segunda-feira, 21 de novembro de 2016

ALEX GIL | Aimé Césaire – Descoberta do Ur-texto de Os cães se calavam


A maioria dos estudiosos data o início do teatro cesairiano sua correspondência com Janheinz Jahn, em 1953, que segundo Ernspeter Ruhe "também bem cedo descobriu no poeta lírico o dom do teatro." (8) Outros estabelecem a data uns dez anos mais tarde no encontro com Jean-Marie Serreau. Se não levarmos em conta a análise de Arnold (1990), o texto de "E os cães se calavam” [Et les chiens se taisaient], publicado na coleção Les armes miraculeuses, em 1946, jamais foi levado a sério como peça de teatro. O texto se incorpora bem à coletânea lírica e merece, sem dúvida, o qualificativo de "oratório" dado pelo autor e aceito por uma parte da crítica. Por conseguinte, nunca poderíamos ter imaginado que um dia encontraríamos um estado do texto, anterior àquele da Armes, que fosse destinado ao palco e, além disso, que esta versão fosse um drama histórico que tratava da revolução haitiana e da morte de Toussaint Louverture.
A descoberta recente de um texto datilografado de “Les chiens se taisaient” [Os cães se calavam], corrigido pelo autor, resulta de uma viagem em dezembro de 2008 que me levou a uma pequena cidade da Lorena, em busca de informações sobre a preparação da edição Brentano’s do Cahier [Cahier]. Este “Ur-texto” se encontra agora no fundo Yvan Goll na Biblioteca Municipal de Saint Dié des Vosges. Goll, que tinha traduzido o Caderno com Lionel Abel para a edição bilíngue de Brentano’s (1947), voltou com sua esposa Claire à sua terra natal depois de seu exílio americano. Ele trouxe dos Estados Unidos inúmeros manuscritos que permaneceram desconhecidos durante quase meio século. Albert Ronsin, bibliotecáriovosgiano” revelou o conteúdo desses arquivos, dos quais ele se tornara o curador após a morte do casal Goll. Ele nos informou a existência de documentos que tratavam de Césaire em um artigo intitulado "Yvan Goll et André Breton: des relations difficiles” [Yvan Goll e André Breton: relacionamentos difíceis", onde Ronsin narra os imprevistos da edição de Brentano’s, que ele pôde reconstruir a partir da correspondência entre Goll e Breton até 1944. Este artigo revela também, de passagem, a existência de um manuscrito desconhecido de Et les chiens se taisaient: "Enfim, última carta Breton Goll em 12 de dezembro de 1944 que exige dessa vez […] o complemento dos manuscritos de Césaire: Et les chiens se taisaient” (72). Manuscritos que Goll evidentemente nunca remeteu a Breton.
Esta carta, conservada no fundo Yvan Goll, nos dá a primeira data precisa ligada ao texto datilografado; todavia, é razoável supor que ela tenha caído nas mãos de Goll com outros manuscritos de Césaire para os quais nós temos datas anteriores. As informações mais seguras sobre o destino dos textos durante os anos de guerra estão na correspondência entre Aimé Césaire e Breton depositadas na Biblioteca Literária Jacques Doucet. A primeira das cartas de Césaire a Breton que menciona este texto é datada de 23 de setembro de 1943: Césaire "acaba de terminar um drama negro”. Aquela datada de 16 de novembro do mesmo ano anuncia a expedição para Nova York de um pacote que contém "uma coletânea possível de poemas assim como um drama: Et Les chiens se taisaient”. Dois meses depois, Césaire envia a Breton "algumas páginas suplementares". Trata-se do texto intitulado "Intermède", do qual não encontramos nenhum traço no Ur-texto, o que sugere que, nessa data, Goll já detinha o texto datilografado de St.-Dié. Depois, revelação fulgurante de 04 de abril de 1944, numa carta na qual Césaire reage ao texto-prefácio de Breton "Un grand poète noir": o poeta martinicano se junta aos surrealistas reunidos em torno de Breton sem reservas. Ao mesmo tempo, Césaire nega a historicidade do Ur-texto de Les chiens, nos seguintes termos:







Nascido em Vichy, escrito contra Vichy, no auge do racismo branco e do clericalismo, no auge da demissão negra, essa obra não deixa de portar desagradavelmente a marca dessas circunstâncias.
Em todo caso
1º) Eu lhe peço que considere o manuscrito que você recebeu como um esboço, avançado, é certo, mas esboço no entanto. Se você me perguntar por que eu tão apressadamente o enviei, é porque eu considerava urgente fazê-lo sair da colônia e depositá-lo em mãos seguras.
2º) este esboço deve ser completado e modificado. Corrigido no sentido de uma maior liberdade. Em especial, a parte da história, ou da "historicidade" já bastante reduzida, deve ser eliminada quase por completo. Você mesmo o julgará pelas “correções” que eu farei chegar a você pelo correio.

Um mês depois somente, em 26 de maio de 1944, Césaire explicita o significado da carta anterior negando "esse drama que provavelmente não será jamais publicado, tanto ele me constrange e me escapa. Em todo caso, a partir de agora, irreconhecível." A última troca entre os dois poetas a respeito do Ur-texto se encontra numa carta de abril de 1945. Já que Breton revelara que Goll tinha conservado o manuscrito de Césaire, este expressa sua preocupação de que Goll - que Césaire não conhece - possa publicá-los, integralmente ou em parte. “Deste eu espero", disse ele a Breton, "que ele tenha a delicadeza de não publicar nada, visto que ele não me perguntou nada, e sobretudo porque eu renego a versão dessa obra que você conhece”.
Seu descontentamento com o Ur-texto e Les chiens se taisaient não parece ter disuadido Césaire de trabalhar neles durante o segundo semestre de 1944, na época da sua longa estadia no Haiti. É Thomas Hale quem fala de um artigo no jornal “Le Soir” (19 de Dezembro de 1944), "Sur la scène de l’actualité. Prochains ouvrages d’Aimé Césaire” [Sobre a cena da atualidade. Próximas obras de Aimé Césaire], ou "un repórter anonyme à Port-au-Prince” [um repórter anônimo em Port-au-Prince], nota que a próxima obra do poeta ‘será um drama que por sua composição e sua estrutura é inspirado nas tragédias antigas’. Segundo Toumson e Henry-Valmore, que, como Hale, não dispunham da correspondência Breton-Césaire da época, este acaba durante a sua estada no Haiti, de maio a dezembro de 1944, Et les chiens se taisaient. À luz da correspondência Breton-Césaire, é bem provável que o drama anunciado no Haiti se aproximasse já do texto incorporado em Les armes miraculeuses em 1946. Que Césaire, durante sua estadia em Port-au-Prince, tenha retrabalhado seu texto para dele eliminar com firmeza as últimas referências da Revolução do Haiti não passa sem ironia.
[…]
Indiquei mais acima que a presença de acontecimentos e personagens históricos no Ur-texto o diferencia de todos os seus sucessores: o de Les armes miraculeuses (1946), preparado em colaboração com Jahn Jahheinz (1956), ou então, a "versão teatral" publicada pela “Présence Africaine” no mesmo ano. Por mais diferentes que sejam, essas três versões carregam a definição de tragédia (Jahn, Tragödie). Ora, o Ur-texto se apresenta como um drama histórico. De 1946 a 1956, no interior dos textos que levam o título de Les chiens se taisaient, as inserções são apenas assinaladas por alusões imprecisas, do gênero: “num momento distante”, “ilha”, “rebelde”, e assim por diante. O que Barthes chamou o código gnômico se apresenta no Ur-texto de maneira precisa: "Na época da Revolução Francesa", "Haiti", "Toussaint Louverture". A orientação dessas modificações é clara. A estrutura do Ur-texto apresenta uma intriga linear que se desenrola na ordem cronológica que corresponde aos eventos históricos que ela traça. Por outro lado, as versões sucessivas são marcadas por uma ação mais imprecisa e difusa. O texto de Les armes miraculeuses, ainda que o mais próximo no tempo, é o mais distanciado dele sobre esse plano.
A decisão que Césaire tomou de modificar o drama histórico de 1944 em uma tragédia (ou oratório lírico) que faz parte integrante da coletânea Les Armes Miraculeuses (1946) acarretou cortes sombrios em todas aquelas partes do Ur-texto que representavam ou faziam manifestamente alusão ao mundo exterior: cenas de batalhas, negociações diplomáticas entre Touissant e os franceses, discursos na assembleia. Mais ainda que a matéria histórica que deve cair no esquecimento, o abundante material que muda de lugar na economia geral da peça retém nosso interesse. Em muitos pontos, a réplica de um personagem do Ur-texto se encontrará na boca de um outro personagem, antagonista às vezes! O fato de que as réplicas não correspondam mais à psicologia de tal ou qual personagem sublinha de maneira insdicutível a decisão de abandonar o drama histórico a favor do oratório marcado no recôndito do surrealismo. Enquanto o drama histórico valorizava relações dialéticas que remetiam aos antagonismos históricos, o texto de Les armes miraculeuses suprime toda a psicologia para reter apenas a tensão dialética.
Precisemos por um exemplo que permitirá ao leitor captar, a partir do texto assim redistribuído, o processo de revisão empreendido por Césaire após 1944. Parto do texto da impressão de 1970 de Les armes, ao qual podemos facilmente recorrer. “Vozes tentadoras” confrontam O Rebelde. A réplica da primeira voz é só do coro do Ur-texto (52). Os versos que se seguem pertenciam, no Ur-texto, a um monólogo de Toussaint (92-93).
Mais impressionante ainda é a réplica da segunda voz (96-97), que reproduz ponto a ponto dois versos do mesmo monólogo de Toussaint: “Acabou, tudo está acabado, inútil reclamar, a ação da justiça se apagou,/Vejam, eles o rasgaram em farrapos, em farrapos como um porco selvagem”. Este exemplo, que é multiplicado por cem no trabalho de transformação do Ur-texto, testemunha de uma redistribuição de versos bem mais considerável do que tudo o que encontramos nas versões sucessivas do Cahier d’un retour au pays natal [Caderno de retorno ao país natal] entre 1939 e 1956. Ao fazer isso, Césaire modifica a força e o impacto dos versos redistribuídos para actantes diversos de seu oratório de 1946. Apenas o trabalho de colaboração com Jahn, dez anos depois, resultou em uma alteração tão profunda da estrutura dos elementos da peça.
Devo insistir no fato de que o Ur-texto de 1944 já era eminentemente teatral. Sua descoberta, e sua publicação nas Oeuvres littéraires complètes [Obras literárias completas de Césaire], obrigará a crítica a retomar as conclusões que prevalecem desde a publicação, aos cuidados de Ernstpeter Ruhe em 1990, da edição de Les chiens se taisaient devida à Janheinz Jahn. Lá onde pudemos acreditar que foi Jahn quem trouxe Césaire para a cena, vai ser preciso se render às evidências. Antes de retomar seu texto para fundi-lo em uma coletânea de poemas em 1946, Césairetinha em mente uma encenação possível de seu drama histórico possível. Por ora, estas conclusões devem permanecer provisórias. O trabalho a ser empreendido com James Arnold para estabelecer o texto de Les armes miraculeuses, bem como a edição numerada do Cahier d’un retour au pays natal (1939 a 1956), trará novas descobertas sobre o plano textual. Por ora, eu só posso indicar minha completa concordância com o julgamento de Césaire, que considerava "Et les chiens se taisaient um pouco como a nebulosa de onde vieram todos esses mundos sucessivos que minhas outras peças constituem”. Antes da descoberta tão recente do Ur-texto, esta frase não revelava senão uma parte ínfima de seu sentido e nada de sua importância para a gênese da obra teatral de Césaire a partir da revolução do Haiti.



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ALEX GIL. Especialista em literatura caribenha do século XX. Um dos editores da edição genética crítica das obras completas de Aimé Césaire a partir de Planète Libre na França. Ensaio traduzido por Milene Moraes para nossa revista. Página ilustrada com obras de Armando Reverón (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.






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