Michel
Foucault, em sua monumental história da loucura, tem um conhecido
enunciado que relaciona a loucura à não obra, à ausência e impossibilidade de
obra. Esta assertiva tornou-se objeto de abordagem e crítica a
partir de distintos prismas teóricos, envolvendo em seu debate, entre outros,
filósofos, críticos literários e psicanalistas, e remetendo-nos à questão das
raízes profundas da criatividade humana.
O espaço
da criação implica em buscar traduzir conteúdos, percepções e representações
internas numa linguagem acessível ao Outro, negociação entre o estritamente
subjetivo e sua conversão em símbolos articulados culturalmente.
As
vanguardas artísticas do início do século XX, a partir do dadaísmo e do
surrealismo, aprofundaram e legitimaram esta relação entre o estritamente
subjetivo, o mergulho nas brumas interiores do ser, muitas vezes de conteúdo
hermético e cifrado simbolicamente, e sua circulação no meio social, no
espaço ampliado da cultura.
Interessa-nos,
pois, neste ensaio, seguir abordando a relação entre literatura e loucura. Em
texto anterior apresentamos alguns autores brasileiros que passaram pela
experiência da internação psiquiátrica, e sobre a mesma refletiram de modo
intenso. Todavia, naqueles escritos, a loucura, a vivência desta experiência
singular, é narrada com um olhar racional, “exterior”, não são escritos
“loucos”, cifrados à compreensão do Outro.
Walter
Benjamin, em resenha originalmente publicada em 1928, apresenta análise,
sucinta mas penetrante, sobre as famosas memórias de Daniel Paul Schreber, e
nos fala mais amplamente desta literatura da desrazão, da qual tinha ciência
e pela qual manifestava vivo e continuado interesse.
“A
existência deste tipo de obras tem algo de surpreendente. Estamos habituados,
apesar de tudo, a considerar o âmbito da escritura como algo superior e
seguro, de tal maneira que a emergência da loucura, que aqui aparece
sigilosamente, assusta mais.”
Tais
textos foram, em sua maioria, preservados quase anonimamente, graças ao
empenho de registro pelos próprios autores, os quais quase sempre custearam
integralmente as edições de suas obras, à margem do sistema editorial
dominante.
No caso
brasileiro, o encontro de tais registros é raro, não apenas pela nossa
relativamente escassa familiaridade com o universo da escrita, em uma cultura
de viés predominantemente oral, mas também pela precária conservação de nossa
memória histórica e cultural.
Assim, é
como exceção notável que foi possível resgatar e revalorizar a obra textual
de um autor gaúcho do século XIX (1829-1883), José Joaquim de Campos Leão,
nome ao qual o próprio autor acrescentou a alcunha de Qorpo-Santo (QS).
Foram
necessários quase cem anos, a partir da publicação original de seus textos,
para sua redescoberta, na década de 1960.
A partir
daí, assistimos a uma nova abordagem da vida e da obra de QS, entre autores
da crítica literária e teatral brasileira que voltaram suas lentes para esta
escrita singular.
Alguns
críticos, destacando-se o editor de seu teatro completo, Guilhermino César,
buscaram situá-lo entre os precursores de modernas tendências da arte
teatral, como o teatro do Absurdo, pretendendo atribuir-lhe a paternidade
desta moderna corrente teatral.
Já Eudinyr
Fraga, em trabalho dos anos 80, defende que QS seja enquadrado como autor
surrealista, por fazer uso constante em seu texto do ‘automatismo psíquico’,
que caracterizaria aquela corrente estética.
“Suas
personagens são sempre projeção dele próprio, e com ele muitas vezes se confundem,
como observamos pelo conhecimento de sua biografia. Inclusive, deixam a
categoria de personagens e assumem um tom discursivo, lamentando as
infelicidades e as injustiças sofridas pelo criador. Por outro lado, não tem
preocupações estéticas. Suas lamúrias estão sempre a um nível existencial, ou
melhor, individual. Sua obra visa satisfazer ‘uma necessidade interior que a
expressão determina’.”
Entre os
autores que estudaram QS, a análise mais profunda segue sendo a
realizada por Flávio Aguiar, ainda na década de 70, em “Os Homens Precários”,
resultado de sua tese de mestrado em literatura. Na mesma, Aguiar analisa em
detalhe o teatro de QS, e foge argutamente à discussão sobre ser QS o
precursor não reconhecido de modernas tendências do teatro moderno.
Para
Aguiar, QS constrói um teatro da paralisia, em que o pano de fundo da
moralidade vigente é antagonizado pelo desenrolar dos acontecimentos, em
atropelo da possível lógica de seus enredos.
“Nas
peças de Qorpo Santo o desenrolar dos acontecimentos (o ritmo do tempo) é
caótico demais para que dele possa nascer, ‘espontaneamente’, qualquer
conclusão lógica”.
Interessa-nos
aqui ressaltar que, à exceção destes dois autores citados imediatamente
acima, que ao menos tangenciaram o tema, é perceptível a ausência de uma
reflexão sobre a questão da loucura, sobre os limites da normalidade
psíquica, no universo textual deste autor. E, no entanto, a desrazão se faz
presente no cerne de sua escritura, nas nervuras de seu texto.
Assim,
buscando suprir ainda que parcialmente esta lacuna, apresentamos a seguir um
breve resumo de sua vida e obra, destacando alguns fragmentos de suas peças
teatrais que apontam para a presença de conteúdos extremamente pessoais, que
parecem como que invadir a cena e o espaço literário, numa frequência pouco
usual nos textos da maioria de seus contemporâneos.
José
Joaquim Leão, natural da Vila do Triunfo, interior do Rio Grande do Sul, vai
para Porto alegre em 1840, já órfão de pai, para estudar gramática e
conseguir emprego naquela capital, habilitando-se ao exercício do magistério
público, que passa a exercer a partir de 1851.
Em 1855,
casa-se e, em 1857, muda-se com a família para Alegrete, cidade na qual funda
um colégio, adquirindo respeitabilidade como figura pública, escrevendo para
jornais locais e ocupando ainda cargos públicos de delegado de polícia e
vereador.
Em 1861,
de volta a Porto Alegre, segue a carreira de professor e começa a escrever
sua “Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade”. Parecem manifestar-se
neste momento os primeiros sinais de seus transtornos psíquicos, rotulados
então sob o diagnóstico de “monomania”, sendo afastado do ensino e
interditado judicialmente a pedido da própria família.
QS não
aceita pacificamente este seu enquadramento psiquiátrico, recorrendo ao Rio
de Janeiro, sendo examinado então por médicos daquela capital, que diferem do
diagnóstico inicial e não endossam sua interdição judicial.
Todavia, o
estigma estava posto, e nosso autor se vê cada vez mais isolado. Este
isolamento social parece incitá-lo a escrever febrilmente, e o leva ademais a
constituir sua própria gráfica, na qual viabiliza e edita sua produção
textual.
Vale a
pena, neste ponto de nosso percurso, a leitura de crônica de contemporâneo
seu, transcrita por Flávio Aguiar, que traça retrato humano de nosso
personagem.
Chamava-se
José Joaquim Leão do Corpo Santo. Era alto, magro, moreno, de uma palidez de
morte. Usava a cabeleira comprida como os velhos artistas da Renascença.
Trajava calças brancas, sobrecasaca preta, toda abotoada como uma farda,
bengala grossa para afugentar os cães e chapéu alto de seda lustroso.
Andava
sempre, na rua, apressado como se fosse tirar o pai da forca.
Fora
muitos anos mestre-escola da roça, mas com certo preparo não vulgar, que o
punha em destaque.
(…) Quando
a luz da razão se apagou no seu cérebro, tornou-se então tristonho,
taciturno, fugindo da convivência dos mais. Sentia-se bem só, na solidão, a
fumar o seu cigarro de palha, com fumo crioulo. E passava assim horas e
horas, completamente estranho a tudo que o cercava, na indiferença da sua
grande desgraça.
Mas
sigamos e adentremos um pouco em seu singular universo textual, transcrevendo
extensivamente alguns trechos de “Hoje sou um; amanhã outro”, ilustrativos
desta transposição quase literal de traços biográficos do autor para o enredo
de ficção.
O REI - da
descoberta, que tanto ilustra, moraliza e felicita - honrando!? Mas quem foi
no Império do Brasil o autor
MINISTRO -
Um homem, Senhor, predestinado sem dúvida pelo Onipotente para derramar esta
luz divina por todos os habitantes do Globo que habitamos.
O REI -
Mas quais os seus princípios, ou os de sua vida?
MINISTRO -
É filho de um professor de primeiras letras; seguiu por algum tempo o
comércio; estudou depois, e seguiu por alguns anos a profissão de seu Pai,
roubado-lhe pela morte, quando contava apenas de 9 a 10 anos de idade.
Durante o tempo do seu magistério, empregou-se sempre no estudo da História
Universal; da Geografia; da Filosofia, da Retórica - e de todas as outras
ciências e artes que o podiam ilustrar. Estudou também um pouco de Francês, e
do Inglês; não tendo podido estudar também -
Latim, conquanto a isso desse começo, por causa de uma enfermidade que em
seus princípios o assaltou. Lia constantemente as melhores produções dos
Poetas mais célebres de todos os tempos; dos Oradores mais profundos; dos
Filósofos mais sábios e dos Retóricos mais brilhantes ou distintos pela
escolha de suas belezas, de suas figuras oratórias! Foi esta a sua vida até a
idade de trinta anos.
MINISTRO -
Nessa idade, informam-me... isto é, deixou o exercício do Magistério para
começar a produzir de todos os modos; e a profetizar!
O REI -
Então também foi ou é profeta!?
MINISTRO -
Sim, Senhor. Tudo quanto disse que havia acontecer,
tem acontecido; e se espera que
acontecerá!
O REI -
Como se chama esse homem!?
MINISTRO -
Ainda não vos disse, Senhor, - que esse homem viveu em um retiro por espaço
de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências,
compondo uma obra de mais de 400 páginas em quarto, a que denomina E... ou
E... de. .. E aí acrescentam que tomou o titulo de Dr. C... s.... - por não
poder usar o nome de que usava - Q... L..., ou J... J... de Q. .. L..., ao
interpretar diversos tópicos do Novo Testamento de N. s. Jesus Cristo, que
até aos próprios Padres ou sacerdotes pareciam contraditórios!
O REI -
Estou espantado de tão importante revelação!
MINISTRO -
Ainda não é tudo, Senhor: Esse homem era durante esse tempo de jejum, estudo,
e oração - alimentado pelos Reis do Universo, com exceção dos de
palha! A sua cabeça era como um centro, donde saíam pensamentos, que voavam
às dos Reis de que se alimentava, e destes recebia outros. Era como o coração
do mundo, espalhando sangue por todas as suas veias, e assim alimentando-o e
fortificando-o, e refluindo quando necessário a seu centro! Assim como
acontece a respeito do coração humano, e do corpo em que se acha. Assim é que
tem podido levar a todo o mundo habitado sem auxílio de tipo - tudo quanto há
querido!
O REI -
Cada vez fico mais espantado com o que ouço de teus lábios!
MINISTRO -
É verdade quanto vos refiro! Não vos minto! E ainda não é tudo: esse homem
tem composto, e continua a compor, numerosas obras: Tragédias; Comédias;
poesias sobre todo e qualquer assunto; finalmente, bem se pode dizer - que é
um desses raros talentos que só se admiram de séculos em séculos!
O REI -
Poderíamos obter um retrato desse ente a meu ver tão grande ou maior que o
próprio Jesus Cristo!?
MINISTRO -
Eu não possuo algum; mas pode se encomendar ao nosso Cônsul na cidade de
Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Sul, em que tem habitado,
e creio que ainda vive.
O REI -
Pois serás já quem fará essa encomenda!
MINISTRO -
Aqui mesmo na presença de V . M. o farei. (Chega-se a uma mesa, pega em uma
pena e papel, e escreve:)
"Sr.
Cônsul de...
De ordem
de Nosso Monarca, tenho a determinar a V. Sa. que no primeiro correio envie a
esta Corte um retrato do Dr. Q... S..., do maior tamanho, e mais perfeito que
houver.
Sendo
indiferente o preço.
O Primeiro
Ministro DOUTOR SÁ E BRITO"
Corte
de..., maio 9 de 1866.
Da mesma
maneira, em “O Parto”, vislumbra-se de imediato esta presença do fator biográfico
mesclado ao entrecho textual.
RUIBARBO -
Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes meus colegas são o diabo
em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam! É preciso uma... não:
paciência de Jó, ou de algum outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de
todo o quarto arrumado) é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos
tombos, puxões ou cabeçadas. (Pega em um livro.) São horas, vou às minhas
lições de Retórica! E logo continuarei a escrever a minha encantadora comédia
- a Ilustríssima Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos
Beltrão Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão, etc. etc.
Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas que têm de trabalhar, apertadas,
não poderão fazer tão bom serviço como - desembaraçadas; e eu o creio pia e
firmemente. Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos. Suponha-se
que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na mesma não o podem
fazer livre ou desembaraçadamente mais que dez ou doze. Pergunto: seu
serviço, obra, ou trabalho, sairá tão perfeito, como se trabalhassem aqueles
que - bem - só o podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos - da
vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém dirá que - bem
funcionam. Assim pois devem ser os do nosso estômago, intestinos, etc.
Apertados, não poderão funcionar, transformar ou digerir os alimentos ou
cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade com que o fazem ou devem
fazer não opressos ou desembaraçados. Se aperto os meus dedos, não posso
escrever, nem com a mão cousa alguma fazer! Se porém esta está desembaraçada,
com ela faço o que quero, ou o que posso. Logo - não convém a opressão; se se
quer trabalho abundante e perfeito!
RUIBARBO -
Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário,
e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por
exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso
escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil,
suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do
Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do
outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só
cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que
também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a
razão é - assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que
tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais
fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos
importemos com as origens!
Esta
amostra, pinçada quase aleatoriamente de algumas de suas peças, parece
suficiente para o que pretendíamos indicar, sendo interessante nomear alguns
títulos de seus trabalhos, além dos acima mencionados, que soam bastante
peculiares para o contexto da época: “As relações naturais”, “Certa
identidade em busca de outra”, “Eu sou a vida, eu não sou a morte”.
A obra
enciclopédica de QS alcança nove volumes na edição original impressa em sua
gráfica, chamando a atenção o fato de que todo o conjunto de seus textos
teatrais foi escrito em apenas seis meses do ano de 1866, período que é
indicado como coincidente com o agravamento de seus sintomas psíquicos.
Esta febre
de escritura foi imediatamente patologizada pelo saber de então, sendo
rotulada de “grafomania”.
Foram
precisos cem anos para que a obra tormentosa de QS emergisse novamente,
voltando à cena de modo instigante e pendente de novos olhares.
|
Alfredo Schechtman (Brasil, 1952). Médico. Contato:
alfredo_schechtman@yahoo.com.br. Agulha Revista de Cultura # 44. Março de 2005. Página ilustrada com
obras de William Blake (Inglaterra), artista convidado desta edição.
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PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE
I (1999-2009) | 05 de 10
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | William Blake
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o
projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura
teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e
Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título
de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial
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