A maioria dos estudiosos data o início do teatro cesairiano sua correspondência com
Janheinz Jahn, em 1953, que
segundo Ernspeter Ruhe "também bem cedo descobriu no poeta
lírico o dom do teatro." (8)
Outros estabelecem a data uns dez anos mais tarde no encontro com Jean-Marie
Serreau. Se não levarmos em conta a
análise de Arnold (1990), o texto de "E os cães se calavam” [Et les chiens se
taisaient], publicado na coleção Les armes miraculeuses,
em 1946, jamais foi levado a sério como peça de teatro. O texto se incorpora bem à coletânea lírica e
merece, sem dúvida, o qualificativo de "oratório"
dado pelo autor e aceito por uma parte da crítica. Por conseguinte, nunca poderíamos ter imaginado que um dia encontraríamos um estado do texto,
anterior àquele da Armes, que fosse destinado ao
palco e, além disso, que esta versão fosse um drama histórico que tratava da revolução
haitiana e da morte de Toussaint Louverture.
A descoberta recente de um texto datilografado
de “Les chiens se taisaient” [Os cães se
calavam], corrigido pelo autor,
resulta de uma viagem em dezembro
de 2008 que me levou a uma pequena cidade da Lorena, em
busca de informações sobre a preparação da
edição Brentano’s do Cahier [Cahier]. Este
“Ur-texto” se encontra agora no fundo Yvan
Goll na Biblioteca Municipal de Saint Dié
des Vosges. Goll, que tinha
traduzido o Caderno
com Lionel Abel para
a edição bilíngue de Brentano’s
(1947), voltou com sua esposa Claire à sua terra natal depois de seu exílio americano.
Ele trouxe dos Estados Unidos
inúmeros manuscritos que permaneceram
desconhecidos durante quase meio século. Albert Ronsin,
bibliotecário “vosgiano” revelou o conteúdo desses arquivos, dos quais ele se tornara o curador após a morte do casal Goll. Ele nos informou a existência de documentos que tratavam
de Césaire em um artigo intitulado "Yvan Goll et André Breton: des
relations difficiles” [Yvan Goll e André Breton: relacionamentos
difíceis", onde Ronsin narra os imprevistos da edição de Brentano’s, que
ele pôde reconstruir a partir da correspondência entre Goll e Breton até 1944. Este artigo revela também, de passagem, a existência de um manuscrito desconhecido de Et les chiens se taisaient: "Enfim, última carta
Breton Goll em 12
de dezembro de 1944 que exige dessa vez […] o complemento dos manuscritos de Césaire: Et les chiens se taisaient” (72).
Manuscritos que Goll evidentemente nunca remeteu a Breton.
Esta carta, conservada no fundo Yvan Goll,
nos dá a primeira data precisa ligada ao
texto datilografado; todavia, é razoável supor que ela tenha caído nas mãos de Goll com outros manuscritos de Césaire para os quais nós temos datas anteriores. As informações mais seguras sobre o destino dos textos
durante os anos de guerra estão na correspondência entre Aimé Césaire e Breton depositadas
na Biblioteca Literária Jacques
Doucet. A primeira das cartas de Césaire
a Breton que menciona este texto
é datada de 23 de setembro de 1943:
Césaire "acaba de terminar um drama negro”. Aquela
datada de 16 de novembro do mesmo ano anuncia a expedição para Nova York de um
pacote que contém "uma coletânea possível de poemas assim como um drama:
Et Les chiens se taisaient”. Dois
meses depois, Césaire envia a Breton "algumas páginas suplementares".
Trata-se do texto intitulado "Intermède", do qual não encontramos
nenhum traço no Ur-texto, o que sugere que, nessa data, Goll já detinha o texto
datilografado de St.-Dié. Depois, revelação fulgurante de 04 de abril de 1944,
numa carta na qual Césaire reage ao texto-prefácio de Breton "Un grand
poète noir": o poeta martinicano se junta aos surrealistas reunidos em
torno de Breton sem reservas. Ao mesmo tempo, Césaire nega a historicidade do
Ur-texto de Les chiens, nos seguintes
termos:
Nascido em Vichy, escrito
contra Vichy, no auge do racismo branco e do clericalismo, no auge da
demissão negra, essa obra não deixa de
portar desagradavelmente a marca dessas
circunstâncias.
Em
todo caso
1º)
Eu lhe peço que considere o manuscrito que você recebeu como um esboço, avançado, é certo, mas esboço no entanto. Se você me
perguntar por que eu tão apressadamente o enviei, é porque eu considerava
urgente fazê-lo sair da colônia e depositá-lo em mãos seguras.
2º) este esboço deve ser completado e
modificado. Corrigido no sentido de uma maior liberdade. Em especial, a parte da história, ou da "historicidade" já bastante
reduzida, deve ser eliminada quase por
completo. Você mesmo o julgará pelas “correções” que eu farei chegar a você
pelo correio.
Um mês depois somente, em 26 de maio de 1944, Césaire explicita
o significado da carta anterior negando "esse drama que provavelmente não será jamais publicado,
tanto ele me constrange e me escapa. Em
todo caso, a partir de agora, irreconhecível." A
última troca entre os dois poetas
a respeito do Ur-texto se encontra numa carta de abril de 1945. Já que Breton
revelara que Goll tinha conservado o manuscrito de Césaire,
este expressa sua preocupação de que Goll - que Césaire não conhece - possa
publicá-los, integralmente ou em parte. “Deste eu espero", disse ele a Breton, "que ele tenha a delicadeza de não publicar nada, visto que
ele não me perguntou nada, e sobretudo porque eu renego a versão dessa obra que
você conhece”.
Seu descontentamento com o
Ur-texto e Les chiens se taisaient
não parece ter disuadido Césaire de trabalhar neles durante o segundo semestre
de 1944, na época da sua longa estadia
no Haiti. É Thomas Hale quem fala de um artigo no jornal “Le
Soir” (19 de Dezembro de 1944), "Sur la scène de l’actualité. Prochains ouvrages
d’Aimé Césaire” [Sobre a cena da atualidade. Próximas obras de Aimé Césaire], ou "un repórter anonyme à
Port-au-Prince” [um repórter anônimo em Port-au-Prince], nota que a próxima obra do
poeta ‘será um drama que por sua composição e sua estrutura é inspirado nas
tragédias antigas’. Segundo Toumson e
Henry-Valmore, que, como Hale, não
dispunham da correspondência Breton-Césaire da época, este acaba durante a sua
estada no Haiti, de maio a dezembro
de 1944, Et les
chiens se taisaient. À luz da
correspondência Breton-Césaire,
é bem provável que o drama anunciado no Haiti se aproximasse já do texto incorporado em Les armes miraculeuses em 1946. Que Césaire, durante sua estadia em
Port-au-Prince, tenha retrabalhado seu texto para dele eliminar com firmeza
as últimas referências da Revolução do Haiti não passa sem
ironia.
[…]
Indiquei mais acima que a presença de acontecimentos e personagens históricos no Ur-texto o diferencia de
todos os seus sucessores: o de Les armes miraculeuses (1946), preparado em colaboração com Jahn
Jahheinz (1956), ou
então, a "versão teatral" publicada
pela “Présence Africaine” no mesmo ano.
Por mais diferentes que sejam, essas três versões carregam a definição de
tragédia (Jahn, Tragödie).
Ora, o Ur-texto se apresenta como
um drama histórico. De 1946 a 1956, no
interior dos textos que levam o título de Les chiens se taisaient, as inserções
são apenas assinaladas por alusões imprecisas, do gênero: “num momento
distante”, “ilha”, “rebelde”, e assim por diante. O que Barthes
chamou o código gnômico se
apresenta no Ur-texto de maneira precisa: "Na época
da Revolução Francesa", "Haiti", "Toussaint Louverture".
A orientação dessas modificações é clara. A estrutura do Ur-texto apresenta uma
intriga linear que se desenrola na ordem cronológica que corresponde aos
eventos históricos que ela traça. Por outro lado, as
versões sucessivas são marcadas por uma
ação mais imprecisa e difusa. O texto de Les armes miraculeuses,
ainda que o mais próximo no tempo, é
o mais distanciado dele sobre esse plano.
A decisão que Césaire
tomou de modificar o drama histórico de 1944 em uma tragédia (ou oratório
lírico) que faz parte integrante da coletânea Les Armes Miraculeuses (1946) acarretou cortes sombrios em todas
aquelas partes do Ur-texto que representavam ou faziam manifestamente alusão ao
mundo exterior: cenas de batalhas, negociações diplomáticas entre Touissant e
os franceses, discursos na assembleia. Mais ainda que a matéria histórica que deve cair no esquecimento, o abundante material
que muda de lugar na economia geral da peça retém nosso
interesse. Em muitos pontos, a réplica de um personagem do Ur-texto se
encontrará na boca de um outro
personagem, antagonista às vezes! O fato de que as réplicas
não correspondam mais à psicologia
de tal ou qual personagem sublinha de maneira insdicutível a decisão de
abandonar o drama histórico a favor do oratório marcado no recôndito do
surrealismo. Enquanto o drama histórico
valorizava relações dialéticas que remetiam aos antagonismos históricos, o
texto de Les armes miraculeuses
suprime toda a psicologia para reter apenas a tensão dialética.
Precisemos por um exemplo
que permitirá ao leitor captar, a partir do texto assim redistribuído, o
processo de revisão empreendido por Césaire após 1944. Parto do texto da
impressão de 1970 de Les armes, ao
qual podemos facilmente recorrer. “Vozes tentadoras” confrontam O Rebelde. A
réplica da primeira voz é só do coro do Ur-texto (52). Os versos que se seguem
pertenciam, no Ur-texto, a um monólogo de Toussaint (92-93).
Mais impressionante ainda
é a
réplica da segunda voz (96-97),
que reproduz ponto a ponto dois versos
do mesmo monólogo de Toussaint:
“Acabou, tudo está acabado, inútil reclamar, a ação da justiça se
apagou,/Vejam, eles o rasgaram em farrapos, em farrapos como um porco
selvagem”. Este exemplo, que é
multiplicado por cem no trabalho
de transformação do Ur-texto, testemunha de uma redistribuição de versos bem mais considerável do que tudo o que encontramos nas versões sucessivas do Cahier d’un retour au pays natal [Caderno de retorno ao país natal] entre 1939 e 1956. Ao fazer isso, Césaire modifica a força
e o impacto dos versos redistribuídos
para actantes diversos de seu oratório de 1946.
Apenas o trabalho de colaboração com
Jahn, dez anos depois, resultou
em uma alteração tão profunda da estrutura dos elementos
da peça.
Devo insistir no fato de
que o Ur-texto de 1944 já era eminentemente teatral. Sua descoberta, e sua publicação nas Oeuvres littéraires complètes [Obras
literárias completas de Césaire], obrigará a
crítica a retomar as conclusões que prevalecem desde a publicação, aos cuidados
de Ernstpeter Ruhe em 1990, da edição de Les
chiens se taisaient devida à Janheinz Jahn. Lá onde pudemos
acreditar que foi Jahn quem
trouxe Césaire para a cena, vai
ser preciso se render às evidências. Antes de retomar seu
texto para fundi-lo em uma coletânea de
poemas em 1946, Césaire
já tinha em mente uma encenação possível de seu drama histórico possível.
Por ora, estas conclusões devem
permanecer provisórias. O trabalho a ser
empreendido com James Arnold para estabelecer o texto de Les armes miraculeuses,
bem como a edição numerada do Cahier d’un retour au pays natal (1939 a 1956), trará novas descobertas sobre o plano textual. Por
ora, eu só posso indicar minha
completa concordância com o julgamento
de Césaire, que considerava
"Et les chiens se taisaient
um pouco como a nebulosa
de onde vieram todos esses mundos sucessivos que minhas outras peças constituem”. Antes da descoberta tão recente do Ur-texto, esta frase não
revelava senão uma parte ínfima de seu
sentido e nada de sua importância para a gênese da obra teatral de Césaire a
partir da revolução do Haiti.
ALEX
GIL. Especialista em literatura caribenha do século XX. Um dos editores
da edição genética crítica das obras completas de Aimé Césaire a partir de
Planète Libre na França. Ensaio traduzido por Milene Moraes para nossa revista. Página
ilustrada com obras de Armando Reverón (Venezuela), artista convidado desta
edição de ARC.
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