Uma manhã na autoestrada Porto-Faro, a caminho
de Tavira, a ilha maravilhosa, sou surpreendido no carro com uma chamada ao
telemóvel de Cruzeiro Seixas. Era final de 2003 e havíamos iniciado uma
correspondência há poucos meses, em parte graças à possibilidade de se editar
no Brasil, pela primeira vez, uma mostra de sua poesia e de seu desenho. O
livro sairia em 2005, pela coleção "Ponte Velha", da Escrituras
Editora, que eu começava a coordenar, e onde foi possível publicar, ao longo de
5 anos, quase 30 autores portugueses. Já não recordo em que circunstância propus
a Cruzeiro Seixas o título Homenagem à
realidade, mas foi imediata a sua concordância. Lembro de ler à solta ali
em Portugal seus poemas, celebrando imagens ao acaso, a voracidade do instante
como marca essencial daquela poesia, eu simplesmente sorteava páginas do
primeiro volume de sua Obra Poética,
que eu havia comprado em alguma livraria no Porto. Era a minha primeira leitura
do poeta que eu antes conhecia apenas pela obra plástica. Não havia senão
fascinação ao folhear as asas daquele livro repleto de metamorfoses. Aos poucos
fui recordando seus desenhos e concluindo que Cruzeiro Seixas desenhava poemas
com a mesma intensidade com que escrevia desenhos. Ambos eram frutos de uma
mesma convulsão de beleza e conhecimento. Houve certo torvelinho que por vezes
embaça a memória, mas o fato é que o segundo volume daquela poesia eu já o
tenho autografado pelo próprio poeta. Sem que o imaginássemos havia se
instalado uma ponte mágica entre nós, intermediados pela generosidade e a
curiosidade.
A ideia de "mais
realidade" tão defendida pelo Surrealismo, creio que ninguém a encarnou
tão bem em Portugal quanto Antonio Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas. O primeiro
foi o mais alto crítico das falhas relações existentes entre poetas e artistas
portugueses e o Surrealismo. Em uma de suas cartas a Cesariny, destaca o
quanto gostaria de ver a meu lado tu e todos os outros -
desta vez não com a sombra de um Breton - com os nossos próprios corpos! na
conquista de mais um impossível, de mais um mundo que está perdido - a elaborar
a imaginação do Mundo!
Esta simples referência
à sombra de Breton podemos conectar a uma passagem de minha correspondência com
Cruzeiro Seixas em que ele lastima certos ocasionais abismos entre Cesariny e o
Surrealismo: "Eu podia e devia ter estado próximo dele, para dar a ajuda
possível em tantos momentos onde ele e o surrealismo pareciam
desencontrados."
De minha parte, ainda na
autoestrada Porto-Faro, naquela manhã ensolarada, intuí que algo me chamava a
atenção para uma curiosa perspectiva, que se concretizaria não apenas na edição
de um livro de Cruzeiro Seixas, mas sim na apresentação ao leitor brasileiro
interessado de uma boa soma de autores portugueses vinculados ao Surrealismo.
Outro dia me procurou um estudante indagando sobre surrealismo em Portugal e
sua relação com o Brasil. Não existe relação alguma, e dói afirmá-lo. E há aqui
pelo menos duas razões. A primeira delas é que houve no Brasil uma fascinação
pelo estardalhaço futurista, que não implicava em uma adesão existencial, ou
seja, poderíamos aqui ser modernos sem que isto mudasse em nada a nossa vidinha
corriqueira. Sob este aspecto, em geral apreendemos das vanguardas apenas a
maquinaria e um pouco de seu tumulto formalista. A outra razão é de uma curiosa
ordem cronológica. Apesar da proximidade entre Portugal e França, o surrealismo
só começou a despertar alguma atenção portuguesa nos anos 1950. Digo que se
trata de uma ordem curiosa pelo simples fato de que nosso conhecimento imediato
do surrealismo mais gerou cuidados e repúdios do que propiciou adesões.
De qualquer modo, não
estamos aqui para falar de Surrealismo propriamente e sim de uma vez mais criar
um palco possível para a mais plena expressão criativa de Cruzeiro Seixas, cuja
perfeita harmonia convulsiva entre vida e obra bem o torna signatário da
tempestuosa frase de Salvador Dalí - frase que bem deveria ter sido
originalmente proferida por André Breton: "O surrealismo sou eu". A
presente edição especial antecipa em breve mostra um novo livro que trago em
preparo e que reúne destacadamente a minha correspondência com ele, ao lado de
textos escritos a seu respeito e uma vultosa iconografia.
***
Floriano
Martins
(1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura
e a ARC Edições.
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