Em
Zurique, sem nos interessarmos pelos massacres da Guerra Mundial, nos
instalamos na Escola de Belas Artes. Enquanto cresciam à distância os trovões
das baterias, nós colávamos, declamávamos e criávamos versos, cantávamos com
toda a nossa alma. Procurávamos uma arte elementar que deveria, assim pensávamos,
salvar os homens da furiosa loucura daqueles tempos. Nós aspirávamos a uma nova
ordem que pudesse restabelecer o equilíbrio entre o céu e o inferno. Essa arte
se tornou, rapidamente, em objeto de reprovação generalizada. Nada espantoso
que os bandidos não pudessem nos
compreender. A sua mania pueril de autoritarismo queria que a própria arte lhes
servisse para embrutecer os homens.
A Renascença ensinou aos homens a exaltar com orgulho
sua lucidez. Os novos tempos com suas novas ciências e técnicas os levaram a
pronunciar votos megalomaníacos. A confusão de nossa época é o resultado dessa supervalorização.
Nós queríamos uma arte anônima e coletiva. Eis o que eu escrevi a respeito de
uma exposição que fizemos em 1915 em Zurique: Estas obras são construídas com linhas, superfícies, formas e cores.
Elas procuram atingir além do humano, do infinito e do eterno. Elas renegam o
egocentrismo dos homens… As mãos de nossos irmãos ao invés de nos servirem como
nossas próprias mãos se tornaram mãos inimigas. Em lugar do anonimato havia a
celebridade e a obra prima, a sabedoria estava morta… Reproduzir é imitar,
fazer teatro, dançar na corda bamba.
Em 1915, Sophie Taeuber e eu, realizamos as
primeiras obras a partir das formas mais simples da pintura, do bordado e em
papéis colados. Essas são, provavelmente, as primeiras manifestações dessa
arte. Esses quadros são realidades em si, sem significado ou qualquer intenção
cerebral. Nós rejeitávamos tudo o que fosse cópia ou descrição para deixar o
Elementar e o Espontâneo reagirem em liberdade plena. Como a disposição dos
planos, as proporções desses planos e suas cores que pareciam não depender de
outra coisa que não fosse a do acaso, eu dizia que essas obras eram ordenadas segundo a lei do acaso, tal e qual a
forma da natureza, o acaso não era para mim outra coisa que uma parte restrita
de uma razão de ser inatingível, algo inacessível em seu todo conjunto.
Os artistas russos e holandeses que produziram
naquela época obras muito próximas das nossas em aparência, obedeciam
totalmente a outros propósitos. De fato, elas são uma homenagem à vida moderna,
uma profissão de fé. Se bem que tratadas pela abstração, nelas resta sempre um
fundo de naturalismo e de ilusão (tromp l'oiel).
De 1916 a 1920, Sophie Taeuber dança em Zurique.
Aqui estão as belas linhas escritas por Hugo Ball sobre esse assunto, em um
ensaio intitulado Ocultismo e Outras
Coisas Belas e Raras:
Ao seu redor é a claridade do sol e o milagre que substituem
o tradicional. Ela é plena em suas invenções, em caprichos e bizarrices. Ela
dançou em Canto
dos Peixes Voadores e Hipocampos um
lamento onomatopoético. Uma dança cheia de brilhos e arestas, repleta de papelotes
de luzes deslumbrantes, de uma intensidade penetrante. As linhas de seu corpo se
quebram, cada gesto se decompõe em centenas de movimentos precisos, angulosos,
incisivos. A palhaçada da perspectiva, da iluminação, da atmosfera é pretexto
para que seu sistema nervoso hipersensível faça uma brincadeira espiritual e
irônica. As figuras de sua dança são ao mesmo tempo misteriosas, grotescas e
extáticas…
Eu conheci Eggeling em 1915, em Paris, no
atelier da Senhora Wassilieff. Ela tinha organizado em seus dois ateliers uma
cantina onde os artistas podiam jantar à noite por um baixo custo. Os amigos
que voltavam do front nos falavam
sobre a guerra e, quando a delação ficava muito exacerbada, uma jovem mulher de
linda voz cantava: Passeando pela Lorraine
como meus tamancos… Um sueco bêbado a acompanhava ao piano. Cada noite eu e
meu irmão percorríamos a pé, em meio à escuridão desta Paris ameaçada pelos
Alemães, os quilômetros que separavam Montmartre da estação de Montparnasse,
onde se encontrava o atelier de Wassilieff. Eggling morava no Boulevard Raspail.
Um atelier sinistro e úmido. Em frente ao seu morava Modigliani, que o visitava
com frequência, recitando Dante e se embebedando. Ele também cheirava cocaína.
Uma noite foi decidido que eu devia, na companhia de outros inocentes, ser
iniciado nos Paraísos Artificiais.
Cada um de nós dava alguns francos para Modigliani a fim de que ele pudesse
providenciar a droga. Esperávamos durante horas. Enfim ele voltava hilário e
fungando, tendo consumido tudo sozinho. Naquela época, Eggeling quase nunca
penteava os cabelos e discutia horas a fio sobre arte. Eu o reencontrei
novamente em 1917, em Zurique. Ele procurava as regras de um contraponto
plástico, para o qual compunha e desenhava os primeiros elementos. Atormentava-se
até a morte. Havia criado sobre um grande rolo de papel uma espécie de
escritura hierática com a ajuda de figuras de proporção e beleza raras. Essas
figuras cresciam, se subdividiam, se multiplicavam, se deslocavam, se
encavalavam em grupo, umas sobre as outras, desapareciam e apareciam em partes,
se organizavam em imponente construção conforme a arquitetura das formas
vegetais. Ele nomeava seus papéis Symphonie.
Em 1922, ele morreu, quando ainda poderia, junto com seu amigo Hans Richter, ter
adaptado sua invenção para o cinema.
Em seu esconderijo, um pequeno quarto, Janco
devotava-se a um naturalismo em zig zag. Eu o perdoo pela vida secreta, porque
ele evocou e fixou o Cabaret de Voltaire sobre a tela de um de seus quadros.
Num local abarrotado e em meio a uma confusão de cores estavam, em um estrado, alguns
personagens fantásticos que lembravam Tzara, Janco, Ball, Huelsenbeck, Madame
Hennings e vosso humilde servo! Estávamos em vias de fazer uma grande algazarra
– um sabbat. As pessoas ao nosso
redor gritavam, riam e gesticulavam. Nós respondíamos através de suspiros de amor,
soluços, poesias, Uau, Uau e Miaus e escândalos da idade média. Tzara
rebolava seu traseiro como o ventre de uma dançarina oriental. Janco tocava um
violino invisível e fazia saudações até o chão. Madame Hennings, vestida como
uma Madona, ensaiava um grand écart.
Huelsenbeck não parava de bater em seu tambor, enquanto Ball o acompanhava ao
piano – pálido como um manequim de cal. Nós nos atribuíamos o título honorífico
de niilistas. Os diretores dessa cretinice davam esse nome a tudo o que não
seguisse suas diretrizes. Os grandes toureiros do Movimento Dada eram Ball e Tzara. Ball era, em minha opinião, um
dos maiores escritores alemães. Um personagem longo e seco como a figura de um pater dolorosus. Tzara tinha escrito,
nessa época, os Vint-cinq poèmes, que
pertenciam à melhor poesia francesa. Mais tarde, juntou-se a nós o Doutor
Serner, aventureiro, autor de romances policiais, dançarino mundano,
dermatologista e um ladrão de casaca.
Eu reencontrei Tzara e Senner no Odéon e no Café
do Terraço, em Zurique onde escrevemos uma série de poemas: Hyperbole du crocodile-coiffeurr et de la
canne à main. Este gênero de
poesias foi mais tarde batizado como Poesia
Automática pelos Surrealistas. A poesia automática sai em linha direta das
entranhas do poeta ou de todos os outros órgãos que armazenassem suas reservas.
Nem a ópera Le Postillon de
Longjumeau, nem o verso alexandrino, nem a gramática, nem a estética, nem Buda,
nem o Sexto Mandamento seriam capazes de constrangê-lo. Ele cocoricava, jurava,
gemia, gaguejava, dançava segundo sua música. Seus poemas são como a natureza:
eles cheiravam, riam, rimavam como a natureza. A tolice, ou pelo menos o que eles
assim chamavam, era tão preciosa quanto uma retórica sublime, porque, na
natureza, um galhinho quebrado valia em beleza e importância tanto quanto as
estrelas, e são esses homens que decretam o que é a beleza ou a feiura.
Os objetos Dada são formados por elementos
encontrados ou fabricados, simples ou originais. Os Chineses, há milhares de
anos, Duchamp e Picabia nos Estados Unidos, Schwitters e eu mesmo durante a
guerra de 1914, fomos os primeiros a inventar e retomar esses jogos de
sabedoria e clarividência que deveriam curar os seres humanos da loucura
furiosa do gênio e os conduzir mais modestamente ao seu justo lugar na
natureza. A beleza natural desses objetos lhes é inerente como a de um buquê de
flores colhido pelas crianças. Um imperador da China, há milhares de anos,
enviava os artistas a procurar, nos confins mais distantes, pedras de formas
raras e fantásticas que ele colecionava e colocava sobre um pedestal ao lado de
seus vasos e deuses. Está claro que este jogo não era conveniente aos nossos
muitos artistas modernos que vigiavam o amador como um porteiro de hotel vigiava
o portão da estação de trem, à espera de clientes.
Tu ainda cantas gargalhando ferozmente a
diabólica canção do Moinho de Hirza-Pirza, sacudindo teus cachos de cigana, meu
querido Janco? Eu não me esqueci das máscaras que tu fabricavas para nossas manifestações Dada. Elas eram
aterrorizantes e ordinariamente mal argamassadas de vermelho sanguíneo. Com
cartão, papel, crina, fio de ferro e desejos reprimidos com os quais tu confeccionavas
teus fetos langorosos, tuas sardinhas lésbicas, teus sorrisos em êxtase. Em
1917, Janco executa obras abstratas cuja importância só o faz crescer. Era um
homem apaixonado que tinha fé na evolução da arte.
Auguste Giacometti, em 1916, já era um homem
realizado, e portanto, ele apreciava os Dadaístas e se mesclava ao movimento em
suas apresentações. Ele parecia um urso bem comportado e usava, sem dúvida por
simpatia aos outros ursos de seu país, um chapéu de pele de urso. Um de seus
amigos confidenciou-me que na dobra desse boné ele guardava uma caderneta de
poupança bem recheada. Por ocasião de uma Festa Dada ele nos concedeu um
souvenir de trinta metros de comprimento, pintado com as cores do arco-íris e
coberto de inscrições sublimes. Certa noite decidimos fazer um pouco de
publicidade pessoal para o Dada. Passando de uma padaria a outra, no
Limmatquai, ele abria a porta com precaução, articulava com sua voz possante e
precisa: Viva o Dada! e em seguida
fechava a porta com o mesmo cuidado. Os clientes ficavam boquiabertos largando
suas salsichas de lado. O que significava esse grito misterioso lançado por um
homem maduro e decente cuja aparência nada tinha de mistificador ou imigrante? Giacometti
pintava, nessa época, estrelas em flores, incêndios cósmicos, guirlandas em
chamas, redemoinhos cintilantes. O que nos interessava em seus quadros era o
fato de que eles procediam da cor e da pura imaginação. Giacometti foi também o
primeiro que tentou realizar um objeto móvel, o que fez com a ajuda de um
pêndulo disfarçado pela adição de formas e cores. Apesar da batalha, era uma
época encantadora que lembraremos sempre como um tempo idílico bem próximo à
guerra mundial, e quando esta transformou-se em bistecas
alemãs, nós nos dispersamos aos quatro ventos.
Estas adoráveis páginas de uma rica memória afetiva,
escritas por Hans Arp (1887-1996), foram originalmente inseridas em seu livro On my way, de 1941. Toda a sua obra se
encontra reunida em Jours effeuillés,
de 1966. A tradução aqui publicada é de Leila Ferraz, realizada especialmente
para a presente edição dedicada aos 100 anos de Dadá. Página ilustrada
com obras de Francis Picabia (França, 1879-1953).
supremo, cara, brigado por trazer até nós esses materiais. Evoé Arp !
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