• BRASIL E AMÉRICA
LATINA: BAILE DE MÁSCARAS
1. O
mercado editorial (vamos nos limitar ao Brasil, onde já temos problemas
suficientes) se divide em duas estimativas referentes à prosa e ao verso. Esta
simplesmente não funciona, enquanto que na outra cabe tudo. Foi sempre assim,
de modo que não há motivo para espanto. Igual comportamento existe tanto em
relação à produção interna quanto ao ingresso de autores estrangeiros. Até
poderia dizer que não se trata de ausência de critério, mas sim de um critério
estritamente financeiro, de retorno imediato, não fosse a forma aturdida como
títulos são postos à venda. A própria ausência de coleções dedicadas a um ou
outro veio da literatura já é reflexo da completa falta de meta literária.
Tampouco é um retrato atual do Brasil, pois sempre foi este o cenário encontrado
em nossas livrarias, bem antes delas terem se convertido em lojas de
conveniência. Podíamos evocar uma relação inconsequente entre Estado e mercado
privado. Neste caso o Estado erraria duplamente: por não ser um Estado editor e
por contemplar com isenção de impostos livros que não contribuem em nada com as
necessidades culturais do país. Ou seja, a ausência de regras legítimas por
parte do Estado, incluindo aí sua indispensável ação como principal responsável
pela recuperação de acervo literário, deixa o mercado privado livre para
abastecer prateleiras com um enxame de subliteratura, seja brasileira ou
estrangeira. Mas insisto. Não há novidade nisto.
A
rigor, não melhoramos ou pioramos. É um processo estagnado, intocável, cuja
impressão de melhora ou piora está diretamente relacionada com aspectos como
demografia, tecnologia e simpatia. País com profundíssimo abismo social,
temerária insuficiência educacional e um decorrente e suicida sentido
oportunista de nossa elite intelectual, nada poderia ser diferente. A
disparidade entre poder aquisitivo e mínima qualificação cultural responde por
uma parte substanciosa do problema. E por absoluta e criminosa ausência do
Estado o mercado privado se porta como um gigolô. Não há outro termo e tampouco
cabe espanto.
Neste
cenário, o que temos que fazer aqui é avaliar que tipo de comportamento o
mercado editorial teria em relação à literatura latino-americana. A menos que
fôssemos pautados por uma beatífica ingenuidade ⎼ ingenuidade, no entanto, é talento que o
clero jamais teve ⎼ eu diria que seria a mesma relação. Ou
seja, o mercado não se porta de modo distinto do que é estimulado pelo Estado.
Não apenas a literatura, mas a cultura artística latino-americana como um todo,
sempre foi um caso menor, quando não de todo inexistente, aos olhos do Estado
no Brasil. Não temos programas de integração cultural em âmbito continental (do
estímulo à pesquisa à realização sistemática de simpósios e outros eventos
etc.). O programa de apoio à tradução da Fundação Biblioteca Nacional, por
exemplo, tem regras elásticas em relação ao conteúdo e ínfimas no que tange ao
valor irrisório ofertado por uma prática profissional injustamente
desqualificada.
Revistas
literárias ou de cultura que poderiam aqui ser evocadas e que, de alguma forma
contribuem com este papel integrador, duas delas, uma institucional e outra de
caráter privado, respectivamente Poesia Sempre e Agulha
Revista de Cultura, são insuficientes se pensarmos na extensão do cenário
que deveriam atingir. As duas plataformas, impressa e virtual, já quase de todo
se perderam, sobretudo a primeira, no pântano voraz das apostas imediatas de
mercado. A Universidade brasileira eu diria que desconhece ⎼ ou pelo menos não demonstra sabê-lo ⎼ o papel que deveria representar, ampliando o
cenário de uma sociedade preocupantemente não organizada. Mas tampouco aqui há
novidade. Sempre brincamos com fogo, embora eu me recuse a aceitar esta como
uma característica nossa e que a mesma seja incorrigível.
Como
não reconhecemos nosso papel em uma cultura local, é impensável exigir que
saibamos nos impor em um ambiente internacional. Não o fazemos na política ou
na economia, já o sabemos, porém é sempre bom lembrar que a precariedade que
determina tais inações tem raízes na formação cultural, a começar,
inevitavelmente, pela educação. Velha tecla política, utilizada como um jargão
de campanha, retaliada de formas as mais criminosas. Voltemos então ao ponto de
partida sugerido por este encontro. Nossa relação com a América Latina, da qual
fazemos parte, assim como metade do Canadá e boa parte do Caribe. Comentei
sobre comportamento distinto do mercado editorial em relação à prosa e o verso.
Acho até natural, sob a ótica de um ambiente cultural que reconhece potencial
de venda majoritário na oferta de uma prosa que envolve narrativa, ensaios,
entrevistas, biografias, roteiros de cinema etc., em contrapartida à oferta do
verso, que se resume ao poema e à dramaturgia. O que não soa nada natural é a
aposta de conteúdo, as escolhas do mercado, serem pautadas por deliberação
imediatista de reposição de custos, quando bens de mercado se confundem com
patrimônio cultural.
De
qualquer modo, em algum momento eu deveria evocar alguns nomes. Começo pela
prosa, cujos valores capitais do chamado boom
da literatura hispano-americana foram quase todos aqui editados pela
Civilização Brasileira, por uma pioneira iniciativa de Ênio da Silveira, filão
mágico que deixou de fora alguns poucos nomes. Aqui eu gostaria de me referir
ao fascinante romance Isla mágica, do panamenho Rogelio Sinán, uma
das máximas peças do ciclo do realismo fantástico que não tivemos até hoje
oportunidade de conhecer. A prosa ensaística latino-americana é quase
inteiramente uma desconhecida nossa, o que pode passar a falsa ideia de que,
além do mexicano Octavio Paz, do argentino Borges ou do peruano José Carlos
Mariátegui, não há pensadores na extensão francesa e espanhola de nosso
continente. Evidente que um ou outro nome pode me escapar, eu próprio traduzi
livros fundamentais de ensaios do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra e do
argentino Aldo Pellegrini, assim como traduzi dois volumes recolhendo
entrevistas dadas por Borges à imprensa local dos países que visitava para dar
conferências.
Mas
não estamos tratando de particularidades e sim de um agravante plano geral. A
narrativa mais contemporânea que adentra o país já é fruto de outra tática, a
de acasalamento entre romance e cinema. Acerca do pensamento latino-americano,
até onde essa generalização pode resultar em algo inteligível, desconhecemos particularidades
do que se passa em cada um dos mais de 20 países que conformam essa suposta
identidade cultural, em grande parte por nossa presunção histórica, o que nos
fez, de algum modo em idêntica célula, desprezar a cultura dos países de língua
portuguesa, a começar por Portugal.
Tenho
que retornar ao aturdimento inicialmente referido. Esta não foi uma atitude
consciente de quem quer conquistar um lugar próprio. Foi, antes de tudo, a
manifestação de certa vergonha por não pertencer a um mundo melhor. E historicamente,
o mundo melhor, ao menos na raiz do problema aqui identificado, era
determinado, não pelo idioma, mas sim pela força operadora de estações como
França e, logo posteriormente, Estados Unidos. Ainda hoje sonhamos com a
representatividade da literatura francesa, sem considerar a vultosa baixa de
qualidade da mesma nos últimos 50 anos. E desconhecemos tanto da literatura de
língua inglesa (cuja extensão alcança países em todos os continentes) que mesmo
no caso dos Estados Unidos nos perdemos em um sem-número de carências. Tampouco
o cinema tem funcionado como um diplomata eficaz, pois as citações destacadas
da obra do venezuelano Eugenio Montejo e da sul-africana Ingrid Jonker jamais
foram revertidas na publicação de seus livros entre nós.
Assim
já passamos para a poesia, onde a penúria é maior. Como o Estado se exime de
preservar a obra completa de nossos autores clássicos, e o único parágrafo
legal que constitui sua defesa é a inclusão do autor na condição de domínio
público, os raros casos em que encontramos a íntegra de uma obra ao dispor do
público vem da iniciativa privada. O Estado brasileiro, é o que se depreende,
não tem uma cultura a ofertar ao mundo. Não temos um patrimônio cultural que
corresponda à nossa posição em um mapa internacional de consequências
estéticas. Claro que sabemos a importância ⎼ e
o reconhecimento internacional ⎼ de
nomes como Carlos Drummond de Andrade, Maria Martins, Vicente do Rego Monteiro,
João Guimarães Rosa etc. ⎼, porém sabemos que tais
destaques jamais foram trunfos de uma iniciativa institucional. Vimos no ano
passado fechar as portas uma editora brasileira, Cosac Naify, que desempenhou
um papel de risco extraordinário em nosso mercado. Cumpriu um duplo papel, de
acolhimento do fundamental tanto local quanto estrangeiro. Compreendeu,
sobretudo, a exigência de um diálogo entre culturas, como forma de descoberta e
fortalecimento das mesmas. Creio que esta editora, na mesma proporção em que,
em outra plataforma, verificamos na Agulha Revista de Cultura,
estimula, quando menos, a crença de que é possível avançar na recuperação, ou
melhor, na fundação de um ambiente cultural que nos permita, brasileiros,
identificar o mundo real que temos, dentro e fora de nós.
Houve
um momento em que a interferência ideológica fez com que chegassem até nós
alguns nomes erráticos. Deu-nos a falsa ideia de uma América comunista. Nenhuma
força ideológica opera em 100% e, menos ainda, intercepta a atuação do ambiente
estético, seja ele favorável ou não em relação à ideologia em curso. É uma
tolice acreditar nisto. Mesmo estados revolucionários em sua magnitude deram ao
mundo uma arte contrária a seus postulados. A poesia na América Latina tem
parâmetros tão intensos, a exemplo das incursões no teatro da parte de Claude
Gauvreau (Canadá), o épico variado segundo a visão de Aimé Césaire (Martinica)
ou Pablo Antonio Cuadra (Nicarágua), a lírica transbordante de César Moro
(Peru) e Enrique Molina (Argentina), os efeitos dramatúrgicos de Eunice Odio
(Costa Rica) e Marosa di Giorgio (Uruguai). Outros nomes que desconhecemos: a
paixão descarnada da poética do chileno Enrique Lihn, o labirinto verbal de um
argentino fascinante: Roberto Juarroz. Posso mencionar ao menos um nome
fundamental à tradição literária, seja na prosa ou no verso, em cada um desses
países, sem esquecer títulos ensaísticos essenciais à compreensão de sua
cultura literária. Não é este o caso. Não estamos aqui para remendar uma colcha
mal posta.
Parece-me
que a ideia seja destacar o possível e o impossível nessa relação entre Brasil
e América Latina. Uma síntese diria que ela é o possível tornado impossível.
Isto não nos ajuda em nada. O dano já está feito. A questão é, se o tema
desperta interesse, o que podemos fazer a partir de agora.
São
dois, portanto, os desafios que temos no Brasil em respeito a este tema: a
ousadia da realização de ações que apontem em tal direção e a firmeza de
descobrir mecanismos que garantam a sua manutenção, a sua permanência.
Exemplifiquemos alguma boa ajuda:
Quando
fui o curador da 8ª edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, em 2008,
trouxemos, para seu ambiente comercial, dezenas de editoras hispano-americanas
e houve acolhida de mercado para todas elas. Como ressaltava então o informe
geral do evento, “O tema da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará é ‘A
aventura cultural da mestiçagem’, o qual abrange duas comunidades
linguísticas: a portuguesa e a espanhola e, ainda, suas manifestações
artísticas e culturais, totalizando 30 países situados em quatro continentes:
África, América, Ásia e Europa. A ousadia de tal abrangência desloca o foco
habitual das programações literárias de outros eventos similares,
concentrando-se aqui em evocar a multiplicidade de culturas e a condição
mestiça de suas raízes. […] A área de expositores da 8ª Bienal Internacional do
Livro do Ceará, considerando a abrangência de seu tema central, contará com um
expressivo número de expositores também dos países envolvidos, influenciando
assim em uma maior integração entre as literaturas de línguas portuguesa e
espanhola. Um diferencial expressivo nesse caso é a criação de um espaço
intitulado "Ilha dos Continentes", cuja área de 234 m² destina-se a
receber editoras estrangeiras que, em geral, não dispõem de condições de
participar de eventos internacionais.” Não houve, contudo, determinação
institucional de avançar em tal plano de integração.
Outra
ação a sugerir tem a ver com o estímulo à criação e pesquisa, bem como a um
planejamento de manutenção sistemática de acervo e criação e renovação de
espaços culturais. Vejamos por exemplo o FONCA – Fundo Nacional para a Cultura
e as Artes, no México. Criado em 1989, a este Fundo foram dadas as
seguintes tarefas: apoiar a criação e a produção artística e cultural de
qualidade; promover e difundir a cultura; incrementar o acervo cultural e
preservar e conservar o patrimônio cultural da nação. Cabe a ele, por
consequência, “investir em projetos culturais profissionais que surgem na
comunidade artística; assim como ofertar fundos para que os criadores possam
desenvolver seus trabalhos sem restrições, afirmando o exercício das liberdades
de expressão e criação”, segundo informa o portal da Secretaria de Cultura do
México.
Outro
aspecto a ser anotado é a condição de um Estado editor. E aqui nos valeria o
exemplo venezuelano da criação de sua monumental Fundação Biblioteca Ayacucho.
Logo no primeiro parágrafo do informe com que abre seu portal na Internet,
encontramos a clara afirmação: “A Biblioteca Ayacucho é um dos sucessos
editoriais de maior transcendência no âmbito cultural latino-americano. Desde
sua criação, em 1974, tem fortalecido seu propósito fundamental: manter em
permanente atualidade as obras clássicas da produção intelectual do continente,
desde os tempos pré-hispânicos até as expressões mais destacadas do presente.”
Atuando com um ousado projeto editorial que engloba sete coleções, destaco aqui
duas delas, que bem ilustram o tema de nossa conversa. A “Coleção Expressão
Americana”, que toma emprestado título de uma obra fundamental de José Lezama
Lima, encontra-se destinada a ampliar a temática e os interesses das obras
publicadas pela Biblioteca Ayacucho mediante a edição de livros de relevo
memorialista, biográfico, autobiográfico e outros materiais de índole pessoal,
assim como trabalhos de natureza ensaística, tratando de encontrar, nos
diversos registros da prosa, uma sustentada discussão e meditação estética ao
longo da história da cultura escrita em nosso continente. Outra delas, a
“Coleção Futuro”, por sua vez, dedica-se à atualidade inovadora das letras
venezuelanas, incluindo, preferencialmente antologias regionais de autores já
reconhecidos e valorados pela crítica alerta, porém que requerem maior atenção
e difusão. Busca, portanto, editar escritos que configurem o fazer literário
atual e que se projetem com força criativa no horizonte do novo, onde são
gestadas as tendências da escritura continental.
Outra
sugestão seria a da criação de um fundo editorial que garantisse a publicação
de revistas de criação e reflexão, com pauta substanciosa, que se reportasse ao
ambiente cultural e artístico na América Latina.
O
Memorial da América Latina, localizado em São Paulo, deu um passo valioso no
sentido de estimular o conhecimento do ambiente cultural em nosso continente,
através da criação de sua Biblioteca Virtual da América Latina. Ali podemos nos
inteirar do que ocorre em diversos países hispano-americanos, o que por vezes
chega a ser frustrante descobrir que nos falta um mínimo de seriedade e
determinação para realizar ações em vários desses países já existentes. Temas
que vão desde a profusão de revistas literárias que se publica no México até a
atuação da REIC – Rede de Editoras Independentes da Colômbia, assim como o
catálogo de edições impressas e sua coleção virtual no caso da Biblioteca
Nacional do Chile etc. Notadamente há um mundo beirando o infinito pela frente
e estamos todos de acordo (creio) que a pedra fundamental a ser dada é de ordem
institucional.
Qual
papel deve desempenhar o Estado, através de seu Ministério das Relações
Exteriores, por exemplo, através dos Centros de Estudos Brasileiros existentes
em todas as capitais dos países latino-americanos. Que contas do Estado tem
cobrado a população em relação a tais temas. Como artistas e intelectuais se
envolvem com esse ambiente. A partir desse fio sem roca é que começamos a
entender que o dilema não é somente institucional. O Brasil permanece com os
horizontes fechados para o que diga respeito à América Latina. O Estado deveria
estimular a integração cultural e não o faz. A classe intelectual deveria
denunciar tal inoperância e não o faz. Impossível, portanto, separar o joio do
trigo, se ambos não aceitam o que são. Concluiria parafraseando Rubén Darío ao
afirmar que conhecer outras literaturas é o melhor que temos a fazer para nos
livrarmos da tirania de algumas delas.
2. Diz o poeta Francisco Madariaga (Argentina, 1927-2001) que “todo
escritor deve resignar-se a que o entendam mal, equivocada ou maldosamente”. A
que potência elevar tal resignação quando o cenário é a América Latina? Não
creio que se deva insistir mais em uma identidade cultural latino-americana. Se
o que temos é de fato aquilo que somos, não passamos de um arquipélago
disperso, fraturado em várias vértebras. O mais que se diga soa como falácia
protocolar entre nossos governos. A identidade pressupõe conhecimento mútuo,
diálogo, destino compartilhado. No caso da América Latina, mesmo o “destino
compartilhado” se faz de forma isolada, daí que seja mais sofrido do que
propriamente vivido.
Se é verdade que a
poesia constitui um perigo ante toda pretensão totalitária, é também verdade
que os poetas precisam descobrir e praticar a perversão deste perigo, ou seja,
agir de acordo com a prazerosa aceitação de sermos tão perigosos - isto se, de
fato, o somos. Este exercício de perversão requer tão-somente uma ousadia na
escritura, uma autonomia estética, uma plenitude de gozo próprio.
A democratização de uma
cultura, a exemplo da fábrica de sonhos de Hollywood, arrasta-nos a uma
situação de debilitação desta mesma cultura. Em países absurdamente pobres como
os que constituem a América Latina, a democratização acaba implicando em um
rebaixamento do nível de entendimento da realidade. Esta astuciosa ótica
democrática não visa senão lucros. Na ourivesaria da cultura o refinamento
dá-se justamente a partir da comparação, ou seja, a fricção que gera todo diálogo.
Cabe a cada um de nós um
exercício mínimo de autoafirmação, algo que nos distinga e permita o requinte
humano da dúvida e novas insolências. Tal exercício, contudo, não sobrevive em
isolado da autocrítica. Quando perdemos contato com uma das margens deste rio
universal dos seres, sentimo-nos ora impotentes sem sê-lo, ora geniais em nosso
aberrante provincianismo. O fato é que só a diferença atualiza e confirma a
existência humana. E não se pode pensar em identidade cultural sem a
compreensão de sua diversidade ulterior.
Ao tratarmos de uma
cultura continental, como é o caso da América Latina, importa-nos, sobretudo, a
diferença, a multiplicidade de raízes e a qualidade do diálogo mantido entre si
e com o mundo a seu redor. A indústria cultural sente-se hoje uma resposta
natural para o desenvolvimento da cultura em todo o mundo. Contudo, o que se
tem desenvolvido são as receitas e os estímulos ao surgimento de uma arte
medíocre que assume conotação de bem cultural, graças ao artifício de novas
imposições do capital.
Não importa quantos
milhões de exemplares vendem Gabriel García Márquez ou Jorge Amado. Não importa
que Pablo Neruda e Octavio Paz tenham ganho o Nobel de Literatura. Formas
distintas (alheias) de aceitação não nos levam a um reconhecimento de nós
mesmos. Importa-me o estoicismo de uns anônimos ou pouco reconhecidos empenhos
na discussão de uma literatura latino-americana. Em grande parte são diretores
de jornais ou revistas. Alguns são escritores, outros jornalistas respeitosos.
Têm sido os artífices incorrigíveis dessa ponte pênsil que supõe ligar a
cultura latino-americana entre si.
Este é o primeiro passo:
a compreensão e aceitação de si mesmo. A América Latina chama-se Euclides da
Cunha e José Lezama Lima, Jorge Luis Borges e César Vallejo, Guimarães Rosa e
Rubén Darío. Isto é certo, ainda que não tenhamos a exata ideia do contributo
estético desses autores no âmbito de um diálogo latino-americano essencial. No
entanto, a América Latina chama-se também República Dominicana, Costa Rica, México,
Colômbia, Equador, Bolívia. Todos os países que a constituem, sem exceção,
deram importantes contribuições à constituição de uma identidade cultural
latino-americana.
Todos estes países
sofreram o peso da história das colonizações. Foram isolados entre si por uma
astuciosa estratégia. O que antes era autoritarismo político converteu-se em
jogo mercadológico. O isolacionismo franqueia o desnorteamento. O
desnorteamento gera receitas para a indústria cultural. As receitas da
indústria cultural fazem os governos se sentirem participantes da cultura. Já
vimos que assim o mundo todo vive feliz.
Quando pensamos em América Latina o assunto é: narcotráfico, corrupção,
o inferno verde em que transformaram a Amazônia etc.
Se falamos
especificamente em cultura, surgem menções a programas governamentais do tipo o
velho Mercosul. Contudo, a razão de ser de programas dessa ordem é econômica e
não cultural. Os encontros culturais latino-americanos habitualmente realizados
talvez entendam melhor do assunto, embora se resumam quase sempre em mero
exercício retórico. A presença efetiva que possa representar um intercâmbio
centra-se na circulação de revistas e jornais de cultura. Assim nossos países
se comunicam. Assim descobrimos que nem tudo é Neruda ou Amado.
Posso sentir-me à
vontade para tocar neste assunto, pelo diálogo intenso que tenho mantido com
cada um dos países que compõem a América Latina. Exemplos: com frequência o
argentino Diario de poesía
interessa-se pela literatura uruguaia; no México a revista Blanco Móvil dedica número à literatura brasileira; a literatura
chilena está sempre presente no boliviano Presencia
literaria, assim como a paraguaia visita com frequência as páginas da
portorriquenha Exégesis. Seus
diretores, respectivamente Daniel Samoilovich, Eduardo Mosches, Jesús Urzagasti
e Marcos Reyes Dávila, têm feito muito mais pela cultura latino-americana do
que todos os programas e desprogramas de governo.
Contudo, o que neles
funciona como uma situação essencial de reconhecimento e diálogo, no Brasil não
ultrapassa a marca do acaso (geralmente definido pela influência de alguém
junto ao cartel editorial). O Brasil é o país menos afeito a uma discussão em
torno da suposta identidade cultural latino-americana. Mais ainda: jamais nos
sentimos integrantes da América Latina. Somos algo que não deu certo, mas que
não pretendia ser América Latina. Talvez um café parisiense ou uma praça
novaiorquina. Nossos escritores não dialogam com seus pares. Todos aspiram a
descobrir a Europa que acreditam trazer dentro de si. Em alguns casos serve os
Estados Unidos.
A discussão em torno de
uma identidade cultural latino-americana torna-se risível a partir do momento
em que os brasileiros sentam-se à mesa. A América Latina nunca nos interessou.
Na biblioteca do Mário de Andrade, por exemplo, encontramos livros de vários
poetas sul-americanos e mexicanos que lhe foram autografados. Jamais fez menção
pública a um possível diálogo com esta poesia. Uns poucos poetas (César
Vallejo, Pablo Neruda) trazidos a nós pela “Geração de 45” o foram sem respaldo
tradutório aceitável. Os concretistas impuseram seu programa estético,
desvirtuando as leituras mais abrangentes que poderíamos ter da poesia de
Huidobro, Paz e Girondo.
O Brasil é um grande
caos estético. É como um filho de pai desconhecido, que não sabe a quem puxe.
Nossa paternidade é fundada por um princípio de identificação. Temos que deixar
de ser a grande dama errante do
planeta. Este país precisa existir. Ou desistir disto de uma vez por todas. Se
a identificação tende a uma busca de unidade com a América Latina, temos então
muito que aprender. Não fico com outra sugestão senão a ousadia do diálogo.
Deixar de enviar escritores medíocres para os encontros culturais da América
Latina, ou seja, tratar respeitosamente estes encontros, que são sistemáticos e
efetivos. Trazer a América Latina para dentro de nós. Assumir a fragmentação
imposta por instâncias outras, tomar ciência dela e reagir.
Enquanto isto, poetas e
diretores de inúmeras publicações em toda a América Latina seguirão fiando e
desfiando uma unidade impossível, exceto pelo brilho de sua diversidade. Não se
trata propriamente de poesia, narrativa ou jornalismo. O básico é entendermos
que não há América Latina senão no ajustável conceito da indústria cultural.
Para fundarmos uma identidade cultural, aceita como latino-americana, temos
antes de tudo de nos conhecermos, que sentarmos à mesa nem que seja para uma
cerveja. A falta de diálogo afunda um povo em sua mediocridade. Só o diálogo
funda uma cultura.
NOTA
Floriano
Martins (Brasil, 1957). Fundou e dirige a Agulha
Revista de Cultura, bem como o selo editorial ARC Edições. Esta conferência
foi proferida no Salão do Livro de Guarulhos (São Paulo, maio de 2016).
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ÍNDICE
AGLAE
MARGALLI | La poesía mística de César Vallejo
ALFONSO
PEÑA | Luis Treville Latouche y su “Museo de las piedras”
ARMANDO
ROMERO | Fernando Pessoa en América Latina
CAROLINE
COSTA PEREIRA | O mundo editorial de Floriano Martins
DAVID CORTÉS CABÁN | Jorge Valero, el tejedor de estrellas
ESTER
ABREU VIEIRA DE OLIVEIRA | Alterações na representação teatral ao longo do
tempo
FLORIANO MARTINS | Vicente Huidobro e a colheita
vertiginosa da imagem poética
HAROLD
ALVARADO TENORIO | Enrique Lihn
OMAR
CASTILLO | Hilos para un tejido del habla en el poema: seis en una instantánea
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/06/omar-castillo-hilos-para-un-tejido-del.html
REGINA TEIXEIRA DE
BARROS | Arte
Moderna na Coleção da Fundação Edson Queiroz
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/06/regina-teixeira-de-barros-arte-moderna.html
*****
Página ilustrada com obras de Franz von Stuck (Alemanha, 1863-1928), artista convidado desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 17 |
Junho de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente |
MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design |
FLORIANO MARTINS
revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | MÁRCIO SIMÕES
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Ese editorial se podría escribir en cada uno de nuestros países. No solo el Estado, el nuevo burguesismo que en vez de atesorar cosas solo piensa en el dinero. Por lo menos los burgueses franceses queriendo imitar a la aristocracia que había derrotado durante los agitados días de la revolución se preocuparon por refinar el gusto y floreció el arte y la literatura. La gente leía y los libros circulaban. Pero la democracia o la dictocracia nuestra es de políticos profesionales o de comerciantes descarados que solo aman el dinero como dinero y no lo maravilloso que se puede comprar con él. Todo eso que dices ocurre como se ha dicho cuando la democracia dejó de ser lo que fue para los griegos: El gobierno de los mejores. Tú alcanzabas lo que tu talento te podía dar. Desde que somos representados por los peores nos jodimos. Apoyo totalmente ese valioso ensayo. No es un simple editorial, es un diagnóstico profundo de un mal latinoamericano. [Manuel Mora Serrano. República Dominicana]
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