Um bom pretexto para voltar a tratar de Breton e surrealismo é o lançamento
de nova edição brasileira de Nadja, agora pela Cosac Naify, que já publicou
outras obras importantes de surrealistas. É, também, uma nova versão da tradução
de Ivo Barroso. Conforme é dito ao final do livro, “Barroso considera o texto publicado
na presente edição uma nova tradução”, assim mostrando ser um verdadeiro tradutor
literário, daqueles que encaram tradução como um compromisso, algo permanente, e
não apenas como tarefa de encomenda.
A circulação de Nadja no Brasil só tem a ganhar com esta edição. Vem
acompanhada por um bom apoio crítico: prefácio de Eliane Robert Moraes, posfácio
de Annie Le Brun, indicações de leitura e excertos da sua recepção, incluindo, entre
outros, os testemunhos capitais de Walter Benjamin, Murilo Mendes e Maurice Blanchot.
Enfim, tudo o que é preciso para que esta porta de entrada para o surrealismo se
abra plenamente para o leitor brasileiro.
Nadja foi a criação literária surrealista de maior repercussão
ao ser publicada, conforme observado nesta nova edição e documentado, entre outros,
por Marguerite Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre [1], Patrick Née em
Lire Nadja [2] e Pascaline Mourier-Casile em Nadja d’André Breton
[3] (a propósito, são índices da importância e prestígio de uma obra literária não
apenas sua publicação em pocket book, mas bons ensaios a respeito, como este
de Mourier-Casile, também sairem em edições de bolso, de grande tiragem).
Não obstante, Nadja e surrealismo ainda são recebidos de modo reticente
e descartados com ligeireza por boa parte da intelectualidade brasileira. Um exemplo
é este comentário de Silviano Santiago, afirmando que, em Nadja, Breton fez
com que a
“[…] descrição linguística do real fosse substituída pela fotografia correspondente.
Pensavam os surrealistas: imagem por imagem, por que e para que buscá-las e compô-las
com palavras? Recorramos à fotografia. Colemos a foto ao texto linguístico.” [4]
E ainda se refere, citando Robbe-Grillet, ao “preguiçoso André Breton, o
do romance Nadja.”
Descrição substituída pela fotografia? De fato, Breton afirmou, no
prefácio de 1962 para Nadja, que a “abundante ilustração fotográfica” no
livro “objetiva eliminar qualquer descrição.” Mas isso tornaria Breton preguiçoso?
Como…? A mesma crítica não valeria para outras obras literárias acompanhadas de
fotografias? Por exemplo, Paranóia de Roberto Piva, com as fotos de Wesley
Duke Lee na edição original de Massao Ohno e naquela do Instituto Moreira Salles?
Há confusão entre duas coisas: uma, a recusa da narrativa de ficção por Breton;
outra, uma recusa da escrita. Nadja relata os encontros, durante alguns dias,
de André Breton com uma mulher estranha e visionária, que acabaria internada em
hospícios até o fim de seus dias. Fascina pelo caráter não-ficcional do que é relatado.
É a transposição para a escrita da identificação surrealista entre arte e vida,
invertendo a relação entre esses dois planos. Tem especial importância pelo modo
como funde gêneros e pela alta voltagem poética. Breton, nesta e em outras de suas
obras também acompanhadas por ilustrações, não abandonou as palavras. Nos milhares
de páginas de poesia, narrativa em prosa, ensaio, manifestos e artigos que deixou,
como o atestam os quatro volumes da sua obra completa na coleção Pléiade, há passagens
de “descrição linguística do real”, mesmo acompanhadas por fotografias. Por exemplo,
em O Amor Louco, as descrições do mercado de flores em Paris e do alto do
Pico de Teide nas Ilhas Canárias; em Arcano 17 há bastante sobre os rochedos
da Gaspésia. Em Nadja, além de narrar os episódios marcantes da sua relação
com essa mulher misteriosa, e antes, na primeira parte do livro, as “petrificantes
coincidências” que a precederam, descreve e comenta as fotografias e outras imagens
adicionadas ao texto.
A contradição aparente – Breton fazer, em suas narrativas em prosa, o que
rejeitara no primeiro Manifesto do Surrealismo – é examinada por Jean-Luc
Steinmetz em André Breton et les surprises de l’amour fou: [5] sim, o surrealista
descreveu cenas e situações – mas descrevia aqueles lugares e acontecimentos em
que a realidade se comportava ou aparecia como sonho; quando o real se tornava surreal,
maravilhoso. O que Breton não queria era registrar o banal, o prosaico: “não tenho
por hábito alardear os momentos nulos da minha vida”, afirmou no primeiro Manifesto
do Surrealismo.
De qualquer modo, boas narrativas em prosa interessam por suas qualidades
poéticas, como já havia exposto outro anti-realista, Baudelaire, em sua apreciação
de Madame Bovary de Flaubert: vendo a protagonista como personagem heroica
e interpretando-a como hermafrodita, criatura superior, inverteu o julgamento moral
do próprio Flaubert. Aliás, e ainda a propósito de Flaubert, grandes obras literárias
sempre têm algo a mais, mostram outra coisa, como observou Breton nas páginas iniciais
de Nadja: [6]
“Não sou dos que cultuam Flaubert e, no entanto, se me garantem que, segundo
sua própria afirmativa, ele quis, com Salambô, apenas “dar a impressão do
amarelo” e, com Madame Bovary, apenas “fazer algo que tivesse a cor do mofo
daqueles cantos onde nascem tatuzinhos”, pouco se importando com o restante, preocupações
assim, acima de tudo extraliterárias, me predispõem a seu favor”.
A concomitante reedição de Nadja e reaparição do comentário de Silviano
Santiago oferecem um bom pretexto para tratar de algumas qualidades tipicamente
literárias de Breton, incluindo suas relações com outros autores, em geral, e com
Gérard de Nerval, em particular.
Ninguém escreve no vazio, a partir de nada, do zero. Criação literária sempre
é diálogo com outras leituras, mesmo no mais desenfreado espontaneísmo, na mais
pura escrita automática. Já demonstrei isso em outra ocasião. [7] E, antes
de mim, Michael Rifaterre, [8] ao expor o intertexto ou “inconsciente do texto”
em uma passagem do extenso poema em prosa Peixe Solúvel de Breton, [9] resultado
da escrita automática.
Em Nadja, não falta esse diálogo com outras obras e autores. Na parte
inicial, de modo explícito, ao tratar dos estranhos acontecimentos, os acasos, “coincidências
petrificantes” que prefiguram sua aparição, há o comentário sobre Flaubert, e também
sobre Huysmans, Rimbaud, Apollinaire.
A segunda parte do livro é aquela, segundo Breton na forma de “observação
neuropsiquiátrica”, em que são relatados os encontros com Nadja, ocorridos entre
4 e13 de outubro de 1926.
Na terceira parte, escrita depois de Breton saber que Nadja havia sido internada,
há poesia em prosa. Ele observa que está a escrever sobre um mundo que se transformava
durante o intervalo “que separa essas últimas linhas daquelas que, folheando o livro,
pareceriam encerrá-lo duas páginas atrás”, pois a vida e a cidade não param de mudar.
Pouco depois dos acontecimentos que acabara de relatar, seus cenários já se haviam
modificado. O teatro onde assistira a uma peça insólita estava fechado, em reformas.
A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert, que lhe provocava mal-estar, cercada
de tapumes, em restauração. A cidade é um organismo mutante, vivo:
“Não sou eu quem vai meditar sobre o que advém da "forma de uma cidade",
nem mesmo da verdadeira cidade, alheia e abstrata, daquela em que moro, por força
de um elemento que seria para a minha mente o que o ar é para a vida. Sem nenhum
arrependimento, agora a vejo tornar-se diferente e até fugir. Resvala, se incendeia,
afunda no redemoinho de suas barricadas, no sonho das cortinas de seus quartos,
onde um homem e uma mulher continuarão a se amar indiferentes.”
Há aqui uma citação de Baudelaire e da sua visão do efêmero associado à modernidade
(continuo achando que esta nova edição deveria ter algumas notas de rodapé a mais,
mostrando essas conexões, óbvias para o leitor francês, mas nem tanto para o brasileiro).
Em tradução livre e literal: “De uma cidade a forma muda mais depressa que um coração
infiel”. Isso foi observado por Flávia Nascimento, tradutora e prefaciadora de O
Camponês de Paris de Aragon [10] (outra via de acesso importante ao surrealismo,
disponível para o leitor brasileiro), citando o trecho correspondente de O Cisne,
de As Flores do Mal, e remetendo ao que Walter Benjamin escreveu sobre ruínas
da modernidade em Parque Central: “Baudelaire já constatara, antes deles,
que a forma de uma cidade muda mais rapidamente que o coração de um mortal, o que
faz com que tudo transmude incessantemente em amontoados de ruínas, em alegorias.”
(outros três ensaios importantes de Flávia Nascimento sobre a relação de surrealistas
e outros autores com Paris estão publicados na Agulha Revista de Cultura).
Baudelaire não está presente apenas nesse trecho. Nadja e o conjunto
de textos surrealistas sobre o maravilhoso urbano, ao adotarem a disponibilidade
e a flânerie, são continuadoras do Baudelaire poeta de Paris. Na série Quadros
Parisienses, que compõem as Flores do Mal, é a “Cidade a fervilhar, cheia
de sonhos.” Nela, “Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito
canal do colosso possante.” [11] Como crítico de arte, Baudelaire argumentou em
favor da “beleza nova e particular” presente na cidade: “A vida parisiense é fecunda
em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera;
mas não o vemos.” [12] Em um ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se
inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flâneur,
o caminhante desgarrado: “Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto
da poesia lírica”. [13] Uma das consequências dessa flânerie, dessa errância
sem destino definido, foi o modo como Breton encontrou Nadja.
No primeiro Manifesto do Surrealismo, Breton já tomaria o partido
do maravilhoso baudelairiano em contraposição ao realismo, à submissão ao real imediato:
“Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer
tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Diria também, em nota
de rodapé: “O que é admirável no fantástico é que não há mais fantástico: só há
o real”. Mais à frente, contraporia o maravilhoso ao fantástico em seu prefácio
para Le miroir du merveilleux de Pierre Mabille:
“O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor [que Mabille] por oposição
ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo junto a nossos
contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à ordem da ficção sem
consequência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital
e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade” [14]
Fazem parte desse maravilhoso imanente e urbano – também examinado no ensaio
de Carlos M. Luis publicado, muito sincronicamente, nesta edição – todos os registros
dos trechos de conversas, objetos encontrados, textos, desenhos, os esboços a traço
e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou graficamente reproduzidos
no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores,
sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos de castelos, lâmpadas,
amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar – que levaram Breton a vê-los,
“nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia”, como cúmplices
a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna”.
E a perguntar-se: “Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao
furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos
de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?”
Novamente, uma citação: aqui, de Mallarmé e seu poema em prosa O Demônio
da Analogia, no qual repete, como um enigmático refrão, “la penultième est
morte”, a penúltima morreu. O Demônio da Analogia é um dos textos que
Mallarmé escreveu durante sua crise de 1867, quando achou que estava enlouquecendo
ao ter experiências de duplicação, resumidas neste comentário em uma carta a seu
amigo Cazalis “Acabo de passar um ano assustador: meu Pensamento se pensou”. P-O.
Walzer, ao comentar a “crise” de Mallarmé, vê seus poemas em prosa daquele período
como precursores do surrealismo [15].
Uma relação intertextual
mais subterrânea, bem mais complexa, pode ser observada na segunda parte de Nadja,
no impressionante episódio da Praça Dauphine. [16]
A 6 de outubro de 1926, Breton e Nadja chegaram a essa praça na Ilha da Cité,
onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações históricas. Classificada
por Breton como “um dos lugares mais profundamente ermos que conheço, um dos piores
terrenos baldios de Paris”; estar lá lhe provocava aflição. Haviam sido conduzidos
por Peixe Solúvel, que Nadja acabara de ler. Em um dos trechos de Peixe
Solúvel é mencionado um hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado. Pretendiam
ir adiante, até a Ilha de Saint-Louis, adjacente, também mencionada em outro trecho
daquele poema em prosa. Uma relação mais original com literatura, bem examinada
por Mourier-Casille (no aqui já mencionado Nadja d’André Breton): trocaram
capítulos de Peixe Solúvel; pretendiam seguir um deles e foram parar em outro,
que relata um encontro entre uma mulher, Helena, e o diabo. Dirigiam-se ao inferno.
Ao chegarem à praça e se instalarem em um café, iniciou-se a noite marcada
por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhança,
com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia – transformado em
vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios. Afirmou que
lá passava um subterrâneo, vindo do Palácio da Justiça, um túnel secreto que se
comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em na sua biografia de Breton,
[17] escavações arqueológicas de 1963 revelaram que esse subterrâneo existe; contudo,
também constava em uma das narrativas do Fantômas de Souvestre e Allain,
que Nadja poderia ter lido. Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra
na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto esta se iluminaria e sua cor seria
vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se, exibindo cortinas
vermelhas (Breton observou, “para benefício dos amantes de soluções simplistas”,
que Nadja já havia morado na Praça Dauphine e podia saber da janela de cortinas
vermelhas). Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu
que havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta.
Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita
do Sena, o Pont Neuf, Ponte Nova, Nadja enxergou uma mão em chamas, “mão que arde
sobre as águas”, pairando no Sena. Perguntou: “O que isso significa para você: o
fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?”
A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam
diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se
em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente,
simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentário, pois
ela citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição
de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley,
com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum,
ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções no
livro). A tradução seria, aproximadamente: “A força impele as águas para o alto
e ao mesmo tempo move a superfície.” Um resumo, diz Breton, do que Nadja comentava
sobre o significado do chafariz à frente deles.
No prefácio a esta nova edição de Nadja, Eliane Robert Moraes observa:
“Para além dos ecos de Lautréamont e Huysmans, o que prevalece em Nadja
é a Paris onírica de Nerval. A começar pelo itinerário escolhido, evocando locais
de intensa significação para o criador de Aurélia, a exemplo da Place Dauphine,
que desperta sentimentos igualmente ambíguos no narrador […]”
Paris onírica de Nerval, sim – mas de
qual obra de Nerval? Prefácios não são dissertações – por isso, Eliane não foi adiante
no paralelo de Nadjade Breton com obras de Nerval. Mas, entre outros lugares,
a Praça Dauphine está no conto que inicia o primeiro dos livros de narrativas em
prosa de Nerval, Contes et Facécies. É A Mão Encantada, La main
enchantée: a main de gloire, a mão mágica usada por bruxos, que deve
ser arrancada de um condenado à morte, e, após o devido tratamento, permitirá, segurando
uma vela também mágica, também devidamente preparada, que seu dono entre em qualquer
lugar, atravesse qualquer porta trancada, entre outras façanhas.
No enredo de Nerval, um ingênuo é vítima das artimanhas de um bruxo: depois
de matar seu oponente em um duelo e de sua mão, autônoma, com vontade própria, estapear
um juiz, é condenado à morte. Devidamente decepada, a mão sai caminhando sobre seus
dedos, sozinha, e vai ao encontro desse bruxo (apenas para lembrar, uma versão burlesca
desse artefato tradicional de magia é a mãozinha que aparece em Família Adams).
A Mão Encantada de Nerval abre com a descrição da
Praça Dauphine; um de seus cenários é o Palácio da Justiça; descreve o Pont Neuf,
Ponte Nova, outro dos lugares-fetiche de Breton (que acabava de ser construída no
tempo da ação do conto de Nerval, século XVI).
Seria intertextualidade, isso da mesma Praça Dauphine, o mesmo Palácio da
Justiça, o mesmo Pont Neuf, estarem nos dois textos, Nadja de Breton e A
Mão Encantada de Nerval? Ou mera coincidência, e sofro de um acesso de exagero
da interpretação? Não, pois a main de gloire também aparece em Nadja:
é a mão de fogo vista por ela, pairando sobre o Sena, e justamente do Pont Neuf.
O que caracteriza a relação Breton-Nerval em Nadja como estranha,
muito estranha, é que os episódios daquela noite na Praça Dauphine aconteceram.
Trata-se, portanto, de uma inversão da relação entre literatura e realidade; são
acontecimentos da ordem do que Breton viria a chamar de acaso objetivo.
Nenhum dos comentaristas de Nadja que cheguei a examinar – Bonnet,
Moraes, Née, Mourier-Casille, mais os textos que vêm em apêndice a esta nova edição
de Nadja e os que acompanham o livro de Mourier-Casille – parece haver reparado
nisso. Breton embutir a toda hora alusões e citações de outros autores em suas narrativas
não é novidade. E outros textos acontecerem, a exemplo da famosa realização de um
poema de Breton,Tournesol, Girassol, em O Amor Louco, e de
outras passagens desse livro anteciparem acontecimentos posteriores à publicação,
isso sim, já foi examinado.
Há um comentário de Jean-Luc Steinmetz sobre Nerval, a propósito de Petits
châteaux de Bohême, que me parece valer , de modo mais completo, para Nadja
e outras das narrativas de Breton:
“[…] somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um
outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de referências
dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à luz.” [18]
Breton nunca chegou, parece-me, a publicar um ensaio sobre Nerval, a exemplo
dos que escreveu sobre Lautréamont, Jarry, Baudelaire, Apollinaire, Rimbaud e outros
poetas. Mas pode-se dizer que Breton e o surrealismo começam e terminam com Nerval.
Começam, pois, no primeiro Manifesto do Surrealismo, dá o “estado
de sonho supernaturalista” de Nerval ao escrever os sonetos de As Quimerascomo
origem do surrealismo. Cita a carta de Nerval a Alexandre Dumas que abre Les
Filles du Feu, sobre esses poemas “[…] compostos em estado de sonho
supernaturalista, [que] não são mais obscuros que a metafísica de Hegel
e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam seu encanto ao serem explicados,
se isso fosse possível”
Breton termina em Nerval, duplamente: em Arcano 17, obra de 1947,
última de suas narrativas em prosa, fechando uma tetralogia composta porNadja,
Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco; e no último dos Manifestos
do Surrealismo de Breton, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953.
Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel central, a começar
pelo título, referência à carta 17 do Tarô, a Fortuna. Em Nerval, um esoterista,
a simbologia do Tarô é importante: por exemplo, o poema El desdichado, de
As Quimeras, é sobre a carta anterior, o arcano 16, da torre desabada ou
“abolida”. Interessa a sequência das cartas do jogo do Tarô em Breton e Nerval:
a carta de número 16, símbolo da destruição, segue aquela do diabo; portanto, o
colapso da torre (do consulente) é manifestação demoníaca; mas a torre fulminada
por sua vez precede o arcano 17: é a estrela da manhã, símbolo de um nascimento,
da esperança no futuro e do conhecimento, ou seja, da gnose. Nerval diz que vai
morrer - pouco depois da publicação de As Quimeras, cometeria suicídio -
mas que retornará. Portanto, simbolicamente, em Arcano 17 Breton prossegue
Nerval, continua onde o poeta parou.
Um detalhe interessante, desses que permitem falar em “inconsciente do texto”,
associado ao intertexto: em El desdichado de Nerval, este verso: “Serei Amor
ou Febo? … Lusignam ou Biron?” – Lusignan foi um cruzado que se tornou rei de Jerusalém
e de Chipre no século XII; era tido como descendente da fada-serpente Melusina,
por sua vez invocada em Arcano 17 de Breton, associada a Elisa, sua companheira.
Em Arcano 17, Breton celebra a realização amorosa como grande síntese,
superação das antinomias, equivalente à iluminação. O corpo do livro se encerra
com reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi, ao proclamar que “Osíris
é um deus negro”. Termina saudando a publicação do ensaio de Auguste Viatte sobre
o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo como ambos, o mago
e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo rebelde – “que, ao nascer, negou-ser a ser
escravo”, dando à luz “duas irmãs, Poesia e Liberdade” – à estrela da manhã, signo
da liberdade e do conhecimento, equivalente “à própria revolta, a única revolta
criadora de luz”; uma luz que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade
e o amor.”
No final de Arcano 17, em um apêndice escrito em 1947, os encontros
adquirem mais nitidamente o caráter de uma aventura intelectual. Não são mais as
mulheres, desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, como Nadja, as desconhecidas
de Os Vasos Comunicantes e Jacqueline Lamba emO Amor Louco, que vêm
ao encontro de Breton, movidas pelo acaso, porém obras, informações, mesmo quando
trazidas por pessoas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, de volta a Paris, Breton
recebe uma mensagem de um amigo: “O maravilhoso. – Atenção, reflexão, lógica não
me ajudam em nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente.” Encontram um desconhecido.
Segue-se um enredo através do qual chega a suas mãos o livro de Jean Richer, Gérard
de Nerval et les doctrines ésotériques. Nele foi publicado, pela primeira vez,
o retrato de Nerval com sua frase, manuscrita, “Eu sou um outro”, acompanhada por
signos cuja decifração é proposta por Breton. Os episódios desses dias de abril
de 1947 o fazem convencer-se de que estivera de fato em companhia de Gérard de Nerval,
nas imediações da torre Saint-Jacques, a torre medieval de onde saíam os peregrinos
a São Tiago de Compostela – um lugar extremamente significativo para Breton, que
comparece em outros de seus poemas e em O Amor Louco, além de associado á
alquimia, inclusive por Nicolas Flamel haver morado em sua proximidade. Pela primeira
vez, Breton sobe à torre Saint-Jacques: os mais familiarizados com simbologia hermética
reconhecerão o sentido dessa subida à torre: é a entrada no castelo iniciático onde
está o cálice do Graal, que equivale à pedra filosofal.
É a “virada esotérica” de Breton, simbolizada pelo encontro com Gérard de
Nerval, evidenciada através de Arcano 17, de poemas da mesma década de 1940
como Les états géneraux, Os estados gerais, e a Ode a Charles Fourier,
e de seus dois últimos manifestos do surrealismo. EmProlegômenos a um terceiro
manifesto do surrealismo ou não, de 1942, volta-se novamente contra o “pensamento
racionalista”, e, frisa, “sem dar atenção às acusações de misticismo de que não
serei perdoado”, propõe-se a “convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente
o rei da criação, como se vangloria.” Pergunta sobre a oportunidade de revelar um
novo mito, o dos Grandes Transparentes, e observa que “o homem não é
talvez o centro, o ponto de mira do Universo”, criticando “a crença de que o mundo
encontra no homem o seu acabamento.” Retomaria a crítica ao antropomorfismo e a
afirmação da visão hermética de mundo em Do Surrealismo em suas Obras Vivas,
de 1953. Dando sua palavra final em matéria de manifestos, diz, no último parágrafo,
que, “a esse respeito, sua posição [do Surrealismo] se uniria à de Gérard
de Nerval no famoso sonetoVersos Dourados.” Nele, o autor de Aurélia,
expressando as idéias de Fabre d’Olivet, duvida de que sejamos o centro do universo
e os detentores exclusivos da razão:
“Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?” [19]
Expressando a visão pagã do mundo animado, Nerval diz ainda que “um mistério
de amor no metal reside dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das pedras”.
Tudo isso é muito estranho. Como interpretar esses modos de aparição de Nerval,
o poeta mais enfronhado em doutrinas esotéricas dentre aqueles da geração romântica,
na obra de Breton? Aparição manifesta, explícita, em Arcano 17 e em Do
Surrealismo e de suas Obras Vivas; aparição latente, subterrânea, através de
sinais, décadas antes, em Nadja.
A vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton o distingue de outras
figuras de frente do surrealismo, como Aragon e Éluard. Isso, pelo modo como a simbologia
comparece de modo recorrente em sua obra, e, principalmente, por haver realizado
uma relação mágica entre poesia e vida, através do acaso objetivo. Ocultismo estava
em sua formação. Marguerite Bonnet e Henri Béhar, em suas biografias de Breton,
[20] mostram que, entre suas leituras de adolescência, estava o Sâr Joséphin Péladan,
mago de prestígio, escritor prolífico, frequentado por simbolistas e decadentistas.
Em 1921, procurou René Guénon (a quem cita em seu último manifesto). Na década de
1950, para aprofundar o exame das analogias entre poesia e alquimia, intensificou
o diálogo com especialistas como Eugène Canseliet e René Alleau, cujas conferências
sobre alquimia ele e outros integrantes do surrealismo frequentaram. Alleau, por
sua vez, colaborou em publicações surrealistas.
Daí resulta, em sua obra, a profusão de símbolos: pentagramas, casas e planetas
do zodíaco, operações alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua própria versão do
baralho do Tarô. Antes, conforme relata nas páginas iniciais de O Amor Louco,
fascinara-se por um baralho com a bandeira da Hamburg-America Linie, “com a magnífica
divisa: Mein Feld ist die Welt” (meu campo é o mundo), por achar que, nele, “a dama
de paus é mais bela do que a dama de copas.” Conta como dispunha as cartas para
fazer consulta, interpondo um objeto que se assemelhava a uma raiz de mandrágora.
Parecia atribuir valor de verdade à astrologia. No Segundo Manifesto do Surrealismo,
em extensas notas de rodapé, trata de alquimia, astrologia, hermetismo. Coloca o
surrealismo sob influência de uma conjunção de Saturno e Urano, entre 1896 e 1898,
coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e Aragon. O mapa dessa conjunção
também ilustrou em 1930 a capa do primeiro número de Le surréalisme au service
de la révolution. Em O Amor Louco, diria que a conjunção de Vênus e Marte
em seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no seio do amor. Dataria
um acontecimento revelador, que lhe parecia corresponder à noção de beleza convulsiva,
deste modo: “a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua (episódio
esse que só acontecia uma vez por ano)”.
O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta uma duplicidade. De um
lado, no corpo do texto, afirma com ênfase a adesão ao pensamento marxista. De outro,
em extensas notas de rodapé (inaceitavelmente transformadas em notas de fim, jogadas
para o final do livro, na mais recente edição brasileira dos Manifestos pela
Nau, desrespeitando a intenção de Breton), propõe a exploração de “certas ciências”,
valorizando o conhecimento hermético e exigindo que a alquimia do verbo de Rimbaud
fosse tomada ao pé da letra.
É como se houvesse, nesses dois planos do texto, aquele do corpo e outro
subjacente, das notas de rodapé, dois pólos, o materialista e o esotérico, instâncias
historicamente antagônicas, a constituírem, nas palavras de Jean-Louis Bédouin,
“uma das mais vertiginosas interrogações que conheceu o surrealismo, e, antes dele,
espíritos tão diferentes e tão grandes quanto Achim von Arnim e Rimbaud.” [21]
Os conteúdos esotéricos aparecem como um subsolo do texto no Segundo Manifesto
do Surrealismo. E como intertexto ou “inconsciente do texto” em Nadja,
personificados, entre outros lugares, na referência ao mesmo tempo oculta e vivida
a Nerval. E reaparecem no corpo do texto, como tema, personificados em Nerval, em
Arcano 17 e nos dois últimos manifestos (entre outros lugares – na mesma
época, também Breton publicou artigos e ensaios em que tratava de hermetismo).
Nerval, antes de suicidar-se, disse, em El Desdichado e em Aurélia,
que morreria, mas retornaria. No final de Arcano 17, Breton promove esse
retorno; em Nadja, no episódio da Praça Dauphine, já anunciava que iria resgatá-lo.
Os racionalistas tão combatidos por Breton poderão matar a charada do episódio
da Praça Dauphine lembrando que Nadja muito provavelmente havia lido A Mão Encantada
de Nerval, obra conhecidíssima; por isso, após passar por seus cenários, pode ter
fantasiado a main de gloire como mão de fogo sobre o Sena. Mas explicação
alguma reduz a riqueza simbólica dessas relações inter e intratextuais, etapas de
um ciclo no qual Nerval, oculto ou recalcado em Nadja e nos rodapés do Segundo
Manifesto do Surrealismo, volta à luz em Arcano 17 e Do Surrealismo
em suas Obras Vivas.
Mourier-Casile, no já citado Nadja d’André Breton, associa a mão de
fogo sobre o Sena a um quadro de De Chirico, também citado por Breton. Isso, entre
outras possibilidades de leituras transversais, não-lineares, dessa obra, que a
levam essa ensaísta a falar em “curtos-circuitos deslumbrantes” da analogia, e de
uma compacta e complexa “rede de ecos”, que acaba por tecer, “sob a sua essencial
descontinuidade, uma continuidade de uma ordem totalmente outra”. Que o leitor seja
pego por essa rede; que se perca nesse labirinto: encontrará a poesia.
Ah, sim - depois dessa edição tão cuidada de Nadja, resta esperar
que a editora Cosac Naify complete o ciclo da prosa bretoniana, com boas edições
brasileiras de Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco, e uma nova edição
de Arcano 17, há muito esgotado.
NOTAS
[1] No volume I das Oeuvres complètes de Breton
(Gallimard, col. Pléiade).
[2] Dunod, Paris, 1993.
[3] Gallimard, coleção Folio, 1994.
[4] No recém-lançado Cadernos de Literatura Brasileira
- 10 anos, do Instituto Moreira Salles, citado por Antonio Fernando de Franceschi,
em um ensaio, no restante muito informativo, sobre criação literária.
[5] Presses Universitaires de France,
Paris, 1994.
[6] Mais sobre a originalidade do Breton leitor de literatura
em meu André Breton, 40 anos depois: o crítico literário, em Agulha Revista de Cultura # 53.
[7] Em meu texto sobre escrita automática publicado
aqui, em Agulha Revista de Cultura
# 54, a escrita automática e outras escritas.
[8] The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson
soluble, Nº 8, em André Breton today, organizado por Anna Balakian e
Rudolf E. Kuenzli, Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989
[9] Manifestos do Surrealismo, Nau editora, Rio
de Janeiro, 2001.
[10] Imago, Rio de Janeiro, 1998.
[11] Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada
por Ivo Barroso, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Flores
do Malpor Ivan Junqueira.
[12] Em Salão de 1846, também em Charles Baudelaire,
Poesia e Prosa.
[13] A Paris do Segundo Império em Baudelaire,
em Walter Benjamin - Sociologia, tradução e organização de Flávio R. Kothe,
Editora Ática 1985, ou na série Walter Benjamin - Obras escolhidas, da Editora
Brasiliense.
[14] Les Éditions du Minuit, Paris,
1962.
[15] Essai sur Stéphane Mallarmé,
Poètes d’aujour’hui, Seghers, Paris, 1963
[16] Aqui, estou reincidindo no que tratei em minha
narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição em 2004,
e antecipando algo de um ensaio sobre acaso objetivo que deve sair em breve pela
Perspectiva.
[17] André Breton, Le grand
indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.
[18] Nas Oeuvres complètes
de Nerval, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris,
vol. III, 1993.
[19] Na tradução de Contador Borges no prefácio de Aurélia,
Iluminuras, São Paulo, 1991.
[20] Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste,
Librairie José Corti, Paris, 1988.
[21] Bédouin, Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, Éditions Denoël,
Paris, 1961.
Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Contato: cjwiller@uol.com.br.
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