Nomes de lugares me soavam familiares, sem que os reconhecesse.
Não identificava a torre que o amigo francês me apontava, diante do Chatelêt,
bem visível do trecho da Rue de Rivoli onde estava, na altura do Hôtel de Ville:
- La Chancelante!, insistiu
ele. Diante do meu ar desentendido, citou a imagem com que Breton a descreve em
um poema, por sua vez citado em O Amor
Louco: Em Paris a Torre Saint-Jacques
cambaleante/ igual a um girassol.
A Torre Saint-Jacques, ponto de partida das peregrinações a Santiago de Compostela.
Diante dela, uma ruazinha com a extensão de um quarteirão, Rue Nicolas Flamel, evocando
o mago do século XV que lá viveu, fazendo dos arredores da torre um bairro de alquimistas.
Por sua oferta de hotel conveniente, amigos por perto, metrô e acesso a tudo,
ao lado o Marais, o bairro mais antigo, mais o centro cultural, o Beaubourg com
a vista oferecida por seu quinto andar, novidade dos anos 70 afastando a região
de sua anterior decadência, e ainda as margens do Sena e seus cais, pontes, igrejas,
palácios e luminosidades, por tudo isso escolhi aquele trecho de Paris.
Ou fui por ele escolhido, ao instalar-me junto ao Hôtel de Ville, o paço
municipal, reduto de rebeliões em 1789 e em 1871, a dois quarteirões da torre, perto
de Les Halles, encostado à Cité, a ilha onde ficam a Catedral de Notre Dame, o Cais
das Flores, as pontes, o Pont-au-Change e o Pont-Neuf e, atravessando-a, o Quartier
Latin.
Trajetos bretonianos. Berço de
Paris, a expressão comum para designar esse trecho, é usada por ele em O Amor Louco.
O Forum Les Halles substituiu o mercado demolido no começo dos anos 70, em
cuja vizinhança, até a década de 60, reuniu-se em um bar o grupo surrealista. Na
plataforma superior do Forum, caminhos com nomes de escritores. Alameda André Breton,
esquina com Garcia Lorca e Saint-John Perse. Mas essa lembrança, evocando a quem
detestava homenagens, pouco significa. E a distribuição de nomes de escritores pelas
alamedas é um retoque de verniz cultural em um centro comercial. Não sei se o arquiteto
ou administrador que as batizou se lembrou dos trechos de O Amor Louco que mencionam Les Halles e suas imediações.
Nem eu, ao afastar-me do Forum e suas alamedas, margear o Beaubourg e chegar à Torre
Saint-Jacques. E, de lá, flanquear o Hôtel de Ville e dobrar à direita, atravessando
o Sena, passando pela Notre-Dame, pelo Cais das Flores, até o Quartier Latin.
Movia-me o esquecimento em minha tarde de disponibilidade sem hora marcada
ou destino fixo. Da catedral de Notre Dame, podia ter dobrado à direita, chegando
à ponta da ilha, a Praça Dauphine, e, pelo Pont-Neuf, de volta à margem direita,
até as Tuileries. Teria refeito outra caminhada, aquela com Nadja durante a noite
da janela vermelha, da mão em chamas, do chafariz. Mas não: meu roteiro foi o da
madrugada de 29 de maio de l934, em que Breton caminhava acompanhado por uma mulher,
a quem, pouco antes, havia dirigido a palavra pela primeira vez, depois de observá-la
a escrever à mesa de um bar. E que lhe pareceu bela. Escandalosamente bela, insiste ele.
Se caminhar por uma cidade tão notável pela existência literária, aquela
onde escritores se perderam por vielas e ruas para deparar-se com imagens e histórias,
pode ser uma fonte de descobertas e surpresas, assim também a leitura de um texto
como O Amor Louco - onde, talvez por sua adesão a Freud e ao pensamento
psicanalítico, Breton procurou arrancar significados latentes, buscar o que está
por baixo ou além da realidade manifesta, em um esforço intelectual que coexistiu,
o tempo todo, com a livre expressão de sua imaginação poética - é um percurso, é
a revelação da cidade de signos.
Ao abandonar o tom de relatório, quase diário, de Nadja, em favor das longas passagens
de poesia em prosa de O Amor Louco,
Breton quis que o desejo se expressasse pela escrita. Encontrar a bela desconhecida
no meio da noite de Montmartre pareceu-lhe a realização da busca do amor único.
Confunde-a com o universo e a faz partilhar suas qualidades. Seus cabelos são chuva clara sobre castanheiros em flor,
da cor de um sol extraordinariamente
pálido. Aparece rodeada de um vapor
- vestida de labaredas? - Tudo perdia a cor, tudo gelava em presença daquela tez
de sonho, perfeita concordância de tons de ferrugem e de verde.
Mas O Amor Louco é mais que a história desse encontro e da poesia
por ele suscitada. Fala de uma revelação, a descoberta de novas relações: É como se, de repente, fosse desvendada a
profunda noite da existência humana, como se, tendo a necessidade humana aceito
formar um só todo com a necessidade lógica, todas as coisas adquirissem uma total
transparência, tudo se ligasse entre si como uma corrente de vidro à qual não faltasse
um só elo.
Seu propósito é escrever sobre nada menos que a lei de produção do misterioso intercâmbio
entre a matéria e o espírito. Então, é
um livro sobre a magia, embora Breton não use a palavra ao tratar do modo como o
sujeito, movido pelo desejo e pela paixão, altera, inverte ou subverte a causalidade,
a temporalidade, a aparente ordem natural.
O nome da mulher a quem Breton encontrou não é dito em O Amor Louco. Sabemos, através dos biógrafos,
tratar-se de Jacqueline Lamba. Mas sua fotografia foi publicada no livro, retratando-a
de corpo inteiro. É verdade que de modo pouco nítido, embaçada, tornando irreconhecível
seu rosto, permitindo apenas entrever sua nudez, pois essa amada inominada foi fotografada
debaixo da água, mergulhando. Ela mergulhava, mas não no oceano, em um lago ou piscina.
Artista de cabaré, um de seus números era esse, do mergulho visto através da parede
de vidro de um aquário. É possível que Breton, ao escolher, dentre as muitas de
que dispunha, a foto que a mostra quase vulto, sugestão mais que forma de mulher,
quisesse apresentá-la como ser de outra espécie, criatura de outro elemento.
Breton logo soube que o texto escrito por Jacqueline à mesa do bar, nessa
primeira ocasião em que a viu, era uma carta para ele. Marcaram de ver-se mais tarde,
à meia-noite, no Café des Oiseaux em Montmartre. Saindo dali, caminharam conduzidos
pelo vento: esse belo vento que nos
impele e que decerto não irá amainar. O vento do eventual, que os acompanhou
enquanto desciam a Rua Montmartre, atravessando um bom pedaço de Paris. Mas Breton
não descreve o percurso completo. Seu relato recomeça em Les Halles, onde passam
pela porta dos bares de fim de noite e observam o movimento de caminhões descarregando
verduras no velho mercado. Prosseguem pelo quarteirão dos alquimistas até a Torre
Saint-Jacques, passando pelo Hôtel de Ville, atravessando o Sena na altura da Catedral
de Notre-Dame. Antes de se perderem por ruelas do Quartier Latin, detiveram-se no
Cais das Flores, onde os floristas descarregavam vasos de plantas e armavam suas
barracas. A cena inspirou-lhe novas passagens de exaltada poesia em prosa:
Todas as flores, mesmo
as que se mostram menos exuberantes messe clima, se empenham em conjugar esforços
para me proporcionar uma sensação totalmente nova. Límpida fonte, onde vem se refletir
e dessedentar a vontade de arrastar comigo um outro ser, desejo meu de percorrer
a dois - e já que antes não me fora possível fazê-lo - o caminho perdido ao sair
da infância, o caminho que entre prados se insinuava, rodeando de bálsamos aquela
mulher ainda desconhecida, a mulher que um dia haveria de me aparecer. Será você,
finalmente, essa mulher? Só hoje, enfim, você deveria aparecer?
Não conhecemos o restante da caminhada, por onde passaram e se detiveram
depois de enveredar pelo Quartier, em uma rota que os conduziu ao casamento, dois
meses depois.
Antes disso, Breton já havia reparado que passagens da caminhada e detalhes
do encontro daquela noite estavam em um poema seu de 1923, da época em que procurava
cartazes anunciando carvão de lenha como um alucinado e cruzava com moças misteriosas
fazendo perguntas aos passantes pelas ruas de Saint-Germain-des-Prés. Escrito de
modo automático, de um só jato, publicado em Clair
de Terre, intitula-se Tournesol,
Girassol - imagem de sua predileção, a flor que se move acompanhando o sol, como
se quisesse ser seu espelho, e que também aparece no poema sobre a Torre Saint-Jacques.
As dúvidas de Breton sobre o sentido deste poema só foram respondidas onze
anos depois de tê-lo escrito, ao perceber que falava de seu encontro com Jacqueline:
A viajante que atravessou os Halles ao cair do Verão
Caminhava na ponta dos pés
O desespero rolava pelos céus seus grandes arãos tão belos
E na valise de mão escondia-se meu sonho esse frasco de sais
Que só a madrinha de Deus aspirou
Os torpores pairavam como vapor de água
No "Chien qui fume"
Onde o pró e o contra acabavam de entrar
Difícil lhes era ver a moça só de soslaio a viam
Estaria eu diante da embaixatriz do salitre
Ou da curva branca sobre fundo negro a que se chama pensamento
O baile dos inocentes estava no auge
Nos castanheiros incendiavam-se devagar os lampiões
A dama sem sombra ajoelhou-se no Pont-au-Change
Na Rua Gît-le-Coeur outros eram agora os timbres
As promessas da noite cumpriam-se finalmente
Os pombos-correio os gritos de socorro
Vinham juntar-se aos seios da bela desconhecida
Dardejados sob o crepe dos significados exatos
Uma chácara prosperava em pleno centro de Paris
Com suas janelas viradas para a Via Láctea
Mas ninguém lá morava ainda por causa dos que viriam a aparecer
Dos que mais dedicados são que as almas do outro mundo
Alguns como esta mulher mais parecem nadar
E no amor insinua-se algo de sua matéria
Ela os interioriza
Não sou joguete de nenhuma força sensorial
E no entanto o grilo que cantava sobre os cabelos de cinza
Certa noite junto à estátua de Etienne Marcel
Lançou-me um olhar cúmplice
André Breton disse ele está passando
Logo na frase inicial, a travessia de Les Halles pela viajante que, sendo
dançarina, caminha na ponta dos pés. E que, adiante, parece nadar: Jacqueline, a dançarina-mergulhadora.
No final, a estátua de Etienne Marcel na praça ao lado do Hôtel de Ville, por onde
passaram. O Pont-au-Change, que leva ao Cais das Flores e ao Quartier. A Rua Gît-le-Coeur,
no caminho do Quartier, vindo pelo Pont-au-Change. Além das correspondências de
trechos do poema com etapas da caminhada, há outras, como na menção aos pombos-correio.
Jacqueline tinha um primo que já conhecia Breton, e funcionou como elo de ligação
entre ambos, pois lhe havia indicado seus livros, despertando nela o desejo de conhecê-lo.
Na época, o rapaz prestava serviço militar e estava ligado a um centro columbófilo,
uma criação de pombos-correio. Breton havia acabado de receber uma carta dele, em
um envelope timbrado com o carimbo desse centro columbófilo.
Essas são as correspondências mais flagrantes. Breton ainda fala de referências
a seus estados de espírito na época, ao desespero, a torpores, à sensação de ser
um joguete de forças desconhecidas (ele saia de uma paixão mal resolvida por Suzanne
Muzard, interlocutora do final de Nadja que também aparece em Os Vasos Comunicantes). Observa que,
caminhando lado a lado, só podia mesmo ver Jacqueline de soslaio, da forma como
está no poema. Relaciona imagens à prática da alquimia nas imediações da Torre Saint-Jacques.
Associa o grilo do poema a outro, figurante das passagens finais dos Cantos de Maldoror. Destaca a confluência
de paixões que recebem respostas de todo o Universo, das chácaras brotando inesperadamente
em Paris até a Via Láctea.
No entanto, comparações como essa, entre poesia e realidade, podem acabar
mostrando que inumeráveis encontros amorosos já foram anunciados por outras tantas
produções do lirismo romântico. Quantos apaixonados não tiveram experiências semelhantes
à revelação? Quantos já não se sentiram retratados, a si e a sua paixão, em um poema
inesperadamente descoberto ou redescoberto? Tantos, com certeza, quanto os que viveram
a sensação do sublime diante dos floristas da madrugada, vagando por Paris, São
Paulo ou qualquer outra cidade nas horas intermediárias entre o que se fecha, encerrando
as atividades, e o que vai se abrindo para o dia seguinte.
Na obra dos surrealistas, onde é frequente os textos conterem endereços reais
ao se converter a cidade em espaço mágico, como em Le Paysan de Paris e Liberté
ou L'Amour de Robert Desnos, Girassol pode ser o poema mais claramente antecipatório.
Mas não é o único texto de Breton com essa continuidade entre o escrito e o vivido,
dando-lhe um caráter de magia propiciatória. A mesma qualidade está presente em
toda a sua obra. Um exemplo é Nadja,
com seu final anunciando algo por acontecer, ao perguntar quem vem aí? E o próprio O Amor Louco também tem a característica extraordinária de
antecipar-se. Os acontecimentos nele descritos invertem a relação habitual entre
narrativa e realidade, o que levou Breton a sentir o mundo transformar-se em floresta de indícios, de sinais do que
estava por vir. Entre outros desses indícios, o trocadilho ouvido em um restaurante,
incluído no texto antes do primeiro encontro com Jacqueline Lamba em Montmartre: Ici l'on dine (aqui se janta); Ici l'Ondine ("aqui a Ondina", a ninfa das águas
representada por Jacqueline).
Ele ia descobrindo, nesses dias antecipatórios, objetos que pareciam apontar
além de si mesmos, despertando a sensação
do jamais visto, o oposto do mesmo, do lugar comum. Uma das ocasiões em que
isso aconteceu foi ao percorrer o Mercado de Pulgas, a feira parisiense de antiguidades
e velharias, em companhia do escultor Alberto Giacometti, que comprou um desses
objetos, uma estranha máscara gradeada. Breton, por sua vez, ficou com uma colher
de madeira com um cabo longo e um suporte, um apoio semelhante a um salto, dando
ao todo uma forma de sapato alongado. A máscara acabou acabou servindo a Giacometti
como peça de que precisava para completar uma das suas esculturas. E a colher, enquanto
Breton, já em sua casa, a examinava, transformava-se. Como em uma alucinação, ganhava
em brilho, a madeira assemelhando-se aos poucos ao vidro, até converter-se no sapato
de Cinderela, o sapato de cristal perdido da história da Gata Borralheira. Esta
imagem vinha lhe aparecendo em sonhos, levando-o a pedir a Giacometti que a modelasse.
Antes que o escultor o atendesse, a imagem do sonho aí estava, encontrada na realidade.
Assim, os dois objetos encontrados, a máscara e a colher-sapato, preencheram, sem
que eles o soubessem de imediato, desejos de seus possuidores.
Breton observa que a transformação da colher em sapato correspondia à metamorfose
da abóbora em carruagem na história da Cinderela. Um duplo objeto - colher, o instrumento
de cozinha que ela usava, e sapato de cristal, a ligação ou veículo para a transformação
em princesa, a revelação de sua identidade. Um no outro: o sapato existia na colher,
assim como a Gata Borralheira já era, antes de vir a sê-lo, a mulher eleita, o símbolo
da realização do amor único. Essa permuta equivale a um dos jogos que os surrealistas
ainda viriam a praticar, o "um no outro", aplicação do princípio da analogia,
da lógica poética pela qual cada coisa partilha propriedades de outras. O mesmo
princípio a que obedecem os sonhos e seus deslocamentos e condensações, aqui tomando
conta da realidade, ou da surrealidade.
Já a máscara comprada por Giacometti revelou-se um instrumento de guerra.
Outro poeta, Joe Bousquet, contou-lhes que havia sido usada na Primeira Guerra Mundial,
mostrando-se ineficiente como proteção, causando a morte de soldados. Breton não
chega a tanto, mas vê-se que a colher-sapato e a máscara gradeada são objetos complementares,
ligados à vida e à morte. Talvez, cada um deles, a uma das dimensões primordiais
ou instintos básicos, Eros e Tanatos.
No encontro, seja com a colher que é o sapato de Cinderela ou com a amada,
resolve-se a tensão entre a espera e a descoberta, o desejo e a realização. Um curto-circuito,
quando, observa Breton, é abolida a
sensação do tempo, com a embriaguez da sorte. Cresce então a consciência de
que existe esse homem vivo que, alguma
vez, tentou, ou tenta ainda reequilibrar-se sobre o traiçoeiro trapézio do tempo.
Essa é a manifestação do acaso objetivo,
o encontro entre duas séries causais diferentes, uma delas externa, a outra interna,
uma natural, a outra humana, provocando acontecimentos sob o signo da espontaneidade, da indeterminação,
do imprevisível ou até mesmo do inverossímil. O acaso, para Breton, é a forma da necessidade exterior se manifestar,
ao abrir caminho através do inconsciente humano.
Assim, ele apresenta sua interpretação materialista e freudiana do que é
atribuído por alguns à intervenção do sobrenatural, e negado por outros, que o reduzem
à mera coincidência em nome da lógica, do bom senso ou do saber científico. Mas
a sua é a voz de um poeta, e não de um psicanalista, cientista social ou filósofo.
Usar conceitos vindos do pensamento dialético e da psicanálise não o impediu de
querer chegar, no Segundo Manifesto
do Surrealismo, a um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário,
passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixem de ser
percebidos como contraditórios.
Um certo ponto do espírito - meta também dos místicos, ponto que figura, entre
outros lugares, no Zohar, livro
da Cabala do século XIII. Ambiguidade do poeta que trafega na zona cinzenta entre
misticismo e materialismo, recusa do transcendentalismo e religiosidade herética.
Capaz de dizer logo adiante, na terceira parte de O Amor Louco, que enxerga o símbolo da
busca surrealista, a síntese do racional e do real, em uma folha de sempre-viva.
Visão semelhante à de Jacob Boehme enxergando o universo em um prato de estanho,
e a tantos outros vislumbres de iluminados que viram o macrocosmos em um pedaço
do microcosmos, o todo em uma das partes.
* * *
Se os capítulos iniciais de O
Amor Louco são a crônica do tempo em
que, independentemente do que possa
ou não acontecer, a espera é magnífica, e se o trecho seguinte, da caminhada
por Les Halles e da evocação do Girassol,
é a celebração do encontro e o triunfo do acaso objetivo, então a continuação da
narrativa é a realização do desejo.
Por isso, nele sucedem-se páginas e páginas de poesia em prosa escrita a
partir de dentro, do interior da união amorosa. Como etapa de uma viagem a lugares
onde havia manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline chegaram às Ilhas Canárias
em abril de 1935. Lá, possuído pelo delírio
da presença absoluta, vê seu Jardim do Éden no Pico de Teide, ponto culminante
de uma das ilhas, Oratawa. Transcreve a música
sobreposta aos nossos passos sobre
praias de areia branca e de areia negra, passando por matizes e gradações da água
do mar, por uma vegetação de figueiras de raízes que mergulham na pré-história,
sempre-vivas com folhas refletindo a Unidade, eufórbias e pitangas, cactos de muitas
formas, e as flores, não mais as flores da feira no cais do Sena, breve irrupção
da natureza na cidade, porém agora flores ocupando tudo, até que os amantes se confundam
com elas:
A um sinal, que, por maravilha,
tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor fascinante e fatal. No interior da flor, a liberdade,a suficiência total que, naturalmente,
reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o mínimo
obstáculo. Dentro da flor, no seio
da oblíqua claridade. Dentro da nuvem, dentro do puro informe: quando Oratawa desapareceu, foi-se perdendo
pouco a pouco sobre nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós
que, a esses mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por
alguma nuvem.
Nuvens, lugar do encontro entre desejo e realidade: levantar os olhos daqui de baixo, da terra,
para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos.
É perceber que toda a questão da passagem
da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada.
Leonardo da Vinci pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem
as formas que viam desenhar-se nelas. Nuvens de Oratawa ou manchas na parede, telas
onde se projetam imagens do desejo: O
homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir,
com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar antecipadamente
a esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existência comporta um todo
homogêneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos
mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.
A projeção do desejo é invocação do acaso objetivo: Uma vez vencidos todos os princípios
lógicos, virão então a nosso encontro - se tiver valido a pena interrogá-las - as
forças do acaso objetivo, que nada
querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra
escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo. A resposta à interrogação da nuvem
é a revelação do amor único. Encontram-se no interior da nuvem os amantes, os Romeus
e Julietas míticos ou históricos. Onde
poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador
do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor? Se há algo que se assemelha ao interior da nuvem
ou do nevoeiro, é a madrugada. São zonas cinzentas, intermediárias, onde formas
se dissolvem, contornos se confundem, e cada coisa pode ser outra, permitindo à
imaginação desenhar seus objetos que, animados pela energia de Eros, passam a compor
a realidade.
* * *
O amor e a morte, o lado claro e o lado sombrio da realidade caminham lado
a lado como as metades da esfera do Tao, o Yin e o Yang. O trecho final de O Amor Louco é uma carta, escrita a sua filha, para ser lida
em 1952, quando tivesse dezesseis anos. Texto para o futuro, complemento ou posfácio
do livro. Mas a história dos encontros de Breton com Jacqueline e das intervenções
do acaso objetivo termina, depois da homenagem ao desejo entre as nuvens de Oratawa,
com um capítulo sombrio, onde a tônica dominante é a morte. Breton não menciona
a complementaridade de Eros e Tanatos, mas a torna presente no início do livro,
com a história do par de objetos encontrados, a máscara militar e a colher-sapato,
e nesse final, com o episódio da "casa das raposas". Mudando de estilo,
passa da fusão de reflexão filosófica e poesia em prosa a uma narrativa realista,
bem descritiva.
Ele e Jacqueline estão, já em 1936, passando alguns dias no litoral da Bretanha,
terra de origem de sua família e de seu sobrenome. Em uma tarde de mau tempo, caminham
por uma praia deserta e perdem-se na desolação. Sentem que nunca mais conseguirão
sair dessa extensão sombria, para chegar a algum lugar povoado e tomar uma condução
que os devolva ao ponto de partida. Breton vai sendo tomado por uma crescente depressão.
Não conseguem mais falar-se. O mal-estar chega ao máximo ao passarem por uma casa
desabitada. Vê-a cercada de grades metálicas. Atravessam um riacho que dá em um
costão de praia, um monte de pedras e, logo adiante, uma antiga fortaleza abandonada: O fosso aberto entre nós cavara-se ainda
mais, parecia tão alto como aquele rochedo onde o ribeiro que acabávamos de atravessar
se perdia. De nada servia esperarmos um pelo outro: impossível trocarmos uma palavra
que fosse, passar um pelo outro sem desviar a cabeça e estugar o passo.
Aos poucos, à medida que se afastam da casa e do desvio com o riacho, a paisagem
se abre. A sensação opressiva que os havia invadido também passa. Ao refletir sobre
o que havia ocorrido, Breton percebe que o mal-estar e o momento de ruptura eram
delirantes. E logo fica sabendo que a casa por onde haviam passado fora o local
de um crime famoso na região. Seu dono, Michel Henriot, a quem pertencia o trecho
até o velho forte, um tipo degenerado, filho do procurador-geral da região, havia
assassinado sua mulher, para ficar com o dinheiro do seguro. Retornando ao lugar,
Breton repara que a casa é rodeada por um muro alto de cimento, e não, conforme
havia visto pela primeira vez, por uma rede metálica, o cercado das raposas. Subindo
no muro, vê então as redes metálicas que guardavam as raposas: Foi, portanto, como se no dia 20 de julho (a data em que passou por lá pela primeira vez) esse muro se me tivesse apresentado transparente.
Como leituras para a temporada no litoral norte francês, Breton e Jacqueline
haviam trazido dois livros emprestados por um amigo. Um deles, A Raposa de Mary Webb (mais tarde filmado, história de
uma mulher que se identifica com raposas e acaba morta pelo marido, um caçador).
O outro, A Mulher Transformada em Raposa de David Garnett. A crise no relacionamento
deles não se encerrou ao saírem dos domínios da casa das raposas, como é dado a
entender em O Amor Louco. Logo teriam
uma separação prolongada, para acabarem rompendo de vez em 1943. E as causas da
separação não se resumiram à passagem pelos arredores de uma casa mal-assombrada.
Esta pode ter precipitado o que estava latente. Mas, assim como o encontro deles
já estava escrito no poema do girassol e em outros textos, aquele pesadelo estava
antecipada em uma escolha de livros: É
preciso reconhecer, quer se queira, quer não, que esses dois livros por certo desempenharam,
na elaboração do que para nós foi esse longo pesadelo acordado, um papel mais que determinante e decisivo.
Claudio Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. O texto aqui presente é a
íntegra do capítulo # 8 do livro Volta (Iluminuras, 1996), livro assim apresentado
pela editora: "Ao narrar acontecimentos e examinar ideias e símbolos da esfera
do mágico e do oculto, como o acaso objetivo dos surrealistas, refaz a seu modo
o mito da viagem órfica que culmina em uma revelação, e se contrapõe à banalização
e vulgarização que esses assuntos vêm sofrendo. Com seu tratamento erudito, porém
sempre atraente desse tema, evita a mistificação, as explicações fáceis e o proselitismo.
Recupera seu fascínio e restitui sua densidade poética." Contato: cjwiller@uol.com.br.
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