terça-feira, 19 de abril de 2016

JORGE ROUVALIS | Lêdo Ivo: Pelos caminhos do mundo até à Grécia


Como se traduz um poeta? Através de que processo se chega desde o conhecimento, a leitura, a admiração de um trabalho poético até à sua tradução e publicação? No meu caso pessoal, de tradutor já com algumas horas de voo, este processo pôde tardar, por vezes, 30 anos. É o período que decorreu, por exemplo entre a experiência visionária do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos na Cinemateca de Paris nos anos 70, até à efetiva tradução e edição do livro em 2012. Ou, também desde a leitura da fabulosa novela Três tristes tigres do genial Cubano Guillermo Cabrera Infante, lido em 1972 no Instituto da América Latina em Paris até à publicação da tradução em Atenas, em 2008.
Poderão entender que se trata aqui de projetos literários y de tradução de grande força, cuja qualidade precisamente instigou a permanência do desejo de traduzi-los, mais tarde ou mais cedo.
Felizmente para mim, a poesia de Lêdo Ivo não teve um caminho tão longo até chegar à forma de livro traduzido. Conheci o poeta num festival literário chamado Literatura del Bravo na Ciudad Juárez, México, em 2009. Ambos tínhamos sido convidados a fazer leituras da nossa produção literária em escolas superiores e teatros da cidade e a conviver durante uma semana. Eu ignorava quem era o poeta mas a sua idade respeitável assim como a deferência com que o tratavam os outros companheiros escritores, todos mais jovens que ele, chamou-me a atenção. Numa das mesas do almoço, sentei-me ao seu lado e, vivo e ágil como só ele, perguntou-me de imediato se eu era poeta. Tardei em responder, não porque não me sentisse poeta mas porque cultivava outros gêneros como o Conto, a Novela, etc. "Não tenho a certeza", respondi. "Bem, mas e' ou não se é poeta!" Fulminou-me Ledo. "Tive que ceder e confessar que sim, que era poeta". Desde esse momento fui aceite no círculo dos seus admiradores, alguns dos quais também eram seus tradutores em espanhol e todos o tratavam com muito respeito, ao qual me juntei sem problemas. Numa leitura comum, Lêdo leu o seu famoso poema "Os pobres na estação rodoviária", uma Obra Mestra que aumentou a minha admiração pela sua poesia.
Frequentar os momentos de refeição aumentou as possibilidades de conhecê-lo melhor e admirar o seu espírito versátil mas profundo, a sua agilidade física e a sua plena disposição para se inteirar e integrar em todas as atividades do encontro. Inclusive os brasileiros de Juárez, ao saber que tinham presente um ilustre compatriota e acadêmico, organizaram-lhe uma festa numa casa onde assistiram todos os participantes do encontro.
Muitos livros de poesia trouxe dessa viagem, assim como novas amizades de poetas e escritores. Mas a recordação mais intensa consistia em Lêdo Ivo e a sua forte poesia.
Já de regresso a Atenas, comentei essa "descoberta" com um amigo, poeta e editor, Dinos Siotis, o qual organizava também um encontro literário na ilha de Tinos, Ciclades, na Grécia. De imediato decidiu convidá-lo para o Verão de 2010. Assim, um belo dia cheguei ao aeroporto de Atenas para receber o poeta que vinha viçoso que nem uma alface e sem se queixar, embarcou no automóvel de um amigo em direção a Náfplio, a minha maravilhosa cidade natal, junto ao mar. É uma pequena cidade muito pitoresca, construída pelos Venezianos e que foi também a primeira capital do Estado Grego Moderno. Lêdo ficou em nossa casa e passou esses 2 ou 3 dias em plena sombra dos cafés da Marginal olhando o mar. Já tinha estado há mais de 10 anos na Grécia e percorrido tudo o que havia de Museus e Escavações Arqueológicas. Agora só queria descansar. Obviamente, gostou muito da cidade, comprou lembranças para os familiares e em Atenas embarcou conosco no barco que nos levaria a Tinos. Aí encontramo-nos com um jovem engenheiro do Rio Grande do Sul e as suas filhas que viajavam para Mykonos. Nesse ano chegavam milhares de Brasileiros para conhecer a Grécia.
Em Tinos fomos recebidos por Dinos Siotis e seguimos para o hotel, a 3 quilômetros do centro, junto á praia. Comemos num restaurante ao ar livre, peixe e fruta. O poeta comia de tudo menos frango como nos confessou, que lhe davam nos aviões: "I hate chicken", tinha gritado a uma empregada. No dia seguinte, chegamos à aldeia na companhia do poeta greco-mexicano Homero Aridjis, a sua esposa Betty e a minha Elia. Aí sim, os poetas provaram de tudo e beberam de tudo.
Ledo declamou o seu poema Os Pobres e mais um ou dois que eu tinha traduzido. O público fez-lhe uma recepção entusiástica - Ovação de pe'. Gostaram tanto que á saída para além de felicitarem o poeta chegaram a fazê-lo com o tradutor... Repetiram-se mais duas leituras noutras aldeias do interior da ilha, de ambiente muito pitoresco, cheias de árvores e água, em que Lêdo participou encantado. Pudemos também alojá-lo por uns dias na nossa casa de Atenas e percorrer a Plaka e outros bairros pitorescos da capital. Á despedida, já Dinos Siotis tinha tomado a decisão de editar um livro com a sua poesia. Insisti para que a edição fosse bilíngue, português-grego. Do Rio, Lêdo enviou-me o tomo impressionante da sua poesia completa mas também vários outros livros, traduções suas em diferentes países da América Latina, bem como outros livros seus, Novelas, Ensaios, crônicas, num dos quais (O vento do mar, 2011, pag.211) tive o gosto de encontrar uma foto minha com ele, em Tinos. A seleção que fiz incluiu 50 poemas de diferente índole. Também lhe pedimos uma recordação da sua viagem a Tinos e ele enviou-nos um texto mais filosófico a que chamou A  RESPOSTA. Pouco a pouco esses poemas e textos foram publicados nas duas revistas de Siotis. Dekata (trimestral) e Poetix (semestral). Também decidimos pôr na capa uma obra do seu filho Gonçalo e o livro ficou quase montado, já que Lêdo tinha escolhido o título: «O mar e os navios».
Nos entretantos, Lêdo demonstrou novamente o quanto era solidário. Ajudou substancialmente à edição em grego de Vidas Secas contatando pessoalmente a Senhora Dona Eloísa Ramos, herdeira de Graciliano, para a convencer a ceder os direitos por uma soma modesta, assim como à editora Record para os ceder a nós. Posso afirmar que sem esta ajuda inestimável, o livro talvez ainda não tivesse saído. E é lógico o seu interesse, já que Graciliano era Alagoano como ele, amigo da família e amigo chegado, no Rio. Recordo ainda o que conta o próprio Lêdo, ao saber que quando o livro saíu , a primeira crítica (e durante algum tempo a única) que recebeu o autor, de um jornal local, foi de um garoto de 14 anos, o próprio Lêdo. Graciliano tinha conservado a crítica numa gaveta e mostrou-a ao jovem, quando o visitou, no Rio.
Tanto ele como outros escritores Nordestinos (Jorge de Lima, José Lins do Rêgo, Raquel de Queirós etc.) foram o primeiro círculo de amigos de Lêdo no Rio, além do círculo do editor José Olympio. Lêdo conta que foi recebido de braços abertos pelos colegas e foi ajudado na sua carreira literária de várias maneiras.
Devo acrescentar que vários ensaios de Lêdo sobre Graciliano, que ele me enviou, me ajudaram a redigir a introdução desta minha tradução. Aí pude apreciar a inteligência e fineza das suas observações críticas. Enquanto esteve na minha casa em Atenas, discorremos sobre outros autores, sobretudo os franceses que ele conhecia profundamente e tinha analisado em detalhe. aí também pude apreciar a alegria e bonomia de Lêdo. estava sempre com um sorriso na boca, para não dizer uma gargalhada. era um ser alegre, além de ágil, profundo e solidário.
Por infortúnio, o procedimento de preparação do seu livro durou mais de 2 anos porque esperávamos uma subvenção do Ministério dos Negócios Exteriores do Brasil, que já estava aprovada mas que tardava em chegar. Nessa altura, desgraçadamente, soubemos da perda do nosso amigo, em Sevilha. Razão de sobra para acelerar a publicação do livro que saiu na Primavera de 2013 e que foi apresentado no Auditório da Embaixada do Brasil em Atenas, com a presença de Gonçalo Ivo, sua esposa e dois brilhantes ensaios de dois literatos gregos. Gonçalo trouxe-nos também o último poema de Lêdo que publicamos de imediato em grego e que fala da proximidade da Morte.
Do pouco da literatura lusófona traduzida na Grécia (alguns livros de Machado de Assis), vários poemas de Fernando Pessoa, etc., temos agora a alegria de dispor da maravilhosa poesia de Lêdo Ivo, traduzida em grego. Para terminar gostaria de precisar que para mim foi uma grande oportunidade ter assistido ao colóquio da Ciudad Juárez, onde não somente encontrei a poesia de Lêdo, como também muitos outros jovens poetas nordestinos e onde se criaram laços indestrutíveis de amizade. Esta é a vantagem deste tipo de encontros.
Além disso, beneficiei de múltiplas ajudas para a minha aproximação à poesia de Lêdo. Antes de mais, queria agradecer à Monique Mendes, ajudante na Academia e editora de Os navios do mar, as diferentes mensagens enviadas pelo poeta. E sobretudo a ajuda que recebi do Gonçalo e Denise Ivo que fizeram a viagem a Atenas para estar presentes na apresentação da minha tradução. Gonçalo, extraordinário pintor  e ser humano sensível, seguiu enviando-me todo o tipo de artigos ou notícias ou vídeos relativos com nosso querido amigo. Certamente que tudo isto não substitui a poesia mas ajuda à crítica. Também trabalhou para a posteridade do seu pai, construindo uma importante biblioteca com os seus arquivos em Teresópolis, Rio de janeiro, que espero conhecer brevemente.
Já que estou em Natal, penso ir a Maceió para descobrir o universo de Ledo no armazéns do porto, o farol, as velhas mansões e tudo o que resta daqueles tempos e que tanto inspirou o nosso poeta. Folgo em dizer que a minha própria terra, Náfplio, foi o ponto de inspiração para a minha própria produção literária e que há já alguns anos, estou trabalhando na construção de uma mitologia desta cidade antiquíssima. Algo como a muito lograda mitologia de Maceió que todavia irrompe da poesia de Lêdo Ivo.


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GEORGE ROUVALIS (Grécia). Poeta, ensaísta e tradutor. Matéria cedida pelo autor, originalmente publicada na revista La Otra # 47, México (2011). Página ilustrada com obras de Arthur Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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