Paul Éluard certa vez desatou uma curiosa descrição
de Max Ernst: “Desenha sem pensá-lo. Fez algumas grandes telas, como todos os
pintores, inclusive os mais célebres. Aos doze anos abandona seus pais e
escolhe um ofício. É então quando começa uma nova vida.” Disse isto em 1922.
Posteriormente, em 1937, recordava o que chamou de “nova vida”, afirmando que
ela “veio para reforçar a ofensiva de Picasso contra tudo o que separa o homem
de suas obras”, destacando o quanto que se identifica Ernst com “aquilo que nos
mostra”.
Eis aí uma primeira chave para o entendimento da obra de Max Ernst, cuja
abordagem tecida por Gérard Legrand nos brinda com grande lucidez, ao destacar
que sua pintura “descobre (por vezes até à saciedade) os achados de uma fusão –
bastante rara na arte moderna – entre o consciente e o inconsciente, ou se o
preferem, entre a raiva maníaca e o abandono maravilhado que ao mesmo tempo
maravilha”. A Ernst interessava muito peculiarmente o bailado das associações
de ideias, onde o acaso tinha uma participação decisiva. Defendia que a arte é
“produto de um intercâmbio de ideias”, não sendo feita por um só artista mais
sim por muitos.
O alemão Max Ernst nasceu em Brühl, em abril de 1891. Filho de um
desenhista e pintor autodidata, desce cedo toma aulas de desenho com seu pai.
Aos 19 anos, indo residir em Bonn, conhece Augusto Macke, que logo trata de
apresentá-lo a Robert Delaunay e Guillaume Apollinaire. Em seguida, conhece
Hans Arp, um de seus grandes amigos. Escreve então artigos sobre arte e teatro
para a imprensa local e participa de algumas exposições coletivas. Explode a I
Guerra Mundial e contra ela o Dadaísmo. O mundo desenha-se propício a uma fase
brutal de autoritarismos de toda ordem. Ganham corpo as ideias de propaganda e
arte engajada, raízes com que foram bordados conceitos como os de alienação e
indústria do entretenimento.
Depois da Guerra surge o Surrealismo. Disse Artaud que “quando a guerra
se vai, chega a poesia”. Contudo, a guerra estava disseminada demais em todos
os espíritos. Recordo aqui uma preciosa observação de Wolfgang Paalen: “As
obras nas quais a guerra será completamente vencida não farão alusão a ela, da
mesma forma que as obras verdadeiramente revolucionárias não mostram as
bandeiras vermelhas”. Também o Surrealismo esteve entranhado de guerra e um
obscuro fio teceu equívocos cenários.
Ernst esteve com os surrealistas em inúmeras circunstâncias. Desenvolveu
a técnica do gotejamento (drapping) que seria desdobrada pelo
estadunidense Jackson Pollock. Conduziu outra técnica a seus instantes-limites:
a frottage, a revelação de uma nova imagem a partir do decalcamento de
uma determinada superfície. E cabe a ele, sobretudo, o estabelecimento de uma
técnica essencial: a collage. Em todo momento, a arte vinculava-se à
mistura, à fusão. Ele próprio declarou, a propósito de uma exposição em 1921,
que se considerava um artista “além da pintura”. Tocava a criação com tudo de
si, não se prendendo a meios ou a mensagens se observados isoladamente.
Seus métodos propostos definiram todo um tratamento com que a arte
moderna é hoje reconhecida entre nós. Se Pollock desdobrou o drapping,
Magritte e Dalí passaram a pintar collages à mão. E o frottage,
segundo ele próprio, seria “o equivalente verdadeiro da escritura automática”.
Disse Breton, em 1941, que o collage correspondia ao que buscaram, na
poesia, Lautréamont e Rimbaud. Teríamos que retomar um sentido de mescla já
aqui abordado. Se o recurso dessa fusão é provocar estranheza, já não temos
nada a ver especificamente com Lautréamont ou Ernst. O assombro é o barro de
onde surge toda poesia. Todas as formas nascem do assombro. O mundo está
fundado no assombro.
Ernst também esculpiu incansavelmente. Estive em uma retrospectiva de
sua obra no Museu Brasileiro da Escultura (São Paulo, 1997) e as esculturas
mostravam-se íntimas das técnicas que ele havia propiciado. Ali havia tanto de collage
quanto de frottage, depuradas e propiciadoras de novos abismos. Como ele
próprio disse, a expressão última da arte é uma depuração de situações
perigosas, abissais, um encontro com o imprevisível despido de toda sustentação
moral.
Está certo Éluard ao dizer que Max Ernst tomou a decisão de “enterrar a
velha razão”. Em um de seus poemas, Ernst indagava Enfants du ciècle / où sont
vos trident, diante de uma clara preocupação com a degeneração humana por
que passava então a humanidade. O poema, escrito em 1953, pode ser hoje melhor
compreendido, quando o mito foi convertido em uma expressão do efêmero. À
deriva da história, o homem contemporâneo exprime apenas o vazio de sua imagem
diante do espelho. É luz de refletor, incidência externa, jogo de imagens. É
outra a razão de ser, ou melhor, de não ser.
Ernst envolveu-se em inúmeras aventuras. Cinema, poesia, teatro. Não se
tratava de uma voracidade da evidência, mas de uma identificação pela
totalidade. Foi, de fato, artista tocado pela totalidade. O reconhecimento por
sua atividade incessante veio de inúmeras formas. Em 1954, recebeu o grande
prêmio da XXVII Bienal de Veneza. Tê-lo aceito provocou sua exclusão do grupo
surrealista. Em 1941, declarara que “os homens se tornaram horrendos e
terríveis por haverem se entregado durante séculos àquela que é a mãe de todos
os vícios: a confissão”. Falava especificamente de um ritual da igreja
católica. Contudo, tendo sido expulso do Surrealismo, não se pode deixar de
pensar em sua confissão pública, desde os anos 20, na condição de um
surrealista.
Não foi criado pela guerra. Sua arte definia-se por um princípio de ação
e não de reação. Não propôs propriamente discordâncias e sim acréscimos. Não
foi tutelado senão por uma profusão desconcertante de acentos estilísticos, na
pintura, no desenho, na escultura, mesmo nos versos ocasionais. Ernst é um dos
nomes cimeiros da arte neste nosso controvertido século, onde a vertigem
tecnológica (ciência) busca apoderar-se uma vez mais do abismo criativo (arte).
*****
Floriano Martins
(Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Diretor da Agulha
Revista de Cultura e da ARC Edições. Página ilustrada com obras de
Francis Picabia (França, 1879-1953).
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