A sua jovialidade
é evidente e indiscutível, não só pelo incrível aspecto físico que apresenta apesar
da idade avançada, e que o faz frequentemente mostrar seus documentos para dirimir
qualquer dúvida de incautos interlocutores, mas também pela vitalidade que se pode
perceber à primeira observação de qualquer um dos seus inúmeros trabalhos artísticos.
Outro fato
digno de nota e de reflexão a respeito de sua carreira, que não deve ter sido muito
diferente da história de muitos dos nossos batalhadores artistas, é que só agora
faz sua primeira exposição individual, depois de muitos anos de trabalho em diversas
profissões que ocupam um extenso currículo.
Para conhecer
com maior profundidade o que faz esse notável artista que se apresenta nas inaugurações
de mostras como uma animada pessoa de fluente e feliz conversa, tive a oportunidade
de visitar numa manhã de sábado seu espaço de trabalho, localizado em Santana, bairro
tradicional da cidade de São Paulo.
As subir a
escada que leva ao pavimento superior, localizado em cima de uma padaria, deparei-me
com uma grande cópia de parte de conhecida pintura de Dürer, afixada ao lado da
porta de entrada. Ela retrata dois dos apóstolos confabulando sobre as sagrada escrituras.
Como as roupagens dos santos ocupam a maior parte da obra, o olhar com um pouco
de intenção abstrata pode facilmente ver ali não apenas os tecidos drapejados, mas
grandes áreas de cor, talvez uma primeira influência ao que eu veria a seguir.
Depois de entrar
na ampla sala de trabalho do artista, outras reproduções de quadros de célebres
pintores, como Antonello da Messina e Rubens, colocados numa das paredes laterais,
revelam preferências que, certamente, serviram direta ou indiretamente de guia e
inspiração para a formação da linguagem de Baratti.
Quem me acompanhou
até aqui, nesta tentativa de conduzir a atenção do leitor para uma visita a um antigo
ateliê, provavelmente imagina que encontrará a seguir uma descrição de obras acadêmicas
escurecidas pelo tempo, semelhantes àquelas que podem ser vistas nos antiquários,
com temas banais e estereotipados, pintadas por um senhor como um passatempo ou
uma maneira de preencher agradavelmente os longos dias de aposentadoria.
Porém, para surpresa geral, o que tive pela frente
foi a visão que contraria a ideia de um ambiente obscurecido pelo tempo, e também
nega tudo o que se poderia esperar da produção de alguém que provavelmente dedica-se
a uma atividade descompromissada e amadorística. Ao invés disso, naquelas paredes,
podia ser visto o resultado de um longo trabalho, transbordante de atualidade, com
claros sinais de uma ação realizada com muita competência, conhecimento e dedicação
profissional.
As obras, pintadas
com intenso colorido que lembram os grandes grafites das metrópoles, são igualmente
vigorosas em sua capacidade de atrair o olhar distraído de qualquer espectador não
especializado. Dessa maneira, composições de grandes áreas de cor pura preenchendo
largos fundos destacam irremediavelmente as figuras centrais, ao mesmo tempo em
que constroem o clima necessário à completa expressão do assunto pretendido.
As cores são fortes, chapadas, de textura quase
imperceptível, separadas por limites bem delineados. Às vezes, um traço de contorno
preto bem visível envolvendo as figuras aproxima essas criações das obras gráficas,
aparentando-as tanto com os cartazes quanto com certas imagens semelhantes às produzidas
por artista da pop art.
As combinações
e contrastes conseguidos entre cores primárias e complementares são muito vivos
em seu resultado final, transmitindo a sensação de terem sido criados com a finalidade
e o cuidado utilizados na preparação de uma matriz para impressão de imagem industrial,
onde a lei primordial é a valorização da informação com a maior clareza possível.
A temática,
em razão de apresentar-se bastante variada, exige soluções diferentes para cada
caso. Algumas são típicas de artista de grande cidade, como sugerem os títulos Metropolitan
Girls, No Jóquei Clube, Metrópole, Sem Teto etc. Outras são referências literárias
e à História da Arte, como As Baratas de Kafka, O Nome da Rosa, Pablo Casals,
Goya Pintando Dia e Noite. Há também as humorísticas, com desenhos de animais
e de personalidades, muito semelhantes ao que se faz nas charges. Porém, o que há
em comum em todos os trabalhos, o que faz parecer que todos caminham para um mesmo
destino apesar da diversidade de sua origem, é um traço pessoal do artista, decidido
e caracteristicamente circular, feito de linhas que propõem movimento e ação. E
todos provavelmente iniciaram-se da mesma maneira, partindo de pequenos ensaios
em papel.
Em frente às
pinturas, sobre uma espécie de prancheta que ocupa parte do centro do espaço de
trabalho, podem ser vistos centenas desses estudos, que, juntamente com diversos
outros objetos e instrumentos, constituem a mesa de trabalho do artista onde as
criações são inicialmente engendradas. No centro, posicionados lado a lado, repousam
pequenos desenhos feitos com canetas hidrográficas muito bem elaborados e detalhados
e, por isso mesmo, distantes da aparência descuidada de rápidos esboços. Soube depois
que são estudos preparatórios, pequenos modelos, que agora, depois de comparados
às obras para as quais serviram de rascunho, parecem suas miniaturas. Curioso observar
como são semelhantes entre si, à primeira vista quase idênticos, mas com pequenas
diferenças de criação que demonstram ter havido ali um processo de depuração e aprimoramento
das formas iniciais.
Também em outras
mesas ou estantes, algumas carinhosamente construídas com simples caixas de papelão
de supermercados, são vistos outros objetos curiosos, como coleções de livros de
referência, lentes e um microscópio. Sem contar os óculos vermelho-verdes, com moldura
de papelão, que trazem o título Pintura Estereótica, feitos para visualizar
imagens tridimensionais.
Essa combinação
de artista e cientista, tão comum nos áureos tempos históricos da pintura antecessora
do renascimento italiano, levou o artista a realizar pesquisas da imagem em terceira
dimensão. Parte de suas obras é feita de figuras que contém aquela duplicidade capaz
de, com o auxílio dos mencionados óculos, propiciar a sensação visual de profundidade.
Esta pesquisa
parece ter sido a principal preocupação de Francisco Baratti durante anos. E que,
de certa forma, ainda persiste e intermitentemente volta a ocupar o centro de sua
atenção. Parte do resultado foi apresentado por ele na Bienal Nacional de São Paulo,
em 1976, o que o motivou a realizar diversas palestras sobre este assunto no Brasil
e no Exterior.
Mas sua transição
pelo universo teórico não se resume à experimentação puramente visual. Ele também
escreve textos, que são apresentados em manuscritos muito caprichados e lindos em
sua singeleza, ilustrados pelo autor em diversas técnicas gráficas. Num deles reuniu
o conjunto de suas ideias sobre pintura e criação, sob o curioso título de Estética
Sistemática.
Nesses muitos
cadernos, onde são também guardados os já referidos estudos que servem de guia para
a construção das obras, estão também as anotações para as construções e os comentários
de cada etapa de trabalho. Entremeando as observações sobre assuntos sempre relacionados
à arte e à sua história, há frases de efeito e ditados construídos com todo o cuidado
e a responsabilidade do educador, que procura deixar para os alunos o melhor de
si, de tudo o que aprendeu numa longa vida.
Para compreender
um pouco mais sobre a personalidade desse curioso artista, é importante acrescentar
que, durante toda a visita ao atelier, o rádio permaneceu ligado e sempre sintonizado
na mesma estação, uma daquelas barulhentas FMs de São Paulo. O artista relata que
tem predileção por aquele tipo de som, cuja batida constante renova suas forças!
Felizmente este não é um tônico que pode ser administrado a todas as pessoas com
o mesmo sucesso.
E quando instado
a revelar o segredo de sua saudável longevidade, responde com uma obtusa teoria
sobre a ingestão de gorduras que contraria qualquer conselho médico. Uma afirmação
que defende com humor, talvez para dissimular o fato de que a alegria de pintar
é que pode, de fato, ser a causa do seu rejuvenescimento.
Tudo isso pronunciado
com o sorriso infantil e carinhoso do avô, que conta deliciosas histórias para mostrar
que na arte, realidade e fantasia caminham juntas, e que às vezes podem até se confundir,
como as luzes do crepúsculo, que por alguns delicados momentos, parecem idênticas
às de um novo amanhecer.
*****
NELSON SCRENCI (Brasil). Professor
de História da Arte e Artista Plástico. Página
ilustrada com obras de Francisco Baratti (Brasil), artista convidado desta edição
de ARC.
Ameiiii te conhecer e me identificar com suas obras lindas e coloridas.. Vc. Personifica bem o viver e o bem conviver dos Baratti.👏👏🙏
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