Se somos estranhos numa dada região, nem nos
atrevemos a deitar no chão frio. Caminhamos, caminhamos, caminhamos sempre.
Sente-se nas costas o focinho gelado dum revólver que nos manda andar mais
depressa, mais depressa, mais depressa.
Henry Miller
Os atalhos trilhados para se alcançar a liberdade
perfazem a danação do humano gesto de desejar o infinito. O infinito que se
esconde nas pontilhadas estações do desejo. O desejo que arranha a pele na
consangüínea vontade de partir, sempre. E, partir, do princípio ao fim, é
desatar a aventura de livre ser, sem amarras, lamentações, louvações, sem
certezas dos passos próximos na lonjura do trajeto. A figura da distância
desafia os ínvios retiros a narrar. Sem pedágio, a história desencadeia a
fartura de atarantados motivos, cada um deles suporta o clamor das vozes,
rebenta a onipotência da fé, molda os espaços do bem, desclica a incoerência do
mal, reelabora a lida postiça dos humores, destrona os catecismos suplicantes e
instaura uma poética onde as criaturas, na rodagem de suas vidas, caminham
desassossegadamente compondo no clarão do tempo os derradeiros fiapos de
sonhos.
Desatar o novelo da liberdade, eis uma das tarefas do consistente
narrador que elabora sua narrativa com perícia e arte, atrelando em um só
universo a unidade, o dinamismo, a síntese, o implícito e o sugestivo que
destravam as vivências erráticas com tamanha intensidade e concentrada emoção
que faz do explícito a força motora das fortuitas observações do cotidiano. Os
sentidos incendiados pela volúpia da linguagem salientam, nas bordas dos
detalhes aparentemente banais, as combinações frenéticas de um mundo não
revelado, um espaço para além, muito além dos clichês, identificado em sua
inteireza com a construção de uma literatura sem frescura; uma ficção
transparente que foge ao lugar-comum e se agiganta quando explora as regiões
encobertas do coração humano, reavivando nota a nota, ponto a ponto, letra a
letra, face a face as comoções que se desdobram diligentemente nas feridas,
rupturas e perdas das ilusões. O narrador, com tal perfil, é um devorador de
exuberâncias.
Com força narrativa arrojada e múltipla capacidade de entrelaçar
enredos, R. Roldan-Roldan traduz o avesso da cidade no romance Rapsódia para um Viajante Solitário.
Para narrar os muitos outros lados da cidade escondida, ele convoca, mais uma
vez, David Haize, espécie de alter ego
do autor que, municiado de sua
poderosa linguagem, passeia pelos subterrâneos dos esquecidos lugares; os
cantos e recantos que causam asco e nojo à maioria dos ditos seres normais, os
mesmos que esquecem as sombras pesadas das sentidas e prematuras viagens ao
redor de seu próprio umbigo. O narrador roldaniano estilhaça o jogo das
aparências quando mobiliza as idéias e os temas por meio de uma penetrante polifonia
poética. David Haize traz para a cena narrativa a atmosfera claustrofóbica
daqueles que estão à margem da margem, sósias de párias identificados apenas
com fragmentos do humano, personagens insulados em meros esboços de gente. O
narrador-rapsodo viaja
solitariamente pelos meandros da desventura e a cada descida ao sub revela as fraturas mais ou menos
expostas do indivíduo, mesmo a contragosto, arrimo de seu destino. Uma viagem
maiúscula, solitária e obsessiva; de intensa e ilimitada estranheza, uma
jornada sem parlapatices e falações, cravejada de beleza, sublime em seu epos narrativo numa linguagem
transparente, por vezes quase prosaica, a vida no envolvimento alegórico do
existir, em plenitude.
Rapsódia para um Viajante
Solitário orbita em torno de dois momentos, o primeiro
deles, a porta de entrada, traz como referência o nome de Os amores perdidos ou a descida ao sub, onde David Haize,
desimpedido das sutilezas, penetra as instalações ocultas da cidade silenciada,
completamente injetada por esboços amorosos; nesta fase, o narrador reaviva as
mais delirantes e comovidas histórias, de Edith, de Quase (o Anão), de Müller e
Ariel e de Myriam, todas elas, de uma forma ou de outra, redimidas pelo ruidoso
tamborilar da liberdade. Os acordes dos
amores que permeiam a semiescura dor de cada personagem enfatizam o traço
abismal do desapego de si mesmo e da periculosidade que a solidão representa;
afinados as suas fraquezas, os habitantes do sub digerem tristeza e desespero encarnados às mais desenfreadas misérias
e humilhações. O anão Quase é a esmerada síntese de todas as histórias
esboçadas nas clandestinas vielas da cidade; a grandeza deste personagem
deve-se, entre outras marcas, a sinceridade e a coerência com que mergulha na
paixão que o liberta e, ao mesmo tempo, o nega, aprisionando-o a sua condição
de incompletude, uma espécie mal-ajambrada de gente, uma migalha de ser – um
farrapo qualquer –, identidade evanescente a começar pelo nome, Quase,
provavelmente, o personagem, dentre todos os tresmalhados, o mais lancinante em
seu périplo amoroso. Pode-se, assim, pensar que os indivíduos, na sua imensa
maioria, são meras sombras gigantescas de uma realidade quase sempre enrugada
no íntimo de um ser chamado Quase.
O movimento seguinte do viajante solitário é O arquipélago dos sentidos ou os mistérios do cabaré, aqui, reaviva-se a transfigurada abundância do êxtase em suas múltiplas tentações e incisivas miragens. A rapsódia roldaniana executada por David Haize, esse irmão de sangue de Arturo Bandini (John Fante) e Henry Chinaski (Charles Bukowski), aponta para a impermanência dos desejos e para a perenidade dos exilados amores – todo ato amoroso evidencia uma carnação de abandonos. Emboscado pelo martelar das sentenças: “De longe vens” e “Aonde vais David Haize?”, o rapsodo-narrrador celebra seu reencontro com a bem-aventurada Anastacia Lazarovna, concentrando todo seu poder de rememoração nas acuradas observações da eterna senhora, portadora de inesquecíveis universos ficcionais, uma Sheherazade em constante movimento ao redor das vidas comuns depuradas no sub ou nos arquipélagos mais exóticos, lugar de seres apátridas, região da liberdade esbraseada pela turbulência dos amores. Ainda, entre reencontros, idas e voltas, muito ao som do fascínio e da pujança das canções de Tom Waits e Kathleen Brennan, entre tantos, David Haize, sem abdicar das lembranças, confabula com suas verdades, seus interditos entrevistos na explicitude de sua missão: desalojar os fantasmas que rondam o abismo das aparências, suportando as rupturas, as feridas e as perdas que circunstanciam a realidade – a ficção quase total da vida. Pater, Mater ... é, desse modo, a estação de entrega máxima de David Haize para com suas histórias, sejam elas do sub ou dos sentidos, ambas pontuadas pela impertinência do canto.
Rapsódia para um Viajante
Solitário traduz o imaginoso mundo de David Haize, o
narrador-criador de universos mágicos, aquele sobre o qual o escritor R.
Roldan-Roldan delega a liberdade para contar as vivências sensíveis e visíveis
que infestam a cidade, numa tacada antilírica gestada entre os embotados afetos
e as estropiadas paixões; há algum tempo, August Strindberg deixou registrado:
“Uma cidade está sempre vibrando, concordo, mas para sentir essa vibração é preciso ter nervos afiados”, R. Roldan-Roldan afia
os nervos de David Haize que, por seu turno, aguça a percepção dos seus
companheiros de viagem – a bígama, o poeta cego, a louca e a ativista –, todos
solitários na estrada do tempo, urdidos em suas rapsódias. O canto roldaniano
possui estilo, força e intensidade, é indispensável, absoluto em suas mínimas
reentrâncias: a vida em forma de arte, a arte em forma de obra e a obra tecida
com o linho da liberdade, deveras.
*****
LEONTINO FILHO (1961). Poeta e Professor de Teoria da Literatura e
Literatura Brasileira, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN.
Publicou os seguintes livros de poemas: Cidade Íntima (1987/ 1991/
1999); Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Autor do
ensaio de crítica literária – inédito em livro, intitulado: Sob o Signo de
Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos (Natal: Universidade
Federal do Rio Grande do Norte/Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem, 1997). Doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de
Araraquara/SP) com a tese: Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo
(2005). leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do
Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 16 | Maio
de 2016
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | MÁRCIO SIMÕES
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