terça-feira, 19 de abril de 2016

LÊDO IVO | Vicente do Rego Monteiro


Quando conheci Vicente do Rego Monteiro, em 1940, ele era um exilado em sua terra natal. A guerra o tangera para o Recife. Mas era de um estrangeiro o seu andar de gordo lépido nas pedras irregulares das ruas tortas da cidade que, nas imediações do Mercado e do Cais do Abacaxi, parecia um sussurrante e interminável estilhaço do Oriente, com as suas cores e rumores levantados no ar como estandartes, e a fala mole e cantante, a fala quase sexual do povo que escorria na paisagem com as suas roupas brancas. Entre o que havia de mais nativo e entranhado à terra e à água siamesas, na cidade anfíbia onde se aprofundavam os seus troncos e raízes, Vicente do Rego Monteiro se movia igual a um forasteiro – não, evidentemente, como esses forasteiros que os ônibus velhos e arquejantes e os empoeirados trens da Great Western vomitavam na cidade que, com as suas pontes airosas e praças feridas pelo fulgor do dia, vivia de sua própria duplicidade de ser duas, europeia e americana, planetária e brasileira, com a sua civilização e a sua miséria, a sabedoria da Faculdade de Direito e o saber das feiras e carnavais, as fidalgarias dos seus parentescos emaranhados e os mocambos onde os pobres conviviam e conmorriam com os gordos e peludos goiamuns que azulavam as lamas negras.
Vicente do Rego Monteiro atravessava a ponte Buarque de Macedo e, diante dos seus olhos castanhos, o Capibaribe se transformava no Sena. Os versos de Apollinaire vinham à sua memória, cobrando-lhe a fidelidade à aventura de sua formação numa cidade radiosa e num tempo varado pelo desafio das experimentações estéticas ruidosas e incessantes.

Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi la foule
Des troupeaux d’autobus mugissant près de toi roulent
L’angoisse de l’amour te serre le gosier
Comme si tu ne devais jamais plus étre aimé

Vicente do Rego Monteiro caminhava sozinho. Aos ventos, aos caranguejos, às curvas atarracadas das igrejas barrocas, aos engraxates e jornaleiros, aos ceguinhos que pediam esmolas nas esquinas, aos vendedores de roletes de cana, aos azulejos franceses dos palácios avariados, às paredes da Capela de Santo Antônio onde as mulheres do Recife iam pedir milagres obscenos, ele se proclamava, mudamente, uma criatura de passagem. Era como um camarada de fora à espera do dia da partida; como o viajante que, no cais vazio, espreita a chegada do navio iluminado.
Na sala de sua casa em Madalena, alguns dos seus quadros, salvos dos horrores da guerra na partida precipitada, eram os emblemas ao mesmo tempo cândidos e incômodos de sua condição de exilado, de homem em trânsito. Os braços levantados das jogadoras de tênis estavam imobilizados no ar, numa interrupção temporária – quando a guerra acabasse, elas continuariam o seu jogo que seria quase uma dança, e Vicente do Rego Monteiro iria embora. Enquanto isso não ocorria, ele nos falava, com a sua voz macia, que mais parecia uma coleção de sussurros, do Futurismo que tanto o marcara quando a sua arte se desvencilhara dos moldes acadêmicos e do ciclo primitivista ou antropofágico, e do Cubismo que vinha iluminando a sua trajetória. A Europa, pisada pela primeira vez quando era um adolescente, domara o que nele havia de tropical e excrescente. O pintor, nascido numa paisagem de sol excessivo, capaz de esquentar até os mortos, de depredadas arquiteturas barrocas, de igrejas e casas bochechudas, de jaqueiras e mangueiras de formas quase voluptuosas, e de mormaços longos que tornavam sonolentas as putas da Rua das Flores, domesticara a luz, tornara-a uma serva dócil de suas figuras e paisagens que também tinham um ar de exiladas – como se uma mão estrangeira as tivesse pintado. O primitivo, o tropical, o arcaico tinham sido varridos daquela sala imaginária pintada de cores frias.
Para nós, Vicente do Rego Monteiro expunha, em sua mesa de pintar e em sua mesa de amigo, a Europa. Ou melhor, uma certa Europa, fagueira e turbulenta, futurista e surrealista, cubista e experimentalista, empenhada em ser eternamente criadora e criativa, aplicada em tornar incessante o espetáculo da renovação das formas. Essa Europa fervilhante que ele nos servia, acompanhada de um cálice de cachaça Gravatá, tinha para nós o aparato de um suculento banquete. Ele era o emissário da vanguarda, da modernidade, da renovação. Este era, aliás, o nome da revista que fundara, para desentorpecer os meios literários e artísticos de Pernambuco, e onde nos acolhera a todos: a Willy Lewin, João Cabral de Melo Neto, Antônio Rangel Bandeira, Gastão de Hollanda, Haydn Goulart, a mim, a tantos outros.
Embora criatura de passagem, hóspede de sua própria paisagem nativa, Vicente do Rego Monteiro renovou o ambiente cultural de Pernambuco, numa fervente lição de modernidade que culminou com a realização do Primeiro Congresso de Poesia do Recife, em 1941, um evento que atraiu desde a devoção e o entusiasmo de alguns jovens até as zombarias e gargalhadas daqueles que só acreditam no consuetudinário, e não apostam nos que buscam formas novas.
Na verdade, às vezes devemos dispensar os nossos próprios olhos para ver as coisas, pois elas costumam sonegar-se a essa rotina ótica e, dengosas, só aquiescem em entregar-se se as miramos com olhos de estrangeiros. Foi isto o que Vicente do Rego Monteiro nos ensinou, com a sua nostalgia europeia, a sua lembrança tenaz e pertinaz de uma Europa na qual a investigação estética era uma rotina do espírito e das experimentações de seus amigos e companheiros de jornada, alguns tornados até mártires da vanguarda. Um deles, Géo-Charles, poeta esportivo e de olhos arregalados para as paisagens inumeráveis, escrevera estes versos lapidares sobre uma noite em Pernambuco:

Les douces négresses aux formes
d’amphore aux yeux de cheval aux
yeux de chien et les blanches
soeurs du jasmin passent embaumées
dans le sol brésilien.

No arquipélago cultural do universo, no grande portulano das tradições e experiências acumuladas pelos séculos, nos acertos e erros empilhados nas bibliotecas e nos museus, só interessavam a Vicente do Rego Monteiro as ilhas das transgressões. O novo deveria estar sempre dentro do ovo. Ele passava ao largo de tudo o que, na província ou na metrópole, significasse a tradição engordurada ou a repetição automática de uma forma viva que o século houvesse tornado matronal.
Na Pensão Sertaneja, onde eu morava, ouvindo o apito dos trens da Great Western, as conversas e os conselhos de Vicente do Rego Monteiro ressoavam como um convite à aventura. O pintor de paisagens e figuras que, em sua airosidade, havia suprimido o excesso com a sua economia de linhas, o poeta quase caligráfico que pousava sobre as coisas e os seres o seu certeiro olho de pintor, o desterrado sexual que em certas noites subia as escadas compridas dos prostíbulos do bairro do Recife em busca de uma mulher que lhe lembrasse as sábias e caprichosas poules de Montparnasse, depositava, no meu silêncio e na minha insônia, a sua palavra de incitamento.
Il faut être absolument moderne – a conclamação de Rimbaud, resvalando em mim, dava-lhe sobrada razão. De sua infância aristocrática entre pintores e pinturas, de suas viagens da descoberta de Paris quando adolescente, da experiência na Academia Julien e da revelação dos impressionistas que tinham ensinado que a luz é um mistério e uma certeza, de todos os passados do passado, e de todos os presentes do presente, Vicente do Rego Monteiro extraíra apenas a lição de uma linha nítida que era a morada de sua arte. Era uma linha que se devia acolher como se aceita o verso de um poeta. Aquela linha de seus quadros cubistas era o seu verso. E eu a seguia no ar.
Vicente do Rego Monteiro nos ensinava que o artista deve ser um inventor. Ele não deve colher a flor do dia e a rosa da noite. Ele deve inventá-las, com a sua tinta e o seu verso. E decerto as suas investidas nos territórios do alambique, como fabricante da olorosa cachaça do Engenho Gravatá, e ainda a sua preocupação com as artes gráficas e a gravação das vozes dos poetas em discos e fitas magnéticas comparticipavam desse inquieto espírito inventivo. Em plena guerra, em dias de horror e terror, ele nos induziu a festejar o centenário do nascimento de Mallarmé, e seus jovens amigos refletiam sobre os postulados da invenção formal e da ruptura (“je dis une fleur...”). A cada um que o cercava, ele ciciava o imperativo da criação de uma nova linguagem, de uma poesia que, como a sua pintura, fosse uma invenção e uma construção. E o que nele eram frases e observações, em Willy Lewin eram conversas e discussões ancoradas numa biblioteca aparelhada para saciar todas as fomes e sedes. Escola de Paris! Escola do Recife! Éramos alunos de ambas, e ambas eram uma. O peixe do Sena e o goiamum do Capibaribe se acasalavam na mesma figura fugidia que saltava no horizonte da tarde.
Nos anos de 1953 e 1954, já não eram as pontes do Recife que estávamos atravessando. Eram as pontes do Sena. Como os seus calceteiros, Vicente do Rego Monteiro estava em sua cidade. As nossas conversas eram as mesmas, embora eu já pudesse vangloriar-me de ter inventado a minha própria flor. Dir-se-ia que as havíamos interrompido um dia antes, no Café Lafayette. O pintor-poeta-tipógrafo-empresário reiterava as suas fidelidades. E todas elas nutriam o seu construtivismo específico, o seu fervor por uma revolução permanente do espírito, por uma independência.
Ele amava organizar Salões de Poesia. Era um homem da reunião e da comunidade: da comunhão poética. Uma tarde de domingo, fui ao seu encontro numa Feira de Poesia realizada na Place des Vosges. Lembro-me de que me apresentou a muitos de seus companheiros. Para a maior parte deles, a obscuridade era uma promessa de futuros radiosos e de corrigendas do destino. Em sua solidariedade vespertina, propunham-se a contestar a poesia oficial dos Claudel e dos Valéry, dos poetas reverenciados pelos salões, academias, universidades e embaixadas, e a afirmar a força da poesia em permanente estado de renovação. Em quase todos esses poetas, cujos nomes não guardei, nem podia guardar, a poesia era a aparição do dia seguinte, como uma estátua antes da praça ou um corpo nu de mulher dentro de um sonho. Para rematar, Vicente do Rego Monteiro me conduziu até o seu amigo, o poeta Jean l’Anselme, e me revelou a presença veneranda de Paul Fort, o criador dos metros largos que, à feição de baladas, tanto tinham contribuído para vitalizar e colorir o Simbolismo. De um dos jovens poetas presentes, e todo ele grávido de revolta contra as tradições poéticas estabelecidas e consagradas, ouvi um juízo feroz sobre a poesia de Claudel. E outro coparticipante da Feira, após interrogar-me sobre os meus conhecimentos e preferências, lamentava, com um ar desolado, que convergissem tão ostensivamente para o que eles chamavam ironicamente de “poesia oficial”. Ali, entre tantos poetas à espera de leitores, estava um outro universo: uma vanguarda além das vanguardas que haviam alcançado renome, aplauso e dinheiro; uma vanguarda que o público se recusava a reconhecer e ostentava, por isso, o orgulho e a arrogância silenciosa dos marginais e dos vencidos.
E, entre eles, o poeta de expressão francesa Vicente do Rego Monteiro se movimentava com o seu desembaraço de eterno inventor e reiterado vanguardista, num calor de ânimo tisnado de cumplicidade.
Naquele domingo parisiense, quando Paris é uma festa, e tudo parece transfigurar-se (de tal modo que até os operários endomingados têm o ar de pequenos burgueses fugidos dos contos de Maupassant), pude ver, em toda a sua inteireza, a fisionomia de Vicente do Rego Monteiro em sua condição e vocação de empresário cultural e artístico, sempre disposto a recomendar a jovens poetas e pintores, e até a indivíduos grisalhos e provectos, o caminho das insurreições fecundas e das renovações criadoras.
Ao longo de sua vida de artista, parte considerável de sua obra sumira nos horrores goyescos da guerra, incendiada durante os bombardeios ou alvejada pelos saques e mudanças, viagens e guardas infiéis – mas Vicente do Rego Monteiro ali estava, humilde e radioso como um operário em sua roupa de domingo, portando a palavra fraterna que se erguia no ar como uma flor, e animava aquele momento rumoroso em que o convívio e a fraternidade poética sugavam as desilusões e iludiam as misérias. Marginalizado, humilhado, esquecido e até zombado pelos monstros sagrados da pintura brasileira que, nos gabinetes governamentais do Rio e de São Paulo, engordavam ainda mais as suas já gordas pinturas habilidosamente revolucionárias, minimizado em sua contundente contribuição à Semana de Arte Moderna, Vicente do Rego Monteiro ali estava, com o seu fervor permanente e o sorriso de sua plácida e paciente Marcelle.
Compreendi, então, por que ele preferia a pobreza e até as eventuais humilhações de Paris, com a sua procissão de colisões e concorrências, às vantagens e facilidades de suas temporadas brasileiras. Na então capital mundial das artes, ele tinha tudo o que têm aqueles que nada têm. Com o seu rio, que era uma espécie de Capibaribe universal, com as heranças acumuladas de seus tesouros artísticos, com os seus palácios e bulevares, praças e jardins, com os bistrôs onde um coup de rouge podia operar o milagre da amizade e da alegria, Paris era a sua cidade, a cidade de suas duas linguagens, a pictórica e a poética, a sua verdadeira cidade do Recife. Paris era a única morada possível, intransferível e inevitável para aqueles que, como Vicente do Rego Monteiro, tinham nascido para viver em Paris. Pintor, poeta, inventor, tipógrafo e impressor de La Presse à Bras, esportista, empresário, Vicente do Rego Monteiro era tudo e era nada – e este ser tudo e ser nada era o seu segredo e o seu mistério, a sua razão e a sua desrazão, a sua aura e a sua identidade, o seu desejo e a sua condenação. As sucessivas dificuldades financeiras que lhe sombrejavam a existência, e decerto afligiam o silêncio de Marcelle (o seu apartamento na Rua Didot, no XIV arrondissement, não passava de um já-vi-tudo, no qual o cômodo único era ao mesmo tempo sala de visita, oficina tipográfica e quarto de dormir), não vulneravam a sua alegria.
Embora ele praticasse uma limpa e límpida pintura internacional, que o impõe e identifica, sem dúvida, como o menos brasileiro dos nossos grandes pintores, Paris não lhe dera a glória nem a riqueza – mas lhe outorgara o sentido de amizade e da solidariedade artística. Era a sua realidade, a sua respiração, a sua pátria.
Sobre a minha mesa estão agora, espalhadas como as estrelas que no céu formam uma constelação, as obras gráficas e poéticas de Vicente do Rego Monteiro. O meu olhar mais enternecido vai para o Poemas de Bolso, que vi nascer no Recife, volume inicial e derradeiro de uma coleção que anunciava a minha estreia aos 17 anos com o livro de poemas Crepúsculo Civil, cujos originais se perderam e sumiram.
A publicação de Poemas de Bolso foi juncada de respingos desdenhosos por parte dos companheiros de geração do poeta-pintor e dos críticos aborígines afervorados em defender um mitigado modernismo de salão. Contudo, poucos livros da moderna poesia brasileira serão tão modernos quanto este, com as suas investigações gráficas, o seu verso plástico que pula como um saltimbanco no espaço feérico de um circo. Vicente do Rego Monteiro, que tanto amava os saltimbancos – por ele chamados de clowns – e tanto estimava as acrobacias poéticas de Jean Cocteau, guarda nesse livrinho ao mesmo tempo provinciano e cosmopolita algumas das imagens mais valiosas do nosso processo de renovação poética. Em sua modernidade nutrida de Laforgue e Apollinaire, Valery Larbaud e Blaise Cendrars, ele pinta as coisas e seres em vez de descrevê-los. É um imagista, um visual. Releio os versos insólitos. Estou de novo no Recife.

Recife – Grande espelho refletor de fabuloso cineasta.
Na luz que ofusca e cega o transeunte é um figurante que passa.
Ao nascer do teu dia saudável e tranquilo nenhum problema a resolver
Os figurantes retomam as atitudes plásticas do ganha-pão quotidiano.
Somente as estrelas e os galantes usam lunetas de cores.
À noite tua sala de projeção
é um vasto cenário para contemplação.
Capibaribe
Beberibe
Oceano Atlântico.

Vicente do Rego Monteiro via a sua cidade natal com os olhos de um turista, de um primo-irmão de Blaise Cendrars ou de um Barnabooth capaz de enxergar larbaudianamente, no cais do Abacaxi, cuias pintadas e gravadas de estranhas inscrições “meu amor”.
O modernismo mais conspícuo vibra em muitos desses versos que celebram certos ritos e engenhos da modernidade, como as máquinas, as telecomunicações, as fitas magnéticas.
Mistério da poesia, em seu coito deleitoso com as artes gráficas! Dada a feição do livro, encompridado para caber num bolso, os versos são divididos em várias linhas, afinando-se e fragmentando-se como se fossem a soma ditosa ou incômoda de subversivos subversos. Vicente do Rego Monteiro não hesita em esquartejar palavras, transferindo uma parte de seu corpo para a outra linha – e, como as cobras, essas palavras continuam vivas, embora cortadas pelo meio. Pelo seu desconjuntamento verbal, humor e instantaneidade, esses poemas haviam de desagradar aos modernistas provectos e já domados do Rio e de São Paulo.
Em que língua Vicente do Rego Monteiro os teria escrito originariamente, já que quase todos eles têm versões em francês e português? Esse bilinguismo da sua lira dilacerada já esplendia em outro livro, no belo Quelques Visages de Paris publicado em 1925, sendo que, neste, os dois idiomas utilizados são o francês e o desenho – a mais civilizada e apurada das línguas planetárias e a linguagem mais bárbara e primitiva, estilizada e convertida em verdadeiros (ou falsos) ideo­gramas. Un jour un chef sauvage laissant la forêt vierge vint à Paris incognito, après un petit séjour, blasé de tant de grandeurs il retourna à son ôca (home).São as impressões de Paris desse chefe indígena do Amazonas que Vicente do Rego Monteiro reúne nesse álbum. E, poeta e pintor tocado pela obsessão do vínculo entre o som e o signo das palavras e o perfil das coisas, e fecundado pela lição tipográfica e espacial daquele Mallarmé cujo centenário comemorou no Recife, celebra em texto e figuras o que Paris tem de mais turístico e referencial: a Notre Dame, a Torre Eiffel, a ponte de Passy, o Trocadero, o Viaduto de Austerlitz, o Sacré-Coeur, o Louvre, a Praça da Concórdia, o Jardim das Plantas, o Arco do Triunfo. Essas suas anotações líricas de piéton de Paris lembram as Lettres Persanes de Montesquieu. Vicente do Rego Monteiro assesta sobre Paris o seu olhar persa de pernambucano desgarrado, e mais urna vez a poesia se organiza como uma arte de ver a realidade, como uma operação intelectual na qual a palavra se converte em desenho, imagem e objeto.
Esse imagismo que o atrela à tradição do olhar permeia quase todos os seus poemas e freme no “Quais du Seine”, que figura em Chants de Fer:

Seine ô Seine comme il paraît
Humain Compréhensif et triste
Ton regard quand tu passes près
Des quais où sont les bouquinistes
Là se meurt la gloire Au rebais
Dans la poussière coexiste
Un monde individualiste
Dans un gris linceul de décès
Les livres Fagots empilés
Aux bords du grand fleuve sacré
Semblent des bûches crématoires
Paris Bénarès Seine voire
Le Gange pour que d’autres vivent
Tu cueilles la cendre des livres

Note-se que, nesse poema, o rio tem um olhar, como os poetas para quem o mundo exterior existe, dentro da tradição avivada pela poética de Victor Hugo e Théophile Gautíer.
Em abril de 1955, internado num hospital parisiense, Vicente do Rego Monteiro compõe 35 sonetos que, dois anos depois, serão editados no Recife. É um livro intitulado Broussais-la-Charité. A amizade, uma das virtudes maiores de sua vida moral e artística, floreja nesses versos de circunstância, que têm um pungente e febril calor verlaineano – do Verlaine que, quando baixava a um hospital, enfeitava de flores o urinol à sua disposição. A solidão de Vicente do Rego Monteiro se povoa de sombras amigas e luminosidades, e nenhuma amargura mancha as reflexões produzidas pelo seu isolamento. Por seu humor, divertida ironia, malícia e ternura, e sua tristeza onde habita uma alegria que prefere manter-se incógnita, este Broussais-la-Charité avulta como um imperdível documento pessoal. É uma espécie de autopsicobiografia. Através dos outros, o poeta se vê a si mesmo. Na hora em que a morte manda um de seus sabujos mordê-lo, Vicente do Rego Monteiro murmura que não está sozinho.
Vicente do Rego Monteiro. Agora, não sei mais se estou no Recife, ouvindo em sua casa o Bolero de Ravel, ou no hotelzinho da Rua Candido Mendes em que ele se hospedava nos últimos tempos quando vinha ao Rio procedente de Brasília, ou na nossa Paris de brasileiros em Paris. Diante do pintor e poeta que só a morte ousou tornar clássico, sequestrando-o de sua arte ancorada no presente e no dia que passa como um navio, as minhas lembranças se tornam fugidias.

Comme nos souvenirs sont vagues
L’éternel n’est aussi durable
Qu’un poème écrit sur le sable

Vicente do Rego Monteiro. Na areia do mundo e da vida, tornamos a escrever o teu nome.

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Lêdo Ivo (1924-2012). Poeta, narrador, ensaísta.  Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil).



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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