quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

FLORIANO MARTINS | Hans Arp


As duas conexões imediatas que nos desperta qualquer menção ao nome de Hans Arp (1886-1966): Dadaísmo e escultura. Segundo o Diario Dadá, anotado por Tristan Tzara, a formação original do grupo na Zurique de 1916 era a seguinte: Hugo Ball, Emmy Hennings, Hans Richter, Richard Huelsenbeck, Hans Arp, Marcel Janco e o próprio Tzara. As noites no Cabaret Voltaire exploravam profundamente a essência anárquica da criação artística. Anos depois Tzara confirmava que “a desorganização, a desorientação, a desmoralização de todos os valores admitidos eram para nós todos directivas indiscutíveis”.
Ao referir-se ao achado do termo Dadá, afirmou Arp estar “persuadido de que essa palavra não tem importância alguma”, concluindo: “o que nos interessa é o espírito dadá e éramos dadá antes da existência de dadá”. Arp nos surpreende sempre pela liberdade extraordinária de seu pensamento. Segundo Dawn Ades, foi um dos integrantes mais leais do dadaísmo: “embora não tivesse muita afinidade com a violência e o alarido do Cabaret, percebera de maneira definitiva o alcance, o valor e o significado de Dadá”.
Igual e intensa percepção manteve no tocante ao Surrealismo. Privilegiando sempre um acurado sentido de independência, colaborou ininterruptamente com os surrealistas, ao ponto de José Pierre dele dizer que se trata de um dos poetas mais essencialmente surrealistas, juntamente com André Breton e Benjamin Péret. A lealdade a que se reporta Dawn Ades me parece melhor aplicada a um consciente embate com as forças de seu próprio tempo. Nos anos 30, declarou rejeitar “tudo que fosse cópia ou descrição”, propiciando que “o Elementar e o Espontâneo reagissem em plena liberdade”.
Anos depois diria que expôs com os surrealistas “porque a sua atitude de contestação em relação à arte e sua atitude direta em relação à vida eram judiciosas, como Dadá”. Interessa-lhe a arte tanto como defesa estética quanto como afirmação de caráter. Inclusive o exercício dessa consciência pode ser conferido na parte ensaística de On my way (1949), a belíssima edição norte-americana de seus escritos, incluída a poesia. Arp escreveu poemas originalmente em alemão e francês. Entre os diversos livros, destacamos duas edições: a alemã Gedichte (Verlag Benteli, 1944) e a francesa Jours effeuillés (Gallimard, 1966).
Arp perseguiu à exaustão a utilização eficaz de certos procedimentos, sobretudo a pontuação do acaso na escolha das insólitas imagens que desatava. A essas estranhas aparições elementares, propôs uma leitura plástica – no caso da escultura – que lhes dava uma inusitada dimensão lírica. Já nos poemas, invertida a polaridade, tudo conduzia a uma plasticidade envolvente e reveladora. Neste sentido, sua transgressão radica justamente na proposição de um mundo transparente, regido por uma atmosfera original de absoluta simplicidade.
Disparava as imagens mais simples e desconcertantes: “as paredes são de carne humana”, “a luz da arte fala do suicídio delicioso”, “as flores se vestem com relâmpagos”. A igual que o chileno Vicente Huidobro, Arp buscou o reencontro do homem com a inocência original. Nisto se irmanam, aliás, o Surrealismo e o Creacionismo proposto por Huidobro. No caso de Arp, recorria a uma concretude imagética visando a destruição do concreto. Amigo de Huidobro, juntos escreveram Tres novelas ejemplares (1938), uma admirável tríade onde o bordado do humor e a exploração do acaso são componentes definitivos. A um só tempo, um simples e cristalino traçado de imagens e recursos de linguagem. [1]
Antes que jornalistas e professores universitários tornassem o mundo irrespirável, com suas obsessões pela falsa instantaneidade e o culto à berruga das ramificações escolásticas, respectivamente ou não, abstracionistas, expressionistas e figurativistas conviviam em paz. O artista buscava, segundo sua crença estética, um território (espaço-tempo) onde pudesse expressar sua singularidade. O homem agia segundo sua natureza e a razão de ser ainda não havia perdido sentido. Segundo Arp, “quem não se opõe à natureza chega a ser beleza e espírito”.
Atuando entre a poesia e a escultura, Arp teve uma importância notável, sobretudo apontando alguns preconceitos nas relações entre ambos procedimentos. Escreveu sobre Moholy-Nagy referindo-se a uma leitura “mítica, espiritual, religiosa” de sua obra, aspectos que não eram encontrados na visão crítica de sua época. Arp foi de uma digna lucidez ao apontar o resplandecer de “uma realidade espiritual” na pintura de Kandinsky. Assim como Kandinsky, esteve sempre visceralmente apaixonado pela vida, não lhe deixando escapar nenhuma possibilidade de diálogo e consequente revelação. Evocou todas as forças. Ousou por aguerrida simplicidade, descarnando toda evidência.
Arp casou-se com Sophie Tauber-Arp, também notável artista. Compartilharam inúmeras aventuras: Dadá, Surrealismo, construtivismo, exílios, invasões nazistas durante a 2ª guerra mundial etc. Em situação dada como acidental, Sophie morreu intoxicada por gás carbônico, em 1942. Suíça de nascimento, em 1948 Arp colaborou com Hugo Weber na organização de uma completa edição crítica de sua obra plástica. Em poema dedicado à sua morte, refere-se a uma “cortina do dia” que “cai para ocultar os sonhos”.
No turbulento andamento da 2ª Guerra disse Hans Arp que o homem acabaria falando do silêncio como uma lenda. Hoje não somos senão uma sociedade composta pelo ruído excessivo de sua falta de sentido. Não há mais dúvida de que o progresso tenha derrotado o homem. Disse então Arp: “o homem não tem nada essencial que fazer, porém este nada quer fazê-lo rapidamente e com um ruído sobre-humano”. Anteviu tudo. Só faltou ser ouvido. Era uma época ensurdecedora. Hoje não sobrou silêncio para se ouvir mais ninguém.
Se acaso ainda houver chance, valerá a pena ler a poesia de Arp, sua estoica simplicidade no diálogo estético com seu tempo. Arp não permitiu jamais à sua vida um estado de suspensão. A todo instante deixava-se invadir pela essência do ser. Não impôs à aventura humana medidas que não fossem afeitas à expansão do conhecimento e da vivência. Concluiu um poema com a deflagadora imagem: “as pedras têm orelhas / para comer a hora exata”. Arp é uma sólida lição para este nosso tempo inteiramente falto de medidas.



NOTA
1. Conheça a edição brasileira: HUIDOBRO, Vicente | ARP, Hans. Três novelas exemplares & 20 poemas intransigentes. [Organização, tradução e prólogo, de Floriano Martins] Natal: Sol Negro Edições, 2012.




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Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Diretor da Agulha Revista de Cultura e da ARC Edições. Página ilustrada com obras de Francis Picabia (França, 1879-1953).







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