Como se traduz um poeta? Através de
que processo se chega desde o conhecimento, a leitura, a admiração de um
trabalho poético até à sua tradução e publicação? No meu caso pessoal, de
tradutor já com algumas horas de voo, este processo pôde tardar, por
vezes, 30 anos. É o período que decorreu, por exemplo entre a experiência
visionária do filme Vidas Secas, de
Nelson Pereira dos Santos na Cinemateca de Paris nos anos 70, até à efetiva
tradução e edição do livro em 2012. Ou, também desde a leitura da fabulosa
novela Três tristes tigres do genial
Cubano Guillermo Cabrera Infante, lido em 1972 no Instituto da América Latina
em Paris até à publicação da tradução em Atenas, em 2008.
Poderão entender que se trata aqui de projetos literários y de tradução
de grande força, cuja qualidade precisamente instigou a permanência do
desejo de traduzi-los, mais tarde ou mais cedo.
Felizmente para mim, a poesia de Lêdo Ivo não teve um caminho tão longo
até chegar à forma de livro traduzido. Conheci o poeta num festival
literário chamado Literatura del Bravo na Ciudad Juárez, México, em 2009. Ambos
tínhamos sido convidados a fazer leituras da nossa produção literária em
escolas superiores e teatros da cidade e a conviver durante uma semana. Eu
ignorava quem era o poeta mas a sua idade respeitável assim como a deferência
com que o tratavam os outros companheiros escritores, todos mais jovens que
ele, chamou-me a atenção. Numa das mesas do almoço, sentei-me ao seu lado e,
vivo e ágil como só ele, perguntou-me de imediato se eu era poeta.
Tardei em responder, não porque não me sentisse poeta mas porque cultivava
outros gêneros como o Conto, a Novela, etc. "Não tenho a
certeza", respondi. "Bem, mas e' ou não se é poeta!" Fulminou-me
Ledo. "Tive que ceder e confessar que sim, que era poeta". Desde esse
momento fui aceite no círculo dos seus admiradores, alguns dos quais também
eram seus tradutores em espanhol e todos o tratavam com muito respeito, ao qual
me juntei sem problemas. Numa leitura comum, Lêdo leu o seu famoso poema
"Os pobres na estação rodoviária", uma Obra Mestra que aumentou a
minha admiração pela sua poesia.
Frequentar os momentos de refeição aumentou as possibilidades de
conhecê-lo melhor e admirar o seu espírito versátil mas profundo, a sua
agilidade física e a sua plena disposição para se inteirar e integrar em todas
as atividades do encontro. Inclusive os brasileiros de Juárez, ao saber que
tinham presente um ilustre compatriota e acadêmico, organizaram-lhe uma festa
numa casa onde assistiram todos os participantes do encontro.
Muitos livros de poesia trouxe dessa viagem, assim como novas amizades
de poetas e escritores. Mas a recordação mais intensa consistia em Lêdo Ivo e a
sua forte poesia.
Já de regresso a Atenas, comentei essa "descoberta" com um
amigo, poeta e editor, Dinos Siotis, o qual organizava também um encontro
literário na ilha de Tinos, Ciclades, na Grécia. De imediato decidiu convidá-lo
para o Verão de 2010. Assim, um belo dia cheguei ao aeroporto de Atenas para
receber o poeta que vinha viçoso que nem uma alface e sem se queixar, embarcou
no automóvel de um amigo em direção a Náfplio, a minha maravilhosa cidade
natal, junto ao mar. É uma pequena cidade muito pitoresca, construída pelos Venezianos
e que foi também a primeira capital do Estado Grego Moderno. Lêdo ficou em
nossa casa e passou esses 2 ou 3 dias em plena sombra dos cafés da Marginal
olhando o mar. Já tinha estado há mais de 10 anos na Grécia e percorrido tudo o
que havia de Museus e Escavações Arqueológicas. Agora só queria descansar.
Obviamente, gostou muito da cidade, comprou lembranças para os familiares e em
Atenas embarcou conosco no barco que nos levaria a Tinos. Aí encontramo-nos com
um jovem engenheiro do Rio Grande do Sul e as suas filhas que viajavam para
Mykonos. Nesse ano chegavam milhares de Brasileiros para conhecer a Grécia.
Em Tinos fomos recebidos por Dinos Siotis e seguimos para o hotel, a 3 quilômetros
do centro, junto á praia. Comemos num restaurante ao ar livre, peixe e fruta. O
poeta comia de tudo menos frango como nos confessou, que lhe davam nos aviões:
"I hate chicken", tinha gritado a uma empregada. No dia seguinte,
chegamos à aldeia na companhia do poeta greco-mexicano Homero Aridjis, a sua
esposa Betty e a minha Elia. Aí sim, os poetas provaram de tudo e beberam de
tudo.
Ledo declamou o seu poema Os Pobres e mais um ou dois que eu tinha
traduzido. O público fez-lhe uma recepção entusiástica - Ovação de pe'.
Gostaram tanto que á saída para além de felicitarem o poeta chegaram a fazê-lo
com o tradutor... Repetiram-se mais duas leituras noutras aldeias do interior
da ilha, de ambiente muito pitoresco, cheias de árvores e água, em que Lêdo
participou encantado. Pudemos também alojá-lo por uns dias na nossa casa de
Atenas e percorrer a Plaka e outros bairros pitorescos da capital. Á despedida,
já Dinos Siotis tinha tomado a decisão de editar um livro com a sua poesia.
Insisti para que a edição fosse bilíngue, português-grego. Do Rio, Lêdo
enviou-me o tomo impressionante da sua poesia completa mas também vários outros
livros, traduções suas em diferentes países da América Latina, bem como outros
livros seus, Novelas, Ensaios, crônicas, num dos quais (O vento do mar, 2011,
pag.211) tive o gosto de encontrar uma foto minha com ele, em Tinos. A seleção
que fiz incluiu 50 poemas de diferente índole. Também lhe pedimos uma
recordação da sua viagem a Tinos e ele enviou-nos um texto mais filosófico a
que chamou A RESPOSTA. Pouco a pouco
esses poemas e textos foram publicados nas duas revistas de Siotis. Dekata (trimestral) e Poetix (semestral). Também decidimos pôr
na capa uma obra do seu filho Gonçalo e o livro ficou quase montado, já que
Lêdo tinha escolhido o título: «O mar e os navios».
Nos entretantos, Lêdo demonstrou novamente o quanto era solidário.
Ajudou substancialmente à edição em grego de Vidas Secas contatando pessoalmente a Senhora Dona Eloísa Ramos,
herdeira de Graciliano, para a convencer a ceder os direitos por uma soma
modesta, assim como à editora Record para os ceder a nós. Posso afirmar que sem
esta ajuda inestimável, o livro talvez ainda não tivesse saído. E é lógico o
seu interesse, já que Graciliano era Alagoano como ele, amigo da família e
amigo chegado, no Rio. Recordo ainda o que conta o próprio Lêdo, ao saber que
quando o livro saíu , a primeira crítica (e durante algum tempo a única) que
recebeu o autor, de um jornal local, foi de um garoto de 14 anos, o próprio
Lêdo. Graciliano tinha conservado a crítica numa gaveta e mostrou-a ao jovem,
quando o visitou, no Rio.
Tanto ele como outros escritores Nordestinos (Jorge de Lima, José Lins
do Rêgo, Raquel de Queirós etc.) foram o primeiro círculo de amigos de Lêdo no
Rio, além do círculo do editor José Olympio. Lêdo conta que foi recebido de braços
abertos pelos colegas e foi ajudado na sua carreira literária de várias
maneiras.
Devo acrescentar que vários ensaios de Lêdo sobre Graciliano, que ele me
enviou, me ajudaram a redigir a introdução desta minha tradução. Aí pude
apreciar a inteligência e fineza das suas observações críticas. Enquanto esteve
na minha casa em Atenas, discorremos sobre outros autores, sobretudo os
franceses que ele conhecia profundamente e tinha analisado em detalhe. aí
também pude apreciar a alegria e bonomia de Lêdo. estava sempre com um sorriso
na boca, para não dizer uma gargalhada. era um ser alegre, além de ágil,
profundo e solidário.
Por infortúnio, o procedimento de preparação do seu livro durou mais de
2 anos porque esperávamos uma subvenção do Ministério dos Negócios Exteriores
do Brasil, que já estava aprovada mas que tardava em chegar. Nessa altura,
desgraçadamente, soubemos da perda do nosso amigo, em Sevilha. Razão de sobra
para acelerar a publicação do livro que saiu na Primavera de 2013 e que foi apresentado no
Auditório da Embaixada do Brasil em Atenas, com a presença de Gonçalo Ivo, sua
esposa e dois brilhantes ensaios de dois literatos gregos. Gonçalo trouxe-nos
também o último poema de Lêdo que publicamos de imediato em grego e que fala da
proximidade da Morte.
Do pouco da literatura lusófona traduzida na Grécia (alguns livros de
Machado de Assis), vários poemas de Fernando Pessoa, etc., temos agora a
alegria de dispor da maravilhosa poesia de Lêdo Ivo, traduzida em grego. Para
terminar gostaria de precisar que para mim foi uma grande oportunidade ter
assistido ao colóquio da Ciudad Juárez, onde não somente encontrei a poesia de
Lêdo, como também muitos outros jovens poetas nordestinos e onde se criaram
laços indestrutíveis de amizade. Esta é a vantagem deste tipo de encontros.
Além disso, beneficiei de múltiplas ajudas para a minha aproximação à
poesia de Lêdo. Antes de mais, queria agradecer à Monique Mendes, ajudante na
Academia e editora de Os navios do mar, as diferentes mensagens enviadas pelo
poeta. E sobretudo a ajuda que recebi do Gonçalo e Denise Ivo que fizeram a
viagem a Atenas para estar presentes na apresentação da minha tradução.
Gonçalo, extraordinário pintor e ser
humano sensível, seguiu enviando-me todo o tipo de artigos ou notícias ou
vídeos relativos com nosso querido amigo. Certamente que tudo isto não
substitui a poesia mas ajuda à crítica. Também trabalhou para a posteridade do
seu pai, construindo uma importante biblioteca com os seus arquivos em
Teresópolis, Rio de janeiro, que espero conhecer brevemente.
Já que estou em Natal, penso ir a Maceió para descobrir o universo de
Ledo no armazéns do porto, o farol, as velhas mansões e tudo o que resta
daqueles tempos e que tanto inspirou o nosso poeta. Folgo em dizer que a minha
própria terra, Náfplio, foi o ponto de inspiração para a minha própria produção
literária e que há já alguns anos, estou trabalhando na construção de uma
mitologia desta cidade antiquíssima. Algo como a muito lograda mitologia de
Maceió que todavia irrompe da poesia de Lêdo Ivo.
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GEORGE ROUVALIS (Grécia). Poeta,
ensaísta e tradutor. Matéria cedida pelo autor, originalmente publicada na revista La Otra # 47, México (2011). Página ilustrada com obras de Arthur
Bispo do Rosário (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 16 | Maio de 2016
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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GLADYS MENDÍA | MÁRCIO SIMÕES
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