Sendo o
mais velho (86 anos) sou no entanto único
porque o meu interesse pelo surrealismo se tem mantido vivo, e porque apesar de
tudo o meu estado de saúde o tem possibilitado assim podendo testemunhar da
fundação do surrealismo em Portugal. Restam vivos Carlos Calvet, Fernando José
Francisco e José [Luiz] Pacheco que
certamente foram directamente contactados, e por si responderão. Foi nos anos
40 que se deu impulso inicial, em que de certa maneira REINVENTÁMOS DADA. Digo
reinventámos, pois o regime político de Salazar, altamente policial, não
permitia qualquer contacto que fosse para além dos seus próprios “princípios”.
No entanto Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), que de uma rápida viagem a paris
captou algum reflexo do surrealismo em desenhos admiráveis datados de 1937. A
sua obra posterior seguiu no entanto o expressionismo.
A
nossa primeira exposição teve lugar em 1949, e reconhecendo-se a
impossibilidade [de] funcionar em
grupo, usámos a designação de OS SURREALISTAS. Na foto de conjunto que vos
envio estão ausentes Carlos Calvet, Fernando José Francisco, João Artur da
Silva e António Paulo Thomaz presentes na exposição. A partir deste
acontecimento outros nomes a nós se juntaram. Dos livros publicados (e na louca
esperança de que alguém se interesse pela sua tradução), envio-vos “A
Intervenção Surrealista” de Mário Cesariny, que foi de facto o grande
impulsionador do surrealismo aqui, sendo ao mesmo tempo poeta notabilíssimo.
Somente a enormidade dos oceanos ou do Himalaia se pode comparar à enormidade
de um poeta como Cesariny. Não é fácil substituir Breton como não é fácil
substituir Cesariny.
Quanto
a mim, transcrevo de um texto que Franklin Rosemont escreveu para uma exposição
da Fundação Eugenio Granell de Compostela:
Entre os pintores selvaticamente inconformistas do nosso tempo, Cruzeiro Seixas
indubitavelmente sobressai. Transmutada provocação e a gloriosa potencialidade
do improvável, são as marcas que o distinguem. Seja o seu instrumento o pincel,
uma caneta ou uma tesoura, é sempre um mestre alquimista, um agitador, um
enganador; a maior parte das vezes é as três coisas ao mesmo tempo! (…) Que a
sua poesia não seja mais conhecida em países de língua francesa e inglesa é
consequência dos caprichos absurdos do mercado na era do neo-imperialismo,
agora delicadamente designado como globalização. Cruzeiro Seixas e os seus
companheiros são poetas autênticos, que sabem manter os olhos abertos e
fechados ao mesmo tempo.
Junto
ainda alguns livros de minha autoria ou que se referem ao meu trabalho. Só
recebi algum reconhecimento geral, nunca aceitei a designação de “artista” ou
de “intelectual”; o meu desígnio é o de deixar um depoimento, o testemunho de
um homem que dedicou a sua vida ao AMOR SUBLIME. Deixo-vos estes livros na
impossibilidade, devido a dificuldades de visão e outras referentes à minha idade,
[de] seguir o vosso programa. Não
quero no entanto deixar de referir alguns dos nomes maiores do surrealismo
daqui como António Maria Lisboa, Herberto Helder, Mário Henrique Leiria,
António Dacosta, D’Assumpção, Ernesto Sampaio, Carlos Calvet, António Areal,
Isabel Meyrelles, Raul Perez, Fernando Alves dos Santos, Mário Botas, etc, etc.
Devido à nossa terrível situação geográfica periférica dificilmente um nome ou
uma obra ultrapassam esta fronteira. Colocados entre a vastidão da Espanha e a
vastidão do oceano, persistentes terrores desde a Idade Média em todos os
gestos ficaram como uma forte marca de solidão. Infelizmente as pátrias ainda
marcam hoje de forma indelével o próprio surrealismo. Enviando-vos apenas este
contributo corro o risco de não ser útil, mas julgo que o inútil está presente
de corpo inteiro neste vosso encontro. Começo no entanto a recear que o
impossível se esteja a tornar demasiadamente possível.
Algumas
vezes dobrei ou recortei papéis, chegando a resultados inéditos, de que vos envio
original. É por ínvios caminhos que se encontra a Liberdade e o Amor. Além de
que aqui em Portugal se deve a um Futurista (Almada Negreiros) a seguinte
frase: Está tudo dito, só falta fazê-lo.
Com
estes muito pesados 86 anos já pouco poderei fazer estando a caminho da
cegueira. Fiz o que fiz e a propósito Edouard Jaguer escreveu: Cruzeiro Seixas, talent insolent à force de
modestie. Foram de facto muitas as cartas insultuosas que fui obrigado a
escrever, creio que a última endereçada à Fundação Calouste Gulbenkian. Espero
e muito desejo que não seja passiva esta minha carta. Só o inútil guarda ainda
toda a amplitude do Mistério. Mistério é a Liberdade, mistério e o Amor. Ontem
estava eu idealizando o regresso dos dinossauros, ou um mundo sem gasolina, ou
ainda mais imaginoso sem água potável, toca o telefone a prevenir-me de que
havia um foco de incêndio no 1º andar do prédio em que habito! Imediatamente
idealizei esta carta em chamas! De facto sonho mais quando acordado do que
quando adormecido; sonho, por exemplo, com palavras que nunca existirão, e que
por certo deixariam pálidas de inveja palavras como LIBERDADE e IMAGINAÇÃO, que
há uns 50 anos ainda pareciam mais luminosas do que o próprio Sol…
Vivi
14 anos em África e vi ser destruída uma civilização. Vi, regressado à Europa,
esta nossa civilização produzir mais lixo do que qualquer outra; nenhuma
civilização do passado QUIS coisas como “detergentes”, “computadores”,
“internete”… Leio e confirmam-me que os elefantes estão em vias de extinção,
subsistindo apenas os que estão nos jardins zoológicos de todo o mundo! Que
mundo é este? Idealizo agora um salão acolhedor preparado para uma recepção.
Sobre o chão ricamente atapetado sob o excesso das luzes dos lustres de
cristal, um número suficiente de, evidentemente extremamente cómodas,
cadeiras-eléctricas. De facto a vida é apaixonante; já experimentei contar
todas as folhas de uma árvore, e até já experimentei a morte. Mas, felizmente,
nunca fui profissional de qualquer coisa. Se de facto apareceu editor capaz de
editar 4 grossos volumes da minha poesia, posso-vos dizer que jamais a reli.
Enfim
escrevendo esta carta inútil, espero estar convosco. Transcrevo a propósito ou a
despropósito Isidoro Ducasse, conte de Lautréamont: Moi, comme les chiens, j’éprouve le besoin de l’infini… Je ne puis
contenter ce besoin! Je suis fier [?]
de l’homme et de la femme d’après ce qu’on m’a dit. Ça
m’étonne… Je croyais être d’avantage ! Saudações eternas do Cruzeiro Seixas
2. D. SEBASTIÃO E OS CISNES NEGROS [2]
Os
meus sonhos não têm imaginação; referem quasi sempre acontecimentos e gentes do
dia-a-dia. Parece que a força dos sonhos mais se revela em mim com os olhos
abertos em pleno dia: os sonhos que me transmitem amigos e inimigos próximos
sempre acompanham a minha enormíssima solidão.
Desde
há dias que se torna obsidiante um sonho que me foi narrado como acontecimento
real, quero dizer quasi sem literatura. A realidade fica-se por um forte dos
que os Espanhóis deixaram construídos ao longo da costa marítima. No sonho era
possível estar deitado no espaço entre essa obra de arte absoluta que é a areia
– (possivelmente milhares de anos, conchas, búzios, pedras, naquele corpo de
fluidez sensual). Estranhamente estaríamos deitados no espaço entre céu, entre
céu e mar. Muita gente ainda supõe hoje que o céu é o mar, e que o mar é o céu.
Aqui há uns anos havia coisas apontadas como anormais. Agora já se sabe que
nada é de facto anormal onde esteja o homem. Uma bela fortaleza é sempre uma
representação do céu e da terra; ali se adestram jovens a matar e nas longas
horas de sentinela, nas guaritas, avançadas sobre os paredões eternos, marcas
de esperma.
Cisnes
no mar, só julgo os ter visto na praia de Cadaquès, próximo da casa de Dalí,
mas tudo estava assinado por ele, desde a sombra dum cipreste às palavras dum
velho pescador. Estes cisnes daqui eram negros e arrastavam pelo espaço longos
mantos de veludo vermelho. Também era neste cenário que a luz negra gostava de
se mostrar como uma serpente chicoteando o espaço até tocar a moldura do
retrato de D. Sebastião – que não deveria estar fechado num museu, mas
permanentemente em circulação. Nos sonhos de todos nós, este D. Sebastião foi
sempre derrotado como deve acontecer sempre com o esplendor do Sol derrotado
pela noite, pelas nuvens que passam, pelo vento. A derrota é sempre a grande
vitória com diamamantes sobre o oiro das armaduras. Um novo mundo deu um grito
de recém-nascido e lá ficou a louvar a terra de Alcácer-Quibir. Tinha apenas
chegado à adolescência; seus pais, quando conceberam tal luz, no quarto das
grandes tapeçarias narrando guerras, ali onde estavam presentes fidalgos e
demais criadagem, com as mãos marcando o mistério.
Por
certo os mesmos assistiram ao parto como era então costume. Lá fora os cavalos
relinchavam, cães ladravam e um leão ditava um poema épico a Camões.
Aprendia-se dia-a-dia a olhar as coisas como os cegos. Quem pode ficar frio
perante tais momentos? O rei é sempre pelo menos duas personagens; um rio de
sangue o arrasta de extremo a extremo do espaço e tem um túmulo de pedra
belamente lavrado, no gesto de desembainhar a espada. A morte é a vida
preferida dos reis. Este rei D. Sebastião não cabia no espaço que lhe estava
reservado pela História. Como pode ele caber no espaço dum sonho? Apenas porque
há verdades que ninguém pode ter, porque dançam pelas ruas loucas mascaradas de
mentiras.
O
sonho é uma derrota? Pouco mais somos do que dinossauros levando na mão um transístor. Uma qualquer Alcácer-Quibir
acontece-nos todas as semanas e são poucos os que se apercebem onde está a
derrota e onde está a vitória.
A
lógica, o quotidiano, o racionalismo são uma pequena parte do caminho. Se
sabemos pouco dos sonhos, menos sabemos do quotidiano. É esta a verdade a que
conseguimos chegar.
1. O
primeiro texto, inédito, dactilografado, com algumas emendas manuais, foi
escrito para encontro em Edimburgo (?), Verão de 2007; tem valiosos elementos
para a compreensão do surrealismo em português. Franklin Rosemont (1943-2009),
citado no texto, foi o editor da revista Arsenal-Surrealist
Subversion, que publicou quatro números (1970-73-76-89) e chegou a ter
ligações à I.W.W.; Rosemont projectou e realizou a World Surrealist Exhibition, na galeria Black Swan, Chicago, em
1976, onde Mário Cesariny esteve em pessoa. Há fotografia dele ao lado do poeta
beat Philip Lamantia (1927-2005), um
dos redactores de Arsenal e que foi
publicado em Nova Iorque por A. Breton na revista VVV (1944). Édouard Jaguer (1924-2006), também citado, foi um dos
participantes do grupo Les surréalistes
Révolutionaires, que Noël Arnaud constituiu em Paris à margem de Breton,
durante o exílio deste em Nova Iorque. Reaproximou-se de A. Breton em 1959.
Editou a revista Phases (1954-1975),
que tinha por lema a arte é a continuação
da revolução por outros meios, em que Cesariny colaborou em 1973 com um
importante texto, “Chronologie du Surréalisme Portugais” (versão francesa de
Isabel Meyrelles), depois recolhido no livro As Mãos na água a Cabeça no Mar (1985). A casa editora dos volumes poéticos
de Cruzeiro Seixos, referida no fim do texto, foi a Quasi (Famalicão). A
transcrição respeita a ortografia; fizeram-se raros ajustes na pontuação e na
acentuação.
2. O
segundo texto, inédito, é comunicação ou texto
quasi automático (assim o classifica o autor) sobre sonho relatado por
amigo; original dactilografado (com algumas emendas manuais) e datado de Março
de 2012. Respeitou-se a ortografia, mas ajustou-se acentuação, pontuação e
maiusculação, isto por se tratar dum texto escrito, numa máquina manual de
dactilografia, sem rascunho, por um homem cego de quase noventa e dois anos.
Título porém do autor. Noutros tempos, com olhos, o título teria dado desenho naturopsico, como os dedicados a Soror
Mariana, a Álvaro de Campos e outros.
*****
Texto
originalmente publicado em A ideia -
Revista de cultura libertária – II série – vol. 16 – n.º 71-72 – Outono de
2013, aqui reproduzido graças à autorização de seu diretor, António Cândido
Franco. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil).
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos
a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau
Saião
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto
de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e
Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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