Defende
Marcel Schwob que "o ponto de partida moral do homem é o egoísmo". Conclui-se,
a partir de então, que a perversão é um atributo natural que determina e aprimora
a existência humana. A poesia e seu mundo povoado de imagens alucinantes fundamenta
o princípio de toda perversão, a partir de um sentido absoluto de descontinuidade.
Diz o poeta: "sou todos os homens". E o diz justamente por compreender,
mais do que qualquer outro, a múltipla diferença que existe entre os homens, por
habitar com seu próprio ser essa morada descontínua e abissal. Sabe que somente
no âmbito de suas criações estéticas consegue demonstrar tal diferença, ainda que
isto implique – o que verdadeiramente se dá – em seu afastamento do mundo. Julga-se
a si mesmo portanto a partir de sua própria perversão, e de sua noção extrema de
comunhão de todos os seres. Graças ao "ponto de partida moral" defendido
por Schwob compreendemos melhor a definição de um eu devorador, obsessivo em sua
fome de imagens e identidades, um "eu interior em perpétua mudança", essência
da genialidade de Shakespeare, segundo a explicação de Harold Bloom. Trata-se, sobretudo,
do eu que determina a perversão do criador, não limitando o cenário a um simples
jogo de ambivalências, mas sim a um fluir e refluir de egos em combate mortal. Representando
a si mesmo, em seus excessos de descontinuidade, evidencia o poeta o sentido maior
da experiência como transitoriedade, passagem contínua de um estado de espírito
a outro.
Há muitos
casos em que a ironia é um instrumento preciso e inconfundível dessa evidência,
expressa em múltiplas faces a partir da intensidade com que a assume o poeta. Pensemos
na ironia corrosiva de Kafka ou na sofisticada agudeza irônica da prosa borgeana.
Evidencie o poeta uma verdade alegórica ou a transcendência de sua própria verdade
interior, defenda a originalidade do arbítrio ou o arbítrio da originalidade, sua
obra não encontrará radical mais contundente do que o de sua própria invenção, organismo
vital do que quer que venha a violar. Seguramente o leitor não se revelará figura
indispensável ao universo de tais aparentes contradições enquanto não entender a
harmonia hierárquica com que essas forças interagem. Antes do leitor, é natural,
interessa-nos aqui a presença inconfundível do criador, hoje uma espécie de audaz
sobrevivente à fanfarra publicitária de uma arte feita para todos – em dissonância
brutal com o dístico memorável de Lautréamont.
Define-se
a obra de Uílcon Pereira (São Paulo, 1946-1995) dentro daquela obsessiva voracidade
do eu shakespereano, obsessão desdobrada a partir de sua visão peculiar do
exercício de autoironia e do sentido omnívoro de sua versão da originalidade. Lugar
evidente da intertextualidade, ao mesmo tempo em que cenário vertiginoso do saque,
da pilha; não pura e simples usurpação divertida do texto alheio – como entende
parcela da crítica –, mas sim um exercício de invasão aos prejuízos causados pelos
domínios precários e evasivos de um falso sentido de originalidade. Mesmo em sua
"grande e pacífica diversão", não busca outra coisa o texto de Uílcon
Pereira – em seu fundamento irônico – que não seja a negação da originalidade como
extensão de uma realidade literária. Insiste em dizer: "sou todos os homens",
recusando a deformidade de seu tempo em torno dos falsos atributos da identidade
do ser.
Alimentada
por suas leituras – ele mesmo um sequioso e confesso devorador de textos –, não
define-se sua vontade criativa pela violação criminal do alheio, mas sim pelo questionamento
corrosivo dos fantasmas que determinam os usufrutos da arte, da criação. Em tal
sentido, há um grande equívoco na leitura que se tem feito da obra deste poeta:
não reproduz textos alheios, mas sim os deforma a partir de uma consciência irônica
de que a diferença somente será evidenciada pela descontinuidade, em seu grau zero
de transformação constante da matéria-prima. Talvez pudéssemos falar em paródia,
se acaso mantivesse alguma espécie de diálogo com o alheio convocado. Disse-me o
poeta argentino Leónidas Lamborghini (1927), em entrevista que lhe fiz: "Interessa-me
a paródia como olhadela da qual as coisas são vistas bem distintas… A paródia, penso,
é nossa tragédia verdadeira e, portanto, teria que ser nossa arte verdadeiramente
séria." De fato, há uma distinção crítica estabelecida pela paródia que complementa
nossa defesa da descontinuidade. Contudo, no caso de Uílcon Pereira não se pode
falar em paródia ou, se preferem, no exercício paródico em isolado.
Um de seus
pares, o romancista Deonísio Silva, refere-se ao empreendimento de "uma espécie
de arqueologia narrativa, na medida em que [seus textos] retomam fios que pareciam
meio extraviados da ficção atual". Também não creio em tal ação isolada, sobretudo
porque ponho em discussão a aplicação das usuais delimitações genéricas na leitura
crítica da obra de Uílcon Pereira. Não radica portanto a obsessão de sua escrita
na busca de um conhecimento dilatado do universo literário ou no diálogo – ainda
que movido por uma fina ironia – com seus pares ou sistemas narrativos que lhes
sejam contemporâneos. É outra a ordem de sua perversão, outro o ponto de partida
de seu egoísmo criador. Está certo Camilo Mota, este sim, ao observar a descaracterização
"da própria ideia de ficção", seja ela qual for. É tão amplo o universo
de deformação intertextual em que age a escrita de Uílcon Pereira que soaria redutor
buscar sua definição a partir do pastiche, da paródia, da metalinguagem romanesca
etc. O que mais se aproximaria seria a collage, de acordo com seu entendimento
de uma alquimia da imagem, conforme defendia Max Ernst, naturalmente referindo-se
ao universo visual. No entanto, não busca Uílcon Pereira – como esperava Breton
que a collage o fizesse, em seu território plástico – uma reorganização do
espaço literário, mas sim uma acentuada evidência do caos que determina o sentido
de originalidade em nosso tempo, a precariedade com que a arte se move em um universo
de ações e reações engendradas por uma noção degradante de servilismo do homem em
relação a seu próximo. Não há arte sem perversão, não sobrevive o homem longe de
seu "ponto de partida moral", eis no que insiste a obra de Uílcon Pereira
ao fundamentar o sentido absoluto de sua descontinuidade: "sou todos os homens".
Desta maneira, erra ainda Fábio Lucas ao observar que o centro de gravidade dessa
aventura poética radica na "tumultuada realidade brasileira". Sequer a
questionante raiz do provincianismo urbano presente em seus livros pode ser observada
como um universo limitado pelo prisma do nacionalismo. O desprograma a que se reporta
a evidência de sua escrita é de caráter humanístico. Refere-se portanto à tumultuada
realidade humana.
E qual
então a evidência da obra de Uílcon Pereira? Dupla ação: um permanente sentido crítico
em relação ao nonsense prefixado pela indústria da arte e a defesa constante
de um espaço da diferença, da descontinuidade. Todos os meandros de sua escrita
são o território de um diálogo permanente, pensemos na série de entrevistas que
compõem Ruidurbano (tomo I: Entre/vistas, 1992; tomo II: Uma antologia,
1993) ou na tessitura fabular que orienta o leitor a circular pelos espaços prismáticos
do que ele próprio denomina de "cidade não-lugar", no caso de A educação
pelo fragmento (1996). No primeiro: a evidência se mostra na forma de uma corrosiva
ironia: a articulação jornalística de um romancista que percorre todos os cenários
de difusão de sua obra, colhendo os louros de sua pródiga aceitabilidade no mercado
editorial. Alimenta-se o autor – protagonista de sua própria trama – de um cruzamento
múltiplo de reações oriundas do lance intrincado dos arquétipos de nossa sociedade.
Sujeita-se então a uma série de entrevistas – programas de auditório, revistas especializadas,
folhetins de subúrbio, rádios interioranas etc. –, onde cinicamente ilude a todos
com um pastiche bizarro que aglutina Cervantes e Blade runner, canções pop
e Justine, Guimarães Rosa e Satiricon, tiras de gibi e O jogo da amarelinha.
No segundo:
fragmenta-se em infinitos eus que confluem para a formação de uma verdadeira
unidade territorial, reverberações de um espaço idealizado com ironia pelo autor,
o lugar comum da própria existência humana. Como se fosse um compositor pop com
formação clássica, sua escrita articula-se através de compassos insólitos, algo
incomuns, quase sempre fora de tempo. Suas variações, contudo, são todas em torno
de um mesmo tema: Àssombradado. O "não-lugar" de que nos fala faz com
que sua poética não radique na corriqueira argumentação do fragmentário, mas sim
na definição de um espaço indiscutível da unidade. Não perde-se em si. Ao contrário:
desorienta a todos para que a partir dessa desordem momentânea possa fundar seu
território poético.
Seja o
escritor-personagem sarcástico de Ruidurbano ou as múltiplas vozes que habitam
a fábula de A educação pelo fragmento – e o mesmo se verifica e acentua-se
nos seis livros que seu espólio conserva ainda inéditos –, há uma única personagem
central na escrita de Uílcon Pereira: o "não-lugar" ou cidade imaginária
em que se constitui Àssombradado. Não se trata, contudo, da idealização de um visionário,
mas sim de uma perturbadora visão crítica do espaço habitado por sua própria contemporaneidade.
Não descreve uma angústia da imaginação mas sim um universo de relações inseparáveis
entre o grotesco e o banal. Não se trata de transe e sim de um diferencial de consciência.
Sua geografia humana é vertiginosa como a própria estrutura biológica de nossa percepção
da realidade. Sua afeição pelo fragmento? Recordo Italo Calvino ao definir que sua
vida funcionava "à base de elencos: listas de coisas que ficaram em suspenso,
projetos que não se realizaram". Confunde-se o lugar do mito com o do fragmento.
O próprio Calvino suspeitava que a mente humana "só funciona à base de mitos,
e que a única alternativa consiste em adotar um código mítico em lugar de outro".
Tudo nos leva a crer que Uílcon Pereira já solucionou tal suspeita, concluindo pela
indevassável permanência do mito e suas articulações peculiares. Assim é que Àssombradado
é sua cidade-escrita. Não a exemplo da cidade imaginária do construtivismo de Paul
Klee ou da idealização fantástica de García Márquez ou mesmo das representações
angustiantes da terra inóspita de Eliot. Sua reflexão acerca de um "não-lugar"
é a eleição de um lugar comum a toda sorte de mediocridade que tem definido a ação
humana neste final de século. Àssombradado é a epígrafe brutal e inevitável de tudo
quanto configure o elenco de contradições e ridicularias de que se alimenta o homem
em nosso tempo.
Mesmo na
trilogia anteriormente publicada, No coração dos boatos (tomo I: Outra
inquisição, 1982; tomo II: Nonadas, 1983; tomo III: A implosão do
confessionário, 1984), quando ainda sofria uma acentuada atração por Pierre
Menard e as táticas burlescas do palimpsesto, já era possível observar que sua fiação
narrativa buscava a síntese de um "não-lugar". Não nos cabe, no entanto,
discutir o quanto que Uílcon Pereira despoja-se de suas obsessões ao ambientar,
com sua ironia convulsiva, os obscuros territórios da "divina comédia humana"
(Belchior). Importa, isto sim, salientar o risco que corre ao definir um espaço
vertiginoso de descobertas – de si mesmo, afinal – ao leitor que se aventure no
desdobramento perene de sua leitura. O excitante em sua narrativa fragmentada, na
plenitude de seus ardis, não é a exigência de uma credibilidade no artifício que
tece, mas sim a identificação com o enigma de seu curso, com a realidade efêmera,
ostensivamente banal, de seu mundo rotulado justo pelo desgaste das relações diretas
entre os homens.
Há uma
teoria da descontinuidade que necessita ser defendida a ferro e fogo. Não há uma
linguagem idealizada, ao mesmo tempo em que o mundo dos signos é o mundo das diferenças,
do exercício perene da sensibilidade. Não há outra maneira de imaginar senão à luz
da diversidade. Somente a diferença toca o indivíduo. Por outro lado, nenhum poeta
realiza-se fora de sua escrita. Ao questionar a fragilidade difusora da obra de
Uílcon Pereira – em grande parte resumida a seu estoico esforço epistolar –, não
faço senão recusar qualquer argumento que impeça o trânsito de uma das mais contagiantes
aventuras livrescas que se tenha a dispor entre nós. O envolvimento de sua escrita
– sobretudo a partir desse diferencial de consciência crítica a que já me referi
– conclama alguns de seus célebres pares, lamentavelmente um tanto ausentes da realidade
editorial brasileira: Francis Ponge, Hermann Broch, Marosa di Giorgio, Robert Graves,
William Burroughs. Átomos, claro, mas que garantem a convulsão descontínua em que
age o humano em nós. Assim o faz a educação pelo fragmento (alheio) em Uílcon Pereira,
justamente em função de uma evidência do descontínuo, raiz de toda poesia.
*****
Agulha Revista
de Cultura
# 4/5. Novembro de 2000. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio
Rola
Agradecimentos a Mhelena
Castro
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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