (“sou um fruste, um tolo, um facilmente
dispensável. Não sei ler nem escrever embora o meu autor me faça falar com
certa elegância”) acaba por ter a coragem de abater o Homem da Gestapo – o
mesmo seria dizer o agente da PIDE ou seja, a personificação da repressão.
Parece-nos extremamente significativo o facto de o Homem da Gestapo cair “varado
pelo chuço do Servo-Porteiro”. Trata-se, por um lado, do reafirmar de uma
aproximação às pessoas simples do povo, em quem se conserva a sabedoria
tradicional e a dignidade e bondade humanas, de uma forma desinteressada – algo
muito característico dos surrealistas; e, por outro lado, da crença de que é
nessas pessoas simples e anónimas que se cristaliza o desejo de combate às
indignidades e às injustiças, sendo elas que operarão as mudanças. Já no início
da peça o Servo-Porteiro demonstra essa vontade, quando se dirige ao
Orador:
“SERVO-PORTEIRO – Escuta, tu és quem tudo pode e manda neste palco
enquanto durar a representação da nossa miséria. Peço-te um acto grande, um
acto que altere o curso de certos acontecimentos.
ORADOR – tocando a sineta – Peço
que tirem este homem daqui para fora!!
SERVO-PORTEIRO – Diz-lhes, ao menos, quem sou! Ou o que faço nesta
terra. Não, o que faço não! O que às vezes parece que gostava de fazer…” (13).
Discordamos de
Maria de Fátima Marinho quando esta refere que “Um auto para Jerusalém” ainda
não é surrealista pois “tem poucos elementos devedores da escola bretoniana” (14). Quanto a este assunto da “escola
bretoniana” parece-nos termos ficado conversados no Capítulo I. No que se
refere à afirmação de que “não se encontram nesta peça factores que, segundo
Henry Behar, constituem o fundamento do teatro conseguido nessa perspectiva: o
‘hasard objectif’, a falta de lógica ou a primazia do sonho” (15), verificamos novamente a
subordinação desta estudiosa a determinadas afirmações que, longe de possuírem
a categoria de cânones que se lhes pretende atribuir, são antes fruto da
análise a uma bem determinada realidade – neste caso, uma visão do autor citado
sobre a produção de textos dramáticos realizados por alguns surrealistas num
dado tempo e num certo lugar, sendo pois parciais e nunca definitivamente
englobantes.
Esta peça
parece-nos de considerar verdadeiramente surrealista. O facto de o autor se ter
circunscrito a uma dada projecção da realidade não permite inserir a peça no
espaço neo-realista (16). Essa
realidade não só está profundamente alterada pela mistura das épocas e
consequentes anacronismos, como apresenta personagens prototípicas. A elevada
densidade poética contribui também para o acentuar dessa particularização do
real. Importa ainda referir a sempre presença do humor negro, não para produzir
efeitos estilísticos mas para a valorização das críticas através da sua
acutilância e maior acuidade. Veja-se, a título de exemplo, a referência a
Fernando Pessoa: depois de ouvir uns versos seus, Salomé pergunta quem é o
autor:
“CORNÉLIUS MACISSUS – consultando
um papelinho – Fernandus Pessoas, um judeu estrangeiro. Doutor em…em…nada.
SALOMÉ – Ah! Um poeta que não é letrado.
MATATIAS – Ainda não foi descoberto pela Judá Editora.
SALOMÉ – Então é muito novo…ou muito velho?
MATATIAS – Creio que ambas as coisas, Sereníssima. Mal ganha para comer…
ELEAZAR – Conhecimentos do Dr. Matatias… (para este último) Sempre o
mesmo azelha! Impingir álgidos, anónimos e ignotos à Sereníssima! (Imitação fanhosa) ‘Ainda não foi
descoberto’…Vai ser um frenesim, quando lhe descobrirem o baú!” (17).
Além do mais,
a grande mensagem que se retira da peça é profundamente surrealista: a
importância de se resistir à demagogia, à injustiça e à mediocridade,
denunciando a podridão (o que por si só,
sendo um acto de revolta, é revolucionário). Estes propósitos são enunciados
pelo jovem Jesus:
“JESUS – (…) Ide e dizei ao povo:
à frente de Israel estão homens incapazes e idiotas. Desmascarai-os! Mostrai ao
povo quem são esses que o escravizam, que o insultam, que o crucificam.
Libertai-o do pão que lhe dão a comer, pão maldito porque é o pão da desonra.
Ajudai-o a libertar-se pelas suas próprias mãos. (…) Nenhum povo é eleito
quando escravo. E ao que não fôr capaz de libertar os espíritos de nada servirá
apaziguar os estômagos (…)” (18).
Após o abate
do Homem da Gestapo, Matatias foge e Tobias também abandona, aflito, a
habitação. No entanto, Eleazar, constrangido, deixa a casa na companhia do Servo-Porteiro,
aparentemente decididos a lutar. A mensagem é, pois, de esperança (um alto valor surrealista; dizia Pedro Oom,
num texto célebre: “ (…) não há razão para queimar a esperança!”).
MANUEL DE LIMA | Não fez parte de
nenhum dos Grupos Surrealistas, mas a sua actividade de escritor denota adesão
ao surrealismo. Isto é facilmente verificável em “Um Homem de Barbas”, o seu
primeiro romance, ou naquela que é talvez a sua obra mais conhecida, “Malaquias
ou a história de um Homem Barbaramente agredido”, prefaciada por António Maria
Lisboa.
Além da peça
escrita conjuntamente com Natália Correia a que já fizemos referência e que
continua inédita, Manuel de Lima escreveu uma outra, “O clube dos antropófagos”
(19).
Esta peça é a
versão teatral da novela homónima escrita a pedido de Mário Cesariny para uma
edição que nunca chegou a efectuar-se, sendo a peça publicada antes da novela,
embora a ordem da escrita seja a inversa.
A transposição
para a versão teatral nasceu do contacto do autor com “alguns actores das novas
gerações que tinham chegado ao teatro animados pelo desejo de o renovar. A
actividade era intensa, subterrânea e, por isso, fascinante (…). A verdade é que estes movimentos, por
mais revolucionários que sejam, nunca conseguem furtar-se aos convencionalismos
atávicos. Há sempre aquela sujeição, de baixo para cima, aos argumentos da
autoridade que impedem a ruptura com o que já está estabelecido. Repare-se como
todos os movimentos de renovação do teatro procuram a protecção do que já está
caduco (…)”, (20).
Dois membros
desse grupo tiveram grande importância no evoluir da peça: Fernando Gusmão, que
“teve decisiva influência moral que resultou na publicação da peça” além de que
a sua opinião “contava, acima de tudo, como crítica sobre os resultados da
adaptação de um texto narrativo” (21);
e João Guedes, que tentou encená-la no Teatro Experimental do Porto, não sendo
a peça, contudo, “integralmente aprovada pelas instâncias oficiais (indispensáveis dentro das leis que
regulamentam os espectáculos públicos), (…)” (22), pelo que o autor não autorizou a sua representação, amputada
que seria das partes incómodas. Diz Manuel de Lima: “o teatro não tem
fronteiras, diz-se. É de quem mais tiver direito ao seu acesso. Mas como o
teatro está sempre em crise, como é que se sabe quem tem direito ao seu acesso?
Como, por outro lado, vive à custa de subsídios, quem está apto a dizer que as
peças em cena são precisamente aquelas que o público solicita? Uma coisa é
certa: o teatro não tem fronteiras mas tem, pior do que isso, barreiras.
Internas e externas!” (23).
Verificando-se
algumas diferenças da novela para a peça, a base das duas é idêntica: a
antropofagia, que o autor já havia enunciado no romance “Um homem de barbas”.
No entanto, em “O clube dos antropófagos” o tema é levado ao extremo mediante o
humor negro.
Após a sua
chegada a Cuba, no Alentejo, Falcão - grande proprietário – começa a engordar a
população, aparentemente sob a capa da filantropia; na verdade, para a comer
com requintes gastronómicos, que o seu cozinheiro Kugulu se encarrega de
executar ajudado por Bicho-de-Cozinha. Iniciado na antropofagia por três
magnates americanos – Wolf, do petróleo; Shark, do carvão; Octopus, do aço, -
Falcão deseja atingir a realização através da mais elaborada e perfeita
iguaria, com o intuito de tornar seus discípulos os mestres. Esse manjar
encontra-o ele concretizado nos miolos de Euclides, o inteligente filho de
Formiga (feitor de Falcão e seu
humilíssimo criado) que tinha descoberto a Teoria da Expansão do Universo.
Contudo, quando esse prato está a ser preparado, os três mestres chegam,
apoderam-se dele e acabam por matar Falcão, devorando-o em seguida. Toda a peça
está repleta de situações insólitas, que contribuem para acentuar a analogia
estabelecida pelo autor com a sociedade em que vivemos, analogia essa que é
faqcilmente perceptível. Esse insólito, no entanto, não pretende alterar o
caracter profundamente teatral da obra, mais estando ao serviço de um objectivo
de crítica profunda. É o caso, por exemplo, da cena de engorda do Maltês. Por
se ter apercebido das intenções de Falcão, o pobre-diabo recusava-se a ser
alimentado:
“FALCÃO – (…) Irra, que é
teimoso! (pausa) Experimentemos outro
sistema. (Faz uma gracinha, passando os
dedos pelos beiços) Brrh!Brrh!Brrh!... (O Maltês ri-se. Imediatamente Falcão
enfia-lhe a colher cheia de papa na boca) Ah?! Deu resultado. (O Maltês
engasga-se mas engole a papa. Alguns restos caem-lhe pelo queixo, mas Falcão,
com a colher, empurra-os para dentro da boca) Anda Formiga, faz qualquer coisa
para ele se rir. Porque esperas idiota?... Tu que és tão ridículo!
(Formiga começa a fazer trejeitos e piruetas. O Maltês desata a rir às
gargalhadas. Falcão vai-lhe enchendo a boca de comida. Kugulu vem ajudar
Formiga, fazendo-se de macaco. Bicho-de-Cozinha entra também em acção e põe-se
a zurrar. Quando a cena atinge o paroxismo faz-se escuro subitamente.)” (24).
O
posicionamento do autor face à realidade social está continuamente expresso ao
longo da peça, quer através dos diálogos quer das indicações cénicas que Manuel
de Lima pretende promover. Damos exemplo de dois casos. O primeiro:
“1ª VOZ – Deixe-se de teorias, senhor engenheiro, e diga-nos de que lado
está. (A multidão exclama):
MULTIDÃO – Quem não é por nós é contra nós! (bis)
EUCLIDES – Alto! A ciência é a salvação suprema!
D.FORMIGA – A ciência está na mão dos poderosos. Nós ficamos sempre na
mesma. Nós geramos os nossos filhos para servirem de repasto à voracidade dos
poderosos. Abaixo as sanguessugas!” (25).
E o segundo: “Os dois grupos começam a combater empregando várias formas
de combate: boxe, judo, outros tiram tabuleiros de xadrez, baralhos de cartas e
cornucópias de dados. Um operário exibe um rádio portátil que dá um relato de
desafio de futebol, de mistura com publicidade. Um ilusionista faz uma série de
sortes)” (26).
A peça de
Manuel de Lima, pelo conjunto de reflexões que propõe e pelo tema que
apresenta, parece-nos bastante actual. No entanto, ao contrário do que o seu
autor desejaria (27) continua à espera, ainda, que um encenador lhe deite a mão.
JORGE DE LIMA ALVES | Poeta e,
actualmente, jornalista do “Expresso”, escreveu nos anos de 1973/74 “Cerimonial
para um massacre”, que esteve à beira de ser levada à cena nos fins da década
pelo “grupo teatral e cultural Mandrágora”, de Cascais, que aliás a editou.
Esta peça
revela grandes diferenças em relação às outras obras consideradas. Aqui, a
linha continuadora entre os vários actos e quadros parece ser o desejo de
chocar o espectador (leitor) não se poupando o autor a esforços para o
conseguir. Para acentuar mais, no espectador-leitor, o sentimento de
incomodidade, verifica-se também uma profunda desarticulação da intriga e da
análise psicológica das personagens, cujos actos primam pelo insólito e pelo
inesperado. Todo o jogo cénico se desenvolve tendo em conta este objectivo. O
primeiro quadro, que poderia servir de prólogo, dá o mote:
“O pano abre sobre um palco deserto e nu. Depois surge, de dentro das
caixa do ponto, por exemplo, ou dos bastidores, ou de qualquer outro lado, um
homem vestido de preto, rastejando. (…) De súbito, um longo grito rasga o
silêncio, vindo dos quatro cantos da sala. E, de novo, se abate o silêncio, a
ausência.
Agora, ouve-se um comboio, ou um avião, passar ao longe, alguns pássaros
a cantar; um cão ladrando. Alguém, um côxo talvez, passa pelo palco, a correr.”
(28)
Contudo e
embora o autor recorra ao insólito, não é este que mais choca mas sim o
apresentar de situações quotidianas tratadas de maneira a causar espanto e
repulsa. Por exemplo, no terceiro quadro do primeiro acto:
“HEITOR – O que é que se passa, Ana?
ANA – Estou grávida, pai…grávida!
Ana tem um ar desesperado. O tom de Heitor exprimirá uma indiferença
quase total.
HEITOR – Ai sim?
ANA – Estou grávida e tenho uma leucemia…Não achas engraçado?” (29)
Para avivar
ainda mais este sentimento de desgraça, o quadro anterior é todo ele calma e
poesia, com diálogos que parecem os de histórias para crianças.
A
despreocupação face à representação é também enorme. No nono quadro, que inicia
o segundo acto, o autor refere que aquele “Está reservado aos actores e ao encenador
para que façam dele (e nele) o que
quiserem, sem limitações nem directivas. Não é sequer necessário que o que aqui
se passa tenha algo a ver com a peça, pelo contrário.” (30)
Fortemente
influenciado pelo teatro de Antonin Artaud, também aqui há um incitamento ao
comprometimento por parte dos espectadores:
“Todos os actores do espectáculo estão sentados no palco, a olhar
insistentemente a sala, ou algum espectador em particular. Passam-se três ou
quatro minutos no mais profundo silêncio.
ARTUR – (dirigindo-se ao público)
Então, vocês não dizem nada?
Obscuridade total” (31)
Esse
comprometimento proposto vai mais longe, através da representação directa de
uma antevisão às reacções dos espectadores:
“Um quarto de casal: uma cama grande, uma porta, uma janela, um banco e
um espelho. Entram Heitor (que acende a
luz) e Leonor. Ambos muito bem vestidos. Heitor dirige-se imediatamente à cama
onde se deita com um suspiro.
(…)HEITOR – (rindo) Quando penso
na peça que fomos ver esta noite.
LEONOR – (rindo também) É atroz!
HEITOR – Só pelo título devíamos ter logo desconfiado que era uma dessas
coisas sem pés nem cabeça, completamente louca.
(…)LEONOR – Já não sabem o que hão-de inventar para espantar o público.
HEITOR – Épater le bourgeois.
(…)Nesse instante, entra Ana com a sua grande barriga. Traz na mão uma
pistola. Com ela, dispara vários tiros sobre Heitor e Leonor, que caem mortos.
(…)” (32)
A acção da
obra, em certas passagens, é extremamente violenta, tanto a nível do enredo
como da expressão lexical.
Como disse
Oscar Wilde, “os livros a que o mundo chama imorais são aqueles que lhe mostram
a sua própria ignomínia”. Frase que pode perfeitamente servir para definir o
objectivo desta peça dum, à altura, jovem escritor que, segundo temos
conhecimento, durante diverso tempo passou bastantes dificuldades, devido ao
seu feitio pouco acomodatício e contestatário.
MANUEL GRANGEIO CRESPO | Poeta e
dramaturgo, é neste segundo campo que se revela extremamente original, não
apenas pelas duas peças que escreveu (“Os
Implacáveis” e “O Gigante Verde”) mas também pela atenção que dispensou a
determinados aspectos e correntes da actividade teatral (veja-se, a título de exemplo, o feliz
prefácio feito para a belíssima obra de Georges Schéadé “O Senhor Bob’le”).
Na sua
primeira peça, “Os Implacáveis”, pretende-se representar a última noite que
antecede a execução duns réus, que são, a propósito, as únicas personagens
intervenientes.
Como referiu
Urbano Tavares Rodrigues no prefácio escrito, verifica-se nesta peça uma grande
influência de Artaud, “tão presente na estridência violenta dos altifalantes, o
coro do mundo caótico, e nas próprias máscaras-refúgio, aumentativas ou
diminutivas?!” (33). Também aqui se
observa uma tentativa de comprometer o público na representação, expressa nas
indicações cénicas dadas pelo autor:
“Dois homens e uma mulher levantam-se de entre a assistência e
dirigem-se para a secção B. Atitude casual, um pouco distraída. Aconselhável
que cumprimentem alguns espectadores pelo caminho.” (34)
Um aspecto que
se encontra presente nos textos dramáticos dos surrealistas portugueses é o
aproveitamento dos diálogos para que as personagens digam poemas (35). Grangeio Crespo, porém, vai mais
longe, incluindo nos diálogos uma prosa extremamente lírica:
“LUCIANO – (…) quando entravas
nos meus olhos um cavalo cego punha-se a percorrer as campinas dos meus nervos…
AMÉLIA – Um cavalo cego que pisava o musgo fresco dos meus nervos…” (36);
“AMÉLIA – (…) A dúvida é como um
violino sem cordas…” (37); ou ainda
“LUCIANO – (…)Os ponteiros cantam
como bruxas desdentadas…” (38).
Mas não são
apenas as personagens a ter este comportamento poético. Também o altifalante
profere uma afirmação cheia de lirismo, ele que funciona como coro, ao jeito do
Orador na peça de Mário Cesariny:
“O teu rosto é um peixe que nada na tua voz cada palavra esquecida é uma
gota do teu nome” (39).
O lirismo e a
poesia servem para aumentar e acentuar o caracter angustiante da peça, por
funcionarem exactamente como contrários dessa sensação de tormento que se
apresenta, aliás, quase como uma obsessão ao longo de todo o texto. Em “O
gigante verde”, a sua outra peça, a influência dos textos de Artaud é ainda
mais patente. A peça, publicada primeiramente em França e só depois em
Portugal, aproxima-se bastante dos textos dos surrealistas franceses, estando o
acento tónico posto na impossibilidade de constituição de um enredo
coerentemente articulado, porque se objectiva o desvelamento do indivíduo e,
nesse sentido, se afasta um universo ficcional que a representação tradicional
parece sempre implicar. Por idêntico motivo se verifica igualmente a
permanência de uma certa estrutura psicológica comum às várias personagens, que
incide fundamentalmente na elaboração de frases, indistintamente proferidas,
poetizando os diálogos e simultaneamente despindo-os daquela organização
conforme aos hábitos teatrais. A expressão destas imagens poéticas é uma
constante ao longo de todo o texto e a sua exposição parece ser um primeiro
objectivo de realização da peça: ”Quando tiveres o teu violino hei-de arranjar
umas meias de lã para mim” (40) ou “
(…)o candeeiro da esquina é uma mulher elegante com um girassol no cabelo” (41) são frases que pelo lirismo e
maravilhoso que propõem ilustram o que acabamos de afirmar. A forma desataviada
como é tratado o cerne da peça (as
ligações do Homem com o Gigante Verde, ou seja, a Natureza) propondo um clima
de lirismo e poesia, está formalmente nos antípodas da obra de Jorge de Lima
Alves que, também elaborada sem peias ou constrangimentos formais, evidencia
por seu turno um desejo de erguer um clima de derisão e provocação.
VIRGÍLIO MARTINHO | Conhecido
sobretudo como novelista, Virgílio Martinho interessou-se também pelo fenómeno
teatral, tendo colaborado com o grupo de teatro do Clube Atlético de Campolide
na encenação de alguns espectáculos (primeiro
“O avançado centro morreu ao amanhecer”, de Augusto Cuzzani e depois a versão
actualizada de “A vida do grande D.Quixote de la Mancha e do gordo Sancho
Pança”, de António José da Silva). Dessa experiência, ele próprio nos dá a sua
opinião: “Nunca tinha trabalhado em teatro e ignorava completamente como é
fascinante fazê-lo. Ignorava também as dificuldades de toda a ordem que é
preciso vencer para se montar um espectáculo responsável (…) E asseguro-te que
gostei. E que mergulhei nesse mistério com o corpo todo, percebendo o que era
um palco, um público, um actor, um encenador, um contra-regra, enfim, um teatro
por dentro e por fora. E parace-me que até nunca mais sairei dele. (…)” (42).
Foi esse grupo que também levou à cena a sua peça “Filopópolus”, dirigida por
Joaquim Benite e que havia sido anteriormente publicada na colectânea “Grifo”,
a seu tempo apreendida pela PIDE.
Dela diz
Carlos Porto, com propriedade: “ (…) a peça de Virgílio Martinho é a proposta,
literariamente notável, de um espectáculo cujas implicações de toda a ordem não
anulam, muito pelo contrário, as suas exemplares potencialidades cénicas.
Duas máscaras:
Filopópolus, o conspirador-ditador (com
um slogan fatal: o povo, polvo) e
Mercedes, a viúva de soldado, porta-estandarte da revolução traída que acaba na
forca como por vezes acontece àqueles que acreditam nas virtudes da
participação. Entre estas personagens-limite, a fauna dos aproveitadores dos
restos; dos bebedores do sangue e da esperança. Conspirando, espiando,
louvaminhando, explorando, traindo, vampirizando. Tudo isto expresso numa
imensa, saudável gargalhada, ou seja, num jogo muito sério (…)” (43).
Toda a peça
está ordenada em função de a crítica à corrupção do Poder ser expressa não
apenas mediante a intriga própria (que é
insólita, irónica e propositadamente bastante ficcional) mas especialmente e
com acutilância através das analogias estabelecidas no espectador com a
realidade circundante da época. O caracter aparentemente inofensivo da peça,
devido ao conjunto de características referido esbate-se completamente; é
através da conjugação da forma em que se desenvolve a intriga com as analogias
aludidas que a peça ganha a sua surpreendente originalidade e agudeza.
Interessante é
também verificar que as personagens, embora assumam a qualidade de protótipos,
permitindo dessa forma estabelecer relações de semelhança com a realidade
circundante, possuem também existência por si mesmos, devido aos tiques e
expressões muito pessoais que o autor lhe imprimiu, com o objectivo de
aprofundar ainda mais a acuidade da obra e a sua finura. Vejamos alguns
exemplos do que acabamos de afirmar.
Filopópolus, o
conspirador, repara que um dos embuçados da reunião secreta é o Magistrado
Mesquita:
“FILOPÓPOLUS – Mesquita, o magistrado, aqui!
Movimento geral de pânico
MESQUITA – Ouvi tudo. E ainda que
na aparência afeiçoado a Vitorino, sou o cocuruto da justiça, cumpro a lei e
dito as penas. Ora bem, jogo em ti, medianeiro traidor pela causa da paz e das
viúvas dos tenentes.
FILOPÓPOLUS – Pela honra da traição que a causa dos traidores aumenta.
Mesquita, a justiça não muda de cocuruto, é toda tua. Abraça-me com vigor.
(Abraçam-se, flash no palco)
CÂNDIDO, (o espião) – A fotografia é uma arte realista.
CONSTANTINO, (o banqueiro) – Nada melhor para a concórdia universal que
o realismo.
Aprovação em murmúrio dos embuçados” (44)
A comparação
com a realidade circundante chega a ser directamente sugerida aos espectadores.
Depois de derrubar o General Vitorino, Filopópolus propõe-lhe uma aliança:
“GENERAL VITORINO – (em tom
resignado) Assim seja. Ganhaste, Filopópolus. Tomemos então os nossos
respectivos comandos. Eu, do Exército, tu da Administração.
ANA DE ÁUSTRIA – Com a valorização crescente dos nossos capitais.
LUDOVICE – (com unção) …dos
templos…dos jardins…das ovelhas…
Saem todos em grande
harmonia. Cândido fica no seu lugar.
CÂNDIDO – (foco sobre ele, a cena
escurece) Não vos admireis da versatilidade dos caracteres e dos
acontecimentos. Vós também sois assim. Pensai bem…” (45).
A maneira
insólita e aparentemente infantil como várias passagens da obra se desenvolvem
serve para conferir à intriga um caracter de irrealidade mas também uma certa
doçura poética:
“ALICE DAS MARAVILHAS – (…) (Levanta-se
precipitadamente e vai encostar o ouvido à porta) Nem mais uma palavra que
o espião está à escuta!
FILOPÓPOLUS – (com manifesto desprezo) Ora, ora, um
espião espia, um conspirador conspira, mas a História é que conta!
ALICE DAS MARAVILHAS – Isso só depois é que se sabe! (Orgulhosa) Bem vês que a minha profissão é essencial e
rende…não a posso perder com as tuas fantasias. Queres ver como é? (Grita
para a porta) Cândido, espiãozinho, estás aí?
CÂNDIDO – (A sua voz atrás da porta) Estou
sempre no meu posto, bela Alice das Maravilhas! (Entreabre
a porta e espreita)
ALICE DAS MARAVILHAS – (Para Filopópolus) Agora fala em golpes
de Estado a ver se és capaz!” (46)
Contudo, esse clima extraordinário e com uma alta carga irónica é
utilizado também com um objectivo bem sério, como disse Carlos Porto – o da
crítica mordaz, nada tendo a ver com o gracejo ou a sentimentalidade:
“FILOPÓPOLUS – Alto lá, as cerimónias ainda não acabaram! Além disso são
a trave mestra de todas as presidências e portanto indispensáveis para
confirmar a grandeza e inteligência dos dirigentes. Pacifistas, continuemos.
CONSTANTINO – Nem mais, Filopópolus, continuemos, mas sem esquecer as
contabilidades e os bancos, já que se falou em traves mestras. Que nesta
presidência os ricos e os pobres possam investir pela certa, eis o segredo.
Pois, como todos sabem, o dinheiro é como as árvores delicadas, precisa de água
para crescer. Filopópolus, façamos barragens!” (47)
Tudo isto,
finalmente, enquadrado por uma visão que confere grande dinamismo às
personagens em palco. Damos um exemplo:
“Metade dos ex-embuçados voltam a pôr os capuzes, alguns tornam a
tirá-los, de forma a dar a hesitação do momento. Olham uns para os outros,
trocam frases apressadas e ininteligíveis. A algazarra exterior mantém-se.
Ludovice simula uma oração. Cândido está em pânico. Ana de Áustria ri à
gargalhada e aponta Vitorino, que treme. (48)
Verificamos
pois que esta peça, pela sátira política, pela fina ironia e, enfim, pelo
universo simultaneamente poético e atroador que a enforma, se afasta
decididamente do teatro naturalista e realista para se guindar a um plano
específico que revela adesão ao surrealismo.
NICOLAU SAIÃO | Poeta, ensaísta e
pintor, escreveu recentemente uma peça que se encontra inédita em tipografia,
“Passagem de Nível”. Depositada na Sociedade Portuguesa de Autores, o autor
efectuou uma tiragem reservada para oferecer a amigos e relações literárias. (Nota posterior – Em 1992 teve a sua edição
tipográfica).
“Mistério em
três actos com um prólogo e um epílogo”, a intriga desenvolvida parece ser
também um pretexto para colocar em evidência uma grande carga lírica nos
gestos, nos diálogos e no mundo em que se movimentam as personagens (veja-se o sótão da casa de Adrian Cactus,
repleto de objectos estranhos e maravilhosos, um mundo plenamente surrealista).
Contudo, essa grande densidade poética da peça não anula a sua intriga, antes a
envolve numa atmosfera fascinante: mesmo os momentos que, em princípio,
deveriam revelar maior tensão, pela existência de choques entre as personagens (como o primeiro encontro entre Pedro Colibri
e Justiniano) revelam uma subalternização desses embates em benefício da
introdução de um ambiente poético, verificando-se desse modo que os conflitos
assumem um cariz algo lírico. Mas não nos deixemos enganar: subjacente, está
uma violência que palpita como, sob a pele aparentemente saudável, um tumor
maligno o faz.
As
personagens, que funcionam algumas delas como expressões de certo tipo humano (Justiniano, o capitalista desapiedado e
manhoso; Adrian Cactus, o sonhador despegado do mundo material; o Cabo
Miquelina, representação da prepotência obtusa e da estupidez policial…) estão
também, por vezes, despidos dos seus caracteres habituais. É este o caso do
Padre Joaquim Gráfico, bastante heterodoxo – um pouco ao jeito do Abade
Joãozinho do livro de Boris Vian “Outono em Pequim”.
Esse ambiente
lírico mas também místico, pelo menos em algumas passagens, (místico à maneira surrealista, claro…)
mistura personagens perfeitamente possíveis, ou melhor, habituais, com outras
mais inverossímeis. É o caso dos três Gnomos (Senhorinho, Papito e Teia d’Aranha) e do
Cavaleiro Negro. Mas, se bem verificarmos, aperceber-nos-emos que muitas das
atitudes das personagens, perfeitamente poéticas e desataviadas, se nos revelam
“incoerentes”; ora assumem um ar circunspecto ora se lançam em tiradas
decididamente talhadas no material ora do humor negro, ora do onirismo
fingidamente quotidiano (não existem,
por exemplo, as teorias astrofísicas de Isaac Constantinople). E isto apenas
porque os poetas são, parafraseando Raul Hausmann, “esses idealistas em valores
de bolsa” que realizam algo de mais grandioso que uma qualquer apoteose do
efémero. Na peça que analisamos, é evidente que se nota que o seu autor,
dissimuladamente, deixa transparecer umas quantas mensagens sob o manto dos
diálogos, da intriga, da acção geral. Apologia da sabedoria e do conhecimento,
na peça de N.Saião é fácil entender o elogio do amor, da rebeldia, da alegria
de viver; e a censura do autoritarismo, do fideísmo eclesiástico e dos
constrangimentos sociais.
Como disse
Rimbaud, “o poeta fala não só pelos homens mas também pelos animais”. E pelas coisas,
acrescentaríamos nós, já que a verdadeira poesia deverá ser uma proposta
englobando todos os reinos da natureza.
Se nos
pedissem para encontrarmos uma frase definidora desta peça, escolheríamos esta
de Louis Pauwels: ”Se me disserem que não existe nenhuma espécie de maravilhoso
para encontrar neste mundo, recusar-me-ei obstinadamente a dar ouvidos. Eu
continuarei com os meus fracos recursos e com toda a minha paixão a
procura-lo”. (49). É esse
maravilhoso que se expressa em toda a peça, após o “aviso” que constitui o
Prólogo fornecido por Este e Aquele. E a pergunta, mesmo que ingénua,
surge e aqui fica: porque é que há-de valer sempre mais ser comerciante do que
ser poeta?
OS CASOS DE JORGE DE SENA E ANTÓNIO PEDRO | Não gostaríamos de finalizar este trabalho sem tecermos algumas
considerações sobre dois poetas que se debruçaram sobre o problema do
surrealismo e que chegaram mesmo a praticá-lo, posto que para se verificar
depois um abandono, como foi o caso de António Pedro.
Este poeta e
pintor, se bem que tenha aderido ao surrealismo no grupo de Londres, cidade
onde na altura se encontrava, e sendo posteriormente co-fundador do G.
Surrealista de Lisboa, tem como dramaturgo um trabalho profundamente afastado
do teatro surrealista. Basta analisarmos as suas peças para que esse facto se
saliente. (50). Também na sua feição
de encenador tal aspecto é verificável. Ante as críticas que lhe dirigiram
outros surrealistas, verifica-se o abandono, podendo interrogarmo-nos sobre
como seria o surrealismo de António Pedro, qual o seu grau de sinceridade.
Essas críticas
surgiram porque António Pedro se juntou à burguesia demo-liberal. No regime
fascista, as encenações de António Pedro eram ofensivas desse mesmo regime
devido ao extremo fechamento que este impunha. No entanto, num regime
democrático, liberal-burguês, tais encenações seriam perfeitamente inócuas.
Possuindo uma extrema boa qualidade, digamos, eram a face “bem vestida e bem
apessoada” do querer oposicionista. Ora, o surrealismo tanto é subversivo do
fascismo como do liberalismo burguês, do estalinismo ou de qualquer outro
semelhante, encarando-os como diferentes formas de domínio, umas mais
intolerantes que outras, do capitalismo privado ou de Estado.
António Pedro,
a nível da dramaturgia e do mundo do teatro, possuía uma concepção
provincianamente lusa à qual tentava adaptar algo que o ultrapassava – o
surrealismo. Queria um surrealismo bem composto, respeitado pelos democratas de
bem e, quem sabe, pelos adversários, em suma: um surrealismo à pequena medida
dum pequeno e engraxado país, sempre em busca de respeitabilidade. Como António
Maria Lisboa e Cesariny referiram num comunicado, tentava “meter o Rossio na
Rua da Betesga”.
É fácil
perceber e concluir que a sua actividade estava na linha do pensamento que
tinha a ver com a luta intelectual anti-fascista da oposição burguesa
democrática, sendo portanto legítima e digna, só que sem relação com o
surrealismo. Como anti-totalitários que são, os surrealistas não o tentaram
impedir de encenar e escrever o que e como bem quisesse. Exigiram-lhe sim que
não se continuasse a intitular surrealista, para evitar confusões. Nessa
altura, António Pedro assumiu uma atitude de sobranceria, vindo as posições a
extremar-se como é do conhecimento geral.
Quanto a Jorge
de Sena, desde cedo se interessou pelo surrealismo, fascinação que se iria
reflectir na sua obra teatral, que possui inegáveis pontos que indicam as
influências sofridas. (51). No
entanto, Jorge de Sena – devido à sua formação académica, sempre enfronhado
numa mentalidade “universitariante” e doutoral – não estava dentro das práticas
surrealistas; parecia querer tornar o surrealismo algo de classicizante,
asséptico, de fraque ou borla e capelo, em suma: um surrealismo compostinho,
com os diplomas todos, tipicamente médio-burguês. Tal como Maria de Fátima
Marinho o visionou no seu imenso livro. Para Jorge de Sena, o surrealismo
deveria aspirar à respeitabilidade, a ser um “intelectual sério” e com uma boa
carreira, no vestíbulo da glória, o que os surrealistas recusam, pois – e a
frase é de Nicolau Saião – “preferem um copo de tinto e uma bela vadiagem para
olhar as estrelas ou os amores do mundo ao invés de se engravatarem e sentarem
compenetradamente a uma secretária à aurora ou ao crepúsculo”. Como disse
Carlos Martins, “não se trata de aderir ao surrealismo por uma questão de
simpatia especial por figuras de proa, aristocratas de côrte ou academia, sejam
elas quais forem. Gosto de amigos desaparecidos e ainda vivos, do Breton, do
António Maria Lisboa, do Pedro Oom, do Artaud, de milhões de estrelas que
fizeram da Poesia o único caminho de liberdade deixado ao homem neste planeta
ameaçado de destruição total. Estou-me bem nas tintas para uma certa
notoriedade “surrealista” que tanto faz correr alguns pintores e poetas da
Pena”. (52)
Toda a vida
contemporânea está marcada pela dedada do surrealismo, pelo que não é possível
acreditar na sua morte como tantas vezes tem sido anunciado, sabe-se lá com que
intuitos, mas antes na sua passagem para formas de moral de acção, muitas
vezes; as quais, sendo anónimas, se diluem na vida colectiva. O palco da vida
continua a ser uma campina surrealista. Que, por vezes, encarna em obras
palpáveis e com curso público.
FINALIZANDO | Tentei, com este trabalho, não
apenas clarificar alguns assuntos e efectuar uma abordagem inicial a outros,
mas também e apesar dos condicionalismos inerantes a uma tarefa desta natureza
proporcionar-me momentos enriquecedores e aprazíveis em simultâneo com a
feitura de uma proposta de leitura que também, para o Professor, se revelasse
agradável. Estes dois últimos aspectos não deverão, no meu entender, ser
objectivos menores de uma disciplina ou de um curso.
Se a arte do
actor, no dizer irónico de Sir Ralph Richardson, “consiste em evitar a tosse do
público”, a arte de qualquer indivíduo que pegue na caneta deverá consistir em
tentar evitar o bocejo do leitor.
Espero tê-lo conseguido…
NOTAS E COMENTÁRIOS
CAPÍTULO I
(1) BRETON, André, Manifestos do Surrealismo, Lisboa,
Moraes Editores, 2ª Ed., 1976, p.47
(2) MARINHO, Maria de Fátima, O Surrealismo em Portugal, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, 198y7, p.11
(3) Cf. Maria de Fátima Marinho,
op.cit.
(4) DUROZOI, Gérard e LECHERBONNIER,
Bernard, O Surrealismo, Coimbra,
Almedina, 1976, p.7: “Esta incompreensão não é devida sobretudo a certos
hábitos de encarar a literatura e a arte em geral segundo critérios que o
surrealismo fundamentalmente recusa?”
(5) FORTINI, Franco, O Movimento Surrealista, Lisboa,
Presença, 1965, p. 10: “ (…) digamos já que se pode falar de surrealismo em
sentido restrito, com referência à actividade de certas pessoas, reunidas em
grupos, de formação bastante variada em torno do maior teórico do movimento,
André Breton (…)”. Breton, em nosso entender e de acordo com o que pesquisámos,
foi apenas um entre os surrealistas.
Teórico? Foi ele quem afirmou “Je suis pas pour les adeptes”…
(6) Gérard Durozoi e Bernard
Lecherbonnier, op.cit., p.136
(7) SAIÃO, Nicolau, in Subsídios para
o entendimento surrealista, A IDEIA, Revista de Cultura e Pensamento
Anarquista, III volume, nº 20-21, Lisboa, 1981
(8) Que o surrealismo não é
anti-racional mas anti-pseudo recionalismo pode verificar-se da defesa que os
surrealistas sempre fizeram de homens como Gaston Bachelard, Giordano Bruno,
Roger Bacon ou Galileu Galilei, uma vez que os consideravam cientistas onde se
casavam na perfeição a realidade, a poesia e a coragem intelectual. Para melhor
elucidação ler os textos que Pierre Mabille (não confundir com Pierre Navile!) dedicou às
relações entre surrealismo e ciência: “Le miroir du merveilleux”, 1940
(9) “Conta-se que, quando ia dormir,
Saint-Pol Roux mandava sempre pôr sobre a porta do quarto no seu solar de
Camaret o seguinte letreiro: “O poeta trabalha”. Citado por André Breton in Textos de Afirmação e de combate do
Movimento Surrealista Mundial, antologia organizada por Mário Cesariny,
Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1977, p.67
(10) Numa “Carta aos médicos chefes dos asilos de
alienados”, Antonin Artaud reclamava a libertação dos “forçados da
sensibilidade”, vítimas que eram da mensuração do espírito, como lhes chamou,
denunciando que “os asilos, longe de serem asilos, são prisões pavorosas cujos
detidos fornecem uma mão-de-obra cómoda e gratuita e onde a sevícia é a regra (…)”.
Modernamente, leia-se para ilustrar o livro de Ken Kesey “Voando sobre um ninho de cucos”, ed. portug. em Coimbra.
(11) Este assunto fica suficientemente esclarecido
no texto “Do tempo em que os surrealistas
tinham razão” onde é aclarada a “impostura estalinista” (ver André Breton, op.cit., ps. 279 e segs.),
tal como “À la niche les glapisseurs de
dieu” aclara a impostura fideísta (CESARINY,
Mário, A intervenção surrealista, Lisboa, Ulisseia, 1966, p.56).
(12) Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier,
op.cit., p.36
(13) Atente-se que religião vem de re-ligare,
om que significa efectuar de novo a perdida junção entre o homem e o cosmos.
Todavia, as religiões institucionalizadas e geridas pelas igrejas são, no
entender dos surrealistas, “grandes empresas de desmiolação” a que subjaz o
fanatismo, apoiadas nas obsessões sexuais, nos preconceitos e nas neuroses,
apresentados como “moral” e tidos como exemplares e servidas por miríades de
fanáticos (nos casos mais extremos) ou
de obcecados, como é o caso dos sacerdotes. Robert Desnos afirmava que “ninguém
tem um espírito mais religioso que eu, na medida em que estou profundamente
ligado ao universo cósmico”. Verifica-se, portanto, que os surrealistas aceitam
a religião enquanto ligação do homem ao universo, mas a recusam absolutamente
enquanto sujeição do ser humano a dogmas fideístas, sempre abusadores, ou à
figura de qualquer deus a quem se deveria adoração não se percebe bem porquê. (Cf. Nicolau Saião: Para que precisa “Deus”,
um ser perfeito, da adoração de seres imperfeitos como dizem que nós somos? E
porque tem “Deus” tanta necessidade que os seus sacerdotes lhe façam
incansavelmente a publicidade? Isto para ficar só por aqui”.)
(14) Dão-se apenas dois exemplos: ao
perguntarem-lhe porque costumava ir encontrar-se com o admirador X no Jardim do
Luxemburgo (tentava o juiz dá-la como
lúbrica), respondeu desta forma magnífica: “Acalentava a esperança de encontrar
um homem que me falasse com as palavras do sonho”; inquirida pelo mesmo juiz,
que devido ao barulho levantado pelo julgamento se apurou ser um perfeito
canalha, sobre se não tivera remorsos de ter abatido “o marido de sua Mãe” –
que a violara 43 vezes – respondeu: “Apesar do mal que me fez, tenho talvez
mais pena dele do que V.Exa. decerto tem dos mais de quarenta desgraçados que
mandou para a guilhotina e nunca lhe fizeram mal”. Para melhor elucidação deste
caso procure ver-se o probo filme de Claude Chabrol “Viollete Nozières”, com
entre outros actores Isabelle Hupert e Stéphane Audran (1978).
(15) Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier,
op.cit., p. 334
(16) Não se colocando nesta base e daí partindo
para posteriores análises, os investigadores do fenómeno surrealista, quando se
debruçam sobre as suas obras não as conseguem integrar no contexto próprio. Um
exemplo: no seguinte poema de Cesariny “Creio em deus pá/ um dois três quá/
tod’ poderou’/ um dois dois três/ criador do céu e da té’/ seis sete oito (…)” o A. mais do que “parodiar o Credo” ou
apresentar “definições de ritmo e de rima que destroem qualquer análise séria (sic)” ridiculariza o Credo e toda a beatice
ataviada nele expressa e, por seu intermédio, as directrizes filosóficas e de
actuação do fideísmo ocidental. Contudo, no seu ensaio sobre o surrealismo,
Maria de Fátima Marinho (talvez por
receio de ofender o Patriarcado, na melhor das hipóteses) fica-se pela
referência às duas particularidades primeiramente enunciadas – paródia do Credo
e destruição do ritmo e rima tradicionais (cf. Maria de Fátima Marinho, op.cit., p.
412). Como referiu René Crevel, a poesia verdadeira “nada tem a ver com os
cantos mais ou menos felizmente rimados ou ritmados que lisonjeiam as coisas e
os seres bem instalados e que os deixam nos seus lugares”.
(17) Trata-se efectivamente de uma Ética e não de
uma Moral, pois como refere William Morrison “a moral é episódica e depende de
leis sociais, frequentemente falsas e enganosas, enquanto a ética é uma atitude
que parte da dignidade inscrita em cada um e inapagável”.
(18) Refira-se a este propósito, a título de
exemplo, o caso de Manuel Mourato, carpinteiro em Portalegre e que, devido à
fractura de um pé, que o impediu de trabalhar durante certo tempo, ocupou-o a
pintar, espontaneamente, uma enorme obra usando para o efeito tintas utilizadas
na sua profissão. Esta obra esteve patente na “Exposição Ícono-Bibliográfica ‘O
Fantástico e o Maravilhoso’ no Teatro Ibérico (Julho de l984) e na Sociedade Nacional de
Belas Artes, com o título “A floresta encantada”. Manuel Mourato nunca tinha
participado em qualquer exposição, fazia de vez em quando, no remanso da sua
casa (onde vive absolutamente só) uns
desenhos “para se distrair” e não tem qualquer iniciação artística; devido a
uma insuficiência auditiva e oral nunca fez mais que a segunda classe, posto
que seja pessoa bastante sociável. (Nota posterior – Já falecido).
(*) Constava da peça de NS, Passagem de Nível, de fotos de quadros
de Manuel Mourato, de LUD e de colagens de Carlos Martins; bem como de
extractos de obras de Cesariny, Pedro Oom, Mário Henrique Leiria e Manuel de
Castro.
CAPÍTULO II
(1) REBELO, Luiz Francisco, O teatro simbolista e modernista,
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, “Biblioteca Breve”, 1979, p.
71
(2) Idem, p.72. Não confundir movimento,
enquanto estrutura organizada, com projecto de vida e de actuação. Afirma Mário
Cesariny: “Em Portugal nunca houve um movimento surrealista, nem sequer no ano
de existência pública (1948-49) do grupo
surrealista de Lisboa que depois da edição de quatro cadernos, de um protesto
público e de uma exposição de pintura se dissolve, dando lugar a outro que
também não tardará muito a dissolver-se. Como seria possível subsistir ou
subsistir-se na ditadura? (…) o que não quer dizer que não tenha aparecido na
cena pública (…) Do surrealismo não resta nada, mas acontece que estão todos.
Permanecem intactos os propósitos, fins e meios da intentona surrealista”. (in Jornal
de Letras, nº398, 20 de Fevereiro de 1990). Parecendo querer referir o
movimento, L.F.Rebelo na realidade
confunde o problema. Não se deve encarar como “morto” ou “acabado” o
surrealismo apenas por este não aparecer enquadrado por uma estrutura
organizada ao nível de “grupo”. O surrealismo tem acontecido depois dos anos 50
e continua a acontecer – evoluindo naturalmente nos seus resultados em espécie
– da mesma forma que se encontrava presente antes da formação do primeiro grupo
em 1919 e da elaboração do projecto que afixavam. A este propósito, veja-se o
livro de Durozoi e Lecherbonnier, entre outros, e a genealogia que os
surrealistas consideram.
(3) in Jornal de Letras, nº 398 de 20 de Fevereiro de 1990, p.6
(4) Idem, ibidem
(5) in Jornal do Fundão de 12 de Maio de 1963, p.6
(6) Idem, p.7
(7) Idem, ibidem
(8) CESARINY, Mário, A intervenção
surrealista, Lisboa, Ulisseia, 1966, p.59
(9) Por exemplo, Cesariny foi detido
em Portugal algumas vezes, tendo durante muito tempo que se apresentar
periodicamente na Polícia, para controle, ficando conhecido como “o Poeta que
ia à Revista”. Em França, por comportamentos vitais considerados impróprios (homossexualidade e rebeldia) este também
preso, tendo sido libertado devido à intervenção de intelectuais.
(10) Caso de Pedro Oom em Alvaiázare. Tendo-se ali
deslocado, foi abordado num café por um natural da terra que, tendo visto uma
exposição em que este apresentava um quadro chamado “As meninas de Alvaiázare”,
se sentiu tocado nos seus brios bairristas; palavra puxa palavra, em breve se
passou dos comentários acintosos à acção material e violenta, logo corroborada
por outros sujeitos suscitados ao confronto físico com o poeta e pintor. Não
fôra a intervenção do barbeiro local, figura dada às lides culturais e respeitada
na povoação e teria sido propiciado ao A. de “Histórias para crianças
emancipadas” um correctivo maior que o que já recebera.
(11) Morte prematura de António Maria Lisboa em 11
de Novembro de 1953, depois de em 1951 haver sido internado num sanatório “com
os pulmões irremediavelmente perdidos”; também Mário-Henrique Leiria morreu
fruto, em grande medida, de carências alimentares (“de fome”, como foi referido por um
testemunho dum amigo, na altura, nos jornais).
(12) Caso de António Santiago Areal, que depois de
vários problemas com autoridades & etc., apareceu assassinado em 1978,
continuando desconhecidas as condições da sua morte.
(13) Caso de Carlos Martins e Ana dos Santos, que
devido à sua actividade surrealista tiveram problemas que os forçaram a deixar o
emprego e os fez sofrer marginalizações da parte das autoridades da região de
Alcoutim, que habitam (Nota posterior – Na época da feitura
deste texto) não lhes tendo sido pago por exemplo um subsídio a que tinham
direito, o que motivou uma carta de amigos ao Pres. da República – dado que
segundo se diz vive-se em Democracia. Caso de N.Saião, que por distribuir
textos surrealistas no Alentejo depois do 25 de Abril, sofreu tentativas de
agressão por parte de estalinistas e fascistas, a que escapou por na altura
andar sempre armado de pistola; tentaram, ainda, expulsá-lo da sua terra –
curiosamente foi prevenido pelo comandante da polícia da época, um militar
democrata sobre quem queriam fazer pressão.
(14) PORTO, Carlos e MENEZES, Salvato Teles de, Dez anos de teatro e cinema em Portugal,
1974-1984, Lisboa, Caminho, “Col. Nosso Mundo”, 1985, p.79
(15) Cf. N.Saião, a quem Cesariny o contou
(16) REBELO, L.Francisco, História do teatro português, Lisboa, Europa-América, Col. “Saber”,
1967, p.116
(17) Sobre este problema, ver BARATA, José
Oliveira, Didáctica do Teatro,
Coimbra, Almedina, 1979, pp.49 a 54
(18) Citado por Luiz Forjaz Trigueiros, Novas Perspectivas, Lisboa, União
Gráfica, 1969, p.207
(**) Foi editado em tipografia c/ o
apoio e subvenção integral da Comissão Regional de Turismo de S.Mamede, Governo
Civil de Portalegre e Câmara Municipal portalegrense.
(1) Maria de Fátima Marinho, op.cit.,
p.267
(2) Cf. BEHAR, Henri, Sobre teatro Dada y Surrealista,
Barcelona, Barral Editores, Col. “Breve biblioteca de Respuesta”, 1970
(3) in Situação da Arte, inquérito junto de artistas e intelectuais
portugueses, Lisboa, Europa-América, Col. “Estudos e Documentos”, 1968,
p.167
A questão pressupunha, de acordo
com os seus autores (Eduarda Dionísio,
Almeida Faria e Luís Salgado de Matos), que “o teatro vive das personagens”.
(4) Manuel de Lima, “Interfácio – Uma
peça como não se faz lá fora”, in O clube
dos antropófagos, Lisboa, Ed.Estampa, 1973, p.129
(5) Cf. Opinião de Carlos Porto in
“10 anos de teatro”, op.cit., p. 67 sobre a peça “Um auto para Jerusalém”, da
autoria de Mário Cesariny
(6) CESARINY, Mario, Nobilíssima Visão, Lisboa, Guimarães
Editores, Col.”Poesia e Verdade”, 1976, p.85
(7) Maria de Fátima Marinho, op.cit.,
p.351
(8) Mário Cesariny, op.cit., p.96
(9) O autor recomenda uma projecção
de slides, à falta de filme para a
circunstância, que mostrarão depois de um letreiro genérico “diversas imagens
de veículos automóveis, indo-se dos mais espampanantes e modernos aos mais
irrisórios e anacrónicos. Retrocede-se ainda para o landó, para a liteira e, finalmente,
para um homem que sobe por um monte com outro homem às cavalitas”, seguindo-se
imagens tais como: bairros de lata “de preferência portugueses”, um comando da
Legião Portuguesa, “uma cara bem escolhida de Salazar”, uma imagem da explosão
da bomba atómica, uma mulher morta, slide
do Casino Estoril, uma pose do Cardeal Cerejeira, “imagem de atrocidades sobre
nativos na Guerra de África”, um camponês a possuir uma cabra, cena de
intervenção cirúrgica…
Mário Cesariny, op.cit.,pp.109 e
110
(10) Idem, p.109
(11) Idem, p.113
(12) Idem, p.111
(13) Idem, p.90
(14) Maria de Fátima Marinho,
op.cit.,p.355
(15) Idem, ibidem
(16) Idem, p.362
(17) Mário Cesariny, op.cit., pp. 100 e 101
(18) Idem, pp.116 e 117
(19) LIMA, Manuel de, O clube dos antropófagos, Lisboa, Ed. Estampa, 1973
(20) Manuel de Lima in “Interfácio – Uma peça como
não se faz lá fora”, op.cit., pp. 126 e 127
(21) Idem, p.128
(22) Idem, p.129
(23) Idem, p.132
(24) Manuel de Lima, op.cit., p.184
(25) Idem, p.224
(26) Idem, ibidem
(27) Cf. Manuel de Lima, op.cit., p.133:” (…) “e
evitava-se também dar-lhe o desgosto de um fracasso que não fica bem a um autor
‘maldito’. Ao passo que eu podia muito bem aguentar um falhanço. TOMARA EU!”
(28) ALVES, Jorge de Lima, Cerimonial para um massacre, Lisboa, Ed.PASQUIM (Grupo Mandrágora), s/d, p.9
(29) Jorge de Lima Alves, op.cit., pp.17 e 18
(30) Idem, p.39
(31) Idem, p.36
(32) Idem, pp.42, 43 e 44
(33) CRESPO, Manuel Grangeio, Os implacáveis, Lisboa, Minotauro, 1961, pp. 12 e 13
(34) Idem, p.21
(35) Veja-se “Um auto para Jerusalém”, em que
inclusivamente se introduzem personagens com esse intuito, ou ”Cerimonial para
um massacre” em que uma das personagens, sob o pretexto de ler um livro, recita
poemas e alguns trechos de Rimbaud
(36) Manuel Grangeio Crespo, op. cit., p.151
(37) Idem, p.159
(38) Idem, p. 160
(39) Idem, p. 120
(40) CRESPO, Manuel Grangeio, O gigante verde, Lisboa, Ática, 1965, p. 96
(41) Manuel Grangeio Crespo, op.cit., p. 132
(42) In revista “Rádio e Televisão”, nº847, de 3 de
Fev.1973
(43) MARTINHO, Virgílio, Filopópolus, Lisboa, Plátano Ed., Col. “Teatro vivo”, nº 2, 1973.
Esta opinião de Carlos Porto, o director da colecção, está expressa na
contracapa. Infelizmente e segundo julgamos saber, a Plátano Editora
encontra-se actualmente praticamente reduzida à edição de livros escolares.
(44) Virgílio Martinho, op.cit., p.40 e 41
(45) Idem, pp.66 e 67
(46) Idem, pp. 10 e 11
(47) Idem, p.77
(48) Idem, p.50
(49) Citado por Alan de Benoist in Nova direita, nova cultura, Lisboa,
Ed.Afrodite de Fernando Ribeiro de Melo, Dezembro de 1980
(50) Cf. PEDRO, António, Teatro Completo, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda/Biblioteca Nacional, Col. “Biblioteca de autores
portugueses”, 1981
(51) Cf. SENA, Jorge de, Amparo de mãe e mais 5 peças em 1 acto,
Lisboa, Plátano Ed., Col. “Teatro vivo”, nº 5, 1974
(52) In Carta a Nicolau Saião, de 27 de Agosto
1989.
JOÃO GARÇÃO (Portugal, 1968). Licenciado em História da
Arte e Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Tem proferido conferências e publicado artigos
sobre Educação, Arte, Ética e Política e apresentado livros de autores
portugueses. O
presente ensaio - carinhosamente cedido por seu autor - terá brevemente edição
em livro impresso, onde apresenta um prólogo de António Cándido Franco. Contacto:
joaofvgarcao@gmail.com. Página ilustrada com
obras de J. Karl Bogartte (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 11 | Junho de 2015
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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