1.
Com a saúde minada pela tuberculose, já gravemente
enfermo, António Maria Lisboa encontra-se em Paris, pela segunda vez, em
Janeiro de 1951, a convite de amigos que ali fizera em Março de 1949. “Sentado na soleira
da porta, espera até ao sol-posto os
seus amigos, nessa manhã partidos para a
Itália”. Após uma série de privações que o debilitam ainda mais, e certamente mais o espírito que o corpo, confessa-se “sem dinheiro e sem quarto”, e declara: “Vou abandonar definitivamente a Europa. Parto para o
Oriente numa viagem preliminar. Regressarei à Europa então para fazer a Grande Viagem. Os amigos? Distantes,
humanos, desumanos.” (1)
O episódio, singelo e
reconditamente dramático, permite
aproximar a trajetória humana de A.
M. Lisboa daquela de seus antecessores próximos, António Nobre e Sá-Carneiro, e a
dos antecessores remotos, os românticos—naquilo que têm de comum: o
inusitado fascínio que sobre os dois primeiros exerceu a Cidade-Luz e o
igualmente inusitado gosto pelo exótico oriental,
daqueles outros. Mas também permite
avaliar a distância que os separa, ainda enquanto trajetória humana, a partir da estranha “Grande Viagem”, empreendida após o regresso a uma Europa antes abandonada “definitivamente”.
O aparente paradoxo parece de fácil elucidação. À parte o gosto pelo paradoxo em si, o que temos é a consciência dolorosamente lúcida, por parte de A. M. Lisboa, de que nem Paris nem Oriente algum poderia resolver a sua inquietação existencial, originada de uma profunda inadaptação ao mundo dos homens. Como quem
vivesse, não apenas em imaginação, o dito emblemático posto a circular por Álvaro de
Campos: “Estrangeiro aqui como em toda a parte”. A misteriosa Grande Viagem
tanto podia efetuar-se na Europa, como no Oriente, como em qualquer parte do
mundo. Ou melhor, realiza-se de fato numa Europa tomada como símbolo de uma
civilização onde se tornou impossível a “verdadeira vida” sonhada por Rimbaud, uma Europa transfigurada por
um modo de ver aprendido no Oriente (por isso a “viagem preliminar”), símbolo do que o
poeta entende sejam os fundamentos propiciadores da “verdadeira vida”. Não por acaso, ao
utópico projeto segue-se imediatamente a referência aos amigos, “distantes,
humanos, desumanos”. Para espíritos a um tempo ousados, generosos e radicais como António Maria
Lisboa, as grandes fronteiras e abismos, os mais altos propósitos humanos,
a “verdadeira vida”, em suma, converge para a almejada, embora improvável, comunhão com os semelhantes,
e não para os espaços quantitativos, mera circunstância geográfica.
Viagem ao Oriente, o poeta não empreendeu
nenhuma; mas a “Grande Viagem” empreenderam-na por ele os seus poemas, afinal de
contas, libelo contra (e apelo a) as consciências vagamente adormecidas de
seus semelhantes, uns supostos “amigos distantes”. Daí o caráter
profundamente humano e existencial da sua obra. (2)
Nascido em Lisboa, a 1 de Agosto
de 1928, teve o nosso poeta em Pedro Oom a sua primeira amizade literária. A partir
de 1947, forma com esse e com Henrique Risques Pereira um pequeno grupo à parte das atividades
dos surrealistas de primeira hora, Alexandre O'Neill, Antônio Pedro e
outros, com os quais, apesar de tentar,
parece não ter conseguido entender-se. Em Março de 1949, parte para Paris, onde permanece por dois
meses. Datam provavelmente daí seus primeiros contatos com o Hinduísmo, a
Egiptologia, o Ocultismo em geral. De volta a Lisboa, colabora com poemas e
desenhos de títulos estranhos (Pequena História a Mais Fantástica dos Amorosos, Marfim Peixe etc.) na que se
chamou impropriamente “l Exposição dos Surrealistas”, do grupo dissidente. A partir
dessa altura, a amizade com Mário Cesariny acompanhá-lo-á até aos últimos dias.
No mesmo ano, colabora na redação do manifesto A
Afixação Proibida, no qual, tudo leva a crer, sua participação terá sido primacial.
Em 1950, lança outro manifesto, Erro-Próprio, desta vez apenas seu, que
aprofunda e amplia as postulações do anterior. Ainda em 1950, em carta a Cesariny, faz
as primeiras declarações com referência aos objetivos do movimento surrealista e à sua posição em face do
problema. Comunica ao amigo suas especulações no sentido de conceber uma “Metaciência”, que, como o
Surrealismo, “vê o Universo Uno e Mágico”. Apesar da aproximação, Lisboa prefere intitular-se “metacientista”, e não surrealista,
porque, argumenta, a “Surrealidade não é só do Surrealismo, o Surreal é do Poeta de
todos os tempos, de todos os grandes poetas”. (3) A posição parece clara,
e mais adiante tentaremos desenvolver-lhe as implicações. Mas o poeta
voltará a insistir no problema, noutra carta a Cesariny e numa “Carta Absrta a
Adolfo Casais Monteiro”, (4) insistência que denuncia a importância do
problema e a atenção que lhe dedicou A. M. Lisboa.
De volta da segunda estada em
Paris, com a saúde seriamente abalada, não tem outro recurso senão internar-se,
para um tratamento já nessa altura inútil, no Sanatório da Quinta
dos Vales, perto de Coimbra. Apesar da tuberculose implacável, produz abundantemente,
talvez até enfebrecido pela certeza da morte próxima: Ossóptico, Isso Ontem Único, O Senhor Cágado e o Menino, A
Verticalidade e a Chave etc. Abandona em seguida o Sanatório, para ir
morrer num quarto pobre na Rua das Beatas, em Lisboa, a 11 de Novembro de 1953,
com apenas 25 anos de idade. Além disso, sabe-se que parte razoável do seu espólio foi misteriosamente
destruída, logo após a sua morte. Do que restou, nem tudo ainda veio a lume.
Eis quanto se sabe da vida de António Maria
Lisboa. À exceção de dois ou três amigos certos, terá passado despercebido. Após sua morte,
pouco foi lembrado: em 1961, com uma “Exposição ícono-bibliográfica”, organizada em Lisboa, por iniciativa de Mário Cesariny e
com um texto-apresentação de Virgílio Martinho; em março do mesmo ano, com um artigo de
duas páginas, de Alfredo Margarido, “A posição ética de António Maria Lisboa”, publicado no Diário de Lisboa, o único trabalho
crítico até hoje dedicado ao poeta; e em 1962, quando Cesariny organizou uma pequena
antologia dos seus poemas, com o título Poesia,
única edição acessível, hoje dos
seus escritos.
E nada mais. É de supor, no
entanto, que sua obra esteja destinada a lograr audiência cada vez
maior, junto a leitores, críticos e
poetas, à medida que for dada a conhecer na íntegra e em
larga escala, e , por outro lado, à medida que as consciências responsáveis se
libertem de preconcebimentos e facilitações, condição mínima para que se possa assimilar essa obra enigmática e
solicitadora, como um desafio.
2. O problema inicial colocado pela obra de A. M.
Lisboa é o da classificação em poemas, de um lado, e manifestos, de outro, classificação proposta pelo próprio poeta, e a
distinção esbarra no fato de encontrarmos, em várias passagens, a utilização indiferente
dos mesmos procedimentos expressivos, quer nos poemas, quer nos manifestos. A
linguagem com que nos deparamos, nuns e noutros, é invariavelmente metafórica e tende,
embora mais naqueles do que nestes, à alogicidade. Adentrando o recesso de tais
procedimentos, o que temos é a verificação de que o pensamento estampado nos manifestos
enforma igualmente os poemas, propriamente ditos, como em complementação mútua. Uns e
outros acabam compondo um corpo único, em face do qual a diferenciação se transforma
em problema secundário, quando não insolúvel.
Entretanto, se mesmo assim
insistirmos, teremos que a possível distinção entre manifestos e poemas se dá enquanto gradação e não enquanto essência. Nos
poemas, a carga emocional que preside ao travamento do discurso é constante e
ininterrupta, resultando numa permanente e estranha tensão; já nos
manifestos, nota-se uma vez ou outra uma ligeira diminuição da carga
emocional, aproximando-se o discurso do caráter explicativo próprio da lógica
convencional. De outro ângulo tal distinção se associa ao fato de os poemas
se concentrarem maciçamente no Eu do poeta, compondo uma espécie de projeção imediata e
exclusiva de espaços interiores; nos manifestos, esse exclusivismo cede
por momentos à tentativa de objetivar ou impessoalizar as proposições contidas nos
poemas, o que resulta numa espécie de descentralização do seu foco emissor.
O que importa frisar, por ora, é a característica fundamental decorrente da mesclagem antes
assinalada: estamos diante de uma poesia com “pensamento” e, se
quisermos completar o binômio, diante de uma doutrina processada em linguagem “poética”. Numa palavra,
a evidente realização da assertiva pessoana: “O que em mim sente ‘stá pensando”. Mas nessa
ordem de ideias — emoção pensada, pensamento emocionalizado — Pessoa manifesta uma característica básica, a
rigorosa disciplina interior e exterior, isto é, ao nível da
logicidade cumulativa do raciocínio e ao nível da cristalina organização expressiva de
seus escritos, que em A. M. Lisboa aparece em escala mais reduzida. Como se a
fusão emoção-pensamento, em Pessoa, decorresse da vontade e de um apurado exercício
intelectual; e, em Lisboa, de um condicionamento ingênito,
independente da vontade e do esforço da inteligência. Nesse sentido, nosso poeta estaria mais próximo de Sá-Carneiro, pela
inequívoca impressão de “espontaneidade”, a impressão de quem faz poesia como se respirasse, comum a
ambos, embora seja maior a afinidade com Pessoa, no sentido de que um e outro
realizam uma poesia “filosófica”, contraposta à poesia “estética” do autor de Indícios de Oiro. Mas tal impressão de “espontaneidade”, além de subjetiva,
a rigor constitui problema extraliterário, e aqui entra apenas como achega. O que temos,
objetivamente falando, é a tendência para a sistematização e a consequente maior
dosagem de racionalismo, no poeta de Mensagem, tendência pouco encontrada no autor de Isso Ontem Único.
Trata-se, afinal, de uma poesia extremamente “difícil”, à medida que se oferece
como um conjunto de expressões intelectuais irredutíveis aos padrões de raciocínio com que
habitualmente pensamos. Não nos referimos ao óbvio de que toda poesia é difícil, mas ao fato de que, noutros poetas, irredutíveis uns tantos poemas, o conjunto
da obra acaba permitindo a determinação de certas coordenadas gerais, onde localizá-la, sem
grandes danos para os padrões convencionais. A “dificuldade”, portanto, que
deparamos em poetas de outras tendências será parcial e inserida em contextos mais ou menos familiares.
Em A. M. Lisboa, a “dificuldade” é total, como se em sua obra aflorasse, nítida, a própria consciência do ato
criador, e a partir daí se engendrasse uma poesia essencialmente poética,
obrigando-nos a repensar as próprias bases daquelas coordenadas. Mas a esse tópico
voltaremos, assim que o desenvolvimento o permita. Podemos, por ora, extrair
dessa reflexão preliminar a primeira ideia em que se apoia a interpretação.
De início, e ao
primeiro contato, é inevitável reconhecer que a poesia de Antônio Maria Lisboa é das mais estranhas de toda a moderna
Literatura Portuguesa, quem sabe europeia, e nessa sentido apenas encontra afinidade noutro
poeta adolescente, Jean-Arthur Rimbaud, e talvez em Isidore Ducasse, o Conde de
Lautréamont. A primeira marca dessa estranheza é uma avassaladora energia que a
convulsiona e a transforma em verdadeiro delírio, poesia em combustão, magma
verbal, como se aí o fluxo mental desabalasse em incontrolável carreira. De pronto, a
característica faz lembrar o Álvaro de Campos das “Odes”, mas aí o
vertiginoso decorre também do “motivo” condicionador (a vida marítima, por
exemplo, naquilo que tem de lendário e misterioso) e apresenta-se como uma espécie de ensaiada
coreografia. Em Lisboa, a característica decorre exclusivamente da dicção especial, sem
apoio direto em qualquer “motivo” equivalente, e impregna o conjunto da obra, toda ela
impelida por um ritmo interior alucinante, ao passo que em Pessoa a circunstância ocorre
somente em algumas passagens. Dir-se-ia que outros poetas, sobejamente
conhecidos, alcançam realizar, também por momentos, algo semelhante: certos hinos de Hoelderlin, umas
passagens de certos poemas de Baudelaire, alguns poemas, por
coincidência também marítimos, de St.-John Perse — todos eles irmanados pela presença de qualquer
coisa parecida com o frisson nouveau que Victor Hugo assinalou nas
composições de Fleurs du Mal. Em
suma, e para nos utilizarmos do esquema já clássico proposto por Marcel Raymond, A. M. Lisboa
integra a corrente dos voyants,
a grande descendência poética que tem origem em Baudelaire, passa por Rimbaud
e vem até esses chercheurs d'aventures, que são os surrealistas — e divide o espaço da
modernidade em poesia com a família dos artistes, também de origem baudelaireana. (5)
Veja-se como exemplo o poema “Rêve Oublié”:
Neste meu hábito
surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
Agora na superfície da luz a
procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
Continuar a dar tiros e modificar
a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
Abrir-se a janela para entrarem
estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o teto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o teto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha
de ouro
E no FIM disto tudo um
Azul-de-Prata
Observe-se, entre outros
aspectos, que a estrutura do poema se apoia em dois expedientes básicos: 1°) a organização em quartetos
em que o último verso é regularmente introduzido pela relação temporal “e depois”; 2°) a associação inesperada, pelo absurdo, pela contradição ou a simples
inversão, que se estabelece em cada verso. O primeiro expediente resulta em
rigorosa simetria, acentuada pelo desdobramento anafórico de núcleos parciais,
nos três primeiros versos de cada estrofe (“neste” X 3, “agora” X 3, “continuar” X 3, etc.), e
sugere um esquema lógico de tipo tradicional, em que cada quarteto
proporia uma parcela de raciocínio a ser adicionada regularmente à seguinte, em
progressão cumulativa. O segundo expediente, entretanto, rompe violentamente, e a
cada verso, com qualquer esquema lógico possível, culminando ironicamente com uma “conclusão” final (objetivo
dos esquemas silogísticos daquela espécie) em que o inesperado se requinta ainda mais. A
propósito, um único verso escapa ao mecanismo, o terceiro da quarta estrofe: aí, a associação é perfeitamente lógica e
esperada, “ondas do mar” e “brilho”. Já no primeiro da estrofe seguinte, a indicação de movimento,
“entrarem”, perturba a
logicidade da aproximação entre “abrir-se a janela” e “estrelas”.
Indubitavelmente, o verso “contar as ondas do mar e descobrir-Ihes o brilho” constitui uma
quebra no andamento geral do poema e o enfraquece, porque provoca uma
injustificável ruptura em sua massa atmosférica. Mas, exceção que é, não chega a alterar a configuração geral do
texto, acima descrita. Em suma, o poeta, ao contrário de fugir dos esquemas lógicos, como
quem os temesse, enfrenta-os deliberadamente e até mesmo serve-se deles, para
demonstrar-lhes a falência. É o limite a que chegam a sua lucidez e o seu rigor.
A breve análise é suficiente
para que se verifique a segunda característica. A primeira, a do fluxo delirante de associações absurdas, como
vimos, faria pensar num irracionalismo radical, tendência que o próprio Raymond
coloca na origem da tradição dos voyants. Lisboa, contudo, em meio ao fluxo que em certo sentido
pode ser qualificado de irracionalista, consegue manter-se imperturbavelmente lúcido, senhor do
mecanismo que põe em movimento, e jamais se mostra entregue à “inspiração”, ou coisa que
o valha, como é hábito supor em poetas dessa linhagem. Trata-se duma estranha e diabólica lucidez,
conseguida sem o sacrifício das forças irracionais, a lucidez que não é fruto de um
racionalismo unilateral, aquele do bom-senso cartesiano.
Como marca irrefutável dessa
lucidez, temos que nessa massa incandescente de palavras se inserem reflexões
surpreendentemente iluminadas acerca da criação poética, dos
significados e função da poesia. A. M. Lisboa pode bem ser chamado “poeta do poeta”, para usar a
designação que Heidegger conferiu a Hoelderlin. A propósito, valia a pena registar que essa característica, a da
presença de reflexões acerca de
poesia dentro da própria poesia, é comum a grande parte dos poetas modernos. Sintoma
da profunda e decisiva crise de valores que vivemos, o fenômeno constitui
o derradeiro elo de uma cadeia iniciada, para não recuarmos
muito, com a grande revolução romântica. Um a um, os magnos valores religiosos, políticos, filosóficos, morais
foram sendo postos em dúvida, até que o próprio ato de rebeldia, que é e sempre foi o
ato poético, pôs-se em dúvida a si mesmo. Como se, para compreender o mundo caótico que resultou
do processo, o poeta se visse obrigado a avaliar, antes de mais nada, o próprio ato de
compreender. Antes de emitir juízos, tornou-se imprescindível a determinação precisa da perspectiva a partir da qual
os juízos serão emitidos. E tal determinação processa-se de dentro para fora: o poeta, com o
determinar seu ofício, concomitantemente cria um
mundo (poesia = poien,
fazer), na impossibilidade de simplesmente se situar, e situar sua
poesia, dentro de um mundo previamente dado. Fechado o parêntesis,
voltemos ao nosso poeta, a fim de esquematizar as suas reflexões acerca da
poesia.
Como para Rimbaud, o núcleo dessa poética infusa,
disseminada na poesia de A. M. Lisboa, radica na noção de “alquimia verbal” decorrente de
uma “alucinação dos sentidos” e destinada a “mudar a vida”. A concepção do poeta de llluminations, por demais conhecida,
dispensa determo-nos em sua explicação. Limitemo-nos a salientar o que importa para a
compreensão do poeta português. A “alquimia verbal”, aqui, assume a forma de enumeração ininterrupta
de associações absurdas, portanto inesperadas, em virtude da ausência de conexão lógica entre os
seus termos, o que lembra vagamente, porque noutro plano, o processo da enumeração caótica, estudado
por Spitzer. Tal como ocorre na poesia de Cesariny, em Lisboa também o processo
enumerativo constitui um recurso total e não parcial de estilo, e as
unidades enumeradas são orações e não palavras ou
expressões. Ao lado dessa forma especial de “alquimia”, a concepção de poesia em que se inscreve resulta em encarar o ato
poético como foco de absoluta indisciplina e subversão do real.
Indisciplina no sentido da recusa terminante em adoptar esquemas mentais pré-estabelecidos; subversão, conforme
decorre, no sentido de que essa indisciplina objetiva desmontar toda e qualquer
concepção estratificada da realidade que se baseie no logicismo discursivo e
sistematizador. Noutros termos, um audacioso projeto de rebeldia contra a
rotina, a facilitação, as meias e aparentes verdades aceites como definitivas. Na raiz do
projeto, a “alucinação dos sentidos”: “alucinacão” como troca, mescla, confusão, e “sentidos” na acepção de vias de
acesso ao real. Uma vez obtida, tal alucinacão significa a própria transformação da realidade.
Um século depois, temos a realização do clarividente aforismo de Schopenhauer: “O mundo é a minha
representação do mundo”. (6) E parece que apenas nesse sentido é possível compreender
o changer Ia vie preconizado por Rimbaud.
O ato poético
transforma-se, assim, numa reflexão de tipo radical, uma vez que pretende refazer pela base ou pela raiz, a relação Eu-mundo,
cristalizada por uma tradição simplificadora. A poesia fantástica que daí se origina
endereça-se como um bólido exatamente contra essa lógica ordenadora
e empilhadora de dados, responsável pela esterilização dos impulsos vitais e a redução do homem à condição de máquina que se
autodevora.
Leia-se, primeiramente, um poema,
“Conjugação”:
A construção dos poemas é uma vela
aberta ao meio
e coberta de bolor
e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio
num dente fino
Como Uma Agulha
Como Uma Agulha
A construção dos poemas
A CONS TRU
ÇÃO DOS POEMAS
é como matar
muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar
formigas brancas obsessivamente junto ao peito
olhar uma paisagem em frente e
ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada
nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se
sem pensar de repente
NUM TÚMULO EXAUSTIVO
E, em seguida, um fragmento de um
manifesto:
Houve um tempo em que se negava que o Homem estivesse em estado mórbido com
hidratos no fígado. Não é idêntica, a esta,
a desconfortável sensação dum queixo agudo sobre um olho
que atravessa a garganta. É esse olho que hoje preenche o conceito de Liberdade,
quero dizer: o conceito, se há algum válido, de Poesia, e não Liberdade tal
como nos é definida pelos racionalistas como possibilidade de
Escolha através da Razão, mas como explosão acontecida
no mais profundo do Ser. Síntese que corporiza espontaneamente o poema num ato
tradicionalmente chamado involuntário. É ali o Banco da Poesia — energias de
instintos, previsões, tendências, sentimentos, recalques,
imagens remotas ou recentes. E, em vários momentos, o Poeta reconheceu
nas conchas, nas escamas e nas fibras vegetais essa matéria especificamente
subversiva que tem a Cor do Futuro. (...) A Poesia está na origem do símbolo, e na
concentração sobre o objeto que, de súbito, é um ideal em si
mesmo. Propondo-nos nós a revisão exaustiva do Mito científico,
parcelarmente otimista, e vendo consequências altamente vantajosas,
opomos ao Empirismo a junção do dia AO DIA!
Quer parecer que os textos
evidenciam à saciedade a colocação que vimos propondo. Não obstante,
observe-se como a concepção do ato poético, apenas insinuada no poema, aflora e é tratada diretamente
no manifesto, embora num e noutro a linguagem seja desconcertantemente metafórica. No poema,
encontramos a obsessiva sensação de movimento brusco, para adiante, no encalço do desconhecido,
“um abismo”, após um breve e mágico instante de
paralisação sufocadora, “a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino”. É o ato poético entendido
como um radical ir além de, no encalço da descoberta
de novos significados para o mundo e as coisas. Atente-se sobretudo no penúltimo verso, “sentir a
pedrada e imaginar-se sem pensar de
repente”, em que o “sem pensar” deve ser compreendido como a ausência de apoio em esquemas mentais pré-estabelecidos.
Por outro lado, o “Mito científico”, de que fala o manifesto, prende-se claramente a essa mesma questão, e por isso
deve passar por uma “revisão exaustiva”. Finalmente, a enigmática “junção do dia AO DIA” deve ser
entendida como alusão ao binômio que o texto deixa em suspenso, linhas atrás. De um lado, “o mais profundo
do Ser, Banco da Poesia”, quer dizer, a pura subjetividade e a transcendência; de outro,
“conchas,
escamas, fibras vegetais”, ou seja, a pura objetividade e a imanência. Os dois
extremos devem fundir-se (junção), a fim de que, igualados a si próprios (dia AO
DIA), cada um possa transformar-se no espelho do outro, alquimicamente.
Antes de passar ao tópico seguinte,
assinalemos que a estranheza dessa poesia decorre, além dos aspectos
já examinados, de ela apoiar-se numa imaginação basicamente plástica, pictórica, a partir
da qual vão-se engendrando poemas como quadros sucessivos, cenas formadas
por matéria perfeitamente visível, no entanto impossíveis de visualizar, o que resulta
num absurdo magicamente diabólico, à Jeronimus Bosch, como neste “Poema do Começo”:
Eu num camelo a atravessar o
deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta
Eu num barco a remos a atravessar
a janela
da pirâmide com um
copo esguio e azul coberto de escamas
Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia
Eu na noite com um objecto
estranho na algibeira
— trago-te
Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo.
3. Assentemos o que se nos afigura como a noção básica: grande
parte da magia desses poemas resulta da recorrência ao paradoxo (visível no
expediente da associação inusitada, que atrás examinamos), elemento
primordial no processo criador de A. M. Lisboa. Afastemo-nos do plano analítico e microscópico em que o
problema vem sendo colocado e tentemos considerar seu significado enquanto
efeito global, dentro do sistema em que se insere e que auxilia a erguer. Em
que sentido o paradoxo? Se, de acordo com uma tradição racionalista largamente aceite, concebermos o real, ou aquilo que
podemos chamar de real, como uma sequência infinita de planos dualísticos que
mutuamente se excluem, o que temos na poesia de Lisboa é, de um lado, a
sistemática aproximação dos dados que compõem esses planos, provenientes de
categorias de ser que se antagonizam, e que aparecem “absurdamente” conjugados. De
outro, e como consequência, a violenta desagregação de qualquer
concepção do real que se apoie nalguma espécie de jogo dualístico. Surge, assim, diante de nós uma realidade
inóspita e “sem sentido”, já que não conseguimos enquadrá-la em nenhum tipo de dualismo conhecido, um mundo
que parece resultar de alguma insuspeitada transmutação alquímica. Noutros
termos: vemos erguer-se diante de nossos olhos, que se recusam a crer, um mundo
no qual não somos capazes de distinguir Ser e Não-Ser, um mundo de ininterrupto
Vir-a-Ser, onde todas as coisas são e não são ao mesmo tempo. Mas ainda assim, por maior que
seja o nosso esforço, estamos apenas tentando apreendê-lo a partir das acanhadas perspectivas em que nos
apoiamos. Tal mundo exigiria, para que fosse devidamente conhecido, a formulação de uma nova
perspectiva, para a qual não parecemos estar habilitados. Mas voltemos ao projeto
inicial, na tentativa de compreendê-lo melhor, sem deformá-lo.
Do quadro ainda algo obscuro,
ressalta uma observação que não parece causar transtorno: num dos seus vários sentidos,
o projeto visa à libertação da lógica, e sem dúvida consegue-o. Acompanhemos, então, o seu
percurso, a partir desse ponto mais ou menos seguro. Tal libertação conduzirá a consciência, a do
poeta assim como a do leitor, a uma dimensão superior da realidade, a um universo supralógico. O
processo aí posto em prática resulta na fusão dos planos dualísticos que,
mesclados, passam a constituir uma nova categoria de seres, regida por “leis” próprias, nem
reais nem ilusórias, nem finitas nem infinitas, nem materiais nem imateriais, e assim por diante. (7) Mas uma nova categoria que não se
acrescenta, simplesmente, àquelas de que proveio, porque as congrega e
transfunde, numa nova visão integradora. Não se trata de uma concepção a mais, proposta em termos de
alternativa, para ser escolhida ou preterida em face das restantes, mas de uma
concepção que remaneja, aglutinando-as e portanto conservando-as no seu
interior, as dicotômicas concepções convencionais.
Paralelamente, a própria perspectiva
aberta pelo projeto exclui (e mesmo aborrece) qualquer hipótese de
misticismo ou espiritualismo transcendentalista. Essa dimensão “superior”, essa “outra” realidade não decorre de
nenhuma inserção estranha, de fora para dentro, mas sim dos próprios recursos
humanos, e conserva-se no seu estrito círculo. Trata-se da própria consciência do homem e
do próprio mundo natural compreendidos de uma maneira mais profunda, mais pura
ou mais original, enquanto
compreensão que objetiva atingir as origens da realidade. Metafísica, se se
quiser, mas uma metafísica imanentista. Porque, “diversamente do
para-além religioso, o para-além surrealista não pode
situar-se nem fora deste mundo, nem antes do tempo da nossa vida. É,
paradoxalmente, um para-além imanente, contido nos próprios seres de
cuja aparência a experiência nos liberta. (8)
Estamos diante de uma visão do mundo,
diante de um (à falta de outro termo) pensamento que anseia por conceber a
realidade de um modo radicalmente novo, abarcante e totalizador. Chamemo-lo pensamento poético. Tal expressão, porque pode encerrar um significado
equívoco ou dúbio, deve ser esclarecida. Antes do mais, é o próprio A. M.
Lisboa que a ela recorre, do seguinte modo: “Já não é só a Religião que me limita
os passos e o Horizonte para onde se dirigem, é também a Ciência. O
Pensamento Poético é para mim o único com valor porque é o único interessado na Realidade que se nos apresenta
como um todo e não parcelada.” (EP) E, páginas adiante, caracteriza melhor o que entende por tal pensamento: “Dado o
aparecimento duma estética chamada do Absurdo, e não só desta como de
várias outras encostadas ao que os surrealistas fizeram, com os materiais
usados pelos artistas — damos exaustiva importância a toda acão Mágica, que se
caracteriza, em oposição à Mística: Impositiva, Transformadora, Sintética, Diabólica,
Convulsiva. (...) O poeta já não apela para a lógica do espectador, antes a nega,
nem tão pouco para a sua memória da natureza, mas para a sua Imaginação. (...)
Trata-se de inventar o Mundo!
Descobrir as semelhanças e dissemelhanças, pôr a nu o
rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer um Arco-Voltaico entre Consciente e
Inconsciente, entre Passado e Futuro, provocar um Curto-circuito para os
destruir isolados, para perfurar a Razão com a Loucura e vice-versa.” (EP).
Três ideias básicas, uma
geral abstrata e duas particulares concretas, parecem destacar-se no trecho
transcrito, sustentando-lhe a argumentação: 1a) a ideia da superação do dualismo lógico, a que nos
vimos referindo desde o início deste tópico; 2a) a ideia de que a imaginação ocupa o
centro do projeto que visa a esse fim, como faculdade criadora e
transformadora, destinada a “inventar o Mundo”; 3a) a ideia de que a
tarefa implícita no projeto não pode derivar nem para o racionalismo nem para o
irracionalismo, mas que só é possível, e de fato
somente se concretiza, pela fusão de ambos:
“perfurar a Razão com a Loucura
e vice-versa”. É exatamente a essa fusão que se refere Pierre Emmanuel,
quando afirma: “Quem põe ênfase sobre a razão, engana-se; e também quem a coloca
sobre o ardor. Muito clara uma, muito obscuro o outro: a primeira não pode manipular senão o já-conhecido, a experiência, e de acordo
com princípios que forja a partir de si própria; o segundo entrega-se ao desconhecido, confiando no
imprevisto, que o dispersa sem detê-lo em nada nem
fixá-lo numa forma.” (9) Parece assim
clara a acepção que ganha o termo “pensamento”, como se sabe raramente associado à atividade poética, salvo nas
circunstâncias especiais que tentamos expor.
Finalmente, poderíamos ainda, se
quiséssemos e caso os objetivos deste ensaio o permitissem,
ampliar os limites da questão, estendendo-a
a âmbitos que não são aqueles em que originariamente se coloca. Nesse sentido,
recorramos a um esquema simplificador, sem maiores pretensões do que, somente, a de simplificar. Quando Antônio Maria Lisboa, no primeiro fragmento transcrito, se
refere à Religião e à Ciência, que lhe “limitam os passos e o Horizonte”, parece estar sugerindo a existência de apenas três possibilidades
(Ciência, Religião, Poesia) de
conhecimento ou de perspectiva diante do mundo. A religiosa, interessada no
real apenas na medida em que esse interesse permita a projecão do espírito para fora do
real — misticismo, soi-disant —, é uma perspectiva que em última análise conduz à negação ou ao
menosprezo da realidade. A científica, interessada
efetivamente no real, mas a partir de pressupostos lógico-racionalistas, responsáveis pela
substituição da realidade por esquemas abstratos ou esquemas de aparências, que acabam assumindo maior importância do que a própria realidade,
porque “mais coerentes” — é uma perspectiva que, em última instância, termina por deformar ou parcializar o real. E temos
finalmente a perspectiva poética, cuja
caracterização tentamos esboçar, faltando ainda acrescentar
que, dentro de tal acepção, o poético irmana-se ao filosófico, como nos
primórdios do pensamento ocidental, entre os pré-socráticos.
Tal como acontecera nos tópicos
anteriores, a ideia central do tópico seguinte já está insinuada neste que ora chega a seu final. Isto
significa que estamos fragmentando uma unidade, a estrutura geral do pensamento
de Antônio Maria Lisboa, cuja existência verdadeira se dá na forma de todo orgânico e indissolúvel. Possíveis rupturas
decorrem, pois, da exposição e não da natureza mesma do objeto insólito com que
nos enfrentamos e que só pode ser conhecido pela atomização.
4. Concentremos o núcleo do projeto, assim
considerado, numa expressão mais simples, ou pelo menos não ambígua, enquanto
tal: ver poeticamente. Em
suma, é esse o seu objetivo maior, e não somente o objetivo mas o próprio caminho
para atingi-lo, pois não há tarefa prévia que, uma vez cumprida, nos conduza a ver
poeticamente a realidade: teoria e prática fundem-se na própria atividade em que o projeto
se verifica a si mesmo. Ora, vista poeticamente, a realidade desintegra-se,
multiplica-se em infinitas partículas, que adquirem incontrolável movimento,
e principiam a existir (ou revelam ter sempre existido assim, sem que nos déssemos conta)
perpetuamente em passagem, em transformação. Visto poeticamente, o real perde a estabilidade,
de resto ilusória; desorganiza-se, e devém uma espécie de caleidoscópio, incontrolável e imprevisível. Evidentemente,
nos referimos ao efeito global que resulta do conjunto da poesia de Lisboa, efeito
que em verdade decorre da acumulação de pormenores, poema a poema. Daí ser pouco provável que um
deles, isolado, consiga sugeri-lo. Entretanto, vejamos:
UMA VIDA ESQUECIDA
Eu conheço o vidro
franja por franja
meticulosamente
à porta parado
um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta
parada
Um relógio dá dez badaladas
ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um
vampiro recuados no tempo.
Parece clara no texto transcrito
a ideia de que ver poeticamente significa, ao lado de outros componentes, a
desarticulação do real, e a consequente perturbação da sua estabilidade e equilíbrio. Atente-se,
sobretudo, no verso “um homem com pernas de mulher”, onde o
procedimento se torna até excessivamente explícito, quase didático. (10) Mas vamos diretamente ao
que importa. Tal desarticulação promove, inevitavelmente, a articulação de novas realidades,
por justaposição, superposição, simbiose, osmose, etc. O mundo vai-se povoando de seres grotescos e
fantásticos, que jamais se repetem, pelo fato mesmo de estarem imersos em
permanente metamorfose. Ergue-se a partir daí uma realidade
descontínua, fragmentária, gerada
segundo mutações absolutamente arbitrárias, no sentido
de alógicas, e não segundo
qualquer lei ou princípio imposto de
fora. Qualquer coisa como um fantasmagórico consórcio de seres que ininterruptamente se intercambiam partes,
membros, atribuições, significados, como a prodigiosa e inesgotável multiplicação do caleidoscópio. Chamemo-lo “transmutação alquímica”. Para o poeta, assim convertido numa espécie de alquimista, a realidade não passa de um vasto e farto campo de experimentações, onde nada está definido nem é definitivo, tudo pode transformar-se, embora nada desapareça, porque todos os seres cedem suas aparências circunstanciais a novos seres, que jamais deixam de
surgir. O poema passa a ser, então, uma espécie de “retorta” onde se forjam insuspeitados mundos, não “nas trevas”, como na Idade Média lendária, mas “às claras”, já que esses mundos
insuspeitados estão paradoxalmente aqui, diante de nós, porque criados com matéria extraída deste nosso mundo, embora nunca o tivéssemos notado.
Aí está um dos núcleos e um dos
significados mais importantes desse pensamento. Todo esse jogo, fantástico ou sobrenatural apenas na aparência, está interessado
exclusivamente no homem e no seu mundo, dele se origina e para ele retorna. E o
paradoxo se explica porque “a poesia é magia pela magia, magia sem esperança; o poeta, um mágico que se
entrega aos ritos por eles mesmos, e daí não espera nada salvo os Erlebnisse que se identificam
com o próprio ato de perpetrar esses ritos”. (11)
Em certo sentido, estamos diante de uma visão ingênua da realidade, pois resulta na confusão das partes que a
compõem, em decorrência de os objetos
não ocuparem aí lugar fixo nem possuírem sentido definido. Confronte-se essa observação com o
seguinte quadro: “No princípio, tínhamos aquilo que se chamará mais tarde, por incompreensão, o caos, que
não era nada mais que o universo do dinamismo — atualmente,
diríamos universo da energia radiante — isto é, um cosmos qualitativo, onde os seres e os objetos não se ofereciam
como distintos uns dos outros.” Tal é, segundo Pierre Gordon, a característica fundamental
da mentalidade do fim do neolítico, e salta à vista a semelhança com o que acabamos de apontar
na poesia de A. M. Lisboa, que nos ofereceria, então, uma espécie de revivescência de uma visão primitiva da
realidade. O quadro torna-se ainda mais revelador, linhas adiante, quando o
antropólogo descreve a passagem para um estágio ulterior, assinalando uma forma de “violentação”, que seria
justamente o alvo visado pela rebeldia do poeta: “A violência do homem
rompeu essa unidade primordial e introduziu a segregação espacial e
temporal. Os seres
foram então cindidos e cada um pareceu assumir uma parcela autônoma de existência.” (12)
Como entender a estranha coincidência? A
magnitude do problema e principalmente o fato de não poder ser
examinado senão em termos de conjecturas impedem que tenhamos uma resposta satisfatória. Após vários séculos de
civilização, estaria o homem voltando à sua situação de origem? Não passariam, esses vários séculos, de uma
camada superficial, facilmente removível, o que poria à mostra o primitivo ainda
presente? Ou, de modo mais simples, como afirma Monnerot: “A poesia de
hoje, por seu próprio modo de existir, reflete a nostalgia de um mundo perdido, em relação ao qual as
nossas disciplinas parciais aparecem
como sombras desagregadas, desagregação que remete àquela da própria vida
atual, onde não se encontram senão fragmentos de conhecimento, onde as
possibilidades e os poderes humanos, truncados, se assemelham a esses grãos de
poeira suspensos num raio de sol, e cuja multiplicidade indefinida e a
vacilação contínua ou adormecem e desencorajam ou excitam brevemente.” (op. cit. p. 20)
Enfim, não temos senão conjecturas em torno das hipotéticas relações
entre mentalidade “primitiva” e mentalidade “moderna”. Uma verificação, porém,
parece inevitável: a poesia de Antônio Maria Lisboa suscita indiscutivelmente
alguns dos cruciais problemas do homem contemporâneo. Mas retomemos o fio da
explicação, a fim de cruzar a ideia central deste tópico com o problema do
dualismo, examinado no tópico precedente.
Essa desagregação ou desarticulação do real significa que as dualidades
em que cautelosamente se apoia a lógica convencional, conforme vimos, perdem a
razão de ser, porque se fundem numa só entidade. Cada par antagônico, por si,
microscopicamente, e a totalidade inumerável desses pares, macroscopicamente,
se conjugam numa síntese unificadora. No fim de contas, como num paradoxo
final, mas inevitável, a consciência vê erguer-se diante de si, límpido,
vitorioso, pulsando ainda ao calor da tensão: o Uno, o Absoluto. (13) Quer
dizer, atomizada, esfacelada, multiplicada, a realidade deixa de ser o conjunto
estratificado de dimensões antagônicas, que mutuamente se excluem, para se
transformar no palco de contínuas e inusitadas mutações, presididas pelo
princípio da reversibilidade. Nada pode estar seguro de sua própria ipseidade, tudo pode tornar-se outro, como se tudo circulasse por
invisíveis, e também mutáveis, “vasos comunicantes”, porque na verdade tudo
equivale a tudo. A única ideia possível de Unidade seria a radical Diversidade.
Compare-se o pensamento do poeta com o seguinte fragmento de Plotino, com o
qual também curiosamente coincide: “Cada coisa no céu inteligível também é céu,
e aí a terra é céu, como também o são os animais, as plantas, os homens e o
mar. Têm por espetáculo o de um mundo que não foi ainda engendrado. Cada qual
se contyempla nos outros. Não há nada nesse reino que não seja diáfano. Nada é
impenetrável, nada é opaco e a luz encontra a luz. Todos estão em todas as
partes e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O sol é todas as estrelas e
cada estrela é todas as estrelas e o sol. Ninguém ali se move como se estivesse
numa terra estrangeira.” (14) Tal é o aspecto que, diante do nosso olhar
atônito, assume o real desintegrado pelo verbo poético.
Subvertida assim nessa espécie de magma, a realidade tanto pode estar num
“botão de camisa” como numa “Andorinha Azul de chapéu mole”, e pode estar
integralmente num ou noutro, porque tudo — botão, andorinha etc. — não
passa de aparência, cifra, máscara provisória que reveste uma e a mesma
realidade maior, sempre e progressivamente oculta, e é inegável quando essa
concepção ao esoterismo, como se de fato existisse um Absoluto, uma Essência ou
algo semelhante, noção dificilmente aceitável pela mentalidade
irremediavelmente cética e relativista do homem contemporâneo. Mas um Absoluto
que não estivesse inerte nalgum ponto, à nossa espera, e se movesse, na razão direta do
nosso movimento ou do nosso conhecimento ou da nossa intensidade de vida. A
esse Absoluto parece que é de todo impossível aceder: quanto mais avançamos, mais próximos e distantes
dele estamos. E isto já sugere o tópico seguinte.
5. Absoluto, Essência: parecem termos inadequados,
comprometidos por uma secular tradição filosófica atualmente no auge de uma profunda crise, ao
que tudo indica, mais propensa a aboli-los sumariamente do que a reconceituá-los noutras
perspectivas. Vejamos se é possível dize-lo de outro modo. O que sustenta o mundo
criado por A. M. Lisboa é a condição de totalidade que o anima, um mundo
fechado, coeso, contínuo, como uma esfera sem rupturas nem fragmentações, por
paradoxal que isso seja, diante das aparências de que se reveste. Tal condição decorre,
primordialmente, da mútua identificação e absorção entre a consciência e a realidade percebida por
ela, através do ato de pensar poeticamente o real: “Negra Atividade Poética que nos
leva a criar entre o indivíduo e o Cosmos um corredor livre e por ele um
movimento incessante de enriquecimento comum”. (IOU) Numa palavra, a condição resulta de
uma especial modalidade de relacionamento entre o ser que conhece e aquilo que
é conhecido, o
Eu e o Mundo. É essa relação que tentaremos deslindar, a partir do texto:
RECUSA III
— Eu sou uma
coisa qualquer
eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA
QUALQUER
—eu sou uma cidade
—eu sou Zanoni de Bulwer Lyton
—eu sou uma errata
—onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
—onde está Deus deve-se ver o Diabo
—onde está o Amor deve estar o Grande Amor
Mágico Amor Meu
Mágico Amor Meu
—onde estou eu deves estar tu
—onde estão os lábios da nossa vida HÁ
uma porta secreta minúscula
uma porta secreta minúscula
O-AMOR
MEU AMOR.
O poema, certamente dos mais
ricos e significativos da obra do poeta, gira na sua primeira parte em torno da
sensação de coisa que pode tomar de assalto o homem que se pensa e que
pensa o mundo: a reificação do Eu. Tentemos descobrir as raízes da sensação. O contato
entre consciência e realidade, do modo como se configura na poesia de Lisboa, resulta
sempre em atrito, constante e desgastador, é uma relação
indesejadamente conflituosa. A tarefa de conhecimento dessa realidade (em última instância, o único propósito real que justifica a relação) somente pode concretizar-se à medida que o
sujeito cognoscente estabeleça para si um lugar ou nível determinado,
em tudo e por tudo distinto do lugar ocupado pelo objeto cognoscível. Noutros
termos, a consciência vê-se obrigada a aceitar uma rigorosa autonomia de estrutura para si
mesma, e outra para a realidade, seja encarada parceladamente, seja no
seu todo. Em seguida, a tarefa tentará a aproximação dos níveis, a eliminação da distância e a integração de ambas numa estrutura comum.
E aí surge o atrito. Nessa tentativa de integração, ora o sujeito, ora o objeto se
vê usurpado, total ou parcialmente, da sua autonomia, conforme a ênfase da relação recaia num ou
noutro pólo, e o conhecimento não se realiza em termos satisfatórios. O atrito
cresce horizontalmente quando o sujeito percorre a assustadora legião de seres e
objetos que se apresentam à sua disposição, cada um deles mergulhado em sua indevassável circunstância própria, isolado e
alheio, compondo um mundo de estranhezas, com o qual a consciência não alcança estabelecer
qualquer afinidade. Para o Eu que assim o pensa, o mundo revela-se despido de significado,
um mundo para o qual a consciência não é capaz de atribuir significado algum, convincente e
duradouro, a não ser que os invente e os impinja, arbitrariamente (e se transforme naquilo
que Sartre chama de má-consciência), a
partir de
imprevisíveis movimentos em que o Eu se revolve a si mesmo, igualmente isolado e
alheio, comprimido na sua também indevassável circunstância.
Mundo sem significação, mundo
coisificado, o cosmos quantitativo, de que fala P. Gordon. É imediato deduzir que a relação conflitiva
que o Eu estabelece com o Mundo decorre dessa ausência de afinidade e comunhão entre um e
outro. A medida extrema a que recorre a consciência, perplexa diante do quadro
assim constituído, é tentar reconhecer-se mera coisa, dispersa entre coisas, reificar-se a
fim de se igualar a um mundo em face do qual rejeita sentir-se estranha. Isto,
no entanto, seria abdicar da possibilidade de conhecimento.
Quer dizer, caso o Eu alcançasse reduzir-se à condição de coisa,
conhecer seria então tarefa confiada a uma terceira entidade, capaz de pensar o real (= Eu +
Mundo) coisificado. Daí a hesitação que se segue à afirmação inicial, “Eu sou uma coisa qualquer”, sob a forma
de desdobramentos por permutações. A hesitação, de um lado, denuncia a recusa da consciência em
negar-se a si própria, mesmo porque, afirmar-se coisa já significa deixar de sê-lo. Por isso,
a afirmação vai sendo desdobrada, na expectativa de que se possa encontrar no seu
recesso algum novo sentido que não seja aquele evidenciado na fórmula inicial.
De outro lado, denuncia igualmente a absoluta arbitrariedade que se instala no
horizonte do real, reduzida a relação à escala da coisidade: nada significa nada, tudo se
equivale, e as palavras brotam fáceis, sem nenhum peso ou valor. Finalmente, fechando
o círculo, a afirmação irritada e triunfante, em caracteres garrafais: “EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER”.
Em suma, reduzir-se à condição de coisa não soluciona o
impasse. A solução, propõe-na a segunda parte do poema: o Eu não é o Eu, o Eu é o Mundo.
Repare-se, a propósito, como a partir da assertiva “eu sou uma errata”, o mundo que não é o mundo mas é o Eu, ou
vice-versa, se desdobra naquele dualismo que já examinamos:
minha/nossa, Deus/Diabo, Eu/Tu, de tal modo que os termos oponentes se
identificam pela transição do relativo “estar”, e o percurso culmina com a referência ao Amor,
de que trataremos na parte final. Mas vamos ao que mais importa. Até aqui, examinamos apenas
alguns aspectos do problema, sem pretender sua análise exaustiva. E deixamos para o
final o aspecto que, mais do que os outros, pode ajudar a solver o enigma.
O texto em causa organiza-se
sobre um expediente simples, de resto comum a quase toda a obra, que é o da obstinada
insistência na primeira pessoa. À parte isso significar um possível
enquadramento numa grande linha neo-romântica da poesia moderna; à parte o que o
fato em si possa conter de ingrediente paranóide — o que temos é uma postura
mental guiada por uma desmesurada introjeção, mas lúcida e não apenas emocional, da qual resulta uma igualmente
desmesurada ampliação do mundo subjetivo, a ponto de poder abarcar toda
a realidade circundante. A dilatação do Eu acaba envolvendo o mundo em redor, fazendo-o
mergulhar numa espécie de limbo, que então se habita de formas indiferenciadas. A consciência atenta e
decidida transforma-se numa espécie de placenta, a partir da qual o real se cria.
Real? Parece inadequado chamar ainda “real” a um mundo que se transfigurou para
além de si mesmo. Meta-real, supra-real — os nossos recursos são insuficientes
para designá-lo.
Mas vejamos a relação de outro ângulo. A insistência no Eu
decorre da fixação de um ponto de vista, o único a partir do qual se torna possível a atribuição de qualquer
sentido à realidade. A explicação, ao menos em esquema, parece simples. Quando
afirmamos que, em Lisboa, o real aparece como uma série de dados
isolados e incomunicáveis, ficou implícito que a afirmação se estende
também à realidade humana, no sentido de que cada consciência individual
constitui um pequeno mundo fechado em si mesmo e, quer saiba, quer não, defrontado
com uma realidade carente de sentido, à qual é preciso atribuir um, tão amplo quanto
possível. Isto quer dizer que a realidade terá teoricamente tantos sentidos
quantos forem os indivíduos que se debrucem sobre ela, todos eles contraditórios, inconciliáveis... e todos
legítimos. Temos uma imagem, talvez não muito convincente, porque esquemática, do caos.
Para desfazer ou atenuar o caótico, cada indivíduo se vê na contingência de assumir
ou reproduzir em sua mente toda a humanidade. Como? Como o tenta o poeta: adotando
diante da realidade um ponto de vista absolutamente móvel, capaz de
abarcar todos os possíveis e fixos pontos de vista adotados pelos outros.
Uma espécie de ultraversatilidade que levaria o poeta a ser todos e nenhum, a um
só tempo, à custa de ser profundamente e essencialmente ele mesmo. O paradoxo está em que tal
realização, que tem por objetivo uma suficiente Weltanschauung, só se faz possível através de um
rigoroso e obstinado individualismo. Como se, eliminadas as aparências que a
camuflam, a realidade se mostrasse uma só, independentemente das diferenças individuais
e independentemente de qualquer ponto de vista que adotemos. No entanto, uma
só realidade
jamais apreendida como tal, porque sempre renovada, conquistada e a conquistar,
indefinidamente, a cada movimento do espírito.
E com relação ao
individualismo, o poeta demonstra estar cônscio do problema, ao afirmar: “Uma mudança de rumo em todos e em tudo não pode deixar
de começar em nós individualmente”. Ou quando reflete: “A responsabilidade social do
nosso próprio lugar cabe-nos inteiramente e de bom grado não a daremos a
ninguém. Crentes de que a todos lhes acontece o mesmo, só poderemos,
dentro de uma possível crítica, criticar o Indivíduo e não todo um Sistema ou Método de Ideias e Ação a que
porventura diga subordinar-se. Eu sei que todo Sistema ou Método apreendido
sofre uma transformação mais ou menos profunda no sujeito que o apreendeu
e, portanto, seria tolice atacar as fontes, onde muitas vezes nós próprios fomos
beber também, e esquecer o indivíduo que honestamente, ou não, afirma que
seja assim, e um assim
de que só ele sabe”. (EP)
Parece, então, esclarecido
o problema central deste tópico. Restaria, entretanto, explicitar o sentido
que adquire o mundo assim concebido. Ou, obviamente, o sentido que lhe atribui
Antônio Maria Lisboa, o que tentaremos no capítulo final. Antes, porém, vale a pena
considerar um aspecto tangencial, que completará o quadro.
Está visível, ao que
tudo indica, que Lisboa realiza efetivamente a essência dos mais
caros ideais do Surrealismo. Estamos talvez diante do mais surrealista dos
poetas surrealistas, exatamente porque, ao contrário de Breton, Soupault, Eluard e
outros, não se preocupou em erguer ou seguir nenhuma doutrina literária, e também porque,
inclusive, recusou-se a ser chamado surrealista. Ora, o autêntico espírito surrealista
(que não se confunde com a doutrina,
a de Breton ou outra), acaba por se revelar uma espécie de substratum mais ou menos comum a todos os
grandes poetas de todos os tempos. Dir-se-ia, então, que a doutrina surrealista
teve o mérito de tornar consciente e mostrar explicitamente aquilo que nas estéticas anteriores
era apenas presença difusa ou latente: uma larga e abstrata concepção de poesia,
que parte das interrogações fundamentais — Para quê a poesia? Para
quê ser poeta? E, por outro lado, ao contrário do que pede a doutrina (e
mais não poderia pedir, porque esse mais somente enquanto realização efetiva pode
consubstanciar-se em palavras), o que temos na poesia de Lisboa não é um mero apelo
ao irracional ou ao inconsciente, paralelamente a uma repulsa da razão. Aliás, o “surrealismo bem
comportado” da poesia assim conseguida resulta apenas num objeto exótico,
adicionado às categorias lógicas de um real que permanece mais ou menos
intacto. Trata-se,
isto sim, de um “fortalecimento da razão através duma profunda e abundante absorção de elementos
inconscientes” (IOU). Quer dizer, o fantástico consubstanciado nessa poesia não decorre propriamente
da pura imaginação, mas da razão mesma, convenientemente utilizada, ou seja, com
liberdade e desinibicão. Como se, também no plano mental, se verificasse
uma orgânica solidariedade entre fantasia e razão, delírio e
linguagem. Vale dizer, a relação dicotômica Eu-Mundo somente pode ser refeita a partir da
reformulação da dicotomia equivalente que a convenção atribui ao primeiro termo do
binômio. Eu dividido = Eu divorciado da realidade; Eu unificado = Eu integrado na realidade. De fato, é uma realidade duplamente fantástica a que
deparamos na poesia de A. M. Lisboa. Cada poema constitui uma ebulição alucinatória cuja tensão se mantém incrivelmente
coesa, constante. Um mundo de fulgurâncias, expressão irretorquível da sensibilidade visionária de quem
parece manter familiar e ininterrupta convivência com uma supra-realidade, um
universo paralelo, que aos nossos olhos escapa de todo. Não obstante aí esteja, diante
deles.
6. Caso tenhamos conseguido reconstituir as características e a
atmosfera da obra de Antônio Maria Lisboa, será imediato reconhecer que, diante
dela, é infalível o espanto, o estarrecimento do leitor, que se vê defrontado com
o insólito e o inexplicável. Afinal, que significado terá esse
conglomerado de enigmas? É o que tentaremos esclarecer, voltando a atenção para as
recorrências temáticas, que sem dúvida existem
nessa poesia. Uma constante se destaca, entre outras: o Amor. (15) Vejamo-lo a partir do texto:
Sempre que o Sol cair hei de
erguer-te em Oração lenta e longa, farei de ti um
Objeto de Ouro para mergulhar no Lago debaixo das Acácias, transformar-te-ei
em Corça e deixarei que corras os Bosques sem perigo, olhar-te-ei de frente até cairmos
fascinados e vivermos ambos o Arco-íris da Memória! Abertos os
Templos do Amor nas montanhas, descobertas as Grutas com Mil anos de existência, cavadas
as Passagens Secretas próprias para a fuga dos Amantes mais tímidos, semeados
os Prados em forma de Leito e as Florestas Virgens onde os isolados se encontram
como por encanto, abertas as Nascentes de milhares de Rios por onde flutua sempre
uma Mulher Bela — e isso tudo de maneira esquisita como se não fosse real — fixadas as
Legendas próprias e íntimas desta Vida Selvagem no
Inconsciente do Mundo, chegados à Vida Universal onde tudo acontece sem explicação, porque tudo é real em nós, e onde não haverá conhecimento a
não ser o nosso próprio conhecimento, onde o Intimismo de Cada Um é o Intimismo
Universal, reconstruído o mundo pela negação: farás uma pergunta
tonta, sem utilidade visível, pois não é necessária uma
pergunta lógica para se responder certo. Depois, desfeitas as
barreiras da Realidade Tangível, erguidas as Novas Cidades onde habitarão os Poetas — ajudarei a
vestir-te e a despir-te de perfumes exóticos Solenemente! (EP).
De início,
ressalte-se que a circunstância amorosa proposta na poesia de Lisboa não se confunde
com a obcecada, deliquescente e mórbida sexualidade ou sexomania de boa parte das
expressões surrealistas. Como era de esperar, em face dos antecedentes, o sentimento
amoroso é aqui entendido não só como libertação de instintos sexuais nem só como contemplação
espiritualizante, mas como a fusão de ambos. Mostra-o a imagem de mulher que aí se ergue. Um ser especial, misterioso, exatamente por seu hibridismo carne-espírito, foco
solicitador de emoções e inteligência a um tempo. Nesse sentido, a mulher “está em íntima relação com as forças animais da
natureza e, por esse motivo, com o inconsciente; mas possui asas, e por isso
está em comunicação também com os mundos superiores, aqueles para onde se alteia, segundo a lenda,
quando seu esposo pretende, ilegitimamente, violar o seu segredo. No entanto, é mulher também e pertence ao
mesmo tempo ao nosso mundo. Ela é, pois, a síntese viva dos três reinos da realidade. (16) Diante de tal ser, é inevitável que se
instale, na base da disposição amorosa por parte do homem, a atitude da adoração: “Hei de erguer-te em Oração”. Adoração, porém, que não significa a postura estática diante de
uma entidade superior, isolada numa esfera inacessível, como tem
sido normalmente a figura idealizada da mulher ligada ao “culto marial”, em toda a
poesia do Ocidente. Ao contrário, adoração no caso não é senão a fórmula encontrada pelo amante para propiciar a
conjugação com o ser amado, a fim de que ambos se irmanem na mesma esfera comum: “Olhar-te-ei de
frente até cairmos fascinados e vivermos ambos o Arco-íris da Memória!” Tal atitude
denuncia o fundo religioso ou sacralizado que enforma o ato amoroso, assim
compreendido. Trata-se da suspensão extática diante da mulher, então encarada
como centro ou núcleo do Mundo, exatamente porque um ser híbrido, através do qual o
homem se reintegra ou se re-liga a um universo em face do qual se sentia
estrangeiro. (17)
Noutros termos, amor não seria, assim,
nem o amor de si mesmo, nem o amor do objeto amado, nem o amor do amor — mas o amor de
algo outro, o Oculto. No instante mesmo em que se realiza, o amor deixa de ser apenas amor e passa a ser
a realização da “verdadeira vida”. Do modo como o entende A. M. Lisboa, e de resto o
pensamento é endossado, com ligeiras discrepâncias, pelas teorias surrealistas, (18) o amor e a
mulher transformam-se numa espécie de conduto, passagem ou interregno: “Descobertas as Grutas, cavadas as Passagens Secretas, abertas as Nascentes de Milhares de Rios” etc. — vias para a
conquista do Absoluto, a “Vida Universal onde tudo acontece sem explicação”, ou seja, para
a integração, e de certo modo re-integração, do homem na realidade. E tal se dá porque é de fato
somente através da experiência amorosa que se opera o desejado pleno encontro do subjetivo com o
objetivo e que se dá a igualmente desejada fusão dos contrários. O Eu é o Outro, o
Outro é o Eu, porque na verdade deixa de haver um Eu aqui e um Outro além, para haver simplesmente o puro
existir, o puro Ser em que todas as formas particulares do real se fundem,
ali, “onde o Intimismo de Cada Um é o Intimismo Universal”.
Em síntese, o amor
abrange um amplo e generoso projeto existencial que necessariamente leva
amante e ser amado a saírem para fora do estrito círculo amoroso,
como tal. E, para que se cumpra, o projeto implica uma condição fundamental,
que tentaremos mostrar a partir do texto.
Amor confuso, amor repetido, amor
esotérico, amor mágico
— MAR
— MAR
mar perdido de conchas no meio do
mar
mar de marés justapostas
de amor num mar de marfim perdido no teu joelho de marfim
mar de bosques que anuncia ao
estrangeiro a terra perfumada
oceano no teu oceano de olhar
oceano no teu oceano de olhar
Amor sem nexo, amor contínuo, amor
disperso
— MAR
— MAR
mar com uma bala direita no cérebro
mar sem apoio em nenhum ponto
perdido no espaço, mas preso apesar de tudo numa enorme teia
diabolicamente construída para ser livre (...)
Ficar depois energeticamente
deitado até à descoberta da máquina de que só eu tenho o projeto
até me crescerem as barbas e com elas amarrar-me à cama onde me encontro deitado
e ficar a arquitetar crimes e
caridades
até tu vires ler-me as minhas ideias rascunhadas
na minha
outra Liberdade.
Além de outros aspectos dignos de
menção, atente-se para o mais importante que é o fato de o texto exibir com
clareza a atitude básica que norteia os movimentos do poeta na circunstância amorosa: o
entusiasmo, a impulsão arrebatada e arrebatadora. Numa palavra, a condição da passionalidade, fundamento de tal concepção amorosa. E
aqui se evidencia o que afirmamos no início, com relação à avassaladora energia que convulsiona os poemas de
A. M. Lisboa. Passionalidade significa aqui o empenho total, sem reservas nem
economia, sem hesitações, constrangimentos ou subterfúgios, do ser em
combustão, guiado por um impulso energético incontrolável, desejo de vida plena. Como se fosse apenas através da atividade
amorosa, regida pela passionalidade, que o homem pudesse alcançar libertar-se
das aderências e das falsas imagens de si mesmo e dos outros, para entrar na posse
do seu Eu verdadeiro, da sua mais legítima autenticidade, para então se reconhecer
igualado ou irmanado às forças cósmicas.
O amor transforma-se assim
na expressão grandiosa do ser que se conquista a si mesmo, pelo uso da plena liberdade, e ao mesmo tempo se torna expressão simbólica do ato
supremo em que o ser alcança dirigir-se para fora do seu mundo fechado, a fim
de se dedicar inteiramente à tarefa de compreensão do Outro, absorvendo e sendo
absorvido, confundindo e sendo confundido, no mais puro e amplo conhecimento
da realidade.
A tríade em grifo no
parágrafo anterior acaba por se constituir numa espécie de “plataforma” ideológica da poesia
de Antônio Maria Lisboa, (19) em
termos de infatigável rebeldia e, ao mesmo tempo, libelo e apelo. Quer dizer, diante de um
mundo em que tais aspirações — liberdade, amor, conhecimento — se revelam
irrealizáveis, em nível de pureza, integridade e autenticidade, não resta senão fazê-lo explodir,
através da Poesia, ato de integral liberdade, amor autêntico e puro
conhecimento. Premido, sufocado, usurpado, e assim por diante, o poeta, em vez
de se remoer e se destruir na aceitação inglória e conformista das meias verdades e meias soluções que a
realidade lhe oferece, busca afirmar-se e manter a própria integridade, em face de um mundo que se
fragmenta, e que ele tenta reconstruir, a seu modo. E fazê-lo significa o
compromisso altivo, sem qualquer sombra de desalento, lamúria ou
passividade derrotista, com a tragicidade que a consciência de tal
circunstância acarreta. Assumindo-o, o poeta deixa em aberto insondáveis perspectivas
para um futuro, nem pessimista, nem otimista, quem sabe mais humano.
NOTAS
(1)
A Intervenção
Surrealista, Lisboa Ulisseia, 1964, p. 64-65.
(2) A Afixação Proibida. Primeira Comunicação Pública do Movimento Surrealista (colab.), Lisboa, Contraponto, 1953; A
Verticalidade e a Chave, Lisboa, Contraponto, 1956; Aviso a Tempo por Causa
do Tempo, in Pirâmide, n.° 1, Lisboa, 1959; Erro-Próprio, Lisboa, ed. do A., 1952; Exercício sobre o Sonho e a Vigília de
Alfred Jarry seguido de O Senhor Cágado e o Menino, Lisboa, Ed. Gráf. Portuguesa, 1958; Isso Ontem único, Lisboa, Contraponto, 1953;
Ossóptico, Coimbra, ed. do A. 1952; Poesia (antologia),
Lisboa, Guimarães, 1962. Os textos serão indicados pelas iniciais dos títulos mais o número da página.
(3) Carta a Mário Cesariny, sem data, recebida em 28-4-1950, in
A Intervenção Surrealista, p. 159-164.
(4) A Intervenção
Surrealista, p. 166-173 e 177-178.
(5) MARCEL RAYMOND, De Baudelaire au Surréalisme (éd. nouvefle, revue et remaniée), Paris, José Corti, 1966,
p. 11 e ss.
(6) ARTHUR SCHOPENHAUER, O Mundo como
Vontade e Representação (trad. bras.), São Paulo, Brasil
Edit., 1963, p. 18.
(7) “Aí está, sobretudo, o
lugar ganho pela poesia como parte da vida do homem, a consciência de que
nela se dá a mais autêntica fusão entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível, entre o
racional e o irracional”. (ADOLFO CASAIS MONTEIRO, A Palavra Essencial, São Paulo, Ed.
Nacional, 1965, p. 91).
(8) FERDINAND ALQUIÉ, Philosophie du Surréalisme, Paris, Flammarion, 1966, p.
116.
(9) PIERRE EMMANUEL, Poésie Raison Ardente, Paris,
Egloff, 1948, p. 192.
(10) A propósito, esse verso, associado ao “olhar devasso” do seguinte,
revelaria uma série de conteúdos latentes, de fundo visivelmente erótico, caso procedêssemos a uma
leitura psicanalítica do texto. Isso porém desviar-nos-ia dos propósitos básicos: a
compreensão do conjunto da obra. Entretanto, tal enfoque não poderia ser
desprezado. A ele temos recorrido, quando o andamento da exposição o solicita, e
a ele voltaremos, sempre que possível.
(11) JULES
MONNEROT, La poésie moderne
et le sacré, Paris,
GaIlimard, p. 18.
(12) PIERRE GORDON, L’image du monde dans l'antiquité, Paris, P.U.F., 1949, p. 3.
(13) “Tudo leva
a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e
o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o in comunicável, o alto e
o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente. (A. BRETON, Manifestes du Surréalisme, Paris,
Gallimard, 1963, p. 76-77.)
(14) Apud JORGE
LUÍS BORGES, Historia de la Eternidad,
Buenos Aires, Emecê, 1953, p. 15.
(15) A problemática amorosa assumiu primacial
importância nas postulações do Surrealismo. Foi estudada exaustivamente por
Alquié, Carrouges e outros, além de ter merecido uma “Enquête”, organizada
por Breton (La Révolution Surréaliste, n° 12, 1929). Mesmo fora do âmbito
surrealista, a afirmação parece manter-se. A problemática amorosa
tende a transformar-se num ponto de convergência de todas as grandes inquietações do homem
contemporâneo, ao menos de acordo com a maior parte dos poetas, ficcionistas,
dramaturgos, cineastas etc. Como se o amor estivesse fadado a tornar-se verdade
absoluta, derradeira
possibilidade de integral realização humana. Nesse sentido, aliás, toda a arte
de todos os tempos, eliminados os aspectos circunstanciais, parece tratar de um
só tema: o amor e suas modalidades.
(16) MARCEL CARROUGES, André Breton et les données
fondamentales du Surrealisme, Paris, Gallimard, 1967, p. 285.
(17) “No fim do neolítico, esses caminhos ofereciam, por outro lado, a vantagem
de se ligar estreitamente ao ritual fálico, que se propunha restabelecer,
pela união sexual praticada de maneira santa, e como sacramento, a unidade
primitiva do céu e da terra; a integração de um sexo em outro, efetuada sob certas condições, suprimia o
múltiplo e remetia o par humano à existência divina primordial.” (PIERRE GORDON,
op. cit., p. 4).
(18) “Nele [o amor] se reencontram os prestígios do universo, todos os poderes
da consciência, toda a agitação do sentimento; através dele se efetua a síntese suprema
do subjetivo e do objetivo. é do amor que os surrealistas esperam
a grande revelação.” (F. ALQUIÉ, op. cit., p. 117.)
(19) “Não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o
conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, cientifico) mas na e pela
Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos a estes.” (A. M. LISBOA,
Aviso a Tempo por Causa do Tempo,
transcrito em «Surreal-Abjeccion (ismo), Lisboa, Minotauro, 1963, p. 47.)
*****
ESCLARECIMENTO DO AUTOR
In Poesia de Antônio Maria Lisboa,
texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos, Lisboa, Assírio e Alvim,
1977, p. 343-381.
A primeira versão desse texto aparece como capítulo da minha
dissertação de mestrado ("Antônio Maria Lisboa: O Mundo
Imaginado"), defendida na USP em 1969. Trabalho pioneiro, um dos
primeiros sobre Surrealismo, na universidade. Nunca publiquei a dissertação na
íntegra, mas esse capítulo (já uma segunda versão) eu incluí no meu livro
"A Multiplicação do Real" (São Paulo, Conselho Estadual de
Cultura, 1970, págs. 53-84).
Em 1976, o Cesariny (eu me correspondia com ele fazia um bom tempo) me pediu autorização pra publicar esse texto na edição do AML que ele estava preparando. Mas eu mandei a ele uma terceira versão, acho que melhorada - que no mesmo ano também saiu no meu livro "Poesia e Realidade" (São Paulo, Cultrix, 1977, págs. 184-211).
Em 1976, o Cesariny (eu me correspondia com ele fazia um bom tempo) me pediu autorização pra publicar esse texto na edição do AML que ele estava preparando. Mas eu mandei a ele uma terceira versão, acho que melhorada - que no mesmo ano também saiu no meu livro "Poesia e Realidade" (São Paulo, Cultrix, 1977, págs. 184-211).
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos
Felipe Moisés e Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I
(1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a
coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido
hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu
ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a
coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio
Simões.
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Maravilhoso ,um dos livros é o meu refugio Cada vez mais me pareço com o que ele escrevia Uma incompreendida e criticada por todos !!!!
ResponderExcluirParabens
uma prima do António