Quando
conheci Vicente do Rego Monteiro, em 1940, ele era um exilado em sua terra
natal. A guerra o tangera para o Recife. Mas era de um estrangeiro o seu andar
de gordo lépido nas pedras irregulares das ruas tortas da cidade que, nas
imediações do Mercado e do Cais do Abacaxi, parecia um sussurrante e
interminável estilhaço do Oriente, com as suas cores e rumores levantados no ar
como estandartes, e a fala mole e cantante, a fala quase sexual do povo que
escorria na paisagem com as suas roupas brancas. Entre o que havia de mais
nativo e entranhado à terra e à água siamesas, na cidade anfíbia onde se
aprofundavam os seus troncos e raízes, Vicente do Rego Monteiro se movia igual
a um forasteiro – não, evidentemente, como esses forasteiros que os ônibus
velhos e arquejantes e os empoeirados trens da Great Western vomitavam na
cidade que, com as suas pontes airosas e praças feridas pelo fulgor do dia,
vivia de sua própria duplicidade de ser duas, europeia e americana, planetária
e brasileira, com a sua civilização e a sua miséria, a sabedoria da Faculdade
de Direito e o saber das feiras e carnavais, as fidalgarias dos seus
parentescos emaranhados e os mocambos onde os pobres conviviam e conmorriam com
os gordos e peludos goiamuns que azulavam as lamas negras.
Vicente do Rego Monteiro
atravessava a ponte Buarque de Macedo e, diante dos seus olhos castanhos, o
Capibaribe se transformava no Sena. Os versos de Apollinaire vinham
à sua memória, cobrando-lhe a fidelidade à aventura de sua formação numa cidade
radiosa e num tempo varado pelo desafio das experimentações estéticas ruidosas
e incessantes.
Maintenant
tu marches dans Paris tout seul parmi la foule
Des
troupeaux d’autobus mugissant près de toi roulent
L’angoisse
de l’amour te serre le gosier
Comme
si tu ne devais jamais plus étre aimé
Vicente do Rego Monteiro caminhava sozinho. Aos
ventos, aos caranguejos, às curvas atarracadas das igrejas barrocas, aos
engraxates e jornaleiros, aos ceguinhos que pediam esmolas nas esquinas, aos
vendedores de roletes de cana, aos azulejos franceses dos palácios avariados,
às paredes da Capela de Santo Antônio onde as mulheres do Recife iam pedir
milagres obscenos, ele se proclamava, mudamente, uma criatura de passagem. Era
como um camarada de fora à espera do dia da partida; como o viajante que, no
cais vazio, espreita a chegada do navio iluminado.
Na sala de sua casa em
Madalena, alguns dos seus quadros, salvos dos horrores da guerra na partida
precipitada, eram os emblemas ao mesmo tempo cândidos e incômodos de sua
condição de exilado, de homem em trânsito. Os braços levantados das jogadoras
de tênis estavam imobilizados no ar, numa interrupção temporária – quando a
guerra acabasse, elas continuariam o seu jogo que seria quase uma dança, e
Vicente do Rego Monteiro iria embora. Enquanto isso não ocorria, ele nos
falava, com a sua voz macia, que mais parecia uma coleção de sussurros, do
Futurismo que tanto o marcara quando a sua arte se desvencilhara dos moldes
acadêmicos e do ciclo primitivista ou antropofágico, e do Cubismo que vinha
iluminando a sua trajetória. A Europa, pisada pela primeira vez quando era um
adolescente, domara o que nele havia de tropical e excrescente. O pintor,
nascido numa paisagem de sol excessivo, capaz de esquentar até os mortos, de
depredadas arquiteturas barrocas, de igrejas e casas bochechudas, de jaqueiras
e mangueiras de formas quase voluptuosas, e de mormaços longos que tornavam
sonolentas as putas da Rua das Flores, domesticara a luz, tornara-a uma serva
dócil de suas figuras e paisagens que também tinham um ar de exiladas – como se
uma mão estrangeira as tivesse pintado. O primitivo, o tropical, o arcaico
tinham sido varridos daquela sala imaginária pintada de cores frias.
Para nós, Vicente do Rego Monteiro expunha, em
sua mesa de pintar e em sua mesa de amigo, a Europa. Ou melhor, uma certa
Europa, fagueira e turbulenta, futurista e surrealista, cubista e
experimentalista, empenhada em ser eternamente criadora e criativa, aplicada em
tornar incessante o espetáculo da renovação das formas. Essa Europa fervilhante
que ele nos servia, acompanhada de um cálice de cachaça Gravatá, tinha para nós
o aparato de um suculento banquete. Ele era o emissário da vanguarda, da
modernidade, da renovação. Este era, aliás, o nome da revista que fundara, para
desentorpecer os meios literários e artísticos de Pernambuco, e onde nos acolhera
a todos: a Willy Lewin, João Cabral de Melo Neto, Antônio Rangel Bandeira,
Gastão de Hollanda, Haydn Goulart, a mim, a tantos outros.
Embora criatura de passagem, hóspede de sua
própria paisagem nativa, Vicente do Rego Monteiro renovou o ambiente cultural
de Pernambuco, numa fervente lição de modernidade que culminou com a realização
do Primeiro Congresso de Poesia do Recife, em 1941, um evento que atraiu desde
a devoção e o entusiasmo de alguns jovens até as zombarias e gargalhadas
daqueles que só acreditam no consuetudinário, e não apostam nos que buscam
formas novas.
Na verdade, às vezes devemos dispensar os nossos
próprios olhos para ver as coisas, pois elas costumam sonegar-se a essa rotina
ótica e, dengosas, só aquiescem em entregar-se se as miramos com olhos de
estrangeiros. Foi isto o que Vicente do Rego Monteiro nos ensinou, com a sua
nostalgia europeia, a sua lembrança tenaz e pertinaz de uma Europa na qual a
investigação estética era uma rotina do espírito e das experimentações de seus
amigos e companheiros de jornada, alguns tornados até mártires da vanguarda. Um
deles, Géo-Charles, poeta esportivo e de olhos arregalados para as paisagens
inumeráveis, escrevera estes versos lapidares sobre uma noite em Pernambuco:
Les
douces négresses aux formes
d’amphore
aux yeux de cheval aux
yeux
de chien et les blanches
soeurs
du jasmin passent embaumées
dans
le sol brésilien.
No arquipélago cultural do
universo, no grande portulano das tradições e experiências acumuladas pelos
séculos, nos acertos e erros empilhados nas bibliotecas e nos museus, só
interessavam a Vicente do Rego Monteiro as ilhas das transgressões. O novo
deveria estar sempre dentro do ovo. Ele passava ao largo de tudo o que, na
província ou na metrópole, significasse a tradição engordurada ou a repetição
automática de uma forma viva que o século houvesse tornado matronal.
Na Pensão Sertaneja, onde eu morava, ouvindo o
apito dos trens da Great Western, as conversas e os conselhos de Vicente do
Rego Monteiro ressoavam como um convite à aventura. O pintor de paisagens e
figuras que, em sua airosidade, havia suprimido o excesso com a sua economia de
linhas, o poeta quase caligráfico que pousava sobre as coisas e os seres o seu
certeiro olho de pintor, o desterrado sexual que em certas noites subia as
escadas compridas dos prostíbulos do bairro do Recife em busca de uma mulher
que lhe lembrasse as sábias e caprichosas poules de Montparnasse,
depositava, no meu silêncio e na minha insônia, a sua palavra de incitamento.
Il faut être absolument moderne – a conclamação de
Rimbaud, resvalando em mim, dava-lhe sobrada razão. De sua infância
aristocrática entre pintores e pinturas, de suas viagens da descoberta de Paris
quando adolescente, da experiência na Academia Julien e da revelação dos
impressionistas que tinham ensinado que a luz é um mistério e uma certeza, de
todos os passados do passado, e de todos os presentes do presente, Vicente do
Rego Monteiro extraíra apenas a lição de uma linha nítida que era a morada de
sua arte. Era uma linha que se devia acolher como se aceita o verso de um
poeta. Aquela linha de seus quadros cubistas era o seu verso. E eu a seguia no
ar.
Vicente do Rego Monteiro nos ensinava que o
artista deve ser um inventor. Ele não deve colher a flor do dia e a rosa da
noite. Ele deve inventá-las, com a sua tinta e o seu verso. E decerto as suas
investidas nos territórios do alambique, como fabricante da olorosa cachaça do
Engenho Gravatá, e ainda a sua preocupação com as artes gráficas e a gravação
das vozes dos poetas em discos e fitas magnéticas comparticipavam desse
inquieto espírito inventivo. Em plena guerra, em dias de horror e terror, ele
nos induziu a festejar o centenário do nascimento de Mallarmé, e seus jovens
amigos refletiam sobre os postulados da invenção formal e da ruptura (“je
dis une fleur...”). A cada um que o cercava, ele ciciava o imperativo da
criação de uma nova linguagem, de uma poesia que, como a sua pintura, fosse uma
invenção e uma construção. E o que nele eram frases e observações, em Willy
Lewin eram conversas e discussões ancoradas numa biblioteca aparelhada para
saciar todas as fomes e sedes. Escola de Paris! Escola do Recife! Éramos alunos
de ambas, e ambas eram uma. O peixe do Sena e o goiamum do Capibaribe se
acasalavam na mesma figura fugidia que saltava no horizonte da tarde.
Nos anos de 1953 e 1954, já não eram as pontes
do Recife que estávamos atravessando. Eram as pontes do Sena. Como os seus
calceteiros, Vicente do Rego Monteiro estava em sua cidade. As nossas conversas
eram as mesmas, embora eu já pudesse vangloriar-me de ter inventado a minha
própria flor. Dir-se-ia que as havíamos interrompido um dia antes, no Café
Lafayette. O pintor-poeta-tipógrafo-empresário reiterava as suas fidelidades. E
todas elas nutriam o seu construtivismo específico, o seu fervor por uma
revolução permanente do espírito, por uma independência.
Ele amava organizar Salões de Poesia. Era um
homem da reunião e da comunidade: da comunhão poética. Uma tarde de domingo,
fui ao seu encontro numa Feira de Poesia realizada na Place des Vosges.
Lembro-me de que me apresentou a muitos de seus companheiros. Para a maior
parte deles, a obscuridade era uma promessa de futuros radiosos e de
corrigendas do destino. Em sua solidariedade vespertina, propunham-se a
contestar a poesia oficial dos Claudel e dos Valéry, dos poetas reverenciados
pelos salões, academias, universidades e embaixadas, e a afirmar a força da
poesia em permanente estado de renovação. Em quase todos esses poetas, cujos
nomes não guardei, nem podia guardar, a poesia era a aparição do dia seguinte,
como uma estátua antes da praça ou um corpo nu de mulher dentro de um sonho.
Para rematar, Vicente do Rego Monteiro me conduziu até o seu amigo, o poeta
Jean l’Anselme, e me revelou a presença veneranda de Paul Fort, o criador dos
metros largos que, à feição de baladas, tanto tinham contribuído para vitalizar
e colorir o Simbolismo. De um dos jovens poetas presentes, e todo ele grávido
de revolta contra as tradições poéticas estabelecidas e consagradas, ouvi um
juízo feroz sobre a poesia de Claudel. E outro coparticipante da Feira, após
interrogar-me sobre os meus conhecimentos e preferências, lamentava, com um ar
desolado, que convergissem tão ostensivamente para o que eles chamavam
ironicamente de “poesia oficial”. Ali, entre tantos poetas à espera de
leitores, estava um outro universo: uma vanguarda além das vanguardas que
haviam alcançado renome, aplauso e dinheiro; uma vanguarda que o público se
recusava a reconhecer e ostentava, por isso, o orgulho e a arrogância
silenciosa dos marginais e dos vencidos.
E, entre eles, o poeta de expressão francesa
Vicente do Rego Monteiro se movimentava com o seu desembaraço de eterno
inventor e reiterado vanguardista, num calor de ânimo tisnado de cumplicidade.
Naquele domingo parisiense, quando Paris é uma
festa, e tudo parece transfigurar-se (de tal modo que até os operários
endomingados têm o ar de pequenos burgueses fugidos dos contos de Maupassant),
pude ver, em toda a sua inteireza, a fisionomia de Vicente do Rego Monteiro em
sua condição e vocação de empresário cultural e artístico, sempre disposto a
recomendar a jovens poetas e pintores, e até a indivíduos grisalhos e
provectos, o caminho das insurreições fecundas e das renovações criadoras.
Ao longo de sua vida de artista, parte considerável
de sua obra sumira nos horrores goyescos da guerra, incendiada durante os
bombardeios ou alvejada pelos saques e mudanças, viagens e guardas infiéis –
mas Vicente do Rego Monteiro ali estava, humilde e radioso como um operário em
sua roupa de domingo, portando a palavra fraterna que se erguia no ar como uma
flor, e animava aquele momento rumoroso em que o convívio e a fraternidade
poética sugavam as desilusões e iludiam as misérias. Marginalizado, humilhado,
esquecido e até zombado pelos monstros sagrados da pintura brasileira que, nos
gabinetes governamentais do Rio e de São Paulo, engordavam ainda mais as suas
já gordas pinturas habilidosamente revolucionárias, minimizado em sua
contundente contribuição à Semana de Arte Moderna, Vicente do Rego Monteiro ali
estava, com o seu fervor permanente e o sorriso de sua plácida e paciente
Marcelle.
Compreendi, então, por que ele preferia a
pobreza e até as eventuais humilhações de Paris, com a sua procissão de
colisões e concorrências, às vantagens e facilidades de suas temporadas
brasileiras. Na então capital mundial das artes, ele tinha tudo o que têm
aqueles que nada têm. Com o seu rio, que era uma espécie de Capibaribe
universal, com as heranças acumuladas de seus tesouros artísticos, com os seus
palácios e bulevares, praças e jardins, com os bistrôs onde um coup de rouge
podia operar o milagre da amizade e da alegria, Paris era a sua cidade, a
cidade de suas duas linguagens, a pictórica e a poética, a sua verdadeira
cidade do Recife. Paris era a única morada possível, intransferível e
inevitável para aqueles que, como Vicente do Rego Monteiro, tinham nascido para
viver em Paris. Pintor, poeta, inventor, tipógrafo e impressor de La Presse
à Bras, esportista, empresário, Vicente do Rego Monteiro era tudo e era
nada – e este ser tudo e ser nada era o seu segredo e o seu mistério, a sua
razão e a sua desrazão, a sua aura e a sua identidade, o seu desejo e a sua
condenação. As sucessivas dificuldades financeiras que lhe sombrejavam a
existência, e decerto afligiam o silêncio de Marcelle (o seu apartamento na Rua
Didot, no XIV arrondissement, não passava de um já-vi-tudo, no qual o
cômodo único era ao mesmo tempo sala de visita, oficina tipográfica e quarto de
dormir), não vulneravam a sua alegria.
Embora ele praticasse uma limpa e límpida
pintura internacional, que o impõe e identifica, sem dúvida, como o menos brasileiro dos nossos grandes
pintores, Paris não lhe dera a glória nem a riqueza – mas lhe outorgara
o sentido de amizade e da solidariedade artística. Era a sua realidade, a sua
respiração, a sua pátria.
Sobre a minha mesa estão agora, espalhadas como
as estrelas que no céu formam uma constelação, as obras gráficas e poéticas de
Vicente do Rego Monteiro. O meu olhar mais enternecido vai para o Poemas de
Bolso, que vi nascer no Recife, volume inicial e derradeiro de uma coleção
que anunciava a minha estreia aos 17 anos com o livro de poemas Crepúsculo
Civil, cujos originais se perderam e sumiram.
A publicação de Poemas
de Bolso foi juncada de respingos desdenhosos por parte dos companheiros de
geração do poeta-pintor e dos críticos aborígines afervorados em defender um
mitigado modernismo de salão. Contudo, poucos livros da moderna poesia
brasileira serão tão modernos quanto este, com as suas investigações gráficas,
o seu verso plástico que pula como um saltimbanco no espaço feérico de um
circo. Vicente do Rego Monteiro, que tanto amava os saltimbancos – por ele
chamados de clowns – e tanto estimava as acrobacias poéticas de Jean
Cocteau, guarda nesse livrinho ao mesmo tempo provinciano e cosmopolita algumas
das imagens mais valiosas do nosso processo de renovação poética. Em sua
modernidade nutrida de Laforgue e Apollinaire, Valery Larbaud e Blaise
Cendrars, ele pinta as coisas e seres em vez de descrevê-los. É um imagista, um
visual. Releio os versos insólitos. Estou de novo no Recife.
Recife – Grande espelho refletor de fabuloso
cineasta.
Na luz que ofusca e cega o transeunte é um
figurante que passa.
Ao nascer do teu dia saudável e tranquilo nenhum
problema a resolver
Os figurantes retomam as atitudes plásticas do
ganha-pão quotidiano.
Somente as estrelas e os galantes usam lunetas
de cores.
À noite tua sala de projeção
é um vasto cenário para contemplação.
Capibaribe
Beberibe
Oceano
Atlântico.
Vicente do Rego Monteiro via a sua cidade natal
com os olhos de um turista, de um primo-irmão de Blaise Cendrars ou de um
Barnabooth capaz de enxergar larbaudianamente, no cais do Abacaxi, cuias
pintadas e gravadas de estranhas inscrições “meu amor”.
O modernismo mais conspícuo vibra em muitos
desses versos que celebram certos ritos e engenhos da modernidade, como as
máquinas, as telecomunicações, as fitas magnéticas.
Mistério da poesia, em seu
coito deleitoso com as artes gráficas! Dada a feição do livro, encompridado
para caber num bolso, os versos são divididos em várias linhas, afinando-se e
fragmentando-se como se fossem a soma ditosa ou incômoda de subversivos
subversos. Vicente do Rego Monteiro não hesita em esquartejar palavras, transferindo
uma parte de seu corpo para a outra linha – e, como as cobras, essas palavras
continuam vivas, embora cortadas pelo meio. Pelo seu desconjuntamento verbal,
humor e instantaneidade, esses poemas haviam de desagradar aos modernistas
provectos e já domados do Rio e de São Paulo.
Em que língua Vicente do Rego Monteiro os teria
escrito originariamente, já que quase todos eles têm versões em francês e
português? Esse bilinguismo da sua lira dilacerada já esplendia em outro livro,
no belo Quelques Visages de Paris publicado em 1925, sendo que, neste,
os dois idiomas utilizados são o francês e o desenho – a mais civilizada e
apurada das línguas planetárias e a linguagem mais bárbara e primitiva,
estilizada e convertida em verdadeiros (ou falsos) ideogramas. “Un jour un chef sauvage laissant la forêt vierge vint à Paris
incognito, après un petit séjour, blasé de tant de grandeurs il retourna à son
ôca (home).” São
as impressões de Paris desse chefe indígena do Amazonas que Vicente do Rego
Monteiro reúne nesse álbum. E, poeta e pintor tocado pela obsessão do vínculo
entre o som e o signo das palavras e o perfil das coisas, e fecundado pela
lição tipográfica e espacial daquele Mallarmé cujo centenário comemorou no
Recife, celebra em texto e figuras o que Paris tem de mais turístico e
referencial: a Notre Dame, a Torre Eiffel, a ponte de Passy, o Trocadero, o
Viaduto de Austerlitz, o Sacré-Coeur, o Louvre, a Praça da Concórdia, o Jardim
das Plantas, o Arco do Triunfo. Essas suas anotações líricas de piéton de
Paris lembram as Lettres Persanes de Montesquieu. Vicente do Rego
Monteiro assesta sobre Paris o seu olhar persa de pernambucano desgarrado, e
mais urna vez a poesia se organiza como uma arte de ver a realidade, como uma
operação intelectual na qual a palavra se converte em desenho, imagem e objeto.
Esse imagismo que o atrela à tradição do olhar
permeia quase todos os seus poemas e freme no “Quais du Seine”, que figura em Chants
de Fer:
Seine
ô Seine comme il paraît
Humain
Compréhensif et triste
Ton
regard quand tu passes près
Des
quais où sont les bouquinistes
Là
se meurt la gloire Au rebais
Dans
la poussière coexiste
Un
monde individualiste
Dans
un gris linceul de décès
Les
livres Fagots empilés
Aux
bords du grand fleuve sacré
Semblent
des bûches crématoires
Paris
Bénarès Seine voire
Le
Gange pour que d’autres vivent
Tu
cueilles la cendre des livres
Note-se que, nesse poema, o rio tem um olhar,
como os poetas para quem o mundo exterior existe, dentro da tradição avivada
pela poética de Victor Hugo e Théophile Gautíer.
Em abril de 1955, internado num hospital
parisiense, Vicente do Rego Monteiro compõe 35 sonetos que, dois anos depois,
serão editados no Recife. É um livro
intitulado Broussais-la-Charité. A amizade, uma das virtudes maiores de
sua vida moral e artística, floreja nesses versos de circunstância, que têm um
pungente e febril calor verlaineano – do Verlaine que, quando baixava a um
hospital, enfeitava de flores o urinol à sua disposição. A solidão de Vicente
do Rego Monteiro se povoa de sombras amigas e luminosidades, e nenhuma amargura
mancha as reflexões produzidas pelo seu isolamento. Por seu humor, divertida
ironia, malícia e ternura, e sua tristeza onde habita uma alegria que prefere
manter-se incógnita, este Broussais-la-Charité avulta como um imperdível
documento pessoal. É uma espécie de autopsicobiografia. Através dos outros, o
poeta se vê a si mesmo. Na hora em que a morte manda um de seus sabujos
mordê-lo, Vicente do Rego Monteiro murmura que não está sozinho.
Vicente do Rego Monteiro.
Agora, não sei mais se estou no Recife, ouvindo em sua casa o Bolero de
Ravel, ou no hotelzinho da Rua Candido Mendes em que ele se hospedava nos
últimos tempos quando vinha ao Rio procedente de Brasília, ou na nossa Paris de
brasileiros em Paris. Diante do pintor e poeta que só a morte ousou tornar
clássico, sequestrando-o de sua arte ancorada no presente e no dia que passa
como um navio, as minhas lembranças se tornam fugidias.
Comme
nos souvenirs sont vagues
L’éternel
n’est aussi durable
Qu’un
poème écrit sur le sable
Vicente
do Rego Monteiro. Na areia do mundo e da vida, tornamos a escrever o teu nome.
*****
Lêdo
Ivo (1924-2012). Poeta, narrador, ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do
Rego Monteiro (Brasil).
*****
Agulha
Revista de Cultura
Fase
II | Número 16 | Maio de 2016
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GLADYS MENDÍA | MÁRCIO SIMÕES
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