A realidade do surrealismo não tem limites.
Poeta surrealista, o campo prospectivo de Cruzeiro Seixas é o desconhecido
ilimitado de onde brotam as imagens nas quais se expressa, através do
inconsciente individual e do inconsciente coletivo, da voz ancestral dos mitos,
das recordações, dos desejos, desde a infância mais remota, a essência profunda
do nosso ser.
Se o conhecimento
resulta da participação do homem no cosmos, é preciso procurar na completa imersão
em si mesmo a fonte de toda a sabedoria. Aí encontra o homem a porta que se
abre ao mundo, o umbral que, transporto, o despersonaliza e universaliza. Há
que penetrar muito fundo no próprio espírito para abandonar o cárcere do eu
racional, esse lugar fechado a partir de onde toda a projeção para o mundo é
impensável.
A realidade
transforma-nos e nós transformamos a realidade. Esta interação dialética
constitui a essência do conhecimento poético. O surrealismo está com quem
defende tal princípio. Mas com quem o defende até às últimas consequências. O
infinito fluir em que consiste o conhecimento só pode ser dado integralmente
pela poesia, e a poesia dá-o mediante a imagem que se produz e destrói a si
própria, deixando-nos a luz do conhecimento. Só quando a imagem é combustão
pode iluminar a realidade. Como nestes poemas desenhados de Cruzeiro Seixas,
onde nada é fácil, nem natural.
Assombra a intuição
brutal e profunda da vida e da morte em visões como estas, com raiz na
valorização expressiva da imagem corporal, no fascínio pela materialidade dos
corpos, mas uma materialidade que é mesma dos sonhos. As fontes desta arte são
o desejo e a memória, as suas catástrofes e transfigurações, e as sombras aqui
projetadas são ecos daquela "segunda vida" de que falava Nerval, onde
"só os sonhos propriamente nos pertencem", mas uma segunda vida que
não se distingue, ou não deveria distinguir-se da primeira.
Arrisco avançar que
nestes poemas-desenhos o poeta expressa uma experiência do desmoronar do eu
(pelo menos do eu poético), e creio que a maneira encontrada para recuperá-lo é
a construção de uma espécie de retórica da ruptura; o eu rasga-se e o mundo
aparece. Em Cruzeiro Seixas, a dissolução não é um movimento, mas um estado. A
construção do poema-desenho articula esse estado como estado prévio para a sua
superação: ao reconhecê-lo, o eu solipsista vazio (queda que não cai em nenhum
lado, ou sempre cai noutro lado) cerra a brecha por onde ia desaparecer. A
ruptura operada por Cruzeiro Seixas não é consequência deste movimento último,
mas ato de violência em relação a si mesmo e em relação ao mundo - ato de violência que os restaura a ambos.
As raízes de uma poesia
como esta encontram-se nas profundezas do inconsciente e é preciso que o poeta
se abandone às suas vagas sem terror, não tema entregar-se a um certo grau
inalienável de furor. O seu material são os sonhos efetivamente sonhados, que
se nos dirigem na profunda linguagem do real porque partem da inesgotável fonte
de todo o conhecimento, de lá onde se engendra a verdadeira sabedoria, o mundo
nos transforma e nós transformamos o mundo.
A recusa da realidade
dada e o anseio pelo maravilhoso são ambivalentes nestes desenhos,
traduzindo-se em sinais contraditórios: por um lado, aspectos do real, daquilo
a que poderíamos chamar, segundo a terminologia psicanalista, "o conteúdo
manifesto" do universo; por outro lado, alusões ao "conteúdo
latente" impulsionado pelo desejo. Tal diversidade de fatores essenciais
outorga a estas imagens o seu caráter dramático e alucinante, impondo acima de
tudo o sentido da contradição. Fundamentam-se na oposição de identidades
dotadas de um nexo comum, ou na associação de outras pertencentes a ordens
diversas, quer dizer, na manifestação simultânea do pluralismo e do simbolismo
de todas as coisas, na sua dependência das secretas estruturas do ser, de que
precedem por emanação, e na sua nebulosa independência em relação à origem e em
relação às outras. O prazer e a dor, o bem e o mal, o belo e o horrível surgem
menos por causa da sua condição particular e mais como elementos especialmente
aptos para ser confrontados, sinais capazes de mostrar a unidade desgarrada, a
ruptura da imagem do mundo, o desajuste interno de todos os sistemas que se
abatem sobre o homem com todo o seu peso insuportável. A relação entre "o
movimento e o repouso", que Breton considerava necessária para a expressão
surrealista, tem o seu paralelo na relação entre o formal e o informe, o
contínuo e o descontínuo, o finito e o infinito, o material e o espiritual, o
figurativo e o ctônico, deduzido de um sistema superior e o emergente das
profundidades. Todas essas contradições integram estas imagens, mas não se
fundem num termo médio, antes permanecem soando como uma dissonância em que
cada nota exalta o valor das que chocam contra ela.
São imagens exógenas de
um mundo em formação ou decomposição, visões de universos gelados ou noturnos,
metáforas figurativas estáticas e claras, aparições sobre fundos geológicos,
metamorfoses, estados em que o físico e o psíquico passam por transmutações
constantes e imprevisíveis. Através destas imagens mudas fala a outra voz, que não ouvimos com os
ouvidos, mas com os olhos e com o espírito.
Poesia e artes plásticas
desenvolvem-se em territórios opostos: o campo da poesia é o tempo e o das artes
plásticas o espaço. A arte de Cruzeiro Seixas situa-se na interseção destes
dois campos. O poema passa e ao passar transforma-se; o quadro mantém-se sempre
idêntico a si próprio. E contudo, a faculdade que rege poesia e pintura é a
mesma: embora o pintor se sirva dos olhos e o poeta da linguagem, olhar e
linguagem obedecem ambos à imaginação. Tal como acontece com outros artistas,
na obra de Cruzeiro Seixas a imaginação é a faculdade que faz comunicar poesia
e pintura, mas não como ponte a unir duas margens, antes como abraço de luta,
como fusão que aniquila.
Poeta de imagens
visuais, Cruzeiro Seixas concebe o desenho, não só nem exclusivamente como
composição plástica, mas como metáfora dos seus sonhos, obsessões, cóleras,
temores e desejos, espécie de espelho mágico alternadamente fasto e nefasto que
desfigura e transfigura as imagens. O desenho transforma-se em poema e
oferece-se ao espectador como um feixe de metáforas entrelaçadas. As formas
aparecem e desaparecem, entrelaçam-se, desenlaçam-se, e nelas o eco ocupa uma
função primordial, consistindo na repetição quase maníaca de certas imagens,
submetidas a deformações e mutilações inquietantes. O eco é a manifestação
rítmica da obsessão. Mais exatamente, é uma metáfora da obsessão: através de
repetições e variações a imagem obcecante transforma-se em ritmo, como se os
desenhos fossem versos.
Começamos por dizer que
a arte de Cruzeiro Seixas não era natural. Muito menos natural e bastante mais
difícil é o que se tem tentado no nosso pobre meio; Negar-lhe o lugar que ocupa
no discurso da arte portuguesa, ou discutir-lhe os dotes plásticos. Nele, a
singularidade da atitude e a heterodoxia da linguagem tornam a sua obra
apaixonante, fazem que ninguém fique impassível perante ela. O lugar
estratégico a partir do qual esta obra cumpre a sua função está
indissoluvelmente ligado ao surrealismo.
Virá talvez um tempo em
que se admitirá uma distinção suprema entre a arte (quer dizer, a poesia) e a
atividade artística "puramente" estética (derivada de uma concepção
estreita e rotineira da estética). O surrealismo terá pelo menos presumido
contribuir para esta distinção que começou a vislumbrar-se após a fusão de dois
termos ainda embrionários, um de origem empírica, outro de origem filosófica,
em e pelo romantismo, fusão que o surrealismo assinala ao mesmo tempo o ponto
de incandescência e a ruptura.
***
Ernesto
Sampaio
(1935-2001). Ensaísta, jornalista, poeta, foi um dos mais expressivos
estudiosos do Surrealismo em Portugal. Ensaio datado de março de 1995. Além de
crítico de teatro, foi também um inestimável tradutor de autores como Artaud, Éluard, Breton, Péret, Arrabal, Ionesco, Adamov, Benjamin,
Wilde, Eliot, dentre inúmeros outros.
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