As duas conexões imediatas que nos desperta qualquer menção ao nome de
Hans Arp (1886-1966): Dadaísmo e escultura. Segundo o Diario Dadá,
anotado por Tristan Tzara, a formação original do grupo na Zurique de 1916 era
a seguinte: Hugo Ball, Emmy Hennings, Hans Richter, Richard Huelsenbeck, Hans
Arp, Marcel Janco e o próprio Tzara. As noites no Cabaret Voltaire exploravam
profundamente a essência anárquica da criação artística. Anos depois Tzara
confirmava que “a desorganização, a desorientação, a desmoralização de todos os
valores admitidos eram para nós todos directivas indiscutíveis”.
Ao referir-se ao achado do termo Dadá, afirmou Arp estar “persuadido de
que essa palavra não tem importância alguma”, concluindo: “o que nos interessa
é o espírito dadá e éramos dadá antes da existência de dadá”. Arp nos
surpreende sempre pela liberdade extraordinária de seu pensamento. Segundo Dawn
Ades, foi um dos integrantes mais leais do dadaísmo: “embora não tivesse muita
afinidade com a violência e o alarido do Cabaret, percebera de maneira
definitiva o alcance, o valor e o significado de Dadá”.
Igual e intensa percepção manteve no tocante ao Surrealismo.
Privilegiando sempre um acurado sentido de independência, colaborou
ininterruptamente com os surrealistas, ao ponto de José Pierre dele dizer que
se trata de um dos poetas mais essencialmente surrealistas, juntamente com
André Breton e Benjamin Péret. A lealdade a que se reporta Dawn Ades me parece
melhor aplicada a um consciente embate com as forças de seu próprio tempo. Nos
anos 30, declarou rejeitar “tudo que fosse cópia ou descrição”, propiciando que
“o Elementar e o Espontâneo reagissem em plena liberdade”.
Anos depois diria que expôs com os surrealistas “porque a sua atitude de
contestação em relação à arte e sua atitude direta em relação à vida eram
judiciosas, como Dadá”. Interessa-lhe a arte tanto como defesa estética quanto
como afirmação de caráter. Inclusive o exercício dessa consciência pode ser
conferido na parte ensaística de On my way (1949), a belíssima edição
norte-americana de seus escritos, incluída a poesia. Arp escreveu poemas
originalmente em alemão e francês. Entre os diversos livros, destacamos duas
edições: a alemã Gedichte (Verlag Benteli, 1944) e a francesa Jours
effeuillés (Gallimard, 1966).
Arp perseguiu à exaustão a utilização eficaz de certos procedimentos,
sobretudo a pontuação do acaso na escolha das insólitas imagens que desatava. A
essas estranhas aparições elementares, propôs uma leitura plástica – no caso da
escultura – que lhes dava uma inusitada dimensão lírica. Já nos poemas,
invertida a polaridade, tudo conduzia a uma plasticidade envolvente e
reveladora. Neste sentido, sua transgressão radica justamente na proposição de
um mundo transparente, regido por uma atmosfera original de absoluta
simplicidade.
Disparava as imagens mais simples e desconcertantes: “as paredes são de
carne humana”, “a luz da arte fala do suicídio delicioso”, “as flores se vestem
com relâmpagos”. A igual que o chileno Vicente Huidobro, Arp buscou o
reencontro do homem com a inocência original. Nisto se irmanam, aliás, o
Surrealismo e o Creacionismo proposto por Huidobro. No caso de Arp, recorria a
uma concretude imagética visando a destruição do concreto. Amigo de Huidobro,
juntos escreveram Tres novelas ejemplares (1938), uma admirável tríade
onde o bordado do humor e a exploração do acaso são componentes definitivos. A
um só tempo, um simples e cristalino traçado de imagens e recursos de
linguagem. [1]
Antes que jornalistas e professores universitários tornassem o mundo
irrespirável, com suas obsessões pela falsa instantaneidade e o culto à berruga
das ramificações escolásticas, respectivamente ou não, abstracionistas, expressionistas
e figurativistas conviviam em
paz. O artista buscava, segundo sua crença estética, um
território (espaço-tempo) onde pudesse expressar sua singularidade. O homem
agia segundo sua natureza e a razão de ser ainda não havia perdido sentido. Segundo
Arp, “quem não se opõe à natureza chega a ser beleza e espírito”.
Atuando entre a poesia e a escultura, Arp teve uma importância notável,
sobretudo apontando alguns preconceitos nas relações entre ambos procedimentos.
Escreveu sobre Moholy-Nagy referindo-se a uma leitura “mítica, espiritual,
religiosa” de sua obra, aspectos que não eram encontrados na visão crítica de
sua época. Arp foi de uma digna lucidez ao apontar o resplandecer de “uma
realidade espiritual” na pintura de Kandinsky. Assim como Kandinsky, esteve
sempre visceralmente apaixonado pela vida, não lhe deixando escapar nenhuma
possibilidade de diálogo e consequente revelação. Evocou todas as forças. Ousou
por aguerrida simplicidade, descarnando toda evidência.
Arp casou-se com Sophie Tauber-Arp, também notável artista.
Compartilharam inúmeras aventuras: Dadá, Surrealismo, construtivismo, exílios,
invasões nazistas durante a 2ª guerra mundial etc. Em situação dada como
acidental, Sophie morreu intoxicada por gás carbônico, em 1942. Suíça de
nascimento, em 1948 Arp colaborou com Hugo Weber na organização de uma completa
edição crítica de sua obra plástica. Em poema dedicado à sua morte, refere-se a
uma “cortina do dia” que “cai para ocultar os sonhos”.
No turbulento andamento da 2ª Guerra disse Hans Arp que o homem acabaria
falando do silêncio como uma lenda. Hoje não somos senão uma sociedade composta
pelo ruído excessivo de sua falta de sentido. Não há mais dúvida de que o
progresso tenha derrotado o homem. Disse então Arp: “o homem não tem nada
essencial que fazer, porém este nada quer fazê-lo rapidamente e com um ruído
sobre-humano”. Anteviu tudo. Só faltou ser ouvido. Era uma época ensurdecedora.
Hoje não sobrou silêncio para se ouvir mais ninguém.
Se acaso ainda houver chance, valerá a pena ler a poesia de Arp, sua estoica
simplicidade no diálogo estético com seu tempo. Arp não permitiu jamais à sua
vida um estado de suspensão. A todo instante deixava-se invadir pela essência
do ser. Não impôs à aventura humana medidas que não fossem afeitas à expansão
do conhecimento e da vivência. Concluiu um poema com a deflagadora imagem: “as
pedras têm orelhas / para comer a hora exata”. Arp é uma sólida lição para este
nosso tempo inteiramente falto de medidas.
1. Conheça a edição brasileira: HUIDOBRO,
Vicente | ARP, Hans. Três novelas
exemplares & 20 poemas intransigentes. [Organização, tradução e
prólogo, de Floriano Martins] Natal: Sol Negro Edições, 2012.
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Floriano Martins
(Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Diretor da Agulha
Revista de Cultura e da ARC Edições. Página ilustrada com obras de
Francis Picabia (França, 1879-1953).
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