Há imagens que nos
tocam, não muitas, que nos acompanham por toda a vida. O que acontece quando
nos saltam aos olhos pela primeira vez é tão poderoso que seu efeito retumbante
dificilmente deixará de ser sentido. Podemos tirá-las da mente, distraídos com
nossos afazeres, podemos suplantar o choque com a tinta branca do tempo. Mas o
certo é que voltamos a elas, quando elas próprias não se precipitam,
atropelando nosso espírito, trazendo à flor da pele o mesmo arrepio, a mesma
sensação de vertigem. Permanecemos ligados a elas por uma interrogação em
aberto, por um elo estranho, enigmático, sempre restabelecido, sem jamais
perder o impacto.
Tal o efeito
causado pela fotografia de um suplício chinês no espírito e na obra de Georges
Bataille. Foi o psicanalista Adrien Borel com quem Bataille se analisava, por
indicação de Leiris, que lhe deu, em 1925, o negativo que teve "um papel
decisivo" na sua vida, semelhante ao causado pela descoberta do riso ou da
obra de Nietzsche, aponta Michel Surya em sua biografia.
Em 1905, na
China imperial, um jovem chamado Fou Tchou Li foi considerado culpado pelo
assassinato de um príncipe, Ao Han Ouan e submetido ao terrível suplício dos Cem
pedaços. Por clemência (sic) do imperador, a vítima não foi queimada como
era previsto, mas esquartejada viva em cem pedaços. Dois franceses assistiram à
execução e a documentaram. Um deles, Georges Dumas, publicou uma das fotos em
1923, em seu Tratado de psicologia. Dumas intrigara Bataille
observando que, por piores que fossem o meticuloso trabalho do carrasco e as
dores da vítima, o que se via em seus olhos revoltos era uma expressão de
êxtase. É bem verdade que o supliciado encontrava-se sob efeito de injeções de
ópio, não para mitigar seu sofrimento, como se poderia supor, mas para
prolongá-lo ainda mais. O enigma estava criado.
Recentemente,
jornais do mundo inteiro estamparam em suas primeiras páginas a impressionante
imagem do jogador de futebol Ronaldo que acabara de sofrer uma rotura de
menisco. Sua expressão de dor é atroz. A dor impressa com todas as tintas da
efeméride, um apêndice tremulante na poluição indiscriminada de nossos códigos
visuais. O corpo reage à dor e se converte em signo. Mas, enquanto tal, é pura
exterioridade. E na hipertrofia da imagem sobra o efeito de um evento sem véus,
tão nu que se volatiliza com a nossa compaixão e nos exime de tudo.
Fou Tchou
Li, ao contrário, parece sereno em sua imagem, concentrado, imperturbável. Na
sequência das quatro fotos hoje conhecidas, vemos porções de seu corpo
arrancadas, membros decepados, a pele em carne viva, o sangue escorrendo das
chagas multiplicadas por toda a superfície. A despeito de tudo, seu rosto conserva
uma expressão bizarra, desafiadora, como se não fizesse parte da cena: um rosto
fora de cena, de lugar, de sentido. Na mais contraditória das imagens, a jovem
vítima parece não sentir o que sente. A aparência do supliciado numa das fotos
é a de um sujeito que não se coaduna com o corpo. No entanto, era justamente
esse corpo que ia aos poucos sendo impiedosamente retalhado pelos carrascos
imperiais.
O que se
esperava é que ele no mínimo gritasse: só um urro medonho e contínuo, uma sequência
suplicante de gemidos, horrivelmente patética, uma voz esgarçada que fosse aos
poucos se descolorindo e secando, poderia dar conta do que se passava com o
corpo, poderia dar uma leve medida de que ele de fato estava pagando por seu
crime. Afinal, o ópio lhe havia sido ministrado para isso: prolongar seu
sofrimento a fim de forçá-lo a viver na própria pele seu maior e derradeiro
papel. Só assim seu crime estaria em dia com a justiça (não esquecendo que Fou
Tchou Li, de casta inferior, matou um ser de outra estirpe, nobre e soberano).
Só assim o teatro da punição consumaria plenamente seu sentido, pois tal
espetáculo necessita da dor e sua linguagem, seu kabuki mórbido, dilacerante. O
suplício só faz sentido se revive a essência dos sacrifícios: a anulação do
corpo num rito em que o sujeito se vê despossuído, em que o indivíduo é
desapropriado de si mesmo para expiação geral de sua espécie. Mas nada disso
parece acontecer. Apesar da frieza dos carrascos, de seus semblantes
impassíveis e mal disfarçados na resignação do ofício, malgrado a ferocidade
contida e ao mesmo tempo laboriosa, como uma fúria de uniforme, apesar de tudo
isso, nem eles mesmos parecem entender tal desprendimento e ousadia. A postura
de Fou Tchou Li, contraditoriamente, é a de uma vítima deslocada de contexto,
que não participa de seu suplício. Apesar de totalmente dominado, inteiramente
à mercê dos algozes, ele não parece resignado. Não porque não aceitasse a
própria pena. Sua revolta não é a explosão de um sentimento de inocência, uma
reação dos que se acham os últimos do mundo, os quais, sentindo-se abandonados
por Deus, chamam a si mesmos em defesa própria como heróis ou justiceiros. Fou
Tchou Li parece alheio a tudo. Em sua ausência, é uma vítima que se rebela em
silêncio. Seu silêncio, que na mística significa atitude de contemplação diante
do supremo, aparta-o do mundo e de si mesmo. E talvez seja esse um dos efeitos
do êxtase: a desfiguração momentânea de uma consciência que sofre.
De fato, a
dor de Fou Tchou Li parece exceder tudo o que um ser humano pode suportar; e
quanto a sua expressão, no dizer de Dumas, nunca se viu num rosto humano nada
comparável. Sabe-se que ao tomar contato com a fotografia (obteve mais tarde as
outras que compõem a série), Bataille jamais se separaria dela, só vindo a
publicá-la em 1961, juntamente com as outras, um ano antes de morrer.
Dados os
temas de Bataille, como o erotismo, o riso, a morte, o êxtase, o impossível, de
alguma forma presentes nesta sequência de fotos, compreende-se porque estas se
tornaram uma obsessão para ele.
Em sua obra,
Surya assinala o trecho em que o carrasco parece monopolizar sua atenção:
"Estou obcecado pela imagem do carrasco chinês da minha fotografia em seu
trabalho de cortar a perna da vítima na altura do joelho"; em outro,
Bataille se refere à vítima: "O jovem e sedutor chinês [...] entregue ao
trabalho do carrasco, eu o amava". Em certa passagem o sadismo
domina a cena: "Meu propósito aqui é ilustrar um lugar fundamental: o do
êxtase religioso e do erotismo – em particular do sadismo"; mas em outra,
o sadismo é inteiramente descartado: "... eu o amava de um modo no qual o
instinto sádico não tomava parte: ele me comunicava sua dor, ou antes, o
excesso de sua dor, e era justamente isso que eu buscava, não para me deliciar,
mas para arruinar em mim aquilo que se opõe à ruína".
O que é
intolerável em Fou Tchou Li é que ele parece conseguir o impossível: escapar à
execução da pena na própria pele. Ele não é deste mundo, pensam todos, é a
encarnação do mal. Seu êxtase não é uma via de acesso a Deus, caminho para a
salvação e possibilidade de aperfeiçoamento de uma criatura marcada pela
incompletude e imperfeição, mas uma demonstração de força dos poderes malignos,
uma aberração humana inadmissível. Fou Tchou Li não recusa sua pena, nem mesmo
a morte. O que ele recusa é a dor. Tal recusa ou contestação
implica diretamente numa troca de posturas no cerimonial do sacrifício. Há uma
oposição de gestualidades em que a estética do suplício é substituída pela do
êxtase. O suplício depende deste teatro em que o sofrimento tem de ser visto
pelo outro como um espetáculo que faz soar seus signos, e que é uma espécie de
eco dos poderes e das leis. É preciso que cada um sofra no espírito o que o
outro sofre na carne para extirpar o germe indesejável da transgressão. Mas Fou
Tchou Li é uma vítima ausente e, em certa medida, invisível. Com ele o suplício
parece falhar (há até um ar de deboche em seus olhos, numa das fotos), o que
nos faz supor que isso teria aumentado a ira dos carrascos. Porém, a julgar pelas
fotos, eles parecem meros funcionários no rigor de seu ofício. É o que chama a
atenção de Bataille. Carrascos evocam seres abrutalhados e insensíveis que
executam suas vítimas com total indiferença. Talvez porque sejam apenas
máquinas de tortura, instrumentos tutelados pelo poder. Num corpo em que a
vontade é o simples dispositivo de uma ordem, e o desejo, ecoe ou não a favor,
não tem menor efeito pessoal, toda ação se redime, se esgota nela mesma, no
cumprimento de um dever alicerçado numa vontade maior e soberana. Não é pouco
para dignificar um carrasco: ser um braço do Império, movido a sua única e
exclusiva vontade, que se despersonaliza precisamente na investidura de seu
gesto, e ao refletir a lei e sua verdade como um machado reflete a luz solar, também
se consagra e se liberta de toda culpa.
No artigo
"Reflexões sobre o carrasco e a vítima", Bataille afirma que não
podemos ser humanos sem ter percebido em nós a possibilidade
do sofrimento, assim como a da abjeção. Mas não somos apenas vítimas em potencial
de alguém, somos também carrascos. Os carrascos são nossos semelhantes. Não que
venhamos a sê-los, ou que aprovamos suas ações na surdina. Ou mesmo se não o
fazemos por ter "o braço fraco", como no poema de Henri Michaux. O
que temos em comum é a consciência das possibilidades do horror, em que a
transgressão é apenas vizinha de nossas ações (sem contar, é claro, nossos
pequenos delitos cotidianos). O que nos aproxima são cruzamentos súbitos,
arrepios momentâneos, que vez por outra nos atingem no extremo de nós mesmos,
com a descarga elétrica de uma ideia absurda. Nesse sentido estamos tão perto
de um carrasco quanto de uma vítima. O que nos distingue não é somente questão
de atitude, mas também de circunstância. É bem verdade que o mal praticado contra
alguém depende de outros fatores, mas não é totalmente inadmissível que
venhamos a nos surpreender com a violência de nossos atos. De qualquer forma,
ser carrasco ou vítima, nos coloca além de nossos limites. Tais papéis no
entanto assinalam vias de excesso que ao menos nos sãofamiliares. O
conhecimento do Mal, aliás, reforça em nós o sentimento da humanidade por
viabilizar no fundo maior compreensão de nós mesmos. Em tese distancia-nos das
ações perversas transubstanciadas em exercícios de reflexão para espíritos
livres. O entendimento do Mal nos torna mais sensíveis e solidários uns com os
outros. A ética se beneficia disso assim como a política. É o que, por sinal,
Sade nos ensina com muita propriedade.
Para
Bataille o trabalho do carrasco é degradante em sua negação do gênero humano.
Ele não percebe (até por ignorância) que sua covardia aumenta na mesma
proporção da violência. O carrasco humilha a si mesmo e a sua vítima ignorando
que ao destruir com a vítima a própria ideia de humanidade, atinge no fundo a
si mesmo. É o que leva os libertinos sadianos a se aniquilarem a si mesmos e a
seus cúmplices, como notou Blanchot. Não havendo nada mais de extraordinário em
destruir seus objetos de deboche, tentam perpetuar o prazer da libertinagem
tornando-se vítimas uns dos outros.
As fotos do
suplício chinês correspondem a quatro momentos na ordem sequencial da execução
num crescente de violência silenciosa, que a superfície plana da fotografia
parece em certa medida atenuar, não fosse uma forma horripilante de nos colar
fisicamente à cena. Congelando o suplício no tempo, a fotografia acaba por
lançá-lo num espaço contínuo paralelo a qualquer época.
Olhar uma
fotografia é de certo modo atar os tempos, presente, passado e futuro, ou
dissolver nos olhos sua linha de demarcação compulsória. Na série de fotos os
contemporâneos do suplício encontram-se, de um lado, imediatamente atrás da
vítima, de onde, num esforço visível, tentam acompanhar o melhor possível
inclinando as cabeças e o tronco. Na posição em que estão, no entanto, não
podem ver o rosto de Fou Tchou Li. Concentram-se, antes, na movimentação de
seus executantes e no próprio ato da execução. Do outro lado, que deveria
contornar a cena, aglomeram-se provavelmente aqueles que a veem de frente. É
nesta posição que estão os franceses (autores das fotos) e nós mesmos.
Encontramo-nos, pois, entre estes observadores privilegiados que embora estejam
vendo o que os outros não podem, estão eles mesmos ausentes da cena. Fou Tchou
Li está sendo executado num círculo que gira e desaparece no tempo, para
reaparecer no segmento que lhe acrescenta o nosso olhar. Somos assim atirados
em presença da execução por um círculo que nos alcança colando-nos à crua
realidade da imagem e fazendo-nos girar sobre ela: a roda viva do tempo. Em
certa medida não há grande diferença entre nós e o público que se espreme junto
ao fotógrafo. Além de termos quase a mesma perspectiva, o que nos separa, o
tempo, está sobremaneira indistinto na mesma zona de invisibilidade em que
mergulhamos e virtualmente engrossamos a massa dos curiosos.
A dimensão
fotográfica é ambígua. Ela recorta um pedaço de tempo em que se passa dentro
uma ação impressa quimicamente e que nos é transmitida em imagem. A fotografia
é ela própria fragmento de tempo, fragmento ilustrado de uma realidade
condensada numa dimensão plana que nos serve de acesso e limite. Se este
recorte nos aparta de sua realidade, ele também readquire vida ao colar-se ao
dispositivo integrador do espírito em que se encontram niveladas as dimensões
espaço-temporais reconvertidas pela imagem nos circuitos do cérebro.
Falando
sobre cinema, Deleuze a propósito comenta não haver diferença nenhuma entre
coisa, imagem e movimento. Ver uma imagem, nesse sentido, ainda que fotográfica,
é transpor para a dimensão da vida sua realidade intrínseca, colocando a imagem
em movimento mediante nossos sentidos e dispositivos psíquicos. Não é para isso
que serve a fotografia?
*
A imagem
extática de Fou Tchou Li poderia estar presente entre as várias que compõem a
fotomontagem de Dalí intitulada Fenômeno do êxtase. Trata-se
de um verdadeiro mosaico de imagens de rostos extáticos. O procedimento aqui,
de origem cubista, e utilizado em outros movimentos artísticos como o futurismo
e o dadaísmo, consiste em reagrupar imagens de contextos distintos sob uma
mesma rubrica temática e orientação crítica. No conjunto destacam-se belas
imagens fotográficas de rostos humanos e estatuários em meio a objetos como
cadeiras e agrupamentos de orelhas. Há expressões realmente enlevadas de grande
concentração extática. Alguns semblantes têm as pálpebras semicerradas,
deixando escapar algo de sua irradiação interna na luz que distende levemente
os traços culminados em magnífica expressão de beatitude. Não há dúvida de que
algo se passa dentro dessas cabeças a um só tempo errantes e imóveis,
receptáculos de uma operação gloriosa que lhes revira os sentidos. Seu
parentesco com o sono termina com essa cumplicidade risonha que as feições
extáticas denunciam à maneira de uma máscara (a não ser que sejam o efeito mal
disfarçado de um sonho radiante). E tal máscara é única, inconfundível. Como
diz Lacan diante da escultura de Bernini, O êxtase de Santa Teresa:
"basta olhar para ela para saber que ela goza". Embora seja uma
experiência interna, o êxtase possui esta particularidade exterior: uma
fisionomia. É um signo que joga com todos os efeitos de fundo e superfície. No
extremo também guarda parentesco com a nudez.
Toda nudez
tem luz própria. Diante dela ninguém se equivoca. Ela nos
"desequilibra", mexe com nossos sentidos, apesar de seu desgaste pela
indústria do erotismo. Diante de alguém nu dificilmente somos indiferentes. O
nu jamais é algo menos alguma coisa (como a roupa); pelo contrário, é um objeto
com uma aura irresistível que mantém sua singularidade, embora a nudez não seja
novidade a ninguém. O corpo nu, como o rosto extático, são telas de captura do
olhar. Diante deles o olhar é acionado, e com ele todo o mecanismo do espírito.
A diferença é que a nudez não tem rosto e o êxtase não tem corpo, a despeito de
sua imagem corpórea. E se a nudez de alguma forma lembra o êxtase, este
restitui ao rosto a aura da nudez perdida.
Na
fotomontagem de Dalí, também há rostos com olhos abertos detendo
indefinidamente o centro nervoso do êxtase. As lânguidas feições parecem
conservadas numa câmara mortuária de gelo (suas cabeças) ao mesmo tempo
suspensas na substância etérea do gozo. Podemos ouvi-las dizendo: "o que
sinto é indescritível e único".
Por tudo que
concentra de angústia e de gozo, por tudo que sugere de ruína do tempo e do
sujeito convertidos em máscara irreal de textura diáfana, a imagem do êxtase é
um emblema perfeito dos estados de graça no limite das forças e possibilidades
humanas, que o excesso da vida desenha, na obscuridade, em ponto de fuga com a
morte. De tal arrebatamento pode-se extrair esta fórmula, de resto familiar a
todo vivente: o êxtase tem olhos abertos como a morte. Eis a
descrição plástica de algo que ultrapassa a si mesmo. Essa condensação
indefinida, esse olhar magnífico que ao congelar-se e ao perder-se na
atemporalidade, na linha de dissolução dos espaços, parece ter encontrado seu
ponto de repouso e perfeição supremos. Embora acene com um retorno energético
(e enigmático) à vida, é a tela sublime em que a morte se insinua como algo que
encontrou seu destino e nele depôs suas forças. Mas é a morte que brinca de
morte. Que goza da morte. A morte que ao espelhar a morte ri de si mesma. O rosto
extasiado assim aprisiona o sujeito para dissolvê-lo em pura imanência.
Se há
qualquer sinal de bondade nestes rostos, ou servidão voluntariosa, entrega
total dos sentidos, é porque nesse instante o olhar, no ponto extremo da
miragem, já confunde vida e morte embaralhando as faces do ser e do nada. Esse
olhar que perdoa tudo, que se redime de tudo, que não odeia nem ama, que está
acima do bem e do mal, que parece compreender tudo e tudo aceitar com a
resignação suave dos alentos búdicos, reúne em si mesmo, além de todas as
semelhanças e diferenças, além de sua ancestralidade mais remota, a
ambivalência trágica do divino. Algo de Deus não está embutido no êxtase, este
supremo objeto da mística? Mas também a face angustiante do desconhecido, do
poder misterioso e malévolo que desintegra e converte ao nada? "O olho por
onde vejo Deus é o mesmo por onde ele me vê", diz Angelus Silesius, porque
o fato de compartilharmos o mesmo órgão indica o quanto dependemos um do outro.
O olho por onde vejo Deus e ele me vê nos serve a ambos para nos comunicar um
ao outro nosso amor e nosso ódio. E, no extremo, não é sugando nosso olhar que
ele nos mata, não é fechando as pálpebras, que o matamos? E esse ponto
luminoso, agente da minha dissolução e tela de seu espetáculo, essa mancha,
esse quiasma, me converte em algo exterior a mim mesmo, uma
instância que não sou e que no entanto me define no que sou de mais radical, me
glorificando no exato momento em que me separa de mim.
Se
pudéssemos acrescentar o impressionante rosto de Fou Tchou Li à fotomontagem de
Dalí iríamos sobremaneira enriquecê-la. Seu êxtase nasce da dor e é fruto do
excesso do suplício. Talvez seja este o mais legítimo dos êxtases, no que ele
tem de angústia e júbilo. Conforme o paradoxo de Blake: "lágrima demais
leva ao riso, riso demais leva à lágrima". Não é assim que os extremos se
tocam, se entremeiam, permutando seus pólos de atração magnética, suas
ressonâncias, num mesmo corte fisionômico?
Assistimos à
execução de Fou Tchou Li entre aqueles que veem seu rosto. Conhecemos as
reações dos que não podem vê-lo de frente. Como teriam reagido os que
assistiram a cena do outro (do nosso) lado?
Sabemos ao
menos como reagiu Bataille. Ele chegou ao êxtase. Um êxtase que leva a outro
numa reação em cadeia.
*
As teorias
de um autor via de regra podem representar-se por palavras-chave, temas
recorrentes, figuras. Bataille não é exceção. Mas o apelo visual de seu
pensamento é notável. Talvez porque, na esteira de Nietzsche, avesso à
metafísica tradicional, tenha se sentido atraído por enigmas da realidade
sensível, forçando passagem pelos limites da experiência. Com isso, levou a
filosofia a exceder seus próprios limites ao explorar os campos sinuosos do
erotismo e da morte. Onde, a propósito, a filosofia se cala, repercute o mais
estrondoso silêncio.
Vista deste
modo, a erótica de Bataille, assim como sua moralidade, ou até sua
"mística", podem ser pensadas nas arestas de uma estética em que se
cruzam diversas estratégias de revelação do corpo, visando pôr a nu seu lado
mais violento e sagrado (por isso recalcado), ou para usar o termo de Julia
Kristeva, para dar destaque aos "poderes do horror" de que a
civilização, sobretudo a judaico-cristã, sempre buscou ocultar sob as
reticências de um sudário, mas que a arte, a literatura, fazem emergir de um
modo ou de outro perante olhos atônitos.
O suplício
de Fou Tchou Li não é uma mera imagem no pensamento de Bataille. É um modus
operandi que o coloca em cena, mostrando como ele funciona
de maneira trágica, onde os elementos corporais investem contra a racionalidade
instituída.
A verdade do
suplício encerra uma beleza terrível. Desde seus primeiros artigos
sobre o sacrifício na célebre revista Acéphale, até seus
posteriores trabalhos sobre o tema, Bataille parece considerá-lo sob uma ótica
em que estaria presente um constante desejo de transfiguração estética, que o
permitiria ver na realidade cruel do suplício uma atividade da qual o gozo do
olhar participa, elevando-o a uma dimensão sublime. Daí a aproximação entre poesia,
arte e erotismo em sua obra, e, em decorrência, o sentido de uma frase como
esta: "a poesia leva ao mesmo ponto que o impossível". Surgem
os seres horripilantes de André Masson insuflados por impulso dionisíaco nas
águas-fortes que ilustram o texto de Bataille. Se as lentes da arte deformam a
vida é apenas para colocá-la sob foco, ou para criar suplementos sobre ela,
como diria Deleuze, relevando o que há de sublime no banal, ou de transgressor
numa frase, traço, pincelada.
A tragédia
grega, a propósito, seria uma forma sublimada dos antigos sacrifícios. Eis uma
boa razão para o uso das máscaras. O teatro então se ergueria, sua
luminosidade, das sombras e ruínas de uma origem perdida, em que morte,
erotismo, violência e terror faziam parte de um mesmo ritual religioso, que a
civilização teve de readaptar convenientemente (a ponto de quase esquecê-lo)
para a sobrevivência e perpetuação do modelo que escolheu para si mesma. Nesse
sentido, a arte recoloca em cena a vida em sua nudez mais crua, isto é, a atividade
humana e seus efeitos, suas deformações, sob o impacto do erotismo, que difere
da mera sexualidade animal. A arte teria este caráter de trazer à lembrança o
fio de um acontecimento terrível e repeti-lo para uma determinada comunidade. A
arte como ritual. Não por acaso, um mecanismo análogo ao dos sacrifícios.
O sentido
último do erotismo é a fusão, a supressão dos limites. Conforme a fórmula de
Bataille, "o erotismo é a aprovação da vida até na morte". Não apenas
pela inexistência de dois lados, vida e morte (embora haja uma fronteira), nem
porque a morte seja uma ocorrência fundamental da vida, mas sobretudo porque a
morte revela da vida uma faceta que ela esconde e que a morte, principalmente a
violenta, traz à tona e permite celebrar. É como se a morte possuísse o segredo
da vida, como se este segredo contivesse sua verdade explosiva. É o que para
Bataille parece ser desvelado em rituais ou práticas excessivas de puro gasto,
de pura perda, como o sacrifício, o êxtase, a morte violenta, a poesia. Praticas
improdutivas, mas
que se
conduzem às cegas por uma necessidade interna, por um dispositivo indomável,
que sempre incomoda a cultura por revirar-lhe as entranhas.
Para
Bataille, o homem está condenado à tragédia, posto que é este o mundo que criou
para si. A tragédia é uma arte, isto é, um artifício por meio
do qual ele enfrenta a morte, mobilizado pela angústia. Por isso a angústia é
necessária ao homem. Sem ela, diz Bataille, não haveria propriamente a
experiência da morte; morrer seria "fácil". Os animais, que vivem em
estrito regime natural e estão livres da angústia e de outras
"armadilhas" do eu, desconhecem o trágico. Para enfrentar
a morte, o homem se afasta da natureza criando um mundo artificial cuja forma
mais acabada é a tragédia. E é justamente no mundo artificial, trágico, que
nasce o êxtase, assim como todo objeto de êxtase é criado pela arte.
Também para
Blanchot a experiência do artista é uma experiência extática, sendo igualmente
uma experiência da morte. O artista, como o poeta, reencontra as coisas em sua
pureza abstraindo-as de seu sentido utilitário. Habitando-as em sua inocência
perdida ele participa de seu ponto de vista, introduzindo em seu olhar o reviramento próprio
do êxtase e da morte. O olhar do poeta transforma as coisas e é transformado
por elas, reencontrando-as à deriva de onde a civilização as
deixou. O olho por onde as coisas entram é o mesmo por onde sai o sujeito. Daí
sua morte, mas também seu êxtase.
O êxtase
nasce da experiência interior, onde "esses jorros [...] são de uma
plasticidade desarmante". Eis porque o suplício de Fou Tchou Li, como bem
frisou Michel Surya, é uma das fontes relevantes do pensamento de Bataille.
Para o autor
de Madame Edwarda, o essencial sempre escapa ao homem, ao sujeito
que a ordem construída pelo mundo da racionalidade e do trabalho limita às
dependências do possível. O homem é aquilo que lhe escapa e que ele busca em
desespero até as lágrimas, até o riso, pois quando o homem se desespera, só o
riso alivia. Num mundo sem Deus, o riso é a única saída. O que o homem não é
ele vivencia quando transgride realizando uma experiência com os limites,
experiência que Bataille denomina de "experiência interior", distinta
da dos místicos como Teresa de Ávila e João da Cruz, na qual há necessariamente
uma relação de transcendência, um sair de si para o outro, que é Deus. Toda a
ascese mística se realiza com vistas numa salvação. No pensamento ateu de
Bataille, a experiência é uma imanência, um mergulho no próprio corpo, na sua
sujeira, podridão e morte, uma sondagem de seus limites em busca de superação.
Daí a experiência interior ser definida como "uma viagem no limite do
possível do homem", uma viagem nas trevas do não-saber, sem tábua de
salvação.
De fato, é
na transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela. Bataille
chama essa atitude de soberana. O homem soberano recusa os limites.
Todas as suas ações levam a marca do excesso. Ele é destemido no que diz
respeito à morte e a tudo o que a acompanha, como a angústia, o terror, o sofrimento.
E é o medo que geralmente assegura a paz laboriosa, a vida limitada dos
indivíduos. Mas o soberano não é um homem qualquer. Ele pode ser santo ou
criminoso, isto é, alguém que se excede no prazer e na dor, que sacrifica ou se
sacrifica. Sua atitude só pode ser maligna para o mundo da racionalidade que
exclui o impossível. E para Bataille "toda vida profunda está carregada de
impossível". Por isso os soberanos, santos e assassinos são malditos. E
essa é a condição de Fou Tchou Li: ser todos eles ao mesmo tempo. Assassino,
transgressor, também se torna vítima ao ser sacrificado. O sacrifício visa o
sagrado. É uma forma de experiência com o sagrado. Com isso, a vítima, objeto
sacrificado, imediatamente torna-se sagrada. Quem sacrifica possui o sagrado quando
toca a vítima. Enfim, o sacrifício é uma forma de reviver os elementos
essenciais que a religião dispôs enquanto sagrados. É uma forma de negação do
corpo, de anulação do indivíduo. Fou Tchou Li se torna soberano quando se
submete ao sacrifício. Ele é soberano pela maneira com que encara o sofrimento,
excedendo-o. Sob uma tortura sem limites, ele parece extasiado.
Na ocasião
em que viu pela primeira vez as imagens chocantes deste suplício, Bataille
conheceu "um valor infinito de transbordamento". Escreve em As
lágrimas de Eros: "diante de tal violência – não posso, ainda hoje,
conceber outra mais demente, mais horrível – senti-me tão arrebatado que
cheguei ao êxtase".
Mas o que é
o êxtase? "Eu queria saber explicar, com o favor de Deus, a diferença existente
entre união e arroubo, ou enlevo, ou vôo que chamam de espírito, ou
arrebatamento, que são uma coisa só. Digo que esses diferentes nomes se referem
a uma só coisa, que também se chama êxtase". Frases de uma santa, Teresa
de Ávila, que conforme ela mesma conta em sua autobiografia, o Livro da
vida, e os testemunhos das freiras carmelitas que a acompanhavam, dizem
respeito a algo realmente vivido. Em matéria de êxtase, é preciso ouvir aqueles
que o experimentaram: os santos. Há o comentário saboroso de Lacan no Seminário,
livro 20, mais ainda. Em uma viagem a Roma, o psicanalista
alude à célebre estátua dizendo que ao se olhar para ela, não se pode negar que
Santa Teresa está gozando. "E do que ela goza? É claro que o testemunho
essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não
sabem nada dele". A identificação do êxtase ao gozo deve-se ao
fato de que o gozo se confunde com a experiência extática, ao menos no sentido
de que fala Teresa de Ávila.
Pode-se
tentar descrever o êxtase, assim como o gozo, mas ambos são ocorrências que não
se reduzem ao discurso. Por isso são aberturas para o impossível, como a
poesia. "A um dilaceramento tão extremo e profundo, só o silêncio do
êxtase responde" (Bataille).
Quando Lacan
afirma que não se pode saber nada sobre o gozo, toca o ponto fundamental da
questão. Para Bataille, ao menos, nada se sabe sobre o êxtase porque ele
pertence ao desconhecido. Isso fica claro numa fórmula de sua experiência
pessoal: "o não-saber comunica o êxtase". Ou seja,
originário de uma comunicação desta natureza, o êxtase só pode ser obscuro.
Nesse ponto tanto a experiência interior de Bataille como a experiência dos
místicos coincidem, embora não se deva esquecer que no caso desses últimos o
arrebatamento depende de uma predisposição divina. Em ambos os casos, no
entanto, o sujeito pode até aspirar ao êxtase, mas jamais invocá-lo
pessoalmente. Ele é, pois, um "evento", uma "ocorrência"
involuntária ao sujeito que o experimenta.
Em um dos relatos
de A experiência interior, Bataille narra uma experiência marcante
ocorrida num monastério francês, na ilha de Wight, em 1920, "sob uma
suavidade lunar". Enquanto caminhava, "na rua mesmo, em meio à
obscuridade, meu coração jorrando sangue se abrasou. Conheci um súbito
arrebatamento".
Em seu
livro O conhecimento de Deus, o teólogo medieval Guillaume de
Saint-Thierry, sustenta que o êxtase pode durar 30 minutos e ser descrito como
uma "união com Deus". O corpo, indefeso, é tomado pelo transe a não
há nada a fazer senão sucumbir à experiência, já que ela é uma exigência
divina.
Por mais que
tentasse "evitar" o êxtase, talvez por seu gozo destoar das práticas
ascetas do sacerdócio, Teresa de Ávila jamais o conseguira. Tal estado de
enlevo, que provoca no corpo certo enrijecimento, é definido pelos místicos
como uma "iluminação". E o que eles veem?
De acordo
com a teologia medieval, o êxtase é indescritível. E qualquer tentativa em
tentar revivê-lo "parecerá morta". O arrebatamento é um estado que se
atinge (ou antes, se é atingido por ele), vazio de qualquer conteúdo
intelectual, mas que proporciona um gozo que se anuncia "perfeito e sem
fim". Uma analogia com o orgasmo é possível. É o que arrisca Lacan. O
orgasmo é físico, o êxtase espiritual (ao menos para os místicos). Ambos no
entanto têm uma duração, são fenômenos sujeitos ao tempo. Mas, enquanto tais,
são formas de estiramento temporal, que acabam alterando as próprias formas da
percepção. Em todo caso, são formas de percepção que atravessam a consciência
alterando-a de algum modo, muitas vezes anulando-a momentaneamente. Talvez seja
essa uma das razões pelas quais tal experiência não possa ser descrita em
palavras. Devido sua natureza, ela rejeita e ao mesmo tempo excede o
discurso.
O êxtase é
um acontecimento de "outra ordem", que não deixa traços recuperáveis
na memória (quem sabe ele precisa desenvolver outro tipo de
memória para ser reconstituído, como o próprio gozo e a criação poética). Os
místicos o descrevem como um sentimento ou estado de beatitude que penetra os
sentidos e os eleva ao possuí-los. Mas que por passar à deriva dos dispositivos
intelectuais não se deixa apreender, comprometendo seu entendimento na
linguagem. Enfim, é um estado de bem supremo que se esvai com a experiência e seu
gozo e só faz sentido enquanto dura. É uma ocorrência entre parênteses.
O principio
do arrebatamento místico: a mortificação da carne leva a alma em busca de Deus
provocando em todo o corpo uma vibração indescritível. O êxtase é vontade do
criador, e pode ser entendido como uma de suas formas de manifestação através
da qual o místico se expressa indefinidamente. É como se ele por alguns
instantes participasse da natureza divina ao gozar interiormente. O gozo do
êxtase é uma dádiva de Deus.
Segundo
Saint-Thierry, há duas fases no fenômeno do êxtase: a da suavidade penetrante
que invade a alma e a da presença de Deus propriamente dita, que faz da alma o
teatro de suas operações sublimes. No êxtase místico, ao contrário do que
ocorre com a sua apropriação pelo pensamento de Bataille, há um encontro com
Deus, uma "iluminação" que leva por sua vez a um aperfeiçoamento do
amor e de sua projeção sobre o outro em forma de caridade, piedade, etc.
Já no êxtase
pagão de Bataille se passa outra coisa. A experiência extática é uma espécie de
reação do corpo a uma demanda interior, fruto de um "desequilíbrio"
inevitável do sujeito que adere involuntariamente a este desencadeamento. Seu
movimento responde a uma exigência de outro domínio, sem parte com Deus, que
por isso mesmo o desarma e arruína. É o que se poderia chamar de um modo de ser
"às avessas", que o sujeito experimenta enquanto processo que
engrandece o corpóreo, isto é, que rouba de Deus para o corpo o que ele tem de
mais grandioso. Fou Tchou Li era um criminoso. Seu êxtase adquire assim uma
aura demoníaca. Em não havendo transcendência (o que Bataille rejeita), seu
enlevo é uma imersão nos sentidos do corpo arrebatando-o de seus próprios
limites. Essa divinização do corpo é em si mesma demoníaca enquanto negação de
Deus. Ela é obra do Mal, ou simplesmente consequência da condição humana. Deus,
a religião, são formas que catalisam o excesso para espiritualizar o corpo e
assim expurgar suas forças.
O que é o
excesso? O excesso nos desconcerta. Ele leva ao máximo a intensidade trágica. O
excesso assinala o limite onde o pensável não é mais pensável mas excedido,
onde todo julgamento se frustra, e se perde na indiferença. Nesse movimento o
sujeito esvanece numa intolerável angústia que o faz gritar.
O excesso
termina e extermina o pensamento, mas também é o impulso decisivo que move a
literatura e as artes. Em Bataille, o excesso faz parte da própria
efervescência da vida gerada por um movimento de energia presente em todas as
épocas e culturas. É a parte maldita. Os homens não se limitam a
produzir. Também são governados por uma necessidade incontrolável definida como
um princípio de perda. Assim o luxo, as guerras, os cultos, os jogos e
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (a que desvia da finalidade
genital), representam um fim em si mesmos. Bataille denomina de gasto ou
dispêndio (dépense), estas formas improdutivas contrárias aos modos de
produção das sociedades utilitárias. A propósito, o que poderia ser menos
improdutivo que o êxtase?
O sujeito
extático procura um objeto, pois de outra forma não avançaria no êxtase.
"O objeto na experiência é primeiramente a projeção de uma perda de si
dramática. É a imagem do sujeito". O sujeito do êxtase procura um objeto
que em última análise é ele mesmo vivendo o drama de sua dissolução. O que o
sujeito extático assiste é no fundo o sacrifício de si mesmo.
O êxtase é
uma experiência que nasce no sujeito por obra da arte (ou do desejo), mas que o
consome em seu movimento. Como diz Bataille, não há no êxtase nenhum desejo de
perseverar no ser, por isso ele não tem nenhuma consistência e se dissipa. O
êxtase, por esse motivo, pertence à mesma categoria das atividades de livre
gasto de energia, de pura perda, como o erotismo, a poesia, o heroísmo, etc.
Ele é gerado pelo desconhecido sob forças excessivas que acometem o sujeito e o
colocam além de seus limites, diante do impossível.
Não sendo
uma experiência reflexiva, o êxtase é um processo ambíguo. Seu mecanismo é
semelhante ao do gozo físico. Para os místicos é um "ganho" pelo que
proporciona aos sentidos que participam de uma experiência divina. Mas é um
"ganho" que se adquire em processo de pura perda do sujeito. Há nele
uma percepção do "interior" em alheamento convulsivo, e nisso é uma
experiência interna exclusiva do sujeito. O êxtase pode até ser
"provocado" do exterior, ser atingido "de fora", como diz
Bataille, pelo fato do sujeito não reunir em si mesmo suas disposições
necessárias.
Há uma
exigência que leva o sujeito ao êxtase, e que via de regra tende de um modo ou
outro aos extremos, conforme os apelos da vida e as reações que suscitam no
indivíduo. Uma exigência do impossível? Por isso, em concordância com a
mística, ninguém se "prepara" para o êxtase. Se ele reúne
características de um ritual, é um ritual sem projeto, um processo de que a
racionalidade não participa. O êxtase "não faz sentido". O que ele
conserva do ritual talvez seja um efeito, ou mesmo uma "aura". Como
diz Bataille, o sujeito que procura o êxtase entra necessariamente em desacordo
com ele. "O sujeito conhece o êxtase e o pressente: não como uma direção
voluntária vinda dele mesmo, nem como a sensação de um efeito vindo de
fora". Ele é algo que arrebata o sujeito utilizando-o enquanto veículo
para uma espécie de "preenchimento em vazio". A diferença é que no
caso dos místicos este vazio recebe o nome de Deus, por representar uma via de
reconstrução metafísica de um objeto inexistente. Tal vácuo existencial é o
lugar de Deus na religião, posto que o criador deve ocupar o lugar a que as
criaturas não têm acesso por imperfeição ou restrição natural.
"O
êxtase nasce de um desequilíbrio", afirma Bataille. Como entender esta
frase? É preciso lembrar o solo trágico em que o êxtase nasce. Assim, ele é uma
espécie de exigência decorrente do afastamento do homem em relação à natureza.
O homem necessita representar para si mesmo a tragédia de seu desespero causado
sobretudo pela angústia diante da morte, pelo sofrimento do eu em sua ferida
incurável. A paixão de Cristo, este sacrifício "feliz" no dizer de
Bataille, é emblemática nesse aspecto. Ela promete a salvação. A eucaristia é
uma forma de atualizar o sentido trágico do sacrifício de Cristo ressaltando no
homem a marca de sua imperfeição (vale dizer: sua culpa).
Não é outro
o sentido da ascese para os místicos. A ascese é uma promessa de êxtase, que
envolve etapas ou graus a serem atingidos no caminho da salvação, e que culmina
com a expiação da culpa.
Produto de
um mundo trágico, demasiado humano, fruto do artifício, o êxtase é uma forma de
compensar o desequilíbrio da alma mortificada pela angústia do sujeito.
Eis o que
parece ter fascinado Bataille no suplício de Fou Tchou Li: a ideia de que o
êxtase é o efeito de uma experiência que ao contestar uma realidade pode
transformá-la. A possibilidade de uma dor maior que de tão profunda se
transforma em outra coisa (não é preciso lembrar de novo o aforismo de Blake).
E com isso a percepção fascinante de que o excesso é o caminho mais curto entre
dois extremos. De que tudo nessa matéria pode ser questão de grau. A
intensidade é um fenômeno reversível que remove fronteiras.
Por falar em
excesso, os temas de Bataille são recorrentes porque são aspectos da vida
humana que se abrem uns aos outros: sacrifício, êxtase, erotismo angustiado,
transgressão e morte. Mas aspectos que levam o indivíduo a exceder seus limites
e vislumbrar o impossível.
Uma palavra
ainda sobre os místicos. A prova de que erotismo e êxtase são termos
inseparáveis é dada pela própria mística, que ao falar de assuntos espirituais ou
de algo inexprimível não dispensa a linguagem erótica.
Nesses
textos sobejam metáforas carnais (beijo, esposo, esposa, amante, amor
ardente...) para descrever o êxtase místico e a união da alma com Deus. Neles,
vocábulos e expressões como êxtase, arrebatamento, o beijo do Esposo, designam
a mesma coisa. O "beijo dos esposos" é uma metáfora utilizada com
frequência pelos católicos medievais para descrever a união da alma com Deus.
Isso, de certo, não por hipocrisia, ou ingenuidade, mas por não poderem, quem
sabe, avaliar direito a ação do erotismo na linguagem. Em se tratando de
linguagem (ainda mais na poesia) a contaminação entre erotismo e palavra é
inevitável. Inevitável, sem dúvida, porque desejável. É a vocação das palavras.
Elas trazem a marca do corpo e o emblematizam. Dessa tentação não se livraram
os místicos. Ao invocar imagens de um contexto erótico para explicitar conluios
entre o homem e deus, eles se traem por subestimar a força erótica da
linguagem. Mas não todos. Santo Agostinho, que sabia das coisas, percebeu antes
muito bem (e temeu) o erotismo que emana das palavras.
*
Na última
página de seu último livro As lágrimas de Eros, em que esboça
uma história do erotismo através das imagens, Bataille volta à cena do suplício
chinês. Seu propósito, como ele mesmo diz, é "ilustrar o êxtase religioso,
o do erotismo, e em particular, o do sadismo". Sade certamente não
assistira ao suplício de Fou Tchou Li, mas cenas semelhantes povoaram-lhe o tempo
todo a imaginação e os livros. Por isso lhe valia tanto a solidão. Sem ela, diz
Bataille, "a via extática e voluptuosa não é possível". A solidão,
afinal, obriga o corpo a ramificar-se além de si mesmo. Na falta de outros
corpos, ela faz com que o sujeito isolado fabrique virtualidades corpóreas que
preenchem seu vazio na imaginação e nos sonhos. Sem essa condição uma obra como
a de Sade seria inconcebível.
Na ocasião
em que se iniciara no Yoga, Bataille discerniu, na violência da imagem do
suplício chinês, "um valor infinito de reviramento (renversement)". E
"fui tão revolvido que ascendi ao êxtase", escreve em A
experiência interior.
O termo
francês "renversement", podendo também ser traduzido por
"revolvimento", "derrubamento", "desabamento",
"queda" , "ruína", "desarranjo" ou
"desordem", dá bem a medida do efeito do êxtase no espírito. O olhar
extasiado é um olhar revolto. A expressão "monde renversé" (mundo às
avessas), aponta para um horizonte onde as coisas estão invertidas ou funcionam
sob outra lógica, e até, para todos os efeitos, sob lógica nenhuma.
Quando
analisa a função do olhar enquanto um dos objetos pulsionais, Lacan o descreve
como um operador do desejo que deforma a visão de quem vê. O olhar é um órgão
do desejo, que opera a seu comando, reconstruindo a cena a sua maneira.
Distingue assim "ver", que é função do olho, de "olhar",
objeto da função escópica. Se a luz se propaga em linha reta, ela também
refrata, se difunde, inunda. Há diversidades essenciais que escapam ao campo da
visão. Elas não estão na linha reta, diz Lacan, mas no ponto luminoso, no ponto
de irradiação, que também é o ponto de transbordamento da íris, descrita como
uma taça. Tal efeito, por assim dizer, tira o olhar do campo balizado pelo
modelo cartesiano da visão, ou seja, arranca o olhar da consciência. O sujeito
perde a noção do que vê. E o que vê se perde na indefinição causada pelo estilhaçamento
luminoso que se forma na retina, ou seja, se perde na indecibilidade do olhar.
Por isso, o que se quer ver nunca está onde se olha. Nesse ponto a visão é
dominada por uma espécie de cegueira luminosa em que o ato de ver perde toda a
função submetendo-se às investidas do desejo liberadas pelo olhar na função
escópica. O terreno está fértil para gerar fantasmas.
É mais ou
menos isso que Sade sugere ao leitor de seus romances. "Há coisas que
exigem véus". Os "véus" são colocados justamente para que se
veja as filigranas das relações. Quando em A filosofia na alcova Dolmancé
se tranca com Augustin para realizar certas fantasias indescritíveis é porque
nesse instante eles se encontram numa zona de indiscernibilidade, onde o que
importa é jogar com regras obscuras que escapam à lógica da visão. Sade extrai
dessa zona os objetos mais caros da libertinagem. A eles só têm acesso os
libertinos que continuamente sondam a imaginação para realizar crimes ainda
mais atrozes. Imaginação e desejo são vasos comunicantes. Fontes que se
alimentam o tempo todo. Em Sade tornam-se ainda mais promíscuos. É lá que ele
nos manda olhar. Lá, onde o olhar inevitavelmente esvanece, cego pelo gozo, e o
desejo é a lei.
Refém do
desejo, num processo semelhante ao da anamorfose, o olhar cumulado causa uma
inversão da perspectiva, provocando o tal "reviramento" ou quiasma.
O olhar é visto então como "o avesso da consciência". Ao se ver
vendo-se, o olhar é identificado ao objeto que causa o desejo. O olhar como
tela de si mesmo. "O sujeito do olhar se mostra onde não pensa".
Reencontramos aqui o motor do êxtase para Bataille: o não-saber.
De acordo
com Bataille, o êxtase pode ter duas fases. Na primeira, o sujeito se encontra
diante de um objeto (cena, paisagem, pessoa...), incluindo uma imagem
perturbadora como a do suplício chinês. A operação se monta, se encaixa, num
campo ótico (cadre optique) em que o olhar libera o investimento do
espírito. O ponto, "mesmo apagado, [....] dá forma ótica à
experiência". E "desde que há o ponto, o espírito é um olho". O
momento também é marcado pela "renúncia às crenças dogmáticas"
enquanto o olho do espírito atua sob o influxo das forças obscuras do desejo.
Em Bataille o desejo é a origem dos momentos do êxtase, tal como no amor. Toda
esta etapa parte do campo do possível em direção ao campo do impossível, onde
propriamente tem efeito a segunda fase. O ponto culminante da primeira fase se
dá com a supressão do objeto na base da pirâmide visual. O limite da
perspectiva é também o da consciência e seu alcance no campo do visível. O
sujeito está próximo ao ponto de congelamento do êxtase,
momento em que, perdendo a consciência, o olhar revolve e mergulha no
desconhecido. É um momento de grande angústia para o sujeito, tão bem definido
na exclamação de Teresa de Ávila: "morro de não poder morrer". A
morte parece mais palpável que nunca, mas também se torna interminável. É a
face eterna do gozo e a mais obscura. O "escoamento" do sujeito no
êxtase é o mesmo que ele sente na angústia e no erotismo. O sujeito se encontra
à beira do nada, pressentindo que será engolfado por ele. Com o esfacelamento
do objeto e o mergulho do sujeito no desconhecido, surge a noite enquanto
objeto abissal.
O que é a
noite? Ela não é um objeto de contemplação serena, que predispõe o sujeito ao
devaneio do espírito. A noite em Bataille é o abismo em que o sujeito, perdendo
o significado, mergulha no desconhecido. A noite o arrasta como a águia
arrebata a serpente do deserto, sem saída, diante do imponderável, na forma
avassaladora do Aberto.
A noite
representa a dissolução da fronteira espaço-temporal que separa o exterior do
interior. O sujeito está em toda parte e em nenhuma flutuando no vazio. Na
noite do não-saber o sujeito é suprimido, etapa culminante do êxtase.
Contemplando a noite, diz Bataille, não vejo nada, não sinto, não amo.
Permaneço imóvel, congelado, absorvido por ela. É uma paisagem de terror
sublime, uma visão indefinida do excesso. Bataille tenta descrevê-la com
algumas imagens blakeanas como "terra aberta em vulcão", "céu em
chamas". Mas a noite ultrapassa o mundo das imagens revoltas do campo do
possível. Atravesso uma profundeza vazia e uma profundeza vazia me atravessa. A
noite é uma espécie de diafragma ou abertura para a morte. O objeto do desejo
humano, diz Bataille, é a noite do desconhecido. Tal objeto, aliás,
a poesia leva às últimas consequências. A poesia evoca a noite em sua
experiência com o silêncio. É o que já está em Baudelaire como palavra de ordem
da modernidade: "buscar o novo no fundo do desconhecido".
O movimento
da poesia, como o êxtase, vai do conhecido ao desconhecido. A poesia também se
abre ao não-saber, como o êxtase e o erotismo, e vislumbra o impossível. A
noite é objeto da experiência extática assim como o é da poética.
A
noite é o êxtase, conclui Bataille, estando ambos fundidos no
pronome ELA (lembrando que o termo extase, em francês, é feminino).
Aliás, a corrente semântica se fecha com esse outro par indissociável, a mulher
e a morte, personificações constantes em sua obra.
A noite é o
êxtase, ou seu objeto desvelado em negro. Para que ela "sacie
a sede" do êxtase deve fazer do eu uma imagem em negativo, seu espelho
negro, operada no avesso da consciência por forças obscuras ao comando do
impossível. O olhar se torna um quadro negro em que o êxtase é
uma espécie de inscrição em branco, com toda a ambiguidade
da expressão. Ou seja: um gesto que, se deixando ver, se inscreve no nada e que
só tem efeito enquanto dura. Essa vidência obscura ou cegueira lúcida revela ao
olhar suprimido (a seu vazio, portanto) o inexorável abismo do homem: "na
noite só há a noite". No fim o cume é inacessível, diz Bataille em Sobre
Nietzsche: enquanto não deixamos de ser homens, ele permanece velado.
Seria o
êxtase um ensaio para a morte? Talvez um ensaio em que a experiência da morte
(ou sua antecipação) se desse num cruzamento faiscante com a do erotismo num
movimento de excesso e transgressão. O que Bataille chama de método na
experiência interior é justamente o jogo múltiplo das forças que submetem o homem
e anulam seu saber. A dívida com Nietzsche é aqui considerável. Exacerbação de
forças, transmutação de valores, moral do soberano, vontade de chance. Nada
define melhor o homem que sua relação com a perda. A atividade humana em geral
é prova disso. Mas são as que vivem do gasto inútil ou da livre despesa, como a
poesia, as artes, a guerra, o erotismo, que melhor exprimem a condição humana.
O que define o homem são seus fluxos. Mas também o medo deles. O trabalho é uma
forma de regulação econômica dos fluxos. É uma tentativa de controle dos
gastos, uma norma contra o excesso (o que por vezes mascara o trabalho
excessivo dos homens e a sua força produtiva sugada pelo capitalismo). Mas onde
há lei há transgressão. São elementos de um mesmo processo. Os fluxos manam do
homem e convergem de volta para ele. O homem mesmo é um fluxo entre outros,
muitas vezes à contracorrente. Entre suas formas de vazão encontram-se a
embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia, o sacrifício, a poesia, o
êxtase...
Dilacerados pela
angústia, santos ou não, assassinos e vítimas (como Fou Tchou Li), são levados
a exceder os limites. Num desses movimentos são arrebatados pelo êxtase, que os
atinge no ponto extremo da consciência em que ela se deixa governar por forças
desconhecidas. Este estado demasiado humano é também sua negação e
ultrapassagem, ou contestação, como quer Bataille. Os limites foram
rompidos, o ser está no centro de uma ferida que se alastra por toda parte. Uma
ferida exposta na noite radiante de um corpo que flutua sobre o nada. A
constatação terrível se faz. O fundo do homem se revela nesses instantes. Só
lhe cabe rir.
*
Diante da
foto do suplício chinês, fechamos o círculo do tempo, ainda que provisoriamente
só acrescentemos um segmento na espiral. Fou Tchou Li não perdeu seu fascínio.
Seu olhar permanece um enigma. Também é impossível deixar de notar que ele tem
o rosto de Teresa de Ávila. Nesse ponto são praticamente idênticos. O que quer
que contemplem em seu enlevo os ultrapassa e a tudo o que pensaram, sentiram e
fizeram. O que veem (e dificilmente podemos ver) talvez não seja coisa alguma,
senão a pura cristalização de uma perda, mas no que ela tem de mais intenso e
divino: a forma indescritível do sublime.
Como diz
Bataille: "é preciso ser Deus para morrer".
Contador Borges (Brasil, 1954). Poeta,
ensaísta, tradutor. Contato: borgesmenor@yahoo.com.br. Agulha Revista de Cultura # 9. Fevereiro de 2001. Página ilustrada com
obras de William Blake (Inglaterra), artista convidado desta edição.
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009) | 05 de 10
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | William Blake
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o
projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura
teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
Visite a nossa loja
Nenhum comentário:
Postar um comentário