A artista Tereza D'Amico
[1] descobriu a essência da cultura brasileira fazendo collages. Riquíssimas em
alegorias e mitos, elas acabam por nos reportar as folias e fantasias carnavalescas.
Elementos como plumas, miçangas, sementes, são trabalhados em mosaicos, acumulações,
justaposições, que definem a retórica de suas collages. É evidente a colaboração
de Tereza D'Amico à arte brasileira, retratando e mergulhando profundamente nas
raízes e fontes populares. Esta artista, inclusive, pode ser reconhecida como uma
das precursoras da collage surrealista no Brasil. Entretanto, procuramos desvendar
porque ela é esquecida pelos historiadores, considerando-se que seus contemporâneos,
Djanira e Carybé, por exemplo, constam na nossa história da arte.
Segundo Sergio Lima, "A arte é um dos processos de nossa relação com
o mundo. [...] Num sentido amplo, a arte fala a linguagem do descobrimento."
[2] Descobrir a arte de Tereza D'Amico significa reencontrar a magia do folclore
brasileiro.
Vejamos então, um breve relato de acontecimentos importantes na vida desta
artista.
Tereza D'Amico nasceu em 4 de fevereiro de 1914, em São Paulo, falecendo
em 1965, na mesma cidade. Estudou Belas Artes demonstrando afinidade com escultura.
Como bolsista do Institute of International Education (Nova Iorque, EUA) manteve
contato com artistas das mais variadas tendências, como Léger, Lipchitz, Marcel
Duchamp, Rufino Tamayo, Arschile Gorky, entre outros. Aperfeiçoou seus estudos em
arte de vanguarda internacional e escultura, tendo como professores Zadkine e Zorach.
Dentre os vários artistas que conheceu, Schenberg [3] destaca a pintora brasileira
Djanira, que lhe revelou a magia e a ingenuidade da arte primitiva do Brasil, fator
este que com o passar dos anos, manifestou-se intensamente na arte de Tereza D'Amico.
Em 1948, já em território brasileiro, deixou-se envolver pelo nacionalismo.
A década de 50 tornou-se fundamental para esta artista. De 1951 até o ano
de seu falecimento, participou de todas as edições da Bienal Internacional de São
Paulo. Em 1956 ganhou o prêmio de "Viagem ao País" no Salão Paulista de
Belas Artes, visitando no ano seguinte, Salvador (Bahia). Foi neste momento que
encontrou os elementos que transformaram sua arte. Desde então, sua escultura cedeu
lugar a desenhos e collages que revelam o encantamento de Tereza D'Amico pelas manifestações
populares e cultura afro-brasileiras que encontrou na Bahia. Este texto refere-se
à última fase de sua arte, compreendido entre 1957-65, valendo-se de análises sob
a ótica da collage.
Desde o seu regresso ao Brasil, Tereza demonstrou uma capacidade impressionante
de absorver criativamente as influências que recebia, conforme observou Schenberg
[4] e, segundo as próprias palavras da artista:
"O verdadeiro artista não deve -penso- afastar-se de coisa alguma. Tudo
o que vive, e palpita em volta dele deve ser motivo, ou elemento de sua linguagem."
[5]
Há indícios de que seu período de estudos no exterior, tenha lhe desenvolvido
um grande saudosismo e consequente nacionalismo. Sabiamente, décadas depois, Francisco
Brennand prescreveu uma receita de nacionalismo que parece ter sido influenciada
pelo exemplo de Tereza D'Amico. Diz ele: "... no reaproveitamento de nossas
raízes, no ambiente e no clima tropical em que vivemos, na força rejuvenescedora,
na originalidade, na sabedoria com que saibamos explorar a nossa própria tradição,
são nessas forças todas conjugadas, que podemos criar uma arte verdadeiramente brasileira,
rica em símbolos, alegorias, emblemas e mitos." [6]
A viagem a Salvador, revela à artista um mundo envolto por manifestações
populares. Fascinada com o que via, presenciava, utilizava-se da collage para compor
seu olhar sobre o povo brasileiro. A arte de Tereza D'Amico, assim como a de Djanira
e Carybé, em geral tem sido considerada pelos historiadores e críticos de arte,
como naïf [7], simplesmente porque buscava os motivos e inspirações em fontes
populares. Sendo assim, uma primeira visão sobre a obra de Tereza poderia nos levar
a crer que suas collages giram dentro do que realmente seria uma "arte ingênua",
ou mesmo naïf, como nas collages Louquinhas e Papagaios de 1958/59,
que facilmente são associadas as collages infantis praticadas no colégio. Em Louquinhas,
a linguagem da collage flui das personagens do povo, representadas num rosto e cabelo
em dobradura de papel seda. Esta retórica provém da ingênua arte de dobrar papéis,
de fazer barcos, aviões e chapéus. Já em Papagaios, a artista representa este brinquedo
da cultura popular brasileira. Elaborada com palitos de madeira, esta collage tem
como elemento principal o material básico para confecção da estrutura do próprio
brinquedo.
Entretanto, uma segunda visão, mais apurada, nos mostra uma nítida relação
entre as collages de Francis Picabia e D'Amico. Picabia, inicialmente na década
de 20, já praticava este tipo de collage descomprometida com a qualidade dos materiais.
Utilizava-se de botões, palitos, fósforos, papéis, plumas, a fim de compor paisagens
primárias, rostos humanos, etc, tudo num tom de irreverência, deboche e conceito,
típico do espírito de artista dadaísta. Existe um paralelo bastante acentuado entre
essas duas collages de Tereza D'Amico, de 58-59, e as de Picabia. Um bom exemplo
é A dama dos fósforos, de 1920. É bem provável que Tereza tenha conhecido
o trabalho de Francis Picabia nos Estados Unidos, ainda mais porque sabemos que
ela conheceu Duchamp.
Agora, já nos parece ingenuidade apontar collages como Louquinhas e Papagaios
simplesmente como representações da arte naïf. Compreendemos então, que o
sentido mais correto seria apontá-las para uma linguagem de aproximação ao universo
dadaísta e surrealista. EmLouquinhas, além de utilizar-se das relações metafóricas
entre papel e cabelos, a artista acaba por dobrar o papel com a mesma intensidade
de uma camisa de força, evidenciando as rugas existentes tanto no papel, como na
pele, no tecido. O cabelo dobra-se sobre si mesmo, no queixo, fazendo o fechamento
como uma touca ou lenço, diríamos um "lenço de força" que se coloca exatamente
sobre a parte do corpo destinada a representar a ideia de loucura: a cabeça. Nesta
collage, há indícios da intenção em reinterpretar a tradicional camisa-de-força,
aqui representada num estilo criativo e inteligente, pois Tereza trabalhou com elementos
simples, mas com alto grau conceitual, bem ao gosto dos trabalhos de Duchamp e Picabia.
Já não nos surpreende a essas alturas, o fato de existir - ainda que inconscientemente
- uma espécie de preconceito racial vindo de historiadores e críticos, como se inevitavelmente
a arte da raça negra tenha que ser classificada como naïf, folclórica, popular,
ou algo do gênero, jamais podendo ser considerada como arte com alto nível de erudição.
Certamente as collages de Tereza D'Amico transitam entre estes dois universos, explicitando
não só o conceitual e o popular, mas também todo o aspecto mágico e simbólico que
a arte possui. E é assim que concluímos que foi exatamente o invisível que os historiadores
de um modo geral excluíram da história da arte.
No período compreendido entre os anos 1960-65, as collages de Tereza apresentam
a influência da arte plumária indígena; elementos da cultura afro-brasileira (impregnada
pela religiosidade provinda dos candomblés); cartografia popular; enfim, todas as
manifestações, alegorias e mitos do povo brasileiro.
"As almas dos mortos se transformam em pássaros." [8]
Nicola acredita que "A arte plumária está intimamente ligada ao mundo
espiritual, ao diálogo íntimo e natural que o indígena estabelece com o universo.
(...) O colorido é intenso, há brilho, textura, potencialidades cromáticas. A cor
tem papel fundamental na esfera das representações simbólicas (nascimento, morte,
prestígio social, poder político e religioso)." [9] Pode-se considerar entre
os materiais de ornamentos da arte plumária: miçangas, plumas, penas, cabelo humano,
conchas fluviais, ossos de mamíferos e de aves, sementes, cordéis, dentes e unhas
de animais, carapaças de caracóis, bem como toda a força simbólica associada a estes
elementos.
É interessante constatar que, tal qual os índios que utilizam o meio que
os circundam, da flora e da fauna para compor seus ornamentos, Tereza também vale-se
deste pensamento selvagem, desta atividade de bricoleur. "O bricoleur é o que
executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano
preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica." [10]
Utilizam-se também de materiais fragmentados - no caso de Tereza D'Amico - papel
de seda, renda, folhas secas, asas de borboleta, sementes, miçangas, plumas, penas,
etc, elementos estes, recortados, colados, pospostos conforme sugere sua criatividade.
Entretanto, mais do que a questão da materialidade, Tereza havia descoberto o valor
desses materiais extrapictóricos para expressar, representar o que ainda não havia
sido dito. Ela compreende que "a poesia do bricoleur lhe vem, também, e sobretudo,
de que não se limita a cumprir ou executar, fala, não somente com as coisas, como
também, por meio das coisas." [11]
A produção das collages de Tereza é bastante expressiva se considerarmos
que sua atividade artística era a escultura. Inclusive poderia ela ter se encantado
e manifestado a magia das esculturas indígenas com suas representações zoomórficas,
quase sempre de aves ou estatuetas de 10 a 12 cm em cerâmica, ou das tradições afro-brasileiras,
como o artista baiano Agnaldo Manuel dos Santos - mas não o fez. Acredita-se que
ela tenha encantado-se com os materiais dos ornamentos da arte plumária brasileira,
bem como a semelhança no processo de manufatura da arte indígena com a arte dos
artistas que fazem collage, ou mesmo bricollage. Da mesma forma que a arte plumária
indígena fascinou os conquistadores brasileiros (o manto imperial da coroação de
D. Pedro II tem detalhes em plumas), também deslumbrou Tereza, ressurgindo em suas
obras. Pode-se encontrar a influência desta arte em collages como: Orixá
(1961), Composição (1961), Mandala (1962) e Oxumaré (1963).
Orixá trás uma figura central vestida por um mosaico de penas, nas cores
que variam do marrom ao amarelo, sendo sua pele representada num tom escuro, afirmando
a origem africana, delineada por sementes (característica típica da arte plumária
indígena), colocadas lado a lado, incorporando na figura a noção de que está costurada,
colada, ou ainda, lembrando recortes feitos com tesoura de picotar. Este procedimento,
esta forma de tratar e compor, de juntar-colar, é uma das características constantemente
presente nos trabalhos de Tereza. Vale lembrar, que a fixação das penas na arte
indígena, se dá pela amarração ou colagem, na qual "utilizam a goma elástica,
prendendo apenas os canhões, deixando as barbas soltas com o mesmo viço com que
se apresentam na plumagem de pássaros." [12] Técnica semelhante encontramos
no tratamento da plumagem nesta collage de Tereza D'Amico.
Para a cultura afro-brasileira, 'orixá' é uma entidade religiosa, que intermedia
os devotos e a suprema divindade. Os candomblés, tradicionalmente os da Bahia (e
aqui acredita-se que Tereza D'Amico teve contato com esta religião) oferecem festas
aos 'orixás' normalmente associadas aos dias santos do catolicismo. Entretanto,
Campolini explica que "os orixás estão longe de se parecer aos santos cristãos.
Ao contrário, as divindades do candomblé têm características muito humanas: são
vaidosos, temperamentais, briguentos, fortes, maternais, etc." [13]
Orixá revela elementos relacionados a rituais, figura sagrada, festas, alegria,
energia, misticismo. A presença do esqueleto de peixe, por exemplo, torna ainda
mais evidente o caráter festivo desta collage. Os peixes são elementos frequentes
nas festividades indígenas que, para alguns especialistas, significam símbolo de
fertilidade, e para outros, símbolo de luxúria. O uso da plumagem, do esqueleto
de peixe e da borboleta caracteriza o 'enfeitar-se para festas'. Observe agora o
jogo surreal entre os elementos, proposto por Tereza D'Amico. No lugar do nariz
encontramos o esqueleto de peixe e o contorno de uma borboleta representa perfeitamente
a boca. A correlação entre a espinha de peixe e o nariz não se dá através da forma,
mas sim na relação de flexibilidade e movimento que ambos possuem. Não bastando
este aspecto criativo, Tereza utiliza-se do contorno da borboleta, como algo análogo
poeticamente aos contornos da boca. Isso nos faz lembrar, mais recentemente, o cartaz
de um filme conhecido aqui no Brasil como O Silêncio dos Inocentes, no qual
a boca da atriz também é substituída por uma borboleta. A partir deste jogo de aparência-significado,
surgem novas interpretações para o que é visto, e assim, já podemos nos lembrar
da relação entre o movimento dos lábios e o bater suave das asas de uma borboleta.
Esta estratégia de analogia entre elementos, formas, estruturas, figuras e significados,
já foi bem trabalhada por artistas surrealistas como Max Ernst, Marcel Duchamp,
Picabia, Sergio Lima, entre outros. Em Orixá, se encontram ainda outras relações
metafóricas, bem ao gosto dos surrealistas. Ao representar as mãos, D'Amico utiliza-se
de duas sementes de mamona, também conhecidas por pega-pega, fazendo referência
àquilo que se agarra, que se pega. Podemos num devaneio, ainda recorrermos ao jogo
linguístico supondo que o consciente ou o inconscientemente desta artista se serviu
do jogo de palavras: mãos, manos, mamonas e pega-pega. Mamona como uma invenção
ao feminino da palavra mão. Em suma, esta collage é uma mescla de elementos típicos
da arte plumária indígena e da cultura afro-brasileira somados as estratégias criativas
baseadas nas analogias feitas pelos artistas surrealistas.
Observando um conjunto de collages de Tereza, podemos perceber a exaltação
na expressividade dos olhos das figuras que representa. Assim sendo, os encontramos
em Orixá, em formato grande, definidos por quatro circunferências, numa sequência
de branco, marrom, branco, preto; emOxumaré, fica a noção de grande concentração
de energia nos dois pequenos pontos vermelhos (provavelmente botões de acrílico)
sobre superfície absolutamente branca; e Composição e Mandala nas
quais os olhos são linhas circulares na cor preta.
Na collage Oxumaré, a figura representada mais parece um objeto sagrado
representado na cor branca, que em geral é associada a espiritualidade e pureza,
envolvido por uma atmosfera escura, repleta de símbolos enigmáticos. Também encontram-se
aqui, elementos da arte plumária indígena, bem representado na diadema occipital,
elaborada como num mosaico de plumas, compondo uma escala cromática de belíssima
apresentação. As cores das plumagens utilizadas pela artista, segundo Aroméri, literalmente
significa pluma do sol. Segundo Nicola, "este termo é a metáfora poética que
expressa a emoção do homem perante o universo." [14] Na cultura afro-brasileira,
'Oxumaré' representa o orixá "da chuva e do arco-íris, que transporta água
entre o céu e a terra. ... ao mesmo tempo de natureza masculina e feminina. Elemento:
água; personalidade: sensível e tranquilo." [15] É possível perceber a pesquisa
da artista frente às manifestações afro-brasileira pois algumas das cores atribuídas
a 'Oxumaré' (amarelo, laranja e verde claro) estão presentes na diadema.
Não há dúvida de que Tereza D'Amico é pioneira. Contemporâneos a sua temática
afro-brasileira, a pintora Djanira representa Três Orixás; Carybé cria aquarelas
que resultam num completo e belo livro sobre os deuses africanos do Candomblé; e
Verger registra a cidade de Salvador partindo de seus escritos e fotografias. Mas,
pensamos que o diferencial de Tereza para com estes artistas, está na predileção
pelo procedimento da collage em si, ou seja, a descontextualização das figuras,
dos elementos que encontra, no intuito de criar uma nova realidade. Podemos considerar
também a sensibilidade que teve ao perceber e concretizar a semelhança entre determinados
elementos da arte indígena, da cultura afro-brasileira, do folclore nacional, utilizando-se
de características surrealistas, e principalmente da collage. Há um movimento artístico,
deste o início do século, que aceitou perfeitamente o discurso do particular, do
regional, do folclore, e do universal, isto é, o movimento surrealista. Percebemos
nas collages de Tereza D'Amico, uma junção que se complementa, emergindo da realidade
do povo brasileiro, do povo baiano, revelados pelo caráter místico, ritualista,
pela presença de entidades religiosas, pela utilização da plumária, das miçangas,
pela representatividade de cada material, de cada cor.
Dentre todos os mais variados elementos que constituem a arte desta riquíssima
artista, podemos destacar seres, figuras que na composição geral de cada collage,
assumem posição central, o que lhes confere impregnação de forças simbólicas como
encontramos em Louquinhas, Orixá, Oxumaré, Iemanjá,
Composição, Mandala, O Semeador e O Despertar.
Na collage Iemanjá, por exemplo, há uma perfeita representação da
deusa mais prestigiosa, a mãe de todos os orixás nos candomblés da Bahia, considerada
protetora dos mares e das desilusões amorosas. Utilizando-se da tonalidade dos azuis,
da cor branca, da simbologia de sereia do mar cita seus elementos: o leque e ornamentos
em alumínio, bem como todo o caráter vaidoso e festivo desta deusa. Encontra-se
ela, envolta pelas oferendas que os devotos costumam fazer (jogando ao mar elementos
relacionados à vaidade feminina), e pelo movimento das águas, representado por linhas
brancas e sinuosas. Há uma dinâmica, um movimento entre todos os elementos que compõe
esta collage, o que a deixa ainda mais interessante. Tereza D'Amico incorpora imagens
impressas para representar as oferendas. Esta artimanha de substituir o objeto por
uma cópia impressa do mesmo, neste caso as oferendas a Iemanjá, incluindo garrafa,
vidro de esmalte, etc., é a principal característica dos papiers collés, tão bem
representada por artistas como Picasso, Braque e Griz.
Tanto em Mandala, como em Composição, a figura central parece
ser descendente de índios, visto as pinturas geométricas em seu corpo e o ambiente
que as circundam, isto é, plumas, penas, sementes, conchas. Já nas collages O
Semeador e O Despertar, o elemento central é uma representação de Jesus
Cristo o que lhes conferem um caráter religioso. Pode-se considerar também que estas
duas collages são de 1965, ano do falecimento da artista que segundo Schenberg,
lutava contra uma doença implacável.
Collages como O Semeador (1965), Composição (1961), Mapa
(1962), Paisagem Encantada (1963), Mapa (s/data), Sendas (1965)
esboçam outra retórica utilizada por Tereza D'Amico, ou seja, a cartografia.
Tal como nos mapas mais antigos - datados do século II e feitos por Ptolomeu
- carregados de ornamentos artísticos, fantasiosos, de forte influência religiosa
e beleza indiscutível, situam-se os mapas imaginários de Tereza D'Amico. A artista
trabalha a ideia de cartografia, construindo a partir de composições, divisões geométricas,
que são elaboradas, preenchidas, valendo-se de características como acumulação,
patchwork, mosaico, em conjunto com elementos da flora e fauna brasileira: sementes,
conchas, gravetos, cerâmica, penas, ossos, etc.
Na collage Mapa (s.d.), a artista utiliza-se de sementes e sagú para
fazer inscrições no estilo das primeiras escritas pré-históricas, ou dos desenhos
pré-colombianos feitos nas planícies, ou ainda perpassando uma ideia de mapa astrológico.
É divertido perceber que os mais variados seres habitam os mapas de Tereza D'Amico.
Na collagePaisagem Encantada, por exemplo, há uma grande riqueza de alegorias,
seres como onças, peixes, sereias, mostrando-nos que este é o lugar onde vivem.
Inclusive, a representação de uma igreja junto ao mapa, só vem a reforçar a ideia
de lugar habitável. A gama de cores utilizada nesta collage encontra-se entre o
azul e o amarelo, enfatizando a mistura deles, o verde, nas suas múltiplas tonalidades.
O mosaico de cores nesta collage resulta de forma evidente nas cores verde e amarelo,
cores símbolo de nosso país, e no azul que demonstra a imensa costa litorânea que
temos. Realmente, Tereza devia estar encantada com o que encontrara em território
brasileiro, a ponto de querer registrar em mapas.
Na collage Sendas, D'Amico utiliza-se da ideia de uma dupla leitura,
algo como o método paranoico-crítico daliniano. Assim, podemos ler a imagem tanto
como um mapa onde existe a presença de caminhos, montanhas, rios, e também, como
o esboço de uma figura humana cujos membros como pernas e braços confundem-se com
um gigantesco falo. São os caminhos do corpo e do prazer a serem percorridos, transmutando
a questão da simples materialidade dos materiais aplicados para o âmbito do poético.
Neste sentido, na collage Despertar também é vista esta presença do erótico,
do corpo como conhecimento, sugerindo também, dupla interpretação. Podemos ver a
ideia de despertar do índio num vazio rodeado por floresta, como também, facilmente
é identificada esta imagem do vazio, como uma vagina, conferindo a palavra uma identificação
com o lugar do nascimento.
Tereza D'Amico, nesta última fase de sua arte, trabalha profundamente conceitos
provindos de fontes folclóricas, da riqueza das particularidades, sem abandonar
conceitos apreendidos com o surrealismo.
Considerando-se a proposta de fazer uma collage que reúna na mesma composição,
todas as collages de Tereza D'Amico analisadas neste texto, e valendo-se das analogias
criativas propostas na artimanha surrealista, resultaria num único conceito: o carnaval
como collage.
O carnaval vem de uma mistura da tradição trazida pelo portugueses, o entrudo;
dos ritmos dos rituais africanos; e do deslumbramento visual promovido pela arte
indígena. Sendo assim, apreciamos o desfile carnavalesco como uma reciclagem da
cultura brasileira, através de elementos do cotidiano como miudezas dispersas que
são reorganizadas numa composição geral, na qual permanecem e são visíveis as mesmas
estruturas compositivas da collage, dos rituais indígenas e dos rituais dos candomblés.
Observamos então, que Iemanjá, de Tereza D'Amico possui os balangandãs, ornamentos,
bijuterias usados em fantasias de carnaval e Orixá (1961) lembra Caboclinhos
"...grupo de jovens que se vestiam de índios no carnaval pernambucano."
[16] Enfim, Beyer [17] resume perfeitamente como o carnaval pode ser a essência
capturada por Tereza D'Amico na junção da arte indígena com a cultura afro-brasileira:
"No carnaval estabeleceu-se um jogo mágico, onde os homens imitavam o comportamento
da natureza e a ação dos deuses."
Gostaríamos que Tereza D'Amico retornasse para nos visitar, em plena época
de carnaval. Poderíamos então, perceber se ela se deu conta da magia que está incorporada
em suas collages, além de ter a possibilidade de ver que hoje, outra arte mágica
como a dela, adquire movimento, desfila pelas ruas, e faz a alegria do povo.
É a collage de Tereza D'Amico em movimento !
O bailado das fantasias do povo brasileiro !
NOTAS
1. Alguns autores escrevem o nome Tereza com 's', outros com 'z'. Optamos por 'Tereza', ao observar as imagens impressas de suas collages, entre elas: O Semeador e Sendas (in: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Imaginários singulares. São Paulo: A Fundação, 1987, pp.43-44) nas quais fica evidente que a artista assinou seu nome com a letra 'z'.
2. LIMA, Sérgio Cláudio de Franceschi. A aventura surrealista. São Paulo: Cadernos da Anap, 1991, vol.1, n.1. pp. 234-44.
3. SCHENBERG, Mário. Pensando a arte. São Paulo: Nova Stella, 1988, p.516.
4. Ibidem, idem.
5. Dicionário dos pintores brasileiros. Coord. Editorial - Leila Alves; Paulo Lyra. RJ: Spala, 1986. vol.1, p. 235.
6. BRENNAND, Francisco. Diálogos do paraíso perdido. Recife: Prefeitura da cidade de Recife, 1990, p.73.
7. Arte naïf: do francês naïf, significa ingênuo. Termo que se usa para classificar esta tendência artística. Diz-se que as obras naïfs são ingênuas por estarem impregnadas de simplicidade, sinceridade, ajustando-se aos costumes e história de sua época. É uma forma de expressão da pintura que deixa a impressão de uma arte não estudada, explicitando espontaneidade. Em geral o artista primitivo é autodidata, satisfaz sua necessidade criadora buscando inspiração junto ao cotidiano, em fontes populares, trabalhando com recursos que encontra e com os que inventam. A primeira exposição desta arte primitiva, ingênua, aconteceu em 1912, pelo pioneiro Henri Rousseau, que segundo José Pierre pode ser considerado o primeiro artista a fazer um quadro surrealista O Sonho, no século 20.
8. NICOLA, Norberto; DORTA, Sônia F. Aroméri: arte plumária do indígena brasileiro. São Bernardo do Campo, SP: Mercedes-Benz do Brasil, 1986. p.14.
9. Ibidem Aroméri, p.14 e 57.
10. STRAUSS, Claude Lévi. O pensamento selvagem. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1976. p. 37.
11. Ibidem. O pensamento selvagem, p.42.
12. RIBEIRO, Berta G. Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.136
13. CAMPOLINI, Sílvia. Candomblé. In: Super Interessante. São Paulo: Editora Abril, janeiro de 1995, p.25.
14. Ibidem, Aroméri. p.12.
15. CAMPOLINI, Candomblé. p.25.
16. NICÉAS, Alcides. Verbetes para um dicionário do carnaval brasileiro. Sorocaba (SP): Fundação Ubaldino do Amaral, 1991, p.40.
17. BEYER, Esther. Carnaval: uma perspectiva antropológica. In: Revista Em Pauta: Porto Alegre, ano 3, n.4, dezembro de 1991.
1. Alguns autores escrevem o nome Tereza com 's', outros com 'z'. Optamos por 'Tereza', ao observar as imagens impressas de suas collages, entre elas: O Semeador e Sendas (in: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Imaginários singulares. São Paulo: A Fundação, 1987, pp.43-44) nas quais fica evidente que a artista assinou seu nome com a letra 'z'.
2. LIMA, Sérgio Cláudio de Franceschi. A aventura surrealista. São Paulo: Cadernos da Anap, 1991, vol.1, n.1. pp. 234-44.
3. SCHENBERG, Mário. Pensando a arte. São Paulo: Nova Stella, 1988, p.516.
4. Ibidem, idem.
5. Dicionário dos pintores brasileiros. Coord. Editorial - Leila Alves; Paulo Lyra. RJ: Spala, 1986. vol.1, p. 235.
6. BRENNAND, Francisco. Diálogos do paraíso perdido. Recife: Prefeitura da cidade de Recife, 1990, p.73.
7. Arte naïf: do francês naïf, significa ingênuo. Termo que se usa para classificar esta tendência artística. Diz-se que as obras naïfs são ingênuas por estarem impregnadas de simplicidade, sinceridade, ajustando-se aos costumes e história de sua época. É uma forma de expressão da pintura que deixa a impressão de uma arte não estudada, explicitando espontaneidade. Em geral o artista primitivo é autodidata, satisfaz sua necessidade criadora buscando inspiração junto ao cotidiano, em fontes populares, trabalhando com recursos que encontra e com os que inventam. A primeira exposição desta arte primitiva, ingênua, aconteceu em 1912, pelo pioneiro Henri Rousseau, que segundo José Pierre pode ser considerado o primeiro artista a fazer um quadro surrealista O Sonho, no século 20.
8. NICOLA, Norberto; DORTA, Sônia F. Aroméri: arte plumária do indígena brasileiro. São Bernardo do Campo, SP: Mercedes-Benz do Brasil, 1986. p.14.
9. Ibidem Aroméri, p.14 e 57.
10. STRAUSS, Claude Lévi. O pensamento selvagem. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1976. p. 37.
11. Ibidem. O pensamento selvagem, p.42.
12. RIBEIRO, Berta G. Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.136
13. CAMPOLINI, Sílvia. Candomblé. In: Super Interessante. São Paulo: Editora Abril, janeiro de 1995, p.25.
14. Ibidem, Aroméri. p.12.
15. CAMPOLINI, Candomblé. p.25.
16. NICÉAS, Alcides. Verbetes para um dicionário do carnaval brasileiro. Sorocaba (SP): Fundação Ubaldino do Amaral, 1991, p.40.
17. BEYER, Esther. Carnaval: uma perspectiva antropológica. In: Revista Em Pauta: Porto Alegre, ano 3, n.4, dezembro de 1991.
***
Carla Schneider é artista plástica pelo Instituto de Artes
das UFRGS com ênfase em Desenho. Atualmente gerencia e mantém estudos sobre
trabalhos com ilustração publicitária e editorial bem como desenhos animados no
formato Internet/CD ROM. Contato: carla_br@hotmail.com. Fernando
Freitas Fuão é arquiteto, doutor pela Escuela Técnica Superior de
Arquitectura de Barcelona. Autor dos livros Arquiteturas Fantásticas
[org.] (1999) eCanyons-Avenida Borges de Medeiros e o Itaimbezinho (2001).
Contato: fuao@vortex.ufrgs.br. Agulha Revista de Cultura # 26. Julho de 2002.
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