Em "O Teatro e seu duplo" [10] Artaud procura uma linguagem
através dos signos, de gestos e objetos que se expresse pelas "formas
objetivas"; o uso das palavras como "objetos sólidos", com
"a importância que têm nos sonhos", “palavras que reúno… segundo as
leis do simbolismo e das analogias vivas… dos ideogramas da China e dos velhos
hieróglifos egípcios”, em um “hermetismo bem calculado”. Prescreve, para o
teatro, o lugar da improvisação e o rigor matemático com que as imagens devam
ser apresentadas, as conclusões deve o expectador tirar a partir de seus
próprios pontos de vista. Fica sugerida uma liberdade de interpretação, mas
Artaud a limita pelo uso de "palavras que precipitam (no sentido químico)
significados". O instrumento básico de Artaud enquadra-se no que Berlyne
[12] descreve como “conflito conceitual e curiosidade epistêmica”, teoria
nascida do associacionismo. Há que se lhe atribuir duas originalidades.
Primeiro, difere ele na qualidade do questionamento. Adota a dúvida, já
expressa em 1925, em "O Pesa nervos", “a vida é queimar perguntas”,
[8] o que deve reportar a Pedro Abelardo, [30 nota] dando um passo além de
Descartes: a dúvida não deve ser apenas metódica até alcançar a evidência, mas
a atividade mental deve ser levada a um tal ponto de interrogar-se que chegue à
"destruição da evidência". [1] Segundo, o conflito criado pelo
questionamento só pode se resolver mediante a adoção de um processo de
"queimar formas", “análises e sínteses” em destruições sucessivas em
busca de uma forma final, não se interrompendo à primeira hipótese que se
anuncie como evidente. É a condenação da mente ao suplício de Tântalo, como diz
em carta de 17/2/1932, [2] um sistema conceitual plenamente aberto, onde as
evidências são vistas como meras criações a partir de pontos de vista
veiculados por doutrinas e teorias. Deve-se esperar na obra de Artaud a
ocorrência de palavras (ou locuções verbais) que funcionem como os ideogramas e
hieróglifos.
A definição de ideograma é elemento de escrita pictórica que expressa
não um som, mas uma ideia, ou figuras que representam coisas ou pensamentos,
como definido pelo Webster de 1913, [39] ou pelo Houaiss, [40] “imagem, (imagem
convencional ou símbolo) que representa um objeto ou uma ideia, mas não uma
palavra ou uma expressão que a designe; se imagem pictórica, simboliza não o
objeto pintado, mas alguma coisa ou ideia que se considera seja sugerida ou
emblematizada por esse objeto”. Tem-se que, sendo toda palavra escrita um sinal
pictórico que expressa ou sugere uma ideia, seria redundante dizer “o uso da
palavra como ideograma”. Uma forma de explicar é inserir o que se apreende
ocorrer com algumas palavras e locuções verbais de Artaud nas conceituações
ocorridas com signo-significado-significante. Artaud, em O Teatro e seu
Duplo, não usa o termo significante, e, se há contribuição sua neste campo,
é, portanto, no mínimo, paralela à Ferdinand de Saussure e à de Ogden e
Richards,O Significado de Significado, [33] que é de 1923. [13]
Simplificadamente, a entidade psíquica de duas faces “conceito x imagem
acústica”, no signo-significado-significante de Saussure, [32], o
símbolo-(referencia ou pensamento)-referente, de Ogden e Richards, as
elaborações de Ullmann, Baldinger e Heger, chegam a Umberto Eco (experiência
verbal)-(unidade cultural)-(objeto real) [13]. Eco, diz Blikstein, afirma que
“unidade cultural” é o “significado de um termo” e o “objeto real” é “campo
impreciso de estímulos sensoriais”. Eco, diz Blikstein, usa apenas o lado
esquerdo do triângulo de Ogden e Richards, abandonando o referente, a “coisa
extra-linguística”. Artaud usa a coisa real como signo e adota tudo o que
produza “escoriações nervosas” no inconsciente como coisa real. Assim são
coisas reais não apenas as coisas materiais, mas o gesto, o movimento, as
relações entre as coisas, os símbolos, os conceitos, as ideias, as palavras, os
sistemas que se formam dos interrelacionamentos, as leituras que da realidade
se fazem. Artaud está ciente de que “entre o real e eu, está eu e minha
deformação pessoal dos fantasmas da realidade” [8] e sua proposta de teatro é,
também, para fazer o abstrato aproximar-se do concreto [10], o subjetivo do
objetivo.
Com a liberdade de quem não leu Umberto Eco na fonte, expande-se
“unidade cultural” para significar o sistema de ideias com que se lê a
realidade, tal como Filosofia da Mente de Hegel, é uma
“unidade cultural” inserida em outra, o hegelianismo, e procura-se demonstrar
que, em “Para acabar com o Julgamento de Deus”, [5] Artaud faz uso de palavras
e locuções que devem ser lidas não apenas pelo sentido usual, ou que se busque
delas um sentido em suas relações dentro do texto, mas que deve atualizar na
mente do leitor “unidades culturais”, como acima definido, dele próprio ou do
caldo cultural social. Não se pretende o detalhamento de cada palavra que surge
em “Para acabar com o julgamento de Deus” (Para acabar…), servirão de exemplo
“corpo sem órgãos” (CSO) “Tutuguri” e “Julgamento de Deus”.
"Para Acabar com o Julgamento de Deus" tem sido
disponibilizado na íntegra ou excertos na internet, em português, francês,
espanhol e inglês. Inicia-se com glossolalias, que surgem em maior quantidade
na variação do texto. A seguir há o tema das guerras, o espírito bélico
americano e russo e a escolha: Tutuguri, os Tarahumaras e a "abolição da
cruz". A fecalidade, esclarecendo que "onde fede a merda, fede a
ser", a carne é merda; de novo glossolalias, o finito e o infinito; Cristo
que "aceitou viver sem corpo”, o Invisível; o "Julgamento de
Deus". A consciência, o desejo sexual, a libido, a fome, o "apetite
de viver"; o Eu igual a Nada, sua dor física, "a presença infatigável
de seu corpo" e sua resposta "NÃO à negação" quando o
"questionam até que sai de si o seu alimento e seu leite". E as
conclusões: o princípio da crueldade, o tema da repressão, a emasculação e a
evisceração do homem, para que “liberto de todos os automatismos e lhe seja
devolvida a verdadeira liberdade", para acabar com o Julgamento de Deus.
Melhor que tentar definir o CSO é exemplificar o que se julga ele seja e
o que não seja. Análises apressadas vêem o nascimento do CSO em “Para acabar
com o julgamento de Deus”. Sem se consultar toda a obra, não se pode determinar
o momento em que CSO aparece pela primeira vez na escrita artaudiana, mas está
presente, em 1925, em "A vidraça do Amor", incrustrado em “cabeças
sem corpos”, [6] em texto que faz referencia direta a Abelardo e a Heloísa.
Faz-se necessário abrir parênteses para relembrar a história de amor,
paixão e tragédia - de Abelardo e Heloísa. [38] Pedro Abelardo, vivendo na
Idade Média, apaixona-se por Heloísa e a engravida. Abelardo é cônego,
arranjam-se os argumentos para um casamento que secretamente se faz. Descoberto
o segredo, o tio de Heloísa, que do segredo sabia e cuja função era a de pai,
com ajuda, o castra. O Amor entre Abelardo e Heloísa subsiste à maior vergonha
medieval, a emasculação, cada um vivendo-o em seu claustro, amor que dura até à
morte, permanecendo Abelardo suas discussões teológicas e filosóficas, dentre
elas a solução da “querela dos universais”.
CSO é por demais conhecido a partir de Deleuze-Guattari, mas não se
interrogou o suficiente se estes autores conseguiram fazer jus ao pensamento de
Artaud, em que pese o valor cultural e científico que os seus estudos sobre sua
obra tenha conseguido. Acusa-se aqui um viés importante: o autor deste trabalho
não leu o “Anti-Édipo”. Mas… Deleuze e Guattari leram Artaud e pecam em dois
pontos. Primeiro, da análise de o “Anti-Édipo” J. Lyotard, usando a figura do
golfinho para se referir às noções e princípios que vêm à superfície – que é de
de Artaud - pode concluir que CSO é "socius" [21]. Ver o CSO como
“socius” é, ainda, a aderência a uma visão biológica do social, a sociedade
ainda deificada. Segundo, Deleuze e Guattari viram o “corpo sem órgãos” e não o
corpo emasculado e eviscerado que pediu Artaud, em uma época em que o sexual em
Freud ainda era admitido ser genital, e negaram valor à sua palavra bastante
clara, "não" ao sexo e à libido, à fome e ao “apetite de viver” como
mecanismos a que se possa reduzir a "apaixonante equação entre o Homem, a Sociedade,
a Natureza e os Objetos". Em “Para acabar…” Artaud, apenas, relembra Tarde
[11] à sua época e à atual, é preciso romper a sociologia de suas ligações com
a biologia.
A sociedade é considerada um organismo biológico no século 19 e início
do 20. [18] Artaud nega com o CSO. Gall viu a sociedade em que os indivíduos
são os órgãos, o que fez Comte reservar aos "soberbos homens de
elite" serem o cérebro. [31] O organicismo alemão, aqui representado por
Willmann, [18] viu como órgãos da sociedade as instituições, que conservam em
si o passado. Diz, da França, Le Bon: "as instituições são o invólucro
exterior de uma alma interior", uma "espécie de vestuário susceptível
de adaptar-se a uma forma", "forma" igual a "alma".
[24] Lívio de Castro, [17] aqui representando o evolucionismo de Mill, Spencer,
Huxley e Taine, diz: a sociedade é um organismo, onde "a função faz o
órgão, o meio faz a função". A metáfora organicista floresce. Franz de
Hovre [18] declara, sem indicar a fonte, a Alemanha um organismo biológico,
agora um corpo humano, em que instituições e indivíduos são os elementos que
impulsionam o seu sangue e as Escolas (de conhecimento) os reservatórios deste
sangue. Teorias e doutrinas sobre o mundo são sacralizadas. Diz, de Durkheim:
“a sociedade é representada como o criador, o começo e o fim de toda a vida. É
deificada”.
Se Artaud está dizendo que é preciso suprimir a analogia biológica
contida na metáfora do sexo/Freud e da fome/Marx, na sociedade deificada a
identidade é outorgada ao indivíduo. Artaud grita: van Gogh é um “suicidado
pela sociedade”! Diz o mesmo de si e acrescenta, pelo “direito à expressão
total e integral de minha individualidade por mais singular
que seja e por mais heterogênea que possa parecer", [5] que se ponha fim
ao julgamento de Deus sobre os homens, ou, em 1924, “não há que se apressar em
julgar os homens; há que lhes conceder crédito até ao absurdo”. [3]
É o tema da individualidade, que Artaud adjetiva com "radical”. [7]
Não é dele, vem de Fichte, em 1869, “Ciência dos Direitos”, que adjetiva com
“ultra-radical”: “o indivíduo tem o direito supremo à autodeterminação”. [18]
Para Artaud, na sociedade não está tudo predeterminado e as organizações - em
todos os sentidos - podem ser mudadas; o homem faz dinâmica a cultura por “destruições
sucessivas incessantes” – onde se deve ler “construção interminável” e não “a
negatividade extremada” que viu Susan Sontag. [36] Antecipa Cornelius Castoriadis (1922-1997)
com “L'institution imaginaire de la société”, de 1975. O indivíduo é feito pela cultura ao mesmo tempo em que a faz, no par
"legein”/“teukhein", o dizer e fazer da sociedade e a dialética entre
o individual e o social. [16] O meio não faz o órgão/homem, mas o homem faz o
meio, a realidade está a ser criada. Julián Marías diz, de outro modo, do
existencialismo que Artaud anuncia como o novo humanismo da Juventude de sua
época, “a vida não está feita (…) e ela é o que eu faço”. [28] Artaud pensa o
conhecimento como um sistema aberto ao propor a sua não cristalização e consequentes
“culturas congeladas”. Em É Preciso Acabar com as Obras-Primas, de
1936, [10] diz ser preciso não tomar a palavra escrita como a palavra final,
congelante. O teatro artaudiano é para levar o conhecimento às massas, busca o
homem-agente-da-realidade e seu teatro é para que se saia “do marasmo e do
tédio de tudo, ao invés de continuar a gemer diante da inércia e da
imbecilidade de tudo”. O CSO é o indivíduo com direito à individualidade
radical, que seu inconsciente que não seja apenas órgão de registros, e cuja
“Vontade vai passar aos atos”, [10] desmentindo o CSO como desejo de
imobilidade que Furtos e Roussillon [21] demonstram a partir do “corpo sem
órgãos” de Deleuze-Guattari-Anti-Édipo e da análise das máquinas desejantes.
Ainda para se referir à sociedade usa Artaud “Tutuguri” e os Taraumaras,
e, assim, atualiza o pedido de retorno ao primitivo dos surrealistas. É trazer
a “Para acabar…” todo o “O Teatro e seu Duplo” e “Mensajes Revolucionarios”. O
Teatro da crueldade é para reformar o interior do homem, pois Artaud não
acredita que Revolução alguma transforme o mundo, a verdadeira revolução é
reformar o interior do homem. “Tutuguri” é ideograma do tema da “cultura
unitária” da ápoca, que Artaud aceita mas com a ressalva da individualidade
radical.
O CSO é o homem total. No segundo manifesto do Teatro da Crueldade, [10]
em 1933, Artaud não quer o homem psicológico, com o caráter e sentimentos bem
delimitados e destina seu teatro ao homem total. Pouco provável que se baseie
Artaud no que Mauss [29], em 1924, pede aos psicólogos. Mauss vê, no objeto de
estudo da sociologia, os fatos impressos em uma ordem a mais complexa
imaginável e denomina de "fenômeno de totalidade", em que não apenas
os grupos sociais tomam parte, mas através deles "todas as personalidades,
todos os indivíduos na sua integridade moral, social, mental e, sobretudo,
corporal ou material". Analisa as "participações" que
"Lévy-Bruhl pensou serem características das mentalidades chamadas de
primitivas" - "o selvagem incapaz de conhecer precisamente um objeto
isento de uma atitude motora e emocional”, [34] o sujeito não se separa do
objeto (a realidade atravessa o sujeito?). É também o que Artaud pede ao
solicitar um espetáculo teatral que atravesse o espectador e o envolva, “ser
atravessado pelo espetáculo é a verdadeira participação”. Para Mauss a
contribuição da psicologia à sociologia não vem do que se estuda de uma função
mental particularizada, mas do que se coloca da mentalidade do indivíduo como
um todo, "seu corpo, seus instintos, suas emoções, suas vontades e suas
percepções, sua intelecção", e pede aos psicólogos "o estudo desse
homem completo, não compartimentalizado". A este homem denomina Mauss de
homem "total", encontrável não apenas nas sociedades arcaicas ou
atrasadas, mas "nas maiores camadas de nossas populações e sobretudo nas
mais atrasadas". É o homem da "multidão que pensa primordialmente com
os sentidos, do primeiro manifesto de “O Teatro da Crueldade" [10] e não o
homem que racionaliza sobre a realidade que vivencia.
A carta a Pierre Loeb, de 23 de abril de 1947, [4] define o CSO: é o
homem-árvore, de que Aníbal Fernandes encontra muitas referências na obra de
Artaud.. Se há "homem carcaça", que é o pólo oposto de CSO, de 1931,
em “A Encenação e a Metafísica”, [10] há o "homem árvore, sem órgãos, nem
função, mas de vontade", A Vontade Pura, que atualiza “a Vontade vai
passar ao ato” e “a realidade está para ser construída. Se não se perde de
vista o corpo humano/humanidade, "árvore" pode reportar, de novo, aos
estóicos, pondo-se em contexto com "vontade decisória",
"pensamento próprio" e redireciona a "viver integrado à
natureza", de que é indicador Tutuguri-Tarahumaras. Malinowski [26]
expressa a natureza humana como "o determinismo biológico para a
realização de funções corporais” humanas. A carta a Loeb, também, demonstra
porque, para Artaud, a obra de Lewis Carroll [19] é digestiva. Relacionar
Malinowski, o "homem-carniça", o "homem-árvore", a crítica
à superficialidade de Lewis Carroll, cuja fala se origina na carne, putrescente,
e não na profundidade, deve-se ver um Artaud preocupado com algo além do corpo,
com algo que habita o corpo.
Como surrealista Artaud valorizou o automatismo do inconsciente, e, para
terminar com o julgamento de Deus, pede que se retirem ao homem os órgãos para
dele obter o verdadeiro homem, o que habita o corpo. Tornando-se CSO, o homem
re-obterá sua liberdade ao perder seus automatismos/determinismos e poderá
exercer a sua Vontade Pura. Retirado ao corpo os órgãos, o que resta? A
realidade internalizada em uma mente cheia de mecanismos transformadores que
possibilitam que “o homem impavidamente se torne o senhor daquilo que ainda não
existe, e o faz nascer”. [10]
Se "A vidraça do Amor" cita "cabeças sem corpos", o
tema se repete em 1932, em "O Teatro Alquímico: [10] "desse homem é
como se restasse apenas a cabeça, uma espécie de cabeça absolutamente desnuda
(…) para que os princípios possam aí desenvolver suas consequências de uma
maneira sensível e acabada". Neste sentido o CSO ocorre em Schopenhauer,
[27] (melhor seria dizer “do que dele Thomas Mann transmite”): “o homem é mais
que um sujeito conhecente (uma cabeça de anjo com asas e sem corpo), mas também
ele tem raiz nesse mundo; aí se encontra como indivíduo; isto é, seu
conhecimento é condição e suporte do conjunto do mundo como representação”,
tendo “como condição o corpo com suas impressões". O CSO se reduz ao o
mecanismo conhecedor do mundo, que o mimetiza e o duplica, para usá-lo –
pensamento situacional – e criá-lo, pensamento operatório e criativo, “o homem
conseguir estabelecer sua superioridade sobre o império da possibilidade” (AV
AT, O teatro da crueldade, texto de 1948).
“Osso” em “Para acabar…” é ideograma do tema da imortalidade do homem. O
CSO é o que no homem dura e é imortal. Diz Artaud “para existir (…) há que se
ter OSSO”, "esqueleto", que, para os estóicos, é símbolo daquilo que
dura e é imortal. Atualiza o Ka da egiptologia antiga. Em “O Pesa Nervos”, de
1925, ao abordar a dificuldade de o homem encontrar o seu lugar e restabelecer
a comunicação consigo mesmo, enxerga faltar um ponto a ser encontrado no
corpo/mente, um ponto fosforescente capaz de assistir a si próprio e onde está
inscrita - e modificada - toda a realidade. Diz sofrer por causa do
espírito-órgão, que se faz necessário acabar com o espírito, reconhece a
comunicação entre espírito e vida em todos os níveis. Pergunta se a vida não
mais é atingida por uma "descorporização do pensamento", e, em todo o
contexto, o pensamento é corpóreo. Incongruência? "Descorporização do
pensamento" não é o pensamento "deixar de ser corpo", é o
"pensamento sair do corpo", CSO. De "O Pesa Nervos" pode-se
inferir que, para Artaud, o eu é virtual, é não-ser pois sua atividade é
refazer-se, vir-a-ser. Artaud nega o espírito como concebido até então, que não
está na vida e que não é a vida. Nega o espírito-órgão, espírito-tradução. O
espírito é corpóreo e o quer sem órgão, quer o Espírito/eu virtual.
Em 27 de janeiro de 1925, [6] Artaud afirma que o surrealismo "é o
meio de libertação total do espírito", então, o CSO é simplesmente alma,
ligando “corpo humano” e “imortalidade” que percorrem sua obra. Artaud sai do
surrealismo que adere ao marxismo, para continuar surrealista, por ser a
vertente espiritualista do movimento. Santiago Bovisio, [14] a partir De
"radiação e fosforescência", liga o ka egípcio ao "O Pesa
Nervos". Artaud referencia a origem de sua "libertação total do
espírito", o Livro dos Mortos do Egito, e faz a inter-relação entre o que
assimilava da psiquiatria-psicologia-psicanálise com os ensinamentos do Ka. Ka
é o duplo do homem, seus atributos mentais, sua personalidade abstrata que,
após a morte, toma a forma material e se torna ativo. O Ka é identificado com a
consciência mental interna e o poder de pensamento; atributos mentais;
personalidade, corpórea; o inconsciente. [15] O Ka egípcio está nítido em
"a morte tornando nossa alma mais sensível às perspectivas espirituais do
além, começa por uma série de entorpecimentos sucessivos, ela a separa do
corpo". O CSO atualiza o Ka, sem nomear, já em "Excursão
psíquica" de 1922-23, [6] como "inteligência depurada pelo grande
despojamento de suas cascas corporais", circundado pelos temas da magia,
encantamento, configuração espiritual do mundo, grande todo espiritual, a
imortalidade, e, principalmente, "os egípcios conheciam as palavras e as
forças que retinham a alma na margem da vida".
CSO pode estar no bramanismo como busca do autoconhecimento,
conhecimento da alma. [37] Como consciência de si, o CSO ainda pode se reportar
à Filosofia da Mente, de Hegel, um dos mananciais do surrealismo. Hegel
[22] atualiza a Alma e a Mente, recorre à noção de Liberdade “como
característica formalmente essencial da mente”, que é o cerne da
individualidade radical, e esta seria o CSO. “A alma se desperta como
consciência e funda a Razão, que se emancipa à objetividade e consciência de
sua unidade inteligente”. Em Hegel encontra-se ainda o “a consciência é nada”
do texto de Artaud, e uma visão da sociedade com Liberdade e Igualdade, não se
tendo analisado se a visão de Hegel corresponde à de Artaud para os
Tarahumaras. A Filosofia da Mente traz, também, o Julgamento
do Mundo.
Artaud viu o Julgamento de Deus no Livro dos Mortos Egípcio [15]:
no pós-morte, liberado do corpo, o Ka será julgado por Osíris/Deus, para se
estabelecer se merecerá a vida eterna, a imortalidade.
Inesperadamente, o texto de Artaud deve atualizar na mente do ouvinte,
leitor ou expectador, a bíblia, que estabelece Deus como Princípio Moral para
os homens, com várias citações de promessas e ameaças que ilustram o fim dos
tempos, quando os homens e as nações serão julgados em sua retidão moral, o
Julgamento de Deus. [23] O Julgamento divino se faz através das guerras, quando
se trata das nações. Deus dá aos inocentes a vitória, coisa que é pensado ser
da Idade Média, embora não o seja. Em 1952, o Arcebispo Fulton J. Sheen, fazia
a leitura de "A guerra como Julgamento de Deus", [20] em seu programa
de televisão “Life is Worth Living”, na ABC Network americana, [25] acentuando
que, de 1496 A.C. a 1861, a humanidade somou apenas um dia de paz para cada 14
dias de guerra. O tema é atualizado em 2004, por Daniel H. Shubin, [35],
interpretando que "qualquer guerra iniciada dirigirá o seu curso até o
juízo de Deus ser realizado".
“Para acabar com o julgamento de Deus” é, portanto, um pedido para se
acabar com as guerras. É interessante notar que no final do século 19 e início
do século 20 vários foram os filósofos que “pregaram” a progressão moral do
homem rumo ao Infinito, para se atingir uma situação de Harmonia e Virtude
Moral. Razão tem Oscar del Barco ao apresentar Antonin Artaud, Textos
1923~1946 [9]: “a proposta de Artaud é a de uma ética, a de um mundo
não desdobrado”, mas se engana ao tomar este “não desdobrado” como
materialismo. Se o surrealismo pretendeu que se manifestasse o inconsciente
livre de repressões, o inconsciente era, apesar de Freud e de Marx, a alma, e o
foi até há bem pouco tempo atrás e ainda é, em “psic”, se se pensar em grego.
Se pedir para acabar com o julgamento de Deus é pedir fim às guerras –
Paz! – deve-se retomar o tema inicial do CSO, Pedro Abelardo emasculado. O amor
entre Abelardo e Heloísa, persistindo após a castração de Abelardo, denota a
existência do Amor Puro, assexuado, e o amor assexuado é o amor fraterno, e,
assim, Artaud está inserido no espírito de sua época, Zeitgeist, na
procura da Harmonia entre os homens e nações, pedindo Amor.
Agora “que a história já caminhou o suficiente” como diria Artaud, e
deve-se questionar se sua mensagem não chegou ao destino nos anos 60 - não
decifrada, mas assimilada: “Para acabar… foi o primeiro grito de “Paz e Amor!”.
Deve-se comparar a função de "me questionam até que sai de mim meu
alimento e meu leite" com a função que se pretende existir nas locuções
apontadas. É apenas uma imagem para se referir à psicanálise, mas esta não está
em jogo em “Para acabar…”, em que aparece apenas para ser negada.
Conclui-se que algumas palavras e locuções verbais em Artaud são
símbolos, na linguagem ocidental, ideogramas na linguagem oriental, de
“unidades culturais” (como anteriormente definidas), “unidades culturais” estas
que se articulam em um “hermetismo bem calculado” em “Para Acabar com o
Julgamento de Deus”.
“É o que queria se demonstrar”.
Artaud fundamenta sua proposta em uma diferença que percebe entre a
cultura oriental e a ocidental. [10] Resta, então, a questão, as línguas
orientais faladas comportam palavras ou locuções verbais com a função que se
pretende tenham algumas palavras e locuções verbais de Artaud? Há diferenças
entre a dinâmica do pensamento entre as culturas orientais e ocidentais?.
(Ponto final após interrogação? Dirão os puristas. É apenas para
representar que existem muitas questões que precisam ser levantadas a partir da
proposta de Artaud e que o autor precisa colocar um ponto final para encerrar o
artigo).
NOTAS
1. Artaud A. “Carta a George S de Morant, 19/2/1932”, Artaud, A. “Textos
1923-1946”, Ediciones Caldén, Buenos Aires, Argentina, 1972.
2. Artaud A. “Carta a George S de Morant, 17/2/1932”, Artaud, A. “Textos
1923-1946”, Ediciones Caldén, Buenos Aires, Argentina, 1972.
3. Artaud A. “Carta a Jacques Riviere, 4/6/1924”, Artaud, A. “Textos
1923–1946”, Ediciones Caldén, Buenos Aires, Argentina, 1972.
4. Artaud A. “O Homem–árvore (carta a Pierre Loeb), “Eu, Antonin
Artaud”, Tradução e Notas de Anibal Fernandes, Hiena Editora, Lisboa, 1988.
5. Artaud A. “Para terminar
com el juicio de dios y otros poemas”. Ediciones
Caldén. Buenos Aires, 1975.
6. Artaud, A. “Linguagem e Vida”. Editora Perspectiva, São Paulo, 1995.
7. Artaud A. “Mensajes Revolucionarios”, Editorial Fundamentos, Espanha,
1981.
8. Artaud A. “O Pesa-Nervos”. Editora Hiena, Lisboa, 1991.
9. Artaud, A. “Textos
1923-1946”, Ediciones Caldén, Buenos Aires, Argentina, 1972.
10. Artaud A. “O teatro e seu duplo”. Editora Max Limonad Ltda. São
Paulo, 1987.
11. Azevedo F. “Princípios de Sociologia – Pequena Introdução ao Estudo
de Sociologia Geral”, Companhia Editora Nacional, 1935.
12. Berlyne D.E. “O Pensamento, sua Estrutura e Direção”, E.P.U.
Editora. USP, 1973.
13. Blikstein I. "Kaspar Hauser ou A Fabricação da Realidade",
Ed. Cultrix, São Paulo, 1985.
14. Bovisio S. Book XXIII: Comparative Religion, Enseñanzas del Maestro
Santiago Bovisio, www.santiagobovisio.com
15. Budge E.A.W. “The Book
of the Dead – The Papyrus of Ani”, 1985, Internet Sacred–Texts Archive,
http://www.sacred–texts.com/egy/ebod/index.htm
16. Castoriadis C. “O Legein e o Teukhein”, "Lógica da
Lógica", Organizado pelo Centro de Extenso e Pesquisa da FCH, FUMEC, Belo
Horizonte, 1983.
17. Castro L. “A Mulher e a Sociogenia”, Livraria Francisco Alves, 1893.
18. de Hovre F. “Philosophy
and Education. The Modern Educational Theories of Naturalism, Socialism and
Nationalism”, Benziger Brothers, NewYork, 1930.
19. Deleuze G. “Lógica do Sentido”, Editora Perspectiva, 1974.
20. Fulton J. S. Excerpto
de "Life is Worth Living", Archbishop Fulton John Sheen Foundation,
http://sheen.catholicexchange.com/june21–27.html
21. Furtos J. e Roussilon R. "O Anti–Édipo, tentativa de
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22. Hegel, Philosophy Of
Mind, Tradução De William Wallace. © 2001 Blackmask Online, http://www.blackmask.com.
23. Hodge C. Systematic
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24. Le Bon G. “A
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25. “Life is Worth Living'
is 'Worth Watching' says Familyland TV, Catholic Online, Catholic PRWire,
Headline http://www.catholic.org/prwire/headline.php?ID=1209
26. Malinowski B. “Uma Teoria Científica da Cultura”, 3 ed., Zahar
Editores, 1975.
27. Mann T. “O Pensamento vivo de Schopenhauer”, Martins Editora, São
Paulo, 1951.
28. Marías J. "O Tema do Homem", Livraria Duas Cidades, São
Paulo, 1975.
29. Mauss M. “Sociologia e Antropologia”, EPU, São Paulo, 1974.
30. Mello, L.I.A. e Costa L.C.A. “História Antiga e Medieval” , Cap 6
“Cultura Medieval”, Abril Educação, São Paulo, 1985. Nota “A primeira chave da
sabedoria é a interrogação… pela dúvida somos levados à investigação e pela
investigação percebemos a verdade”
31. Muga P.P. “Historia de la
Filosofia”, Luis Gill Ed, Barcelona, 1917.
32. Neidson Rodrigues, "Ciência e Linguagem - Introdução ao
Pensamento de Saussure", - Edições Achiamé Ltda, Rio de Janeiro, 1980.
33. Ogden e Richards, "O Significado de Significado - Um estudo da
influ~encia da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do
simbolismo"
34. Ramos A. “Introdução à Psychologia Social”, Livraria José Olímpio
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35. Shubin D.H.
"Conflict of Ages, A Treatise on the Dichotomy between Christian Pacifism
and Military Service", 1997 revisado em 2004, Peace Church Challenge
http://www.peacehost.net /peacechurch
36. Sontag S. Notas
adicionais a “Antonin Artaud – Selected Writings”, Farrar, Strauss and Giroux,
Nova York, 1976, citado em Willer C. “Nota Biográfica” a “Os Escritos de
Antonin Artaud”, L&PM Editores Ltda, Porto Alegre, 1983.
37. The Upanishads, Vol I,
traduzido por F. Max Muller, 2001 Blackmask Online, http://www.blackmask.com.
38. Vilela O. "O Drama Heloisa-Abelardo", Editora Itatiaia
Ltda, Belo Horizonte, 1986.
39. Webster's Revised
Unabridged Dictionary 1913, The ARTFL Project,
http://machaut.uchicago.edu/websters
40. Houaiss A. “Dicionário Houaiss da língua portuguesa”, Instituto
Antônio Houaiss de Lexicografia, 1ª Edição, Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.
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Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado:
Salvador Dalí
Agradecimentos a Hernán
Alejandro Isnardi
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra
o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de
Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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