quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

HANS ARP | Dadaland


Em Zurique, sem nos interessarmos pelos massacres da Guerra Mundial, nos instalamos na Escola de Belas Artes. Enquanto cresciam à distância os trovões das baterias, nós colávamos, declamávamos e criávamos versos, cantávamos com toda a nossa alma. Procurávamos uma arte elementar que deveria, assim pensávamos, salvar os homens da furiosa loucura daqueles tempos. Nós aspirávamos a uma nova ordem que pudesse restabelecer o equilíbrio entre o céu e o inferno. Essa arte se tornou, rapidamente, em objeto de reprovação generalizada. Nada espantoso que os bandidos não pudessem nos compreender. A sua mania pueril de autoritarismo queria que a própria arte lhes servisse para embrutecer os homens.
A Renascença ensinou aos homens a exaltar com orgulho sua lucidez. Os novos tempos com suas novas ciências e técnicas os levaram a pronunciar votos megalomaníacos. A confusão de nossa época é o resultado dessa supervalorização. Nós queríamos uma arte anônima e coletiva. Eis o que eu escrevi a respeito de uma exposição que fizemos em 1915 em Zurique: Estas obras são construídas com linhas, superfícies, formas e cores. Elas procuram atingir além do humano, do infinito e do eterno. Elas renegam o egocentrismo dos homens… As mãos de nossos irmãos ao invés de nos servirem como nossas próprias mãos se tornaram mãos inimigas. Em lugar do anonimato havia a celebridade e a obra prima, a sabedoria estava morta… Reproduzir é imitar, fazer teatro, dançar na corda bamba.
Em 1915, Sophie Taeuber e eu, realizamos as primeiras obras a partir das formas mais simples da pintura, do bordado e em papéis colados. Essas são, provavelmente, as primeiras manifestações dessa arte. Esses quadros são realidades em si, sem significado ou qualquer intenção cerebral. Nós rejeitávamos tudo o que fosse cópia ou descrição para deixar o Elementar e o Espontâneo reagirem em liberdade plena. Como a disposição dos planos, as proporções desses planos e suas cores que pareciam não depender de outra coisa que não fosse a do acaso, eu dizia que essas obras eram ordenadas segundo a lei do acaso, tal e qual a forma da natureza, o acaso não era para mim outra coisa que uma parte restrita de uma razão de ser inatingível, algo inacessível em seu todo conjunto.
Os artistas russos e holandeses que produziram naquela época obras muito próximas das nossas em aparência, obedeciam totalmente a outros propósitos. De fato, elas são uma homenagem à vida moderna, uma profissão de fé. Se bem que tratadas pela abstração, nelas resta sempre um fundo de naturalismo e de ilusão (tromp l'oiel).
De 1916 a 1920, Sophie Taeuber dança em Zurique. Aqui estão as belas linhas escritas por Hugo Ball sobre esse assunto, em um ensaio intitulado Ocultismo e Outras Coisas Belas e Raras:

Ao seu redor é a claridade do sol e o milagre que substituem o tradicional. Ela é plena em suas invenções, em caprichos e bizarrices. Ela dançou em Canto dos Peixes Voadores e Hipocampos um lamento onomatopoético. Uma dança cheia de brilhos e arestas, repleta de papelotes de luzes deslumbrantes, de uma intensidade penetrante. As linhas de seu corpo se quebram, cada gesto se decompõe em centenas de movimentos precisos, angulosos, incisivos. A palhaçada da perspectiva, da iluminação, da atmosfera é pretexto para que seu sistema nervoso hipersensível faça uma brincadeira espiritual e irônica. As figuras de sua dança são ao mesmo tempo misteriosas, grotescas e extáticas…

Eu conheci Eggeling em 1915, em Paris, no atelier da Senhora Wassilieff. Ela tinha organizado em seus dois ateliers uma cantina onde os artistas podiam jantar à noite por um baixo custo. Os amigos que voltavam do front nos falavam sobre a guerra e, quando a delação ficava muito exacerbada, uma jovem mulher de linda voz cantava: Passeando pela Lorraine como meus tamancos… Um sueco bêbado a acompanhava ao piano. Cada noite eu e meu irmão percorríamos a pé, em meio à escuridão desta Paris ameaçada pelos Alemães, os quilômetros que separavam Montmartre da estação de Montparnasse, onde se encontrava o atelier de Wassilieff. Eggling morava no Boulevard Raspail. Um atelier sinistro e úmido. Em frente ao seu morava Modigliani, que o visitava com frequência, recitando Dante e se embebedando. Ele também cheirava cocaína. Uma noite foi decidido que eu devia, na companhia de outros inocentes, ser iniciado nos Paraísos Artificiais. Cada um de nós dava alguns francos para Modigliani a fim de que ele pudesse providenciar a droga. Esperávamos durante horas. Enfim ele voltava hilário e fungando, tendo consumido tudo sozinho. Naquela época, Eggeling quase nunca penteava os cabelos e discutia horas a fio sobre arte. Eu o reencontrei novamente em 1917, em Zurique. Ele procurava as regras de um contraponto plástico, para o qual compunha e desenhava os primeiros elementos. Atormentava-se até a morte. Havia criado sobre um grande rolo de papel uma espécie de escritura hierática com a ajuda de figuras de proporção e beleza raras. Essas figuras cresciam, se subdividiam, se multiplicavam, se deslocavam, se encavalavam em grupo, umas sobre as outras, desapareciam e apareciam em partes, se organizavam em imponente construção conforme a arquitetura das formas vegetais. Ele nomeava seus papéis Symphonie. Em 1922, ele morreu, quando ainda poderia, junto com seu amigo Hans Richter, ter adaptado sua invenção para o cinema.
Em seu esconderijo, um pequeno quarto, Janco devotava-se a um naturalismo em zig zag. Eu o perdoo pela vida secreta, porque ele evocou e fixou o Cabaret de Voltaire sobre a tela de um de seus quadros. Num local abarrotado e em meio a uma confusão de cores estavam, em um estrado, alguns personagens fantásticos que lembravam Tzara, Janco, Ball, Huelsenbeck, Madame Hennings e vosso humilde servo! Estávamos em vias de fazer uma grande algazarra – um sabbat. As pessoas ao nosso redor gritavam, riam e gesticulavam. Nós respondíamos através de suspiros de amor, soluços, poesias, Uau, Uau e Miaus e escândalos da idade média. Tzara rebolava seu traseiro como o ventre de uma dançarina oriental. Janco tocava um violino invisível e fazia saudações até o chão. Madame Hennings, vestida como uma Madona, ensaiava um grand écart. Huelsenbeck não parava de bater em seu tambor, enquanto Ball o acompanhava ao piano – pálido como um manequim de cal. Nós nos atribuíamos o título honorífico de niilistas. Os diretores dessa cretinice davam esse nome a tudo o que não seguisse suas diretrizes. Os grandes toureiros do Movimento Dada eram Ball e Tzara. Ball era, em minha opinião, um dos maiores escritores alemães. Um personagem longo e seco como a figura de um pater dolorosus. Tzara tinha escrito, nessa época, os Vint-cinq poèmes, que pertenciam à melhor poesia francesa. Mais tarde, juntou-se a nós o Doutor Serner, aventureiro, autor de romances policiais, dançarino mundano, dermatologista e um ladrão de casaca.
Eu reencontrei Tzara e Senner no Odéon e no Café do Terraço, em Zurique onde escrevemos uma série de poemas: Hyperbole du crocodile-coiffeurr et de la canne à main. Este gênero de poesias foi mais tarde batizado como Poesia Automática pelos Surrealistas. A poesia automática sai em linha direta das entranhas do poeta ou de todos os outros órgãos que armazenassem suas reservas. Nem a ópera Le Postillon de Longjumeau, nem o verso alexandrino, nem a gramática, nem a estética, nem Buda, nem o Sexto Mandamento seriam capazes de constrangê-lo. Ele cocoricava, jurava, gemia, gaguejava, dançava segundo sua música. Seus poemas são como a natureza: eles cheiravam, riam, rimavam como a natureza. A tolice, ou pelo menos o que eles assim chamavam, era tão preciosa quanto uma retórica sublime, porque, na natureza, um galhinho quebrado valia em beleza e importância tanto quanto as estrelas, e são esses homens que decretam o que é a beleza ou a feiura.
Os objetos Dada são formados por elementos encontrados ou fabricados, simples ou originais. Os Chineses, há milhares de anos, Duchamp e Picabia nos Estados Unidos, Schwitters e eu mesmo durante a guerra de 1914, fomos os primeiros a inventar e retomar esses jogos de sabedoria e clarividência que deveriam curar os seres humanos da loucura furiosa do gênio e os conduzir mais modestamente ao seu justo lugar na natureza. A beleza natural desses objetos lhes é inerente como a de um buquê de flores colhido pelas crianças. Um imperador da China, há milhares de anos, enviava os artistas a procurar, nos confins mais distantes, pedras de formas raras e fantásticas que ele colecionava e colocava sobre um pedestal ao lado de seus vasos e deuses. Está claro que este jogo não era conveniente aos nossos muitos artistas modernos que vigiavam o amador como um porteiro de hotel vigiava o portão da estação de trem, à espera de clientes.
Tu ainda cantas gargalhando ferozmente a diabólica canção do Moinho de Hirza-Pirza, sacudindo teus cachos de cigana, meu querido Janco? Eu não me esqueci das máscaras que tu fabricavas para nossas manifestações Dada. Elas eram aterrorizantes e ordinariamente mal argamassadas de vermelho sanguíneo. Com cartão, papel, crina, fio de ferro e desejos reprimidos com os quais tu confeccionavas teus fetos langorosos, tuas sardinhas lésbicas, teus sorrisos em êxtase. Em 1917, Janco executa obras abstratas cuja importância só o faz crescer. Era um homem apaixonado que tinha fé na evolução da arte.
Auguste Giacometti, em 1916, já era um homem realizado, e portanto, ele apreciava os Dadaístas e se mesclava ao movimento em suas apresentações. Ele parecia um urso bem comportado e usava, sem dúvida por simpatia aos outros ursos de seu país, um chapéu de pele de urso. Um de seus amigos confidenciou-me que na dobra desse boné ele guardava uma caderneta de poupança bem recheada. Por ocasião de uma Festa Dada ele nos concedeu um souvenir de trinta metros de comprimento, pintado com as cores do arco-íris e coberto de inscrições sublimes. Certa noite decidimos fazer um pouco de publicidade pessoal para o Dada. Passando de uma padaria a outra, no Limmatquai, ele abria a porta com precaução, articulava com sua voz possante e precisa: Viva o Dada! e em seguida fechava a porta com o mesmo cuidado. Os clientes ficavam boquiabertos largando suas salsichas de lado. O que significava esse grito misterioso lançado por um homem maduro e decente cuja aparência nada tinha de mistificador ou imigrante? Giacometti pintava, nessa época, estrelas em flores, incêndios cósmicos, guirlandas em chamas, redemoinhos cintilantes. O que nos interessava em seus quadros era o fato de que eles procediam da cor e da pura imaginação. Giacometti foi também o primeiro que tentou realizar um objeto móvel, o que fez com a ajuda de um pêndulo disfarçado pela adição de formas e cores. Apesar da batalha, era uma época encantadora que lembraremos sempre como um tempo idílico bem próximo à guerra mundial, e quando esta transformou-se em bistecas alemãs, nós nos dispersamos aos quatro ventos.



*****

Estas adoráveis páginas de uma rica memória afetiva, escritas por Hans Arp (1887-1996), foram originalmente inseridas em seu livro On my way, de 1941. Toda a sua obra se encontra reunida em Jours effeuillés, de 1966. A tradução aqui publicada é de Leila Ferraz, realizada especialmente para a presente edição dedicada aos 100 anos de Dadá. Página ilustrada com obras de Francis Picabia (França, 1879-1953).







Um comentário: