Uma das escassas conversas que mantive
com Manuel Ramos Otero teve lugar na cafeteria de um hotel de Rutgers em uma
dessas ocasiões quase folclóricas em que os porto-riquenhos nos reunimos para
falar de nossa identidade graças aos fundos aportados pelo império. A perguntas
suas disse que não, que não escrevia contos e, mais ainda, que pensava que ser
poeta e ser narrador requeria estruturas mensais muito diversas. Manuel
argumentou contrariamente à minha opinião. Então entendi que tínhamos duas
concepções muito diferentes da poesia e, em geral, da literatura. E com efeito,
falar da poesia de Ramos Otero resulta um tanto arbitrário pois se trata de um
autor que questionou profundamente a noção tradicional de gênero literário. Sua
poesia transborda o leito do vero e irrompe, com maior ou menor fortuna, no
território de uma prosa narrativa invadida também pelas formas da escritura
ensaística. Agora me limito, no entanto, a falar da poesia em um sentido mais
estrito e formal, entendendo-a como a língua do verso.
Manuel Ramos
Otero nos legou dois livros de poemas: El libro de la muerte,
publicado em 1985, e Invitación al polvo, que apareceu
postumamente, em 1991. Embora seja certo que ninguém concede a Manuel Ramos
Otero um lugar notável na promoção de contistas que surge em Porto Rico ali
pela década de 70, a verdade é que El libro de la muerte, por si
só, não lhe assegurava um posto semelhante entre os poetas do mesmo
período. Invitación al polvo, no entanto, o converte em um poeta
destacado. Em suas páginas encontramos alguns dos poemas mais belos e
comovedores da recente poesia porto-riquenha.
A poesia de
Manuel Ramos Otero poderia ser catalogada como um discurso lírico-dramático de
amor, morte e solidão. Nestes poemas, a solidão é a consequência de um amor
sempre precário e fugaz cujas implicações sentimentais nunca estão em harmonia
com a agressividade ideológica e moral de seu discurso. Se, como expressão
ideológica, esta poesia é uma vigorosa reivindicação dos direitos amatórios da
homossexualidade, como voz pessoal é quase sempre a comunicação dolorida e
melodramática de uma pena de amor fundada na precariedade da experiência
amorosa e no abandono da amante. O poeta assume a solidão como a condição de
sua voz; fala a partir da solidão, recorda e recrimina, com nostalgia, um
amor já fracassado. Também a partir da solidão pratica uma figuração da
morte. Na poesia de Ramos Otero, a morte ocupa duas dimensões fundamentais: é,
por um lado, a metáfora do amor defunto; mas é também certeza literal,
pressentimento e anunciação.
Em El
libro da la muerte, o falante solitário se instala em uma casa de
balaústres frente ao mar da rua Norzagaray e a partir dali contempla os
cortejos fúnebres e carnavalescos que se dirigem ao cemitério de mármore
italiano da Velha San Juan. Nessa sacada da Norzagaray, o poeta encarna uma
Penélope que aguarda pelo regresso de Ulisses enquanto tece em suas veias a
heroína do poema. Ou em Tsuchigumo, o japonês coxo e suicida que comparece a
seu próprio enterro vestido com um kimono de bromélias. Ou na Mulher do Mar, a
mítica Clara Gardenia Otero do conto homônimo. Ou no vampiro Nechodoma que ama
a estátua de Palmira Parés em pleno panteão. São máscaras do poeta que
compartilham o espaço carnavalizado de um texto que celebra, ante a ausência do
amor, a metáfora da morte. Por isso Tsuchigumo é o marido de sua imagem.
El libro de
la muerte está
organizado em torno do binômio recorrente da morte e da vida. O movimento
cíclico de ambos extremos gera versos como: "Tsuchigumo morreu novamente à
tarde" ou "Estou a um ano exato de minha primeira morte" ou
"Por vezes me enterrando em diferentes tumbas". Essas ressurreições
não remetem, no entanto, à morte alegre do carnaval, mas sim a uma visão
desolada do amor; evento irremediavelmente finito e falido que ressuscita sem
castigo após cada desencanto. Assim entendidos, Eros e Morte são os
protagonistas da poesia de Ramos Otero. Da cópula desta parelha semântica
nascem expressões como: "…vão crescendo tumbas no leito" ou
"queimando-se o que manda seu sêmen sobre o féretro" ou "meu
noivo não retornou de sua tumba". A parelha de Eros e Morte também
fundamenta o imaginário grotesco do livro que se manifesta em enterros
festivos, macabras festas patronais, danças mortuárias e cenas funéreas. No
entanto, a dissimulação, a teatralização e o contínuo disfarce do discurso
lírico em El libro de la muerte conduz a uma escritura, senão hermética,
ao menos de muito difícil leitura e, talvez, pouco gratificante para muitos
leitores.
Invitación
ao polvo, obra
póstuma de Ramos Otero, surpreende de maneira muito distinta. Mesmo que a
coerência deste livro se articule sobre os mesmos elementos de Amor, Morte e
Solidão que sustentam o anterior, os procedimentos expressivos e os conteúdos
semânticos em um e outro livro variam significativamente. Invitación al
polvo está estruturado de conformidade com duas vertentes do significado da
palavra polvo, a que remete ao destino da carne após a morte e, em sua acepção
popular, a que remete ao coito. Resulta então atinado o emprego, à maneira de
epígrafe, do terceto final do famoso soneto de Quevedo: "Seu corpo
deixará, não seu cuidado; / serão cinza, mas terá sentido; / pó serão, porém pó
enamorado."
A primeira
parte do livro se intitula, precisamente, De polvo enamorado.
Integram-na vinte e nove poemas que contam e cantam uma história de amor. Os
detalhes, ainda que dispersos, são explícitos: é a história do amor entre o
emissor do texto, um poeta porto-riquenho, e o receptor da mensagem poética, um
pintor (de paredes) cubano, chamado José. Trata-se do clássico esquema
comunicativo da poesia amorosa onde um emissor apaixonado celebra a plenitude da
experiência erótica passada, reflete sobre a cruel natureza do amor e recrimina
ao receptor seu abandono. Este esquema clássico, no entanto, subverte-se pela
condição homossexual dos protagonistas.
A história
de amor se apoia na alegoria antilhana configurada pela décima de Lola
Rodríguez de Tió que começa: "Cuba e Porto Rico são de um pássaro as duas
asas"; apoia-se também em um texto epígrafe de Luis Cernuda: "…unidos
vais, / formando um único ser de dois impulsos, / como o pássaro feito por suas
asas". O primeiro poema do livro inaugura a alegoria com estes versos:
"Cuba e Porto Rico são / as duas efêmeras asas do anjo do amor. /
Cuba e Porto Rico são / dois homens suados exilados ao sol. / Cuba é todo
infância / todo sonho do que já não é. / Porto Rico é o barco sempre ancorado
ao contrário". A metonímia converte os amantes em Antilhas, a metáfora
transforma seus corpos em ilhas, suas vidas em veleiros, sua existência em mar,
seu amor em périplo e seu fracasso em naufrágio. Um fundo de boleros tropicais
musicaliza a história de orlas melodramáticas: "…Éramos boleristas do
mesmo ardil: vereda tropical / e névoa do riacho, um desvelo de amor sob /
Vênus, ondas e areias de uma nave sem rumo, beijos / de fogo para uma canção
desesperada, eu era uma / flor e tu meu próprio eu. Com lágrimas de sangue /
quis escrever a história que agora escrevo com / sangue, com tinta de sangue do
coração…"
O poeta
apresenta-se como um gozoso reincidente na cruel experiência do amor:
"Torno a cantar - diz - deixando para trás a morte / somando-me à horrível
ternura do amor"… Assim inaugura, outra vez, o ciclo fatal, o trânsito até
a metáfora da morte do amor ou, como diz o poeta lindamente, o lento funeral da
fortuna. Em um verso conceituoso, que é um dos melhores do livro, o falante
abandonado se indaga, referindo-se aos estragos espirituais que o amor produz
no indivíduo: "Por que é que alguém se perde para ir de dois em
dois…?" Já conhecemos as conotações morais, escatológicas e sentimentais
do verbo perder-se em espanhol. Este perder-se, no entanto, somente acontece no
plano do estritamente pessoal. No plano, digamos, ideológico e social, o poeta
entende que a prática do proibido pela maioria moral não é uma perda, mas sim
uma ganância da liberdade humana. assim, no poema 25, um dos melhores do livro,
distingue claramente entre seu discurso e o da normalidade moral que cataloga o
homossexualismo como traição à família, loucura antinatural e violação das leis
divinas. Em outra parte, o emissor recrimina ao receptor sua falta de valor
para viver desveladamente:
Onde vais,
havanense, vestido de anjo sincero?
[…]
Tens mais
cara de aguaceiro do que ganas de livre voo
e mais de
operário conformado do que de emplumado guerreiro.
Qual
liberdade arrebata tua pomba da paz, se ser
um pato
selvagem não é digno de teu disfarce? Para onde
vais,
havanense, que a vida não é o mar nem tua vida é
um veleiro?
Que mais vale para mim ser barquinho de valeta
do que ser
metal de cata-vento fugindo de sua própria sombra.
Ser homem
não é vestimenta nem gesto que se elabora
porque o ser
não se evapora com o que diz a gente.
[…]
Este livro,
portanto, reitera o duplo testemunho de um discurso moralmente agressivo
misturado com um intimismo confessional e dolorido. Porém é, precisamente, a construção
desse falante sofredor e contraditório o que salva esta poesia do discurso
leviano e panfletário de muita literatura que assume, por ofício de moda, a
defesa da marginalidade.
Digo
construção para destacar o caráter de artifício literário, de máscara, do
falante sofredor e abandonado na poesia de Ramos Otero. No poema intitulado
"La caixa chinesa" o falante se refere a seus sucessivos amantes e
imagina o amor como um sistema de caixas em cujo receptáculo final "vive,
escreve e sonha / um escaravelho cínico, o monólogo da solidão. / …" Esse
escaravelho é o poeta, mais exatamente, o personagem que o poeta já se sabe de
memória: "o solitário / o desamado / o venenoso escorpião / que suga em
sua peçonha / o jugo magistral de seu teatro." A consciência da escritura
- com suas múltiplas máscaras e seus gestos teatrais - é o único remédio para a
solidão: "Amar-te apenas me envenena / antídoto de luz é minha
poesia". O discurso poético põe em cena um espaço utópico onde o amor
alcança, finalmente, a perfeição e onde os prejuízos sociais não prevalecem:
"Quando tiveres ido sem cheia nem bolero / quando regressares ao silêncio
de outra sinfonia / quando te tornares um homem de papel / um espírito apanhado
no poema / …recordaremos o que nunca ocorreu / nos amaremos como nunca nos
amamos / remexeremos em tumbas de tristezas / até encontrarmos a liberdade
intacta / para que o tempo restaure o perdido." A poesia é a urna
cinerária do amor e a casa da fênix.
Por este
caminho, Ramos Otero chega à revalorização das formas poéticas tradicionais.
Surpreende gratamente descobrir que em seu último livro o romance tropical dos
amantes está contato, em boa parte, em fluidos octossílabos rimados que o poeta
dissimula com hemistíquios e enjambement. Além do mais, o espaço
fechado do soneto, escrito com fortuna vária e com ressonâncias clássicas,
serve de cripta e mortalha aos ossos do amor. O número 29 de Invitación
al polvo é, conforme meu gosto particular, o melhor poema escrito por
Ramos Otero. É um poema de plenitude e maturidade, monólogo do solitário que
discorre pelas ruas de Nova York e da memória em busca do amante e do sentido.
Este último o encontra, não no amor, mas sim na escritura e na prova
irrefutável do poema: "O presente é perfeito. - diz o final do poema - É
tudo o que tens. / descobriste a ponte que dá sentido ao tempo / que pensavas
perdido. A prova é o poema / que escreveste." É um poema de contidos
versos livres que fluem moderados pela precisão sintática. Este retorno aos
módulos rítmicos tradicionais é duplamente significativo em um escritor que por
ocasiões vangloriou-se do desenfreio expressivo e da anarquia formal. Parece-me
que se trata de um reconhecimento do rigor específico da poesia. ao final de
sua carreira literária, Manuel Ramos Otero quis declarar-se, antes de tudo,
poeta.
Em La
víspera del polvo, segunda parte do livro póstumo, o signo da morte sofre
uma transformação dramática. A morte perde seu anterior sentido figurado. Já
não se trata da metáfora do amor defunto, mas sim de um signo inaugural que,
marcado pela enfermidade, expressa o espanto dariano de amanhã estar morto.
Entre os treze poemas que conformam esta seção do livro há alguns
verdadeiramente comovedores, escritos a partir da terrível lucidez da iminência
de uma morte que chega pelo correio: "Esta manhã chegaram os resultados /
de minha morte e ainda não abro / o envelope (o ataúde, deveria dizer)."
Ramos Otero assume a consciência da literalidade da morte antes e sobretudo
como escritor: "Os escritores - diz - morremos todos / em um féretro de
carvalho forrado / de tela, como um museu de fumaça / habitado por dragões de
papel / com rosto de bicha caribenha". A morte, além do temor a uma
insônia infinita ou à possibilidade de uma viagem a uma superpopulação do
quarto mundo, significa o máximo de consciência possível para o escritor. A
morte é agora o signo final e contagioso, símio cósmico inscrito desde sempre
na constelação de Câncer. A partir de sua certeza, o poeta escreve suas cartas
finais cabais aos amigos e, sobretudo, essa comovente missiva a Deus que é o
poema "Nobreza de sangue", cuja ironia de conteúdo subverte os ecos
da "Oração por Marylin Monroe", de Ernesto Cardenal.
Também a partir dessa certeza o poeta assume a representação em sua própria carne das mais escarnecidas minorias: os drogados, os homossexuais, o heterossexuais da África Central, os pacientes de AIDS. A consciência da morte é a situação limite que permite ao escritor, ao homem de papel que não é leviano, reafirmar-se no credo estético e moral que animou sua escritura: "Quero que saibam que estou desorbitado, / que sempre sigo sentado no balcão do sonho / cuspindo no deus da pureza…" Morrer como escritor entranha também um acerto de contas com o leitor e a visão da posteridade através da poesia: "Que mais querem de mim senão este livro aberto / que a todos assegura o clímax de seus penas" … É também a ocasião de prever com lucidez irônica as homenagens póstumas: "Na próxima terça-feira vou de viagem. / Não é necessário falar de mal agouro. / Regresso ao pão, ao mar e ao aguaceiro. / para umedecer com pós minha homenagem." "…Eu que provei as uvas negras do delírio / … jamais pensei em chegar ao templo roído / dos bons costumes, nem à glória de andar / de boca em boca apodrecido e respeitado por jograis / que alteram a seu capricho o melodrama."
Também a partir dessa certeza o poeta assume a representação em sua própria carne das mais escarnecidas minorias: os drogados, os homossexuais, o heterossexuais da África Central, os pacientes de AIDS. A consciência da morte é a situação limite que permite ao escritor, ao homem de papel que não é leviano, reafirmar-se no credo estético e moral que animou sua escritura: "Quero que saibam que estou desorbitado, / que sempre sigo sentado no balcão do sonho / cuspindo no deus da pureza…" Morrer como escritor entranha também um acerto de contas com o leitor e a visão da posteridade através da poesia: "Que mais querem de mim senão este livro aberto / que a todos assegura o clímax de seus penas" … É também a ocasião de prever com lucidez irônica as homenagens póstumas: "Na próxima terça-feira vou de viagem. / Não é necessário falar de mal agouro. / Regresso ao pão, ao mar e ao aguaceiro. / para umedecer com pós minha homenagem." "…Eu que provei as uvas negras do delírio / … jamais pensei em chegar ao templo roído / dos bons costumes, nem à glória de andar / de boca em boca apodrecido e respeitado por jograis / que alteram a seu capricho o melodrama."
Em vida e em
verso Manuel Ramos Otero trabalhou na fundação de um cemitério de poetas, um
Hades textual povoado pelos escritores que lhe foram afins. Em El libro
de la muerte gravou os epitáfios compostos para as tumbas de Lorca,
Oscar Wilde, Tennesse Williams, Yukio Mishima, Rimbaud, Verlaine, Lezama Lima,
Pessoa, Huysmans, Kaváfis e René Marqués. Em Invitación al polvo Ramos
Otero continuou a construção desta biblioteca de ossos acrescentando os de
Quevedo, Bécquer, Cernuda, Palés Matos, César Vallejo, Julia de Burgos, Poe e
Jorge Manrique. Aqueles que amam a poesia poderão ver como este cemitério
flutua, na hora do crepúsculo, sobre o sonoro mar de Manatí. Ali, na indócil
paz dos poetas, Manuel Ramos Otero descansa.
José Luis Vega (Puerto Rico, 1948). Poeta y
ensayista. Agulha Revista de Cultura # 6. Janeiro de 2000. Página ilustrada com
obras de William Blake (Inglaterra), artista convidado desta edição.
PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009) | 05 de 10
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | William Blake
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o
projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura
teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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