Os
negócios da desilusão
Reproduzimos
aqui, a título de editorial, um dos trechos finais de O livro invisível de William Burroughs, peça de teatro que é uma
colagem de textos de William Burroughs e Floriano Martins, realizada por este
último. A peça teve sua leitura dramática realizada em 11 de agosto de 1999, no
teatro da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Os atores que participam
são Graça Berman (Burroughs 1), Pascoal da Conceição (Burroughs 2), Claudio
Willer (Burroughs 3) e Floriano Martins (Conferencista). O livro foi
posteriormente publicado pela Sol Negro Edições (Natal, 2012):
http://abraxasloja.blogspot.com.br/2015/04/o-livro-invisivel-de-william-burroughs.html.
Os editores
CONFERENCISTA – Os negócios do sexo são de grande
atração em todo o mundo. Os negócios do sexo. Os negócios das drogas. Há uma
ideologia insidiosa desvirtuando o desejo, valorizando as ilusões. Uma grande
loja de distúrbios. Este é o alcance político que nos une a todos, a verdadeira
dimensão ontológica da existência humana: o negócio das ilusões. Não há
prestígio maior que o da extrema ausência de valores humanistas. Não há
autoritarismo ou repressão sexual como um fim em si. Não mais. O acumulador de
orgônios de Reich foi adaptado para acumular desilusões. A energia mais valiosa
onde quer que pulse a besta do coração humano. Não há desregramento que
convença a máquina a parar de funcionar. Há um olho cínico em sua tez metálica
que pisca e revela que a desordem não representa mais nada. Os negócios estão
indo bem e compõem uma intrincada rede de relações. Atingem grupos de risco e
convertem em veleidade toda forma de misticismo. Não há amor sublime, mas sim
desilusão. Os negócios atraem clientes como uma fonte de libertinagem. Os
negócios ampliam o círculo de amizades tecidas às voltas com novas
oportunidades. Avôs de alguns clientes ainda comentam sobre as leis ideais que
foram exterminadas. Há um prêmio especial para aqueles que confessarem
desilusão diante das declarações de parentes. Não há nisto o sentido de
delação. É muito natural que uma regra nova elimine uma anterior.
[Pausa]
Os negócios dos valores intrínsecos, pequena loja de peças de reposição.
Um dissabor gasto pode ser rapidamente restaurado. Uma crise nervosa
interrompida pode ser rebobinada sem maior custo. Há empórios que recebem o
relato em troca de um pequeno estojo de devassidão. Há campanhas eletrônicas
que dão a cada desilusão um destino literário e transmissões diárias de amores
impossíveis convertidos em sublimes momentos de resignação pública. Sob um
controle tão excêntrico do desejo, não há naturalmente mais vida íntima. São
recomendadas ações punitivas contra aqueles que se recusem a divulgar os novos
métodos de circulação das desilusões.
[Pausa]
Os negócios de títulos e cerimônias. Uma pedra Beat, negociada no
mercado paralelo, deve valer, com sorte, dois brasões cobertos de azinhavre de
uma linhagem mística. Tais ideias de contato direto há muito caíram em desuso.
Em raros colecionadores encontramos anotações pouco legíveis de uma tradição
anarquista. Os negócios tomaram conta de tudo. A memória tornou-se um bem
improvável. A desilusão não prevê o deboche. Há um compromisso velado com a
seriedade de sua falta de propósito. Daí que os negócios prevejam hostilidade
veemente e imediata a toda forma de rejeição frontal ao Grande Dissabor, seu
inconfessável patrono. Os negócios da glorificação conduzem a um estado
plenamente aceitável de controvérsia. Pequenas gotas de estímulo administradas
em concentrada posologia. Os anúncios de rejeição, as notas de suicídio,
núcleos de oração, trios elétricos, discretas campanhas publicitárias em defesa
da influência implícita, as respeitáveis manifestações de um espontaneísmo
induzido. A orgia rimada e metrificada. Não estaria aí o estágio mais elevado
da criação?
[Pausa]
Talvez Burroughs tenha pensado, em algum momento de sua vida, que todo
este cenário um dia retornasse às páginas de uma fábula pouco lembrada pelos
filhos dos filhos dos filhos. Não creio. O velho Bill teimava contra seu tempo,
mas antes teimava contra si mesmo. Não importava se por regressão ou expansão,
seu diálogo obsessivamente buscado era com o enunciado à entrada de uma zona
dada como neutra. A placa dizia: há um monte de safados lá fora. A zona ainda
hoje é conhecida como comunidade literária. É bastante visitada. Em seus
pardieiros moram gordos zeladores. Muitos deles parceiros discretos nos
negócios de caixa, senhores no submundo das desilusões. Artistas. São
conhecidos assim. Azeitam as máquinas do paradoxo progressivo. São extensões
invisíveis dos estimulantes sexuais e outras formas minúsculas de emoção
barata. Houve um tempo em que Burroughs achava que a realidade era uma ilusão
criada por insetos monstruosos que dominavam o mundo, controlando as mentes a
partir de uma dimensão paralela. Reagiu achando que na eliminação do tema
haveria uma chance da narração não conduzir ao umbigo sem saída do tormento que
a manipulava.
BURROUGHS 2 – As visões e todas as verdades não
podem mais ser consideradas como fatos eternos e objetivos, mas como projeções
plásticas do emissor e de sua linguagem. Por isso, ninguém mais pode continuar
se preocupando apaixonadamente com efeitos, por mais aparentemente reais que
sejam, sabendo que por dentro todas as visões e verdades são, ao final das
contas, vazias. Assim, o passo seguinte é o exame da causa desses efeitos, o
veículo das visões, o produtor da verdade, ou seja: palavras. A própria
linguagem é a matéria prima. Assim, o próximo passo é: como escrever poesia
sobre poesia, empregando um método radical que elimine o próprio tema.
CONFERENCISTA – Boa chance. Talvez ainda válida. Os
objetivos foram convertidos em nuvens de esgotamento. Toda forma de abismo foi
declarada inconsciente. A criatividade é uma percepção diante do vazio. Um
estalo diante do nada. Não uma interpretação de fatos externos. Os negócios
amaciaram tudo. Em uma mesma prateleira encontramos visões, estimulantes
sexuais, manuais de argumentos inverossímeis sobre a nulidade do ser, saquinhos
fantásticos e kit de reflexão sobre a percepção comum. Não há como não se
sentir bloqueado. No entanto, os negócios do bloqueio faturam milhões. Não são
uma ameaça. São a naturalidade. Os negócios deste e de outro mundo. Negócios do
personagem que mergulha na alteridade e dela retorna pioneiro sem uma sombra de
si. Suas alucinações são alheias. Seus regozijos, orgasmos, coceiras, embolias.
Um merda capado de si mesmo. Este é o modo de conhecer o homem toupeira do
homem. O modo de aturar as merdas decorrentes de creditar na arte toda a forma
de salvação do homem. Uns bostas se aproveitam disso. É um desgaste decorrente
da expulsão do homem do centro de si mesmo. A Religião não tem nada com isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 –
Não.
CONFERENCISTA – A Ciência não tem nada com isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 –
Não.
CONFERENCISTA – A Arte não tem nada com isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 –
Não.
CONFERENCISTA – O serviço secreto dos negócios da
desilusão é, de fato, uma instituição. Porém não se encontram seus membros
filiados aos quadros moralistas de nenhuma dessas casas de tolerância. Os
governos já não existem. À porta da velha noção de pluralismo encontramos o
aviso de “não perturbe”. Não há expansão de consciência em praças de
alimentação em shoppings. Todas as regras de identidade são forçadas. O homem
impele a si mesmo ao hediondo crime de existência comum. Não há mais escândalo
em seduzir rapazes ou comprar governos. Os negócios da dúvida são a única
certeza posta ao alcance dos mortais, em taxas de financiamento de ocasião. Não
há o que ser respeitado ou cumprido. Não há decreto. Não, não há decreto. Há um
cinismo encorpado que nos leva a crer que prosternamos diante de uma realidade
incontornável. Não fizemos nada, nem faremos. Passeatas, denúncias, shows de
protestos. Um exorcismo patético. Nos livramos de nós mesmos, sem que
interfiramos na rotina específica do hospedeiro cretino que nos prepara para os
negócios latentes da perda de sensibilidade.
[Pausa]
Estamos caindo em anotações. Burroughs tinha alguma razão. Nada é tão
específico quanto a perda de caráter. Estamos nos enganando. Não somos mais
nada. Estudantes, carteiros, drogados, prostitutas. Não somos mais nada. Não há
manifestações pacifistas. Os jornais estão tomados de violência. Os negócios da
violência. Todos os sentidos estão sob patrocínio. Não há mais a fala real que
Kerouac perseguia. A linguagem perdeu o som. O homem perdeu a respiração. Já
não cai sequer em si. Burroughs fala em uma comprida colher feita de jornal, receptáculo
para se aquecer a noção fraudada da existência. Idealizar queda é o mesmo que
idealizar ascensão. Ritos do passado são apenas métodos revistos. Ninguém
lançará um clamor de protesto sem patrocínio. Todo e qualquer vício obedece a
formas básicas de manutenção. Não importa falar em frio ou qualquer salão de
restrições. O prazo expira em um peido. Um barato termodinâmico, pum. Pronto.
Lá se foi a existência. Não somos o negócio. Nem seu efeito. Mas somos levados
a crer que o trazemos tão grudado como o farfalhar das tripas. Foda-se então a
velha ordem do saca-rolha. Já temos o demônio sentado no sofá. Somos agora o
negócio famélico e audaz. A transa do bueiro. Uma rolding de aspergentes
que garantem nível zero de percepção diante do metabolismo anômalo da
realidade. Um líquido que não indaga. Uma velha carta dando sinal da queda de
um império, chegada com grande atraso. É como aumentar a dose de ilusão.
[Pausa]
Olhem bem. Olhem bem. A palavra é um espirro. O vírus é um espírito. O
que sai fácil não entra como se em férias. Nenhuma gravação modificará a
espontaneidade do que falo. Porém a espontaneidade perdeu todo o crédito.
***
ÍNDICE DESTA EDIÇÃO
ALFONSO PEÑA | Cristina
Zeledón y los Seres de Conocimiento
ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Mário Cesariny e Luiz Pacheco: a polémica
ARTURO GUTIÉRREZ PLAZA | ¿Por qué escribo?, seguido de
una entrevista hecha por Mónica Bernabé
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/arturo-gutierrez-plaza-por-que-escribo.html
EDUARDO R. SAGUIER | Auge y caida de los imperios amerindios e ibéricos y
de las naciones latinoamericanas
ERNESTO ALVAREZ | David Cortés Cabán,
el ser y la poesía, entrañables siempre
FERNANDO SORRENTINO | Conversaciones con Adolfo Bioy
Casares y Jorge Luis Borges
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/fernando-sorrentino-conversaciones-con.html
JOANA RUAS | Outono,
de António Salvado e Kousei Takenaka
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/joana-ruas-outono-de-antonio-salvado-e.html
JOÃO GARÇÃO | O TEATRO SURREALISTA EM PORTUGAL: Considerações para o entendimento surrealista
JOSÉ CASTELLO | Dois
encontros com Manoel de Barros
MANUEL MORA SERRANO | Introducción a la historia de la
literatura dominicana
MARCO ANTONIO CAMPOS | El
esplendor solar de la poesía - Entrevista a Enrique Molina
MIGUEL MÁRQUEZ | Del tao y de la
furia
NICOLAU SAIÃO| Lud,
habitante do outro lado do espelho
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/nicolau-saiao-lud-habitante-do-outro.html
ARTISTA CONVIDADO | JUDITH ANN MORIARTY | Cinco perguntas para J. Karl Bogartte
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/judith-ann-moriarty-cinco-perguntas.html
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/nicolau-saiao-lud-habitante-do-outro.html
ARTISTA CONVIDADO | JUDITH ANN MORIARTY | Cinco perguntas para J. Karl Bogartte
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/judith-ann-moriarty-cinco-perguntas.html
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Página ilustrada com obras de J. Karl Bogartte (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 10 | Março de 2014
Fase II | Número 10 | Março de 2014
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
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